quarta-feira, 28 de março de 2018

Teologia e Misticismo na Tradição da Igreja Oriental (Vladimir Lossky)



Índice
1. Introdução: Teologia e Misticismo na Tradição da Igreja Oriental
2. As Trevas Divinas
3. Deus na Trindade
4. Energias Incriadas
5. Ser Criado
6. Imagem e Semelhança
7. A Economia do Filho
8. A Economia do Espírito Santo
9. Dois Aspectos da Igreja
10. O Caminho da União
11. A Luz Divina
12. Conclusão: A Festa do Reino

Introdução: Teologia e Misticismo na Tradição da Igreja Oriental

É nossa intenção, no seguinte ensaio, estudar certos aspectos da espiritualidade oriental em relação aos temas fundamentais da tradição dogmática ortodoxa. No presente trabalho, portanto, o termo "teologia mística" não significa mais que uma espiritualidade que expressa uma atitude doutrinária.

Em certo sentido, toda a teologia é mística, na medida em que manifesta o mistério divino: os dados da revelação. Por outro lado, o misticismo é freqüentemente colocado em oposição à teologia como um reino inacessível ao entendimento, como um mistério inexprimível, uma profundidade oculta, a ser vivido ao invés de conhecido; cedendo a uma experiência específica que ultrapassa nossas faculdades de compreensão e não a qualquer percepção sensorial ou da inteligência. Se adotássemos esta última concepção de forma incondicionalmente, resolutamente opondo o misticismo à teologia, seríamos levados em última instância à tese de Bergson que distingue, em sua obra Deux Sources, a "religião estática" das Igrejas da "religião dinâmica" dos místicos; a primeira de caráter social e conservador, e a última de caráter pessoal e criativo.

Até que ponto a afirmação de Bergson é justificável? Esta é uma pergunta difícil, ainda mais porque os dois termos que Bergson contrapõe no plano religioso estão enraizados nos dois pólos de sua visão filosófica do universo: a natureza e o élan vital. Para além desta atitude de Bergson, no entanto, muitas vezes se ouve expressar a perspectiva que enxergaria no misticismo um reino reservado para poucos, uma exceção à regra comum, um privilégio concedido a algumas almas que desfrutam da experiência direta da verdade, os outros, entretanto, precisam se contentar com uma submissão mais ou menos cega aos dogmas impostos desde fora, em relação a uma autoridade coercitiva. Essa oposição às vezes é levada a grandes proporções, especialmente se a realidade histórica for forçada a um padrão preconcebido. Assim, os místicos são colocados contra os teólogos, os contemplativos contra os prelados, os santos contra a Igreja. Basta lembrar para muitos uma passagem de Harnack, na vida de São Francisco de Paulo Sabatier e outras obras, mais freqüentemente escritas por historiadores protestantes.

A tradição oriental nunca fez uma nítida distinção entre misticismo e teologia; entre a experiência pessoal dos mistérios divinos e o dogma afirmado pela Igreja. As seguintes palavras ditas há um século por um grande teólogo ortodoxo, o Metropolita Filareto de Moscou, expressam perfeitamente esta atitude: "nenhum dos mistérios da sabedoria mais secreta de Deus deve parecer estranha ou completamente transcendente para nós, mas com toda a humildade, devemos submeter o nosso espírito à contemplação das coisas divinas”. [1] Em outras palavras, devemos viver o dogma que expressa uma verdade revelada, que nos aparece como um mistério insondável, de tal forma que, ao invés de assimilar o mistério ao nosso modo de entendimento, devemos, ao contrário, buscar por uma mudança profunda, uma transformação interior do espírito, permitindo experimentá-lo de forma mística. Longe de ser mutuamente opostos, a teologia e o misticismo se apóiam e se complementam. Um é impossível sem o outro. Se a experiência mística é um trabalho pessoal a partir do conteúdo da fé comum, a teologia é uma expressão, para o proveito de todos, daquilo que pode ser experimentado por todos. Fora da verdade mantida por toda a experiência pessoal da Igreja, o misticismo seria privado de toda certeza, de toda objetividade. Seria uma mistura da verdade e da falsidade, da realidade e da ilusão: "misticismo" no mau sentido da palavra. Por outro lado, o ensinamento da Igreja não poderia manter as almas se não expressasse, em certo grau, uma experiência interior de verdade, concedida em diferentes medidas a cada um dos fiéis. Não existe, portanto, nenhum misticismo cristão sem teologia; mas, acima de tudo, não há teologia sem misticismo. Não é por acaso que a tradição da Igreja Oriental tenha reservado o nome de "teólogo" peculiarmente para três santos escritores dos quais o primeiro é São João, o mais "místico" dos quatro Evangelistas; o segundo São Gregório Nazianzeno, escritor de poesia contemplativa; e o terceiro São Simeão, chamado "o Novo Teólogo", o cantor da união com Deus. O misticismo é, portanto, tratado no presente trabalho como o aperfeiçoamento e a coroa de toda a teologia: como teologia por excelência.

