quarta-feira, 17 de julho de 2019

Agostinho e o desenvolvimento da teologia ocidental (Pe. John W. Morris)

O Papel de Agostinho de Hipona na Teologia Ocidental

É praticamente impossível exagerar o papel de Agostinho no desenvolvimento do pensamento cristão ocidental. Suas obras não apenas moldaram a teologia católica romana, mas desempenharam um papel importante no desenvolvimento do protestantismo. Um escolar patrístico católico escreveu: “Se nos confrontássemos com a improvável proposição de ter que destruir completamente as obras de Agostinho ou as obras de todos os outros Padres e Escritores, tenho pouca dúvida de que todos os outros teriam que ser sacrificados. Agostinho deve permanecer.” [352] Alguns historiadores argumentam que o interesse em Agostinho, estimulado pela impressão de suas obras entre 1490 e 1506 por Johann Amerback de Basílio, ajudou a causar a Reforma Protestante. Não há dúvida de que todos os lados da crise religiosa procuraram o maior teólogo ocidental durante seus debates. Um historiador descreve a Reforma como um “debate na mente de Agostinho há muito morto”. [353] Martinho Lutero, o fundador da Reforma Protestante, baseou grande parte de seu pensamento nos escritos de Agostinho. Os Institutos da Religião Cristã de João Calvino contém centenas de citações de Agostinho. Significativamente, Calvino, um dos teólogos mais influentes da Reforma Protestante, cita os santos Basílio, Irineu e Gregório, o Teólogo, apenas duas vezes cada. Ele não consulta São Gregório de Nissa,  Santo Atanásio, São João de Damasco ou os outros grandes teólogos orientais. [354]

Essa dependência excessiva em Agostinho e a falha em considerar as idéias dos Padres Orientais é a principal diferença teológica entre a Ortodoxia e o Cristianismo Ocidental, tanto Católicos Romanos quanto Protestantes. Embora as idéias de Agostinho tenham desempenhado um papel decisivo no desenvolvimento da teologia ocidental, elas quase não tiveram influência sobre o Oriente cristão. Embora a Igreja Ortodoxa Oriental considere Agostinho um Santo e Padre da Igreja, os teólogos orientais só conheciam Agostinho através de sua reputação. Até pelo menos o século XIII, suas obras não estavam disponíveis em grego. Como resultado, os teólogos ortodoxos orientais não puderam responder a Agostinho porque haviam lido apenas algumas citações isoladas de suas obras.

Muitas das diferenças doutrinárias entre a ortodoxia e o catolicismo romano e o protestantismo podem ser atribuídas à influência de Agostinho. O teólogo norte-africano moldou a doutrina ocidental do pecado original, que reforçou uma compreensão legalista da salvação herdada de Tertuliano. A doutrina ocidental do pecado original implicou uma negação do livre-arbítrio que estabeleceu as bases para a doutrina de Lutero da “escravidão da vontade” e para a doutrina mais radical da predestinação de Calvino. Agostinho é também o principal autor da doutrina da dupla processão do Espírito Santo do Pai e do Filho. Isto levou à famosa controvérsia filioque porque influenciou a Igreja Ocidental a adicionar as palavras “e do Filho” ao credo depois de, “Eu creio no Espírito Santo, o Senhor e Doador da Vida, que procede do Pai”. O debate sobre a processão do Espírito Santo e do filioque foi a principal disputa doutrinal que levou ao Grande Cisma entre a Ortodoxia Oriental e o Catolicismo Romano. Finalmente, a atitude negativa de Agostinho em relação à sexualidade humana estimulou grandemente o movimento de exigir o celibato compulsivo de todo o clero ocidental, outra importante causa do conflito entre a Ortodoxia e a Igreja Católica Romana.

É importante lembrar que Agostinho provavelmente não reconheceria como agostiniana muitas das idéias que outros tiraram de sua obra. Agostinho era uma pessoa muito inteligente e complexa. Durante o calor do combate intelectual, ele muitas vezes exagerou seus argumentos. Ele nunca sistematizou seus pensamentos em uma discussão coerente da doutrina cristã, como a obra Sobre a Fé Ortodoxa de São João de Damasco. À medida que o conflito com o pelagianismo e outras heresias continuou, ele se expressou de maneira que contradiziam o que ele escreveu em suas primeiras obras. Antes da disputa com o pelagianismo, Agostinho era muito mais simpático à idéia de livre arbítrio. Ele escreveu que "nem eu mesmo em todas as coisas me segui ..." [355] No final de sua vida, ele aconselhou seus leitores a rejeitar o que está "errado" em seus escritos. [356] Em todo caso, sem o equilíbrio proporcionado pelo outros Padres, uma confiança excessiva em Agostinho ou qualquer outro Padre às custas dos outros, pode produzir todo tipo de desastre teológico.

A vida de Agostinho de Hipona

Agostinho, que é freqüentemente chamado Bem-aventurado Agostinho nos círculos ortodoxos, nasceu em Tagaste, em Numida, no norte da África, em 13 de novembro de 354. Estudou lógica e filosofia em Cartago e tornou-se professor de retórica em Roma. A retórica é uma disciplina antiga que é algo como uma combinação dos assuntos modernos de comunicação, lógica e linguagem. Depois que alguns de seus alunos se recusaram a lhe pagar, ele se mudou para Milão em 383. Embora sua mãe, Santa Monica, fosse uma cristã devota, o jovem Agostinho se juntou aos maniqueus, uma seita fundada por um persa chamado Mani. Como Zoroastro e outros líderes religiosos persas antes dele, Mani acreditava no dualismo, dois poderes divinos em conflito, um bom e outro mau. Seguidores rígidos do maniqueísmo, chamados de “eleitos”, não se casavam e viviam uma vida de severo ascetismo e autonegação. A maioria dos membros, no entanto, como Agostinho, eram "ouvintes", que não conseguiam seguir todos os ensinamentos da seita. No entanto, é muito tentador especular que Agostinho nunca realmente se libertou da influência maniqueísta, especialmente ao discutir o assunto da sexualidade humana.