Ao contrário do gnosticismo, [2] onde o conhecimento por si próprio constitui o objetivo do gnóstico, a teologia cristã sempre é, em última instância, um meio: uma unidade de conhecimento que facilita um fim que transcende todo o conhecimento. Este fim último é a união com Deus ou deificação, a Θεώσις dos Padres Gregos. Assim, somos por fim levados a uma conclusão que pode parecer bastante paradoxal: a teoria cristã deve ter um significado eminentemente prático; e quanto mais mística é, mais diretamente ela aspira ao fim supremo da união com Deus. Todo o desenvolvimento das disputas dogmáticas que a Igreja atravessou ao longo dos séculos parece-nos, se o considerarmos do ponto de vista puramente espiritual, dominado pela constante preocupação que a Igreja teve de salvaguardar, em cada momento de sua história, para todos os cristãos, a possibilidade de alcançar a plenitude da união mística. Assim, a Igreja lutou contra os gnósticos em defesa desta mesma ideia de deificação como o fim universal: "Deus tornou-se homem para que os homens se tornassem deuses". Ela afirmou, contra os Arianos, o dogma da Trindade consubstancial; pois é o Verbo, o Logos, que nos abre o caminho para a união com a Divindade; e se o Verbo encarnado não tem a mesma substância com o Pai, se Ele não é verdadeiramente Deus, então nossa deificação é impossível. A Igreja condenou os nestorianos para que derrubasse o muro da divisão, através do qual, na pessoa do próprio Cristo, eles teriam separado Deus do homem. Ela se ergueu contra os Apolinarianos e os Monofisitas para mostrar que, uma vez que a plenitude da verdadeira natureza humana foi assumida pelo Verbo, é toda a nossa humanidade que deve entrar em união com Deus. Ela lutou contra os Monotelitas porque, fora da união das duas vontades, divina e humana, não poderia haver a possibilidade de deificação: "Deus criou o homem por sua vontade apenas, mas Ele não pode salvá-lo sem a cooperação da vontade humana". A Igreja emergiu triunfante da controvérsia iconoclasta, afirmando a possibilidade da expressão através de um meio material das realidades divinas - símbolo e garantia de nossa santificação. A principal preocupação, a questão em jogo, nas questões que sucessivamente se originam sobre o Espírito Santo, a graça e a própria Igreja - esta última, a questão dogmática do nosso tempo - é sempre a possibilidade, a maneira ou o meio de nossa união Com Deus. Toda a história do dogma cristão se desenvolve sobre este centro místico, guardado por diferentes armas contra seus numerosos e diversos inimigos no curso das eras sucessivas.

As doutrinas teológicas que foram elaboradas no decorrer dessas disputas podem ser tratadas na mais direta relação com o fim vital - a união com Deus - para a realização da qual são subservientes. Assim, elas aparecem como os fundamentos da espiritualidade cristã. É isto que devemos entender ao falar de "teologia mística"; não o misticismo propriamente dito, as experiências pessoais de diferentes mestres da vida espiritual. Tais experiências, por outro lado, muitas vezes permanecem inacessíveis para nós: mesmo que possam encontrar expressão verbal. O que, na realidade, pode-se dizer da experiência mística de São Paulo: Conheço um homem em Cristo que há catorze anos (se no corpo, não sei, se fora do corpo, não sei; Deus o sabe) foi arrebatado ao terceiro céu. E sei que o tal homem (se no corpo, se fora do corpo, não sei; Deus o sabe) foi arrebatado ao paraíso; e ouviu palavras inefáveis, que ao homem não é lícito falar. Para atrever-se em julgar a natureza dessa experiência, seria necessário compreendê-la mais plenamente do que o de São Paulo, que confessa a sua ignorância: “não sei; Deus o sabe”. Nós deliberadamente deixamos de lado toda questão de psicologia mística.  Tampouco são doutrinas teológicas que propomos estabelecer no presente trabalho, mas apenas elementos da teologia indispensáveis à compreensão de uma espiritualidade: os dogmas que constituem o fundamento do misticismo. Aqui, portanto, está a primeira definição e limitação do nosso assunto, que é a teologia mística da Igreja Oriental.

A segunda limitação circunscreve nosso assunto, por assim dizer, no espaço. Trata-se do Oriente cristão ou, mais precisamente, da Igreja Ortodoxa Oriental, que formará a área de nossos estudos sobre a teologia mística. Devemos reconhecer que essa limitação é um pouco artificial. Na realidade, uma vez que a divisão entre o Oriente e o Ocidente apenas data de meados do século XI, tudo o que é anterior a esta data constitui um tesouro comum e indivisível para ambas as partes de uma cristandade dividida. A Igreja Ortodoxa não seria o que é se não houvesse São Cipriano, Santo Agostinho e São Gregório Magno. Da mesma forma, a Igreja Católica Romana não seria o que é sem São Atanásio, São Basílio ou São Cirilo de Alexandria. Assim, quando se fala da teologia mística do Oriente ou do Ocidente, posiciona-se dentro de uma das duas tradições que permaneceram, até certo momento, duas tradições locais dentro de uma única Igreja, testemunhando uma única verdade cristã; mas que subseqüentemente separam-se, uma do outra, e dão origem a duas atitudes dogmáticas diferentes, irreconciliáveis em vários pontos. Podemos julgar as duas tradições, assumindo nossa posição em um terreno neutro, tão alheio a uma quanto à outra? Isso seria julgar o cristianismo do ponto de vista não-cristão: em outras palavras, recusar antecipadamente a entender qualquer coisa sobre o objeto de estudo. Pois a objetividade de modo algum consiste em se posicionar fora de um objeto, mas, ao contrário, consiste em considerar o próprio objeto em si mesmo e por si só. Existem áreas em que o que é geralmente denominado "objetividade" é apenas indiferença, e onde a indiferença significa incompreensão. No atual estado de diferença dogmática entre o Oriente e o Ocidente, é essencial, se desejamos estudar a teologia mística da Igreja Oriental, escolher entre dois pontos de vista possíveis. Ou colocar-se no terreno dogmático ocidental e examinar a tradição oriental através do Ocidente - isto é, por meio de críticas - ou então apresentar essa tradição à luz da atitude dogmática da Igreja Oriental. Este último caminho é o único possível para nós.

Será objetado, talvez, que a dissensão dogmática entre o Oriente e o Ocidente foi apenas acidental, que não tem importância decisiva, que se tratou mais uma questão dois mundos históricos diferentes, que, cedo ou mais tarde, viriam a se separar para que cada um pudesse seguir seu próprio caminho; e, por fim, que a disputa dogmática não foi mais do que um pretexto para romper de uma vez por todas a unidade eclesiástica que, de fato, deixara de ser uma realidade.