O jovem Agostinho não era um asceta, apesar de seu interesse pelo maniqueísmo. Em vez disso, ele viveu uma vida muito imoral. Ele foi pai de um filho ilegítimo antes de deixar a África. Quando ele chegou em Milão, ele caiu sob a influência de Santo Ambrósio. Sua conversão ao cristianismo veio depois de uma grande agitação pessoal. [357] Em certo ponto, ele orou: “Dá-me castidade e continência, mas não agora”. [358] Durante o verão de 386, sentado em um jardim em Milão, ele contemplou em se tornar ou não um cristão, e de repente ele ouviu uma criança cantando: "Pegue e leia". Ele encontrou um livro das epístolas e voltou-se para a epístola de São Paulo aos Romanos, onde ele leu: “andemos honestamente, como de dia; não em glutonarias, nem em bebedeiras, nem em desonestidades, nem em dissoluções, nem em contendas e inveja. Mas revesti-vos do Senhor Jesus Cristo, e não tenhais cuidado da carne em suas concupiscências.“  [359] De repente, todas as suas dúvidas e lutas cessaram e ele se tornou cristão. [360]

Depois de sua conversão, e batismo por Santo Ambrósio, Agostinho voltou ao norte da África, onde tentou fundar um mosteiro. No entanto, sua habilidade como pensador e orador atraiu tanta atenção, que ele achou impossível viver uma vida de reclusão. Em 391, o bispo de Hipona ordenou-o ao sacerdócio. Quatro anos depois, ele se tornou o bispo de Hipona, onde morreu em 430. Santo Agostinho foi contemporâneo de alguns dos maiores teólogos da história da igreja, como os Capadócios e São João Crisóstomo. Ele foi um prolífico escritor que comentou sobre praticamente todos os assuntos da fé cristã, como praticada durante esta importante era da história da Igreja. Ele publicou 93 obras contendo 232 livros. [361] Ele estava vivo durante o fim da controvérsia ariana e o Segundo Concílio Ecumênico e o início do conflito Nestoriano.

A controvérsia donatista

Como bispo de Hipona, Agostinho teve que lidar com o cisma donatista que começou quando a Igreja teve que decidir como tratar aqueles que queriam retornar à Igreja depois de terem comprometido sua fé durante a perseguição romana. Geralmente, os bispos readmitiram esses cristãos que renegaram a fé para a Vida Sacramental da Igreja após um período de penitência. No entanto, alguns rigoristas argumentaram que os bispos eram muito permissíveis. Em vez disso, eles argumentaram que aqueles que ofereceram incenso a deuses pagãos ou entregaram os livros sagrados às autoridades só poderiam ser perdoados em seu leito de morte. Este desacordo causou um cisma após a consagração de Caecilian como bispo de Cartago, no norte da África. Como Félix de Apthungi, um dos consagradores de Caecilian, entregara os textos sagrados aos romanos durante as perseguições, alguns crentes o consideravam indigno de administrar sua diocese e os sacramentos da Igreja. Chamado Donantismo, devido ao seu líder, Donato, bispo de Casae Nigrae no que é hoje o Sudão, o novo movimento ensinou que Sacramentos administrados por clero indigno são inválidos. Uma vez que é óbvio que apenas uns poucos homens seriam considerados dignos pelos donatistas, a Igreja decidiu que a validade dos sacramentos não depende da santidade do ministro no Concílio de Arles em 314. [362]

Embora a Igreja tenha condenado o donatismo, o cisma durou até o tempo de Agostinho. Agostinho contestou a visão donatista de que a Igreja verdadeira consistia apenas de santos porque é impossível nesta vida que a Igreja ou qualquer outro grupo de seres humanos seja constituído apenas de pessoas santas. Em vez disso, Agostinho argumentou que, enquanto a Igreja estiver neste mundo, será sempre uma “mistura contendo maus membros”. [363] Usando a parábola do joio de Cristo, ele mostrou que os santos, o trigo, sempre serão misturados com os pecadores, o joio, até a segunda vinda de Cristo. [364] Ele também declarou que a Igreja é santa porque é o Corpo de Cristo, que é santo, não porque os homens e mulheres que compõem a Igreja são santos. [365] Agostinho também ensinou que os sacramentos são obra de Deus e não dos homens. Por esta razão, a validade de um sacramento não depende da dignidade do ministro que preside o sacramento. Finalmente, quando os donatistas se recusaram a aceitar a decisão da Igreja sobre essa questão, Agostinho não hesitou em pedir às autoridades imperiais que esmagassem o movimento cismático à força. [366]

A crítica de Agostinho ao Donatismo teve conseqüências de longo alcance. Se a validade dos sacramentos dependesse da dignidade do ministro, haveria poucos Sacramentos válidos, se é que haveria algum. Também abordou uma questão mais ampla, a dos pecadores na Igreja. Se apenas aqueles que não pecam pudessem ser membros da Igreja, não haveria ninguém na Igreja, porque todos os humanos são pecadores. Ao longo da história, alguns cristãos caíram na armadilha de várias formas de donatismo, esquecendo que os homens e mulheres na Igreja não estão salvos. Eles estão sendo salvos. Ao restringir a participação na Igreja a alguns que alcançaram um certo grau de santidade, eles esquecem que cada membro da Igreja está em um estágio diferente em seu crescimento para a união com Cristo. Alguns são mais avançados que outros. Eles também esquecem que a participação na Igreja, que é o Corpo de Cristo, depende da graça de Deus, não das realizações espirituais dos que estão sendo salvos pela graça de Deus.

Doutrina de Agostinho da Santíssima Trindade

A doutrina agostiniana da Santíssima Trindade também teve conseqüências de longo alcance, porque diferia grandemente dos ensinamentos dos Padres Capadócios e de outros Padres orientais. Ao contrário dos Padres do Oriente, Agostinho foi além das Sagradas Escrituras e tentou explicar o mistério da Santíssima Trindade através da razão humana. Porque Agostinho se aproximou da Trindade através do uso de sua razão, ele desenvolveu uma visão da Trindade que é muito diferente da dos Padres Orientais, que sempre consideraram a razão humana um meio inadequado para tentar entender os mistérios de Deus. Em vez disso, eles limitaram suas descrições do mistério da Santíssima Trindade à revelação de Deus nas Escrituras Sagradas. São Gregório de Nazianzeno escreveu que qualquer pessoa que tente espreitar o “mistério de Deus” será “tomada por delírio” ou “levada à loucura”. [367]

Os historiadores chamam a teologia trinitária de Agostinho de modelo psicológico da Santíssima Trindade. [368] Porque os seres humanos são criados na Imagem de Deus, ele acreditava que se pode comparar as Três Pessoas da Santíssima Trindade com a mente, o amor da mente e o conhecimento da mente. Ele escreveu: “Mas nestes três, quando a mente se conhece e ama a si mesma, resta uma trindade: mente, amor, conhecimento”. Ele também escreveu que o Pai, o Filho e o Espírito Santo são como as três atividades da mente humana; memória, entendimento e vontade. Finalmente, ele comparou a Santíssima Trindade à memória, entendimento e amor com o Pai sendo memória, o Filho sendo entendimento e o Espírito Santo sendo amor. Ele descreveu o Espírito Santo como o amor e a unidade entre o Pai e o Filho. [369] Tal esforço para comparar as Pessoas da Santíssima Trindade com a mente humana seria impensável para os Padres do Oriente, que, como São João Crisóstomo escreveu, afirmaram que a natureza de Deus, "não tem nada em comum conosco". [370]

A Processão do Espírito Santo e o Filioque

A abordagem de Agostinho à Santíssima Trindade levou à doutrina da dupla processão do Espírito Santo do Pai e do Filho, que levou à adição da cláusula filioque ao Credo pela Igreja Católica Romana. Para combater a influência do arianismo entre os visigodos que governavam a Espanha, os seguidores de Nicéia na Ibéria enfatizaram a divindade do Filho ao ensinar que Ele é a origem do Espírito Santo junto com o Pai. Em 589, o Concílio de Toledo acrescentou as palavras “e do filho” ou filioque em latim ao credo depois de “Creio no Espírito Santo, Senhor e Doador da Vida, que procede do Pai.” Da Espanha, a doutrina da dupla processão do Espírito Santo se espalhou para a corte de Carlos Magno, que também acrescentou a nova cláusula ao Credo. A princípio, Roma se opôs a essa mudança. Embora tenha aceitado a doutrina da dupla Processão do Espírito Santo do Pai e do Filho, o Papa Leão III argumentou que ninguém tinha autoridade para mudar o texto do credo adotado pelos Concílios Ecumênicos. Para enfatizar seu argumento, ele ordenou dois escudos de prata e foram  pendurados na Basílica de São Pedro, um em latim e outro em grego, com o texto do Credo em sua forma original, sem a cláusula filioque. [371] Como a influência dos reis alemães continuou a crescer em Roma, o papa finalmente acrescentou a cláusula filioque ao Credo durante a coroação do imperador Henrique II em 1014. [372] No entanto, o Oriente Ortodoxo rejeitou a autoridade do bispo de Roma de revisar unilateralmente as decisões dos Concílios Ecumênicos. Por esta razão, a disputa sobre o texto do Credo é parcialmente um conflito sobre se o Papa ou um Concílio Ecumênico é a autoridade última na Igreja.

A Igreja Ortodoxa também se opõe à cláusula filioque por razões teológicas. Vladimir Lossky, um dos principais teólogos ortodoxos do século XX, considerou o filioque o verdadeiro motivo da divisão entre o Oriente e o Ocidente. Assim, ele argumentou que outras diferenças teológicas entre a ortodoxia e os católicos romanos e protestantes são na verdade uma consequência do filioque. [373] Embora ele não tenha sido o primeiro a ensinar a nova doutrina, os escritos de Agostinho fornecem o suporte teológico usado para justificar a cláusula filioque. Agostinho desenvolveu a doutrina da dupla processão do Espírito Santo do Pai e do Filho a partir de sua compreensão da Santíssima Trindade. O Padre Ocidental, que definiu o Espírito Santo como o amor e a unidade entre o Pai e o Filho, ensinou que o Espírito Santo procede do Pai e do Filho, porque o Filho é tudo o que o Pai é. Agostinho escreveu: “Pois se o Filho tem do Pai o que quer que Ele tenha, então certamente Ele tem do Pai, que o Espírito Santo também procede Dele”. [374]

Os teólogos ortodoxos orientais abordam a Santíssima Trindade de um ponto de vista muito diferente do de Agostinho e do Ocidente. O Oriente sempre lidou com as Três Pessoas como reveladas pelas Sagradas Escrituras. Visto que a única referência nas Escrituras Sagradas à processão do Espírito Santo afirma que o Espírito Santo "procede do Pai", não ocorreria aos teólogos orientais que o Espírito Santo também procede do Filho. [375] Porque a teologia trinitária oriental vem das Escrituras, os teólogos ortodoxos começam com o ensinamento de que Deus é o Pai que não tem começo, o Filho que é gerado do Pai e o Espírito Santo que procede do Pai. Assim, o Oriente enfatiza a monarquia do Pai que é a “primeira causa” ou fonte do Filho e do Espírito Santo. [376] Segundo a teologia ortodoxa, a doutrina da dupla processão do Espírito Santo do Pai e do Filho confunde o papel do Filho com a do Pai e, portanto, aproxima-se perigosamente da antiga heresia sabélica. O ensinamento de Agostinho também corre o risco de cair na heresia macedônica, porque se a essência do Pai e do Filho é a causa do Espírito Santo, então o Espírito Santo não é realmente divino, mas é uma criatura. [377]

A teologia trinitária ocidental começa com o conceito de Deus como “essência simples”, e então passa a definir as relações interpessoais do Pai, do Filho e do Espírito Santo. No entanto, os teólogos orientais argumentam que, ao reduzir a Santíssima Trindade a uma "essência simples", que se pode entender através da razão humana, a teologia trinitária ocidental é racionalista demais e fracassa em enfatizar a "incompreensibilidade de Deus". Como resultado, John Romanides, um influente teólogo ortodoxo moderno, escreveu: "O Deus pessoal da revelação tornou-se uma essência filosoficamente impessoal". [378] Essa discordância revela a diferença mais fundamental entre a teologia oriental e ocidental. O Oriente considera a razão humana muito falível e limitada para compreender os mistérios de Deus. No entanto, os teólogos ocidentais confiaram cada vez mais na razão humana em sua busca para desvendar os mistérios de Deus. Assim, os cristãos orientais e ocidentais não discordam em alguns pontos da doutrina. Eles têm duas maneiras muito diferentes de pensar sobre Deus. É por isso que Karen Armstrong, um respeitado historiador não-ortodoxo, observou que a disputa sobre o filioque mostra “que os gregos e latinos estavam desenvolvendo concepções bastante diferentes de Deus”. [379]