Tais afirmações, que são ouvidas com muita frequência tanto no Oriente como no Ocidente, são resultado de uma mentalidade puramente secular e do hábito generalizado de tratar a história da Igreja segundo os métodos que excluem a natureza religiosa da Igreja. Para o "historiador da Igreja", o fator religioso desaparece e se encontra deslocado por outros; como, por exemplo, o jogo de interesses políticos ou sociais, o papel desempenhado pelas condições raciais ou culturais, considerados como fatores determinantes na vida da Igreja. Nós pensamos que somos mais perspicazes, mais atualizados, ao colocar esses fatores como as verdadeiras forças orientadoras da história eclesiástica. Embora reconhecendo sua importância, um historiador cristão dificilmente pode resignar-se a considerá-los senão como acidental em relação à natureza essencial da Igreja. Ele não é capaz de ver na Igreja um corpo autônomo, sujeito a uma lei diferente do determinismo deste mundo. Se considerarmos a questão dogmática da processão do Espírito Santo, que dividiu o Oriente e o Ocidente, não podemos tratá-la como um fenômeno fortuito na história da Igreja. Do ponto de vista religioso, é a única questão de importância na cadeia de eventos que terminou na separação. Condicionado, pois pode muito bem ter sido, por vários fatores, essa escolha dogmática era - para uma parte como para a outra - um compromisso espiritual, uma tomada consciente de um dos lados em uma questão de fé.

Se muitas vezes somos levados a minimizar a importância da questão dogmática que determinou todo o desenvolvimento subsequente das duas tradições, isso é devido a certa insensibilidade ao dogma - que é considerado algo externo e abstrato. Dizem que é a espiritualidade que importa. A diferença dogmática não tem nenhuma conseqüência. No entanto, a espiritualidade e o dogma, o misticismo e a teologia estão inseparavelmente ligados à vida da Igreja. No que diz respeito à Igreja Oriental, já observamos que ela não faz distinção clara entre teologia e misticismo, entre o reino da fé comum e a da experiência pessoal. Assim, se quisermos falar de teologia mística na tradição oriental, não podemos fazer de outra maneira senão considerando-a dentro da definição dogmática da Igreja Ortodoxa.

Antes de abordar nosso assunto, é necessário dizer algumas palavras sobre a Igreja Ortodoxa, pouco conhecida até os nossos dias no Ocidente. O livro do padre Congar, a Cristandade Dividida, embora muito notável em muitos aspectos, permanece, apesar de todo esforço pela objetividade, sujeito, nas páginas que ele dedica à Igreja Ortodoxa, a certas noções preconcebidas. "Ao passo que o Ocidente", diz ele, "baseando-se na desenvolvida e limitada ideologia Agostiana, reivindicava a independência na vida e organização da Igreja, e assim estabelecia as linhas de uma eclesiologia muito definida, o Oriente estabelecia-se na prática e, até certo ponto, na teoria, em um princípio de unidade que era político, não-religioso e não verdadeiramente universal". [4] Para o padre Congar, assim como para a maioria dos escritores católicos e protestantes que se expressaram sobre esse assunto, a Ortodoxia se apresenta sob a forma de uma federação de igrejas nacionais, tendo como base um princípio político - a igreja do estado. Tais afirmações generalizadas só são possíveis ignorando-se a base canônica e a história da Igreja Oriental. A perspectiva que basearia a unidade de uma igreja local em um princípio político, racial ou cultural é considerada pela Igreja Ortodoxa como uma heresia, particularmente conhecida pelo nome do filetismo.[5] É o território eclesiástico, a área santificada por uma tradição cristã mais ou menos antiga que constitui a base de uma província metropolitana, administrada por um arcebispo ou metropolita, com os bispos de todas as dioceses reunindo-se de tempos em tempos em sínodo. Se as províncias metropolitanas são agrupadas para formar igrejas locais sob a jurisdição de um bispo que muitas vezes tem o título de patriarca, ainda é a comunidade de tradição local e de destino histórico (bem como a conveniência de convocar um concílio de muitas províncias), que determina a formação desses grandes círculos de jurisdição, cujos territórios não correspondem necessariamente aos limites políticos de um estado. [6] O Patriarca de Constantinopla goza de um certo primado de honra, arbitrando de tempos em tempos em disputas, mas sem exercer uma jurisdição sobre todo o corpo da Igreja ecumênica. As igrejas locais do Oriente tinham mais ou menos a mesma atitude em relação ao patriarcado apostólico de Roma - primeira sé da Igreja antes da separação e símbolo de sua unidade. A Ortodoxia não reconhece líder visível da Igreja. A unidade da Igreja se expressa através da comunhão dos líderes das igrejas locais, pelo acordo de todas as igrejas em relação a um concílio local - que, assim, adquire uma importância universal; por fim, em casos excepcionais, pode manifestar-se através de um concílio geral.[7] A catolicidade da Igreja, longe de ser o privilégio de qualquer um ou centro específico, é concretizada na riqueza e multiplicidade das tradições locais que dão testemunho unânime de uma única Verdade: aquilo que é preservado sempre, em todos os lugares e por todos. Uma vez que a Igreja é católica em todas as suas partes, cada um de seus membros - não só o clero, mas também cada leigo - é chamado a confessar e a defender a verdade da tradição; opondo-se até mesmo aos bispos se caírem em heresia. Um cristão que recebeu o dom do Espírito Santo no sacramento da Santa Crisma deve ter plena consciência de sua fé: ele é sempre responsável pela Igreja. Daí o caráter inquieto e às vezes agitado da vida eclesiástica de Bizâncio, da Rússia e de outros países do mundo Ortodoxo. Isso, no entanto, é o preço pago por uma vitalidade religiosa, uma intensidade de vida espiritual que penetra toda a massa dos crentes, unida na consciência de que formam um único corpo com a hierarquia da Igreja. A partir disso, também vem a energia invencível que permite à Ortodoxia passar por todas as provas, todos os cataclismos e convulsões, adaptando-se continuamente à nova realidade histórica e mostrando-se mais forte do que as circunstâncias externas. As perseguições dos fiéis na Rússia, cuja fúria sistemática não conseguiu destruir a Igreja, são a melhor testemunha de um poder que não é deste mundo.

A Igreja Ortodoxa, embora comumente referida como Oriental, considera-se, apesar disso, a Igreja universal; e isso é verdade no sentido de que ela não está limitada por nenhum tipo particular de cultura, pelo legado de qualquer civilização (helenística ou outra), ou por formas culturais estritamente orientais. Além disso, oriente pode significar muitas coisas: do ponto de vista cultural, o Oriente é menos homogêneo do que o Ocidente. O que tem em comum o helenismo e a cultura russa, apesar das origens bizantinas do cristianismo na Rússia? A Ortodoxia tem sido fermento em muitas culturas diferentes para ser considerada uma forma cultural do Cristianismo Oriental. As formas são diferentes: a fé é uma. A Igreja Ortodoxa nunca confrontou culturas nacionais com outras que poderiam ser consideradas especificamente Ortodoxas. É por esta razão que a sua obra missionária conseguiu expandir-se tão prodigiosamente: testemunhar a conversão da Rússia ao cristianismo nos séculos X e XI, e, mais tarde, a pregação do Evangelho em toda a Ásia. No final do século XVIII, as missões Ortodoxas chegaram às ilhas Aleutianas e ao Alasca, passaram de lá para a América do Norte, criando novas dioceses da Igreja Russa além dos confins da Rússia, espalhando-se para a China e o Japão. [8] As variações antropológicas e culturais que se encontra da Grécia às partes mais remotas da Ásia e do Egito ao Ártico, não destroem o caráter homogêneo desse parentesco de espiritualidade, muito diferente do Ocidente cristão.