Teólogos Ortodoxos Orientais também argumentaram que a doutrina da dupla processão do Espírito Santo do Pai e do Filho implica que o Espírito Santo é inferior ao Pai e ao Filho. A doutrina ocidental torna o Espírito Santo menos Pessoa do que o Filho.[380] É significativo que a teologia e a prática ocidentais não tenham enfatizado - e às vezes ignoraram - o papel do Espírito Santo na vida da Igreja. Um resultado disso é a divisão artificial entre misticismo ou espiritualidade e teologia, que marcou a teologia ocidental desde, pelo menos, o século XIII, enquanto o Oriente não pode conceber a teologia sem misticismo ou espiritualidade. [381]

Agostinho e teólogos ocidentais baseiam seus ensinamentos da processão do Espírito Santo do Pai e do Filho em dois princípios, a unidade do Pai e do Filho em uma essência e o ensino bíblico de que o Filho envia o Espírito Santo. Entretanto, os teólogos ortodoxos argumentam que Agostinho e os teólogos ocidentais confundiram o ser interior da Trindade, ou a "Trindade ontológica", e a obra das Pessoas da Trindade para a salvação humana, ou a "Trindade econômica". Ontológico é um termo filosófico que pode ser melhor definido como a definição essencial de algo. Assim, o termo Trindade ontológica se refere a Deus como sempre existiu em seu ser interior ou essência. Econômico vem do grego para o ordenamento de uma casa. Teólogos ortodoxos referem-se à salvação como a economia de Deus. Portanto, o termo Trindade econômica refere-se à obra das Pessoas da Santíssima Trindade para a salvação da humanidade. Portanto, o Espírito Santo procede eternamente do Pai, de acordo com uma compreensão ontológica da Trindade, mas é enviado pelo Filho para a salvação humana quando a Trindade é entendida economicamente. Por essa razão, alguns Padres do Oriente, como São João Damasceno, escreveram que o Espírito Santo procede do Pai através do Filho. No entanto, São João é muito cuidadoso ao afirmar que o Pai é a “causa” do Filho e do Espírito Santo. [382] Os teólogos ocidentais argumentam que não há diferença real entre o conceito de que o Espírito Santo é enviado pelo Filho e a idéia de que o Espírito Santo procede do Filho. Eles também argumentam que “do Filho” significa basicamente a mesma coisa que “através do Filho”. Assim, São Máximo o Confessor argumentou que é possível entender a doutrina da dupla processão do Espírito Santo em um sentido Ortodoxo. [383]

A Doutrina do Pecado Original de Agostinho

O entendimento de Agostinho sobre a salvação também mostra as crescentes diferenças entre a Ortodoxia e as Igrejas Ocidentais, tanto católicas quanto protestantes. Agostinho desenvolveu suas visões sobre a salvação no calor da intensa controvérsia com Pelágio, um asceta britânico que ensinou que o homem poderia viver uma vida justa e ganhar a salvação através de sua própria capacidade. De acordo com Pelágio, o homem pode ser salvo sem a graça de Deus. Como apontou São João Cassiano, a confiança de Pelágio na capacidade humana mostrou uma estreita relação entre o pelagianismo e outra heresia, o nestorianismo. A Igreja condenou Pelagianismo no Terceiro Concílio Ecumênico, o Concílio de Éfeso em 431 ao mesmo tempo que também condenou o nestorianismo. A abordagem básica da salvação como algo que pode ser obtido em virtude do pelagianismo é radicalmente diferente da compreensão oriental da salvação como deificação através da comunhão com Deus. No entanto, assim como o monofisismo foi uma reação extrema ao nestorianismo, os ensinamentos de Agostinho sobre a salvação foram uma reação extrema ao pelagianismo.

A resposta de Agostinho ao pelagianismo levou ao desenvolvimento da doutrina ocidental do pecado original. Não há dúvida de que os Padres haviam ensinado que toda a mortalidade herdada era consequência da Queda de Adão e Eva. [384] Agostinho, porém, acrescentou uma nova dimensão ao ensino da Igreja argumentando que os nascidos dos descendentes de Adão não só herdam a mortalidade, mas também a culpa pessoal do pecado de Adão. Agostinho desenvolveu sua visão da culpa herdada de um texto na Epístola de São Paulo aos Romanos, 5:12. A tradução latina usada por Agostinho dizia: “Por um homem entrou o pecado no mundo e pelo pecado a morte; e assim a morte passou a todos os homens, em quem todos pecaram” [385]. No entanto, a Versão Padrão Revisada, uma tradução muito mais precisa do texto grego original, diz: "Portanto, como o pecado entrou no mundo por um homem e a morte pelo pecado, a morte se espalhou para todos os homens porque todos pecaram". Alguns traduzem a frase controversa em Romanos 5:12, “porque todos pecaram”, como “por causa da qual [a morte] todos pecaram.” [386] Nesse caso, a mensagem do texto é que o esforço inquieto para evitar as limitações da morte leva ao pecado. [387] Em qualquer caso, o texto grego original de Romanos 5:12 não ensina que todos herdam a culpa de Adão. Em vez disso, afirma que existe uma relação entre a morte, que todos herdam de Adão e o pecado. Por esta razão, os Padres do Oriente ensinaram a doutrina do pecado ancestral, a idéia de que todos herdam as conseqüências do pecado de Adão, que são corrupção e morte. Eles não ensinaram que todos herdam a culpa do pecado de Adão. São Irineu de Lyon escreveu: “... por meio de nossos primeiros pais, fomos todos escravizados, estando sujeitos à morte.” São Basílio escreveu que a morte é “transmitida a nós por meio de Adão”. São Cirilo de Alexandria descreveu o pecado ancestral como uma doença e escreve que os seres humanos nascem sujeitos à “corruptibilidade”. Significativamente, ele também afirmou que os humanos não são “co-transgressores com Adão”. [389] Os Padres do Oriente ensinaram que a luta contra a maldição da morte faz com que o indivíduo caia em pecado e, assim, incorra à culpa pessoal sobre si mesmo.[390] No entanto, Agostinho, que baseou suas opiniões na tradução latina incorreta, em vez do texto original grego de Romanos 5 : 12, concluiu que todos os seres humanos compartilham da culpa de Adão.[391] Agostinho descreveu a humanidade como uma "massa de perdição", porque todos nascem já contaminados com a culpa herdada de Adão.

A influência de Agostinho é tão grande que a Igreja Católica Romana e as Igrejas Protestantes continuam a ensinar o conceito do pecado original como pecado e culpa herdados. Durante a Idade Média, teólogos ocidentais como Anselmo de Cantuária expressaram o pecado original em termos ligeiramente diferentes. Anselmo ensinou que os nascidos no pecado original são privados da graça de Deus. [393] Em 1546, o Concílio de Trento, que se reuniu para dar uma resposta católica romana oficial à Reforma Protestante, definiu a herança de Adão como “a morte da alma”. [394] Os teólogos católicos romanos mais tradicionais reconciliam Anselmo com Trento ensinando que a morte da alma implica que a pessoa é privada da graça de Deus. [395] Nos tempos modernos, seguindo as grandes reformas introduzidas pelo Concílio Vaticano II na década de 1960, os teólogos católicos romanos adotaram uma visão menos extrema do pecado original. O Catecismo oficial da Igreja Católica ensina que, embora "todos os homens estejam implicados no pecado de Adão ... a natureza humana não foi totalmente corrompida". [396]

As conseqüências da doutrina ocidental do pecado original são enormes. A crença de Agostinho na culpa herdada continuou a legalização do conceito ocidental de salvação iniciada por Tertuliano. Como resultado, a compreensão ocidental da salvação enfatiza o perdão do pecado e a remoção da culpa. Por outro lado, os teólogos orientais vêem a salvação como uma cura que restaura a comunhão com Deus. Essa cura transforma o crente na semelhança de Deus. Consequentemente, os teólogos ortodoxos descrevem a salvação como deificação. Os cristãos ortodoxos não consideram a salvação em termos jurídicos ou legalistas como os católicos e protestantes. Teólogos ortodoxos enfatizam o papel da Encarnação na salvação. Ao se tornar homem, Cristo assumiu e curou a natureza humana. União com Cristo, deifica o crente assim como sua união com a natureza divina deificou a natureza humana de Cristo.

Agostinho e o livre arbítrio

De sua crença de que todos os seres humanos nascem já culpados do pecado de Adão, Agostinho concluiu que o pecado e a culpa herdados corromperam os seres humanos de tal forma que lhes roubaram o livre-arbítrio, bem como a capacidade de fazer o bem. Isso o levou a concluir que toda pessoa é tão contaminada pelo pecado original desde o nascimento que ela só pode usar seu livre-arbítrio para cometer pecados. [397] Como resultado, Agostinho ensinou que somente aqueles escolhidos por Deus para receber Sua graça divina são capazes de fazer o bem que Ele considerava necessário para a salvação. Portanto, somente aqueles predestinados ou escolhidos por Deus são salvos. Não há lugar para o livre arbítrio ou cooperação com Deus na compreensão de Agostinho da salvação. Ele escreveu, “Portanto, eles foram eleitos antes da fundação do mundo com aquela predestinação em que Deus previu o que Ele mesmo faria… Assim, Deus elegeu os crentes… escolhendo-os, portanto; Ele os faz ricos em fé, como os faz herdeiros do Reino.” [398]

Nada poderia estar mais longe da teologia oriental do que a doutrina da depravação total de Agostinho e sua rejeição do livre-arbítrio humano. Para começar, os Padres Gregos tinham uma visão muito diferente da condição de Adão e Eva antes da queda. Teófilo de Antioquia e Irineu de Lyon descrevem Adão como um “infante” ou “criança” que não havia atingido a maturidade espiritual. [399] São Máximo escreveu que Adão e Eva não eram perfeitos, mas tinham o potencial para se tornarem como Deus.[400] Os teólogos do Oriente ensinaram que o primeiro casal falhou em sua vocação, que era a de unir a Deus tanto eles mesmos quanto a criação por meio do progresso em direção à maturidade espiritual. No entanto, Agostinho acreditava que Adão e Eva já estavam maduros espiritualmente antes da queda. Assim, a Queda e suas conseqüências foram muito maiores para Agostinho do que para os Padres Orientais.

Desde o início, os Padres Orientais enfatizaram que, para serem salvos, os humanos devem cooperar com a graça de Deus através do uso correto do livre arbítrio. Assim, a negação do livre arbítrio por Agostinho é completamente estranha à teologia ortodoxa. São Irineu de Lyon escreveu: “Deus fez do homem um livre [agente] desde o princípio, possuindo seu próprio poder, assim como ele faz com sua própria alma para obedecer voluntariamente aos pedidos de Deus, e não por compulsão de Deus”. [401] São João Crisóstomo ensinou que, para serem salvos, os humanos devem usar seu livre arbítrio para responder ao chamado de Deus para a salvação. Ele escreveu: “Tudo depende, de fato, de Deus, mas não de modo que nosso livre-arbítrio seja impedido… Pois precisamos primeiro escolher o bem; e então Ele nos leva aos seus. Ele não antecipa nossa escolha, para que nosso livre arbítrio não seja ultrajado.” [402] Ele também escreveu: "A vontade humana não é suficiente a menos que a pessoa receba auxílio do alto: e, ainda assim, o auxílio do alto não traz benefício algum a não ser que haja vontade." [403] São João Damasceno, que resumiu os ensinamentos dos Padres, escreveu: "Deve-se ter em mente que Deus conhece antecipadamente todas as coisas, mas que ele não as predestina. Assim, ele conhece antecipadamente as coisas que dependem de nós, mas ele não as predestina... porque nem Ele deseja o nosso mal, nem impõe a virtude.”[404] Significativamente, antes de seu conflito com o pelagianismo, até mesmo Santo Agostinho reconheceu o livre-arbítrio. Ele escreveu: "Tomemos cuidado para não defendermos a graça de modo que pareça que estamos negado a liberdade de escolha. Do mesmo modo, não devemos insistir na liberdade de escolha com tanta ênfase a ponto de podermos ser julgados ingratos a Deus devido a nosso orgulho ímpio."[405]