Existe uma grande riqueza de formas de vida espiritual que se encontra dentro dos limites da Ortodoxia, mas o monaquismo continua a ser a mais clássica de todas. Ao contrário do monaquismo ocidental, no entanto, o do Oriente não inclui uma multiplicidade de ordens diferentes. Este fato é explicado pela concepção da vida monástica, cujo objetivo só pode ser a união com Deus em uma completa renúncia à vida deste mundo presente. Se o clero secular (sacerdotes e diáconos casados), ou confraternidades de leigos podem ocupar-se de trabalho social, ou se dedicar a outras atividades externas, ocorre de outra forma com os monges. Estes últimos tomam o hábito acima de tudo para se dedicarem à oração, à vida interior, em um claustro ou eremitério. Entre um mosteiro de vida comum e a solidão de um ancorita que segue as tradições dos Pais do Deserto, existem muitos tipos intermediários de instituições monásticas. Poder-se-ia dizer de forma geral que o monaquismo oriental era exclusivamente contemplativo, se a distinção entre os dois caminhos, ativo e contemplativo, tivesse no Oriente o mesmo significado que no Ocidente. Na verdade, para um monge oriental, os dois caminhos são inseparáveis. Um não pode ser exercido sem o outro, pois a regra ascética e a escola de oração interior recebem o nome de atividade espiritual. Se os monges se ocupam de tempos em tempos com trabalhos físicos, é acima de tudo com um fim ascético em vista: para melhor superar sua natureza rebelde, bem como para evitar a ociosidade, inimiga da vida espiritual. Para alcançar a união com Deus, na medida em que é realizável aqui na Terra, exige-se esforço contínuo ou, mais precisamente, uma vigília incessante onde a integridade do homem interior, "a união de coração e o espírito" (para usar uma expressão do ascetismo Ortodoxo), resiste a todos os assaltos do inimigo: todo movimento irracional de nossa natureza caída. A natureza humana deve passar por uma mudança; deve ser cada vez mais transfigurada pela graça no caminho da santificação, que tem um alcance que não é apenas espiritual, mas também corporal e, portanto, cósmico. O trabalho espiritual de um monge que vive em comunidade ou um eremita retirado do mundo conserva todo o seu valor para o universo inteiro, mesmo que permaneça escondido da vista de todos. É por isso que as instituições monásticas sempre tiveram grande veneração em todos os países do mundo Ortodoxo.

O papel desempenhado pelos grandes centros de espiritualidade foi muito considerável não apenas na vida eclesiástica, mas também na esfera da cultura e da política. Os mosteiros do Monte Sinai e de Studion, perto de Constantinopla, a república monástica do Monte Athos, reunindo religiosos de todas as nações (havia monges latinos antes do cisma), outros grandes centros além dos limites do Império, como o mosteiro de Tirnovo, na Bulgária, e as grandes lavras da Rússia - Petcheri em Kiev e a Santíssima Trindade próximo de Moscou - todos foram bastiões da Ortodoxia, escolas da vida espiritual, cuja influência religiosa e moral foi de primeira importância na moldagem de povos recém-convertidos ao Cristianismo. [9] Mas se o ideal monástico teve uma influência tão grande sobre as almas, esse não era, contudo, o único tipo de vida espiritual que a Igreja oferecia aos fiéis. O caminho da união com Deus pode ser buscado fora do claustro, em todas as circunstâncias da vida humana. As formas externas podem mudar, os mosteiros podem desaparecer, como nos nossos dias desapareceram por um tempo na Rússia, mas a vida espiritual continua com a mesma intensidade, encontrando novos modos de expressão.

A hagiografia oriental, que é extremamente rica, mostra ao lado dos santos monges muitos exemplos de perfeição espiritual alcançado por leigos simples e pessoas casadas que vivem no mundo. Também conhece caminhos estranhos e inusitados para a santificação: aquele, por exemplo, dos "tolos por Cristo", que cometiam atos extravagantes para que seus dons espirituais pudessem permanecer escondidos dos olhos dos outros sob o horrível aspecto da loucura; ou, em vez disso, para que eles pudessem ser libertados dos laços deste mundo em sua expressão mais íntima e espiritualmente problemática, a de nosso "ego" social. A união com Deus às vezes se manifesta através de dons carismáticos como, por exemplo, de direção espiritual exercida pelos staretz ou anciões. Estes últimos são mais freqüentemente monges que, tendo passado muitos anos de sua vida em oração e isolados de todo o contato com o mundo, no final de suas vidas, abrem para todos as portas de suas celas. Possuem o dom de poder penetrar nas profundidades insondáveis ​​da consciência humana, de revelar pecados e as dificuldades internas que normalmente nos são desconhecidas, de elevar as almas sobrecarregadas e de dirigir os homens não apenas no seu curso espiritual, mas também em todas as vicissitudes de suas vidas no mundo.[11]