A resposta de São João Cassiano a Agostinho

Embora nenhum dos Padres Orientais tenha respondido diretamente a Agostinho, os escritos de São João Cassiano mostram como eles teriam visto as idéias de Agostinho. Embora alguns teólogos ocidentais rejeitem Cassiano como "semi-pelagiano", o Oriente Ortodoxo sempre considerou seu ensino uma afirmação correta da doutrina ortodoxa. [406] Ele ensinou que Agostinho havia caído em erro ao construir um conflito artificial entre a graça de Deus e o livre arbítrio humano. Em vez disso, ambos são necessários para a salvação porque, para ser salva, a pessoa deve usar seu livre arbítrio para cooperar com a graça de Deus. Ele usou a analogia de um fazendeiro que produz uma colheita abundante nos campos fornecidos por Deus para ilustrar que tanto a graça de Deus quanto o uso apropriado do livre arbítrio humano são necessários para a salvação, com o trabalho do agricultor representando o esforço humano e o solo, representando a graça de Deus. Não há salvação sem graça. Também não há a salvação a menos que se coopere com a graça de Deus através do uso correto do livre arbítrio. Assim, ele escreveu: “Estas duas coisas, isto é, a graça de Deus e o livre arbítrio, certamente parecem mutuamente opostas, mas ambas estão de acordo, e entendemos que devemos aceitar ambas”. Citando as palavras de São Paulo, “quando os gentios que não têm a lei fazem por natureza o que a lei exige, eles mostram que o que a lei exige está escrito em seus corações”, ele argumentou que até os humanos caídos têm a capacidade de responder à graça de Deus pelo uso correto de seu livre arbítrio. Assim, ele escreveu que "a graça de Deus sempre trabalha em conjunto com a nossa vontade em nome do bem." Relembrando as palavras de São Paulo, “exercite a sua própria salvação com temor e tremor”, Cassiano acreditou que o homem é capaz de “negligenciar ou amar a graça de Deus”. Assim, São João ensina que o homem é salvo através da sinergia ou cooperação com a graça de Deus. Por fim, ele faz uma afirmação muito profunda: "Pois como Deus opera todas as coisas em nós, por um lado, e como tudo é atribuído ao livre-arbítrio, por outro, não pode ser totalmente compreendido pela inteligência e pela razão humana". [407]

São João, que introduziu o monaquismo no sul da França, passou muito tempo no Oriente. Como resultado, ele aplicou as lições que aprendeu dos Padres Orientais às questões levantadas por Agostinho. São João Crisóstomo, que ordenou Cassiano como diácono, cita a afirmação de Paulo de que "gentios que não têm a lei fazem por natureza o que a lei exige", como evidência de que Deus criou os humanos com a capacidade de escolher entre o bem e o mal. [408] São Cirilo de Jerusalém ensinou que “a alma é autogovernada”. De acordo com esse grande mestre, o diabo pode tentar uma pessoa a pecar, mas, por causa do livre arbítrio, não tem poder para forçá-la a praticar o mal.[409] Arquimandrita Sofrônio escreveu que Deus nunca força uma pessoa a aceitar a graça e a salvação. Em vez disso, o Espírito Santo só desce sobre aqueles que são "receptivos". [410]

Portanto, como foi o caso com sua doutrina da Trindade, Agostinho confia demais na razão humana em seus esforços para definir a salvação. A salvação é um mistério que não pode ser entendido através da razão humana. É um paradoxo. Os humanos não podem se salvar por seus próprios esforços. Eles só podem ser salvos por Deus, o único que é o autor da salvação. No entanto, ao mesmo tempo, uma pessoa não pode ser salva a menos que ela coopere com a graça de Deus.

O Concílio de Orange

A controvérsia causada pelos ensinamentos de Agostinho se alastrou no Ocidente por quase cem anos. São João Cassiano não foi o único teólogo a desafiar as opiniões de Agostinho. São Vicente de Lérins condenou “a falsidade da depravação herética”. Em vez disso, ele argumentou que o homem deve se esforçar para manter a fé “crida em todos os lugares, sempre e por todos”. [411] Enquanto isso, Prosper de Aquitaine defendeu Agostinho e criticou São João Cassiano argumentando que tudo o que resta após o pecado original, “pertence à condenação e castigo” .[412] Finalmente, a Igreja Ocidental chegou a um fim temporário do conflito no Concílio de Orange em 529. Este concílio, que nunca foi reconhecido pela Igreja do Oriente, adotou uma posição semi-agostiniana. Chegou perto de defender a Predestinação. No entanto, aceitou a doutrina da depravação total, decretando que "nenhum homem possui nada de seu, além da mentira e do pecado." Como resultado, o Concílio de Orange concluiu que “a liberdade da vontade que foi destruída no primeiro homem pode ser restaurada apenas pela graça do "batismo"”. [413]

Livre arbítrio na teologia ocidental

Embora a Igreja Ocidental considerasse Santo Agostinho e o Concílio de Orange em grande estima, não aceitou suas opiniões sem revisão. São Gregório Magno, papa entre 590 e 604, desenvolveu a visão da salvação aceita pela Igreja Católica Romana Medieval. São Gregório reverenciava Santo Agostinho e compartilhava sua visão negativa da sexualidade humana. Ele escreveu que, mesmo dentro do casamento, a relação sexual é apropriada apenas para o propósito da procriação. No entanto, ele não compartilhou a negação do livre arbítrio de Agostinho. Em vez disso, seus pontos de vista eram mais parecidos com os de São João Cassiano. Ele ensinou que um cristão deve cooperar com a graça salvífica de Deus. Ele escreveu: “O bem que fazemos é ao mesmo tempo de Deus e de nós mesmos. É de Deus através da graça preveniente e nossa através do livre arbítrio obediente.” [414] Assim, o catolicismo romano não aceitou a negação de livre arbítrio por Agostinho sem reservas. Significativamente, o Concílio de Trento ensinou uma doutrina muito semelhante à de São João Cassiano. Esta assembléia de teólogos católicos romanos declarou que é herético dizer que a cooperação do livre arbítrio do homem não seja necessária para a salvação. Em 1713, o papa Clemente XI emitiu um decreto, Unigenitus, condenando os escritos de Cornélio Jansen, o bispo de Ypres que ensinou uma negação agostiniana extrema do livre arbítrio. [416] Assim, a Igreja Católica Romana afastou-se do agostinismo estrito sobre esta questão e adotou uma posição que está mais próxima da da Igreja Ortodoxa Oriental.

Não é possível afirmar categoricamente se o pensamento de Agostinho é uma causa ou apenas uma manifestação da tendência a negar o livre arbítrio que é uma característica importante da história intelectual ocidental. Essa tendência é tão forte que sobreviveu ao anti-sobrenaturalismo do Iluminismo do século XVIII. Por exemplo, Karl Marx, cujas idéias influenciaram a vida de milhões, ensinou que a organização econômica da sociedade determina tudo o que há na sociedade. Mesmo alguns dos que rejeitaram algumas das conclusões de Marx concordam com sua doutrina do determinismo econômico. Mais recentemente, alguns negaram o livre arbítrio ensinando um tipo de determinismo biológico, que é a ideia de que fatores biológicos ou genéticos determinam o destino de alguém. Em qualquer caso, a visão de Agostinho sobre os seres humanos cujo destino está à mercê de forças fora de seu controle é uma importante manifestação de uma grande tendência no pensamento ocidental.

Um problema com Agostinho é que ele não levou a Encarnação suficientemente a sério. A doutrina da Encarnação afirma que Deus tomou a iniciativa para nossa salvação. A salvação só é possível porque Deus veio em Cristo para elevar a humanidade caída de seu estado perdido de pecado e rebelião. Porque Deus agiu primeiro através de Cristo, os humanos são capazes de usar seu livre arbítrio para aceitar o dom da salvação. As Sagradas Escrituras ensinam que Cristo veio e morreu na cruz por todos, não apenas por alguns escolhidos. Nosso Senhor disse: “e eu, quando for levantado da terra, atrairei todos a mim.” [417] São Paulo escreveu que Deus “deseja que todos os homens sejam salvos e cheguem ao conhecimento da verdade.” [418] Alguns versículos depois de Romanos 5:12, o versículo sobre o qual Agostinho constrói sua doutrina do pecado original, São Paulo escreveu: “um só ato de justiça resultou na justificação que traz vida a todos os homens.” [419] A Liturgia Ortodoxa de São João Crisóstomo afirma: “depois que caímos tu levantaste-nos de novo, e não cessaste de tudo fazer para nos levar ao céu." [420] Agostinho subestima o efeito decisivo da Encarnação pela qual Deus agiu para redimir a humanidade caída da maldição do pecado e da morte, tornando assim possível aos humanos caídos cooperarem com a graça de Deus para sua salvação.

Agostinho e Sexualidade Humana

Suas opiniões sobre o pecado original também levaram Agostinho a abraçar uma visão muito negativa da sexualidade humana. É altamente possível que a culpa não resolvida de sua juventude imoral tenha desempenhado um papel importante em levá-lo a uma visão muito negativa do prazer sexual. É também provável que a visão negativa da sexualidade humana do maniqueísmo tenha continuado a influenciar Agostinho muito depois de sua conversão ao cristianismo. Ele acreditava que o pecado original e o desejo, luxúria ou concupiscência carnais, contamina todas as relações sexuais, mesmo dentro do casamento. Embora ele reconhecesse que a concupiscência dentro do casamento não é necessariamente pecaminosa, ele ainda a chama de “filha do pecado”. Por essa razão, ele escreveu que, por meio do desejo sexual, “até o casamento tem a oportunidade de sentir vergonha”. Ele escreveu: ""até mesmo o abraço lícito e honrado não pode ser buscado sem o ardor da luxúria" [421] Assim, de acordo com Agostinho, o prazer sexual, mesmo dentro do casamento, é suspeito porque é espontâneo e não pode ser completamente controlado pela mente consciente. Ele escreveu: “E essa luxúria não apenas toma posse de todo o corpo e membros externos, mas também se faz sentir por dentro, e move todo o homem com uma paixão na qual a emoção mental se mistura com o apetite corporal ... Que amigo da sabedoria e santas alegrias, que, casado ... não preferiria, se isso fosse possível, gerar filhos sem essa luxúria.” [422] Assim, de acordo com Agostinho, a relação sexual é legítima apenas quando usada para procriação e não para prazer mútuo entre marido e mulher. [423]

A maioria dos padres orientais tinha uma visão muito mais positiva da sexualidade humana do que Agostinho. Eles não aceitaram o ensinamento de Agostinho sobre a culpa herdada. Assim, eles não ensinaram que a sexualidade humana é maculada pela transmissão do pecado original. Eles adotaram uma abordagem mais bíblica baseada no relato da criação que afirma: “Portanto, o homem deixa seu pai e sua mãe e se une à sua esposa, e eles se tornam uma só carne”. [424] Porque as Sagradas Escrituras afirmam que um homem e sua esposa se tornam “uma só carne”, alguns Padres orientais consideravam a união entre um homem e uma mulher em santo matrimônio uma imagem da união do Pai, Filho e Espírito Santo na Santíssima Trindade. São Metódio de Patara, um teólogo do terceiro século, escreveu uma descrição positiva das relações sexuais que ele considerava santa e abençoada por Deus, que estabeleceu o padrão para a união entre um homem e uma mulher quando Ele criou Eva a partir de uma costela tirada de Adão. Um teólogo ortodoxo contemporâneo escreveu que, nos escritos de São Metódio, “todos os elementos da vida sexual, tais como 'encantamento', 'prazeres', 'abraço de amor', 'desejo' e 'êxtase', recebem uma interpretação positiva e poética ”. [426] São João Crisóstomo ensinou que o casamento é um santo estado abençoado por Deus. Ele elogia o amor de um homem e uma esposa que se tornam "uma só carne" no casamento. Ele sustentou que a união sexual entre marido e mulher não é apenas natural, mas uma fonte legítima de prazer humano. Considerava as relações íntimas dentro do casamento boas, mesmo que a união delas não produzisse um filho. Assim, São João Crisóstomo apresentou uma visão muito diferente da sexualidade humana do que a visão muito mais negativa de Agostinho sobre as relações sexuais como contaminada pela luxúria da “concupiscência” e a transmissão do pecado original. [427]

No Oriente cristão, um concílio local realizado em Gangra na atual Turquia, entre 325 e 381, aprovou vários cânones que defendiam o casamento e excomungavam qualquer um que rejeitasse a santidade do matrimônio ou o casamento de padres. O canon IX desse mesmo concílio condenou aqueles que escolheram a virgindade por causa de uma atitude negativa em relação ao casamento e à sexualidade humana. [428] Esses cânones podem ser tomados como expressão oficial da visão oriental do casamento e da sexualidade, porque o cânon II do Concílio de Trullo, considerado pela Igreja Oriental como uma continuação do Quinto e Sexto Concílios Ecumênicos, ratificou o Concílio de Gangra. [429] Assim, através dos escritos de São João Crisóstomo e sua legislação canônica, a Igreja Oriental rejeita uma atitude negativa em relação ao casamento e à sexualidade humana, como a encontrada nos escritos de Agostinho. Como tudo o mais que Deus fez, a sexualidade humana é boa quando usada de acordo com Sua vontade e propósito. Portanto, o uso indevido da sexualidade e não a sexualidade em si é pecaminoso, assim como o uso indevido de qualquer parte da criação de Deus é pecaminoso. No entanto, dentro das bênçãos do Santo Matrimônio, o sexo e o prazer que ele traz fazem parte da criação de Deus. Os autores das Sagradas Escrituras não compartilham a visão negativa de Agostinho sobre sexo. Embora alguns Padres tenham interpretado ela como uma metáfora para a relação entre Cristo e Sua Igreja ou entre a alma e Deus, A Canção de Salomão também dá uma visão muito simpática da sexualidade humana. Em sua Epístola aos Efésios, São Paulo comparou a unidade entre um homem e uma mulher em casamento à unidade entre Cristo e Sua Igreja. [430] São Paulo proíbe que um casal negue uns aos outros seus “direitos conjugais” por mais de um curto período de tempo. [431] A Epístola aos Hebreus declara: “Que o casamento seja honrado entre todos, e que o leito conjugal seja sem mácula". [432]

O crescimento do celibato clerical no ocidente

A visão negativa de Agostinho sobre a sexualidade desempenhou um papel significativo na aceitação do celibato obrigatório para o clero na Igreja Ocidental. O movimento pelo celibato clerical imposto no Ocidente começou antes de Agostinho. Em 305, o Sínodo de Elvira na Espanha decretou que os bispos e outros clérigos devem evitar relações sexuais com suas esposas. [433] Significativamente, quando alguns bispos sugeriram que toda a Igreja adotasse essa proibição das relações matrimoniais para o clero no Primeiro Concílio Ecumênico, o Primeiro Concílio de Nicéia em 325, o Bispo Paphnetius, ele mesmo um celibatário que perdeu um dos olhos durante as perseguições, pediu a seus colegas bispos a não impor uma carga tão pesada ao clero. Citando Hebreus: “Que o casamento seja honrado entre todos, e que o leito conjugal seja sem mácula”. Ele argumentou que as relações sexuais entre um homem e sua esposa são castas.[434] Como resultado, o Concílio se recusou a exigir o celibato universal entre o clero. [435]

A recusa do Primeiro Concílio Ecumênico em exigir o celibato do clero teve pouco efeito no Ocidente. Ao longo dos séculos seguintes, uma série de concílios locais no Ocidente publicou uma série de decretos proibindo relações íntimas entre o clero e suas esposas. Agostinho exigiu que seu clero deixasse suas esposas e vivesse uma vida semi-monástica. Em 461, o Concílio de Tours proibiu os homens que se tornaram pais após a ordenação de servir a Eucaristia.[436] No início do século XI, as autoridades romanas haviam decidido que seus esforços para pressionar o clero a se abster das relações íntimas com suas esposas haviam sido um fracasso. Finalmente, em 1139, o Segundo Concílio de Latrão publicou um decreto exigindo o celibato para todos os sub-diáconos, diáconos, padres e bispos. [437] Quando o papa estendeu sua campanha contra o clero casado ao Oriente, era inevitável que o clero oriental se recusasse a abandonar suas práticas tradicionais. Este conflito desempenhou um papel decisivo na divisão final entre a ortodoxia e o catolicismo romano. Apesar de seus melhores esforços, várias gerações de papas e bispos ocidentais tiveram sucesso limitado em persuadir seu clero a abraçar o celibato. Em vez disso, muitos padres casaram-se secretamente ou viveram com uma concubina ou amante sem o benefício das bênçãos da Igreja durante a Idade Média.

A Igreja Oriental discordou do Ocidente e nunca aceitou os argumentos ocidentais a favor do celibato. Não só o Primeiro Concílio Ecumênico rejeitou a tentativa ocidental de impor o celibato ou pelo menos proibir o clero de relações íntimas com suas esposas, vários concílios orientais não hesitaram em criticar a Igreja Ocidental por sua atitude em relação ao clero casado. Por exemplo, o Concílio de Gangra, realizado entre 325 e 381, excomungou qualquer um que considerasse o clero casado indigno de presidir a Eucaristia. [438] Os cânones apostólicos, um conjunto de regulamentos aprovados pelo Concílio em Trullo em 692, excomungaram qualquer clérigo que deixasse sua esposa, “sob pretexto de religião”. [439] Embora a Igreja Oriental exigiu que os bispos adotassem o celibato no Concílio de Trullo, em 692 recusou-se firmemente a proibir a ordenação de padres e diáconos casados. Em vez disso, o Concílio de Trullo, considerado uma continuação do Quinto e Sexto Concílios Ecumênicos pela Igreja Ortodoxa, defendeu o clero casado e condenou a Igreja Romana por proibir seu clero de ter relações íntimas com suas esposas. [440] Assim, a Igreja Oriental acreditava que todos, incluindo a Igreja Ocidental e o Bispo de Roma, deveriam aceitar a autoridade de um concílio geral representando toda a Igreja. É significativo que a primeira vez que a Igreja Oriental condenou oficialmente uma prática da Igreja Ocidental, a disputa dizia respeito à sexualidade humana e ao casamento clerical.

O impacto de Agostinho na teologia ocidental

Nota-se várias coisas sobre Agostinho quando compara-se ele aos Padres Orientais. Embora ele cite a Escritura, é difícil não concluir que ele baseou suas conclusões mais na lógica e na razão humana do que na Bíblia. Não parece haver muito lugar para mistério na teologia de Agostinho. Ele audaciosamente tenta definir questões que os Padres Orientais consideravam além da capacidade da razão humana finita de entender. Ou ele não sabia sobre as obras dos Padres Gregos ou não os considerava importantes o suficiente para consultar quando desenvolvia seus pontos de vista. Uma busca nos índices dos sete grossos volumes dos escritos de Santo Agostinho na coleção dos Padres Nicenos não apresenta um único exemplo em que ele houvesse consultado os grande Padres Capadócios, São João Crisóstomo e quaisquer outros dos gigantes do pensamento cristão oriental. Assim, em Agostinho, encontra-se um afastamento