As experiências individuais dos maiores místicos da Igreja Ortodoxa na maioria das vezes permanecem desconhecidas para nós. Exceto por algumas raras exceções, a literatura espiritual do Oriente cristão possui pouquíssimos relatos autobiográficos que tratam da vida interior, como os de Angela de Foligno e Henry Suso, ou como Histoire d’une âme de Santa Teresa de Lisieux. O caminho da união mística é quase sempre um segredo entre Deus e a alma em questão, que nunca é confiado aos outros, a não ser a um confessor ou alguns discípulos. O que é publicado exteriormente é o fruto desta união: a sabedoria, a compreensão dos mistérios divinos, expressando-se no ensinamento teológico ou moral ou no conselho para a edificação de seus irmãos. Quanto ao aspecto interior e pessoal da experiência mística, permanece escondido dos olhos de todos. Deve ser reconhecido que foi apenas em um período comparativamente tardio, por volta do século XIII, na verdade, que o individualismo místico fez sua aparição na literatura ocidental. Apenas raramente São Bernardo fala diretamente de sua experiência pessoal - em uma única ocasião nos Sermões sobre o Cântico dos Cânticos  - e com uma espécie de relutância, seguindo o exemplo de São Paulo. Foi necessário que certa divisão tivesse ocorrido entre a experiência pessoal e a fé comum, entre a vida do indivíduo e a vida da Igreja, para que a espiritualidade e o dogma, o misticismo e a teologia, pudessem se tornar duas esferas distintas; e para que as almas incapazes de encontrar alimento adequado nas sumas teológicas se voltassem para buscar com avidez nos relatos de experiência mística individual, a fim de revigorar-se numa atmosfera de espiritualidade. O individualismo místico permaneceu estranho à espiritualidade da Igreja Oriental.

O padre Congar está certo quando diz: "Nós nos tornamos homens diferentes. Nós temos o mesmo Deus, mas diante Dele somos homens diferentes, incapazes de concordar quanto à natureza do nosso relacionamento com Ele". [12] Mas, para avaliar com precisão essa divergência espiritual, seria necessário examiná-la em suas manifestações mais perfeitas: nos diferentes tipos de santidade no Oriente e no Ocidente desde o cisma. Só então seríamos capazes de falar do vínculo estreito que sempre existe entre o dogma que a Igreja confessa e o fruto espiritual que produz. Pois a experiência interior do cristão se desenvolve dentro do círculo delineado pelo ensino da Igreja: dentro do quadro dogmático que molda sua pessoa. Se até mesmo uma doutrina política professada pelos membros de um partido pode modelar a mentalidade deles de forma a produzir um tipo de homem distinguível dos outros por certas marcas morais ou psíquicas, a fortiori o dogma religioso consegue transformar as próprias almas daqueles que o confessam. São homens diferentes dos outros homens, daqueles que foram formados por outra concepção dogmática. Nunca é possível entender uma espiritualidade se não se tiver em conta o dogma em que está enraizada. Devemos aceitar os fatos como são, e não procurar explicar a diferença entre a espiritualidade oriental e ocidental por motivos raciais ou culturais quando uma questão maior, uma questão dogmática, está em jogo. Nem podemos dizer que as questões da processão do Espírito Santo ou da natureza da graça não têm grande importância no esquema da doutrina cristã, que permanece mais ou menos idêntica entre os Católicos Romanos e entre os Ortodoxos. Em dogmas tão fundamentais como estes, é este "mais ou menos" que é importante, pois transmite uma ênfase diferente a toda doutrina, apresenta-a em outra luz; em outras palavras, dá lugar a outra espiritualidade.

Fica a cargo do leitor julgar em que medida esses aspectos teológicos do misticismo Ortodoxo podem ser úteis para a compreensão de uma espiritualidade que é estranha ao cristianismo ocidental. Se, permanecendo leais aos nossos respectivos pontos de vistas dogmáticos, conseguirmos conhecer uns aos outros, sobretudo nos pontos em que diferimos, isso, sem dúvida, seria um caminho mais seguro em direção à união do que aquele que deixa as diferenças de lado. Pois, nas palavras de Karl Barth, "a união das Igrejas não é produzida, mas a descobrimos". [13]

NOTAS
1 Sermons and Addresses of the Metropolitan Philaret, Moscow, 1844, Part II, p. 87. (In Russian.)

2 Veja o artigo por M. H.-Ch. Puech: ‘Où en est le problème du gnosticisme?’, Revue de l’Université de Bruxelles, 1934, Nos. 2 and 3.

3 II Cor. xii, 2–4.

4 M. J. Congar, O.P., Chrétiens désunis. Principes d’un ‘oecuménisme’ catholique, Paris, 1937, p. 15. English translation by M. A. Bousfield, Divided Christendom, London, 1939, p. 13.

5 Synod of Constantinople, 1872. v. Mansi, Coll. concil., vol. 45, 417–546. See also the article by M. Zyzykine: ‘L’Eglise orthodoxe et la nation,’ Irénikon, 1936, pp. 265–77.

6 Assim, o Patriarcado de Moscou inclui as dioceses da América do Norte e de Tóquio além das fronteiras da Rússia. Por outro lado, o catolicato da Geórgia, embora dentro dos limites dos EUA, não faz parte da Igreja Russa. Os territórios dos Patriarcados de Constantinopla, Alexandria, Antioquia e Jerusalém são politicamente dependentes de muitos poderes diferentes.

7 O nome do Concílio Ecumênico, dado no Oriente aos sete primeiros sínodos gerais, corresponde a uma realidade de caráter puramente histórico. Estes são os concílios dos territórios "ecumênicos", isto é, do Império Bizantino que se estendeu (teoricamente, pelo menos) por todo o mundo cristão. Em épocas posteriores, a Igreja Ortodoxa conheceu concílios gerais que, sem ter o título de "ecumênico", não eram nem menores nem menos importantes.

8 Veja S. Bolshakoff, The Foreign Missions of the Russian Orthodox Church, London, 1943.

9 Há algumas informações úteis sobre o monasticismo oriental no pequeno livro de pe. N. F. Robinson, S.S.J.E., intitulado Monasticism in the Orthodox Churches (Londres, 1916). Sobre o Monte Athos, veja Hasluck: Athos e seus Monastérios (Londres, 1924) e F. Spunda, Der Heilige Berg Athos (Leipzig, 1928). Para a vida monástica na Rússia, ver os seguintes estudos de Igor Smolitsch, 'Studien zum Klosterwesen Russlands', em Kyrios, n. 2 (1937), pp. 95-112 e n. 1 (1939), pp. 38, e, acima de tudo, o mesmo autor 'Das altrussische Mönchtum' (XI-XVI Jhr.), Würzburg, 1940, em Das östliche Christentum, XI, e Russischer Mönchtum, Würzburg, 1953.

10 Veja sobre esse assunto E. Benz, ‘Heilige Narrheit’, in Kyrios, 1938, Nos. i and 2, pp. 1–55; Mme Behr-Sigel, ‘Les Fous pour le Christ et la sainteté laïque dans l’ancienne Russie’, in Irénikon, Vol. XV (1939), pp. 554–65; Gamayoun, ‘Etudes sur la spiritualité populaire russe: les fous pour le Christ’, in Russie et Chrétienté, 1938–9, I, pp. 57–77.

11 Smolitsch, Leben und Lehre der Starzen, Vienna, 1936.

12 Congar, op. cit., p. 47.

13 ‘The Church and the churches’, Oecumenica, III, No. 2, July, 1936.

2 comentários:

  1. Boa noite, irmão em Cristo, Nosso Senhor e Salvador! Eu soube que os ortodoxos acreditam que existe uma purificação depois da morte; ela é semelhante a do Catolicismo?

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  2. Não acreditamos em uma purificação após a morte. Os Ortodoxos não acreditam em purgatório.

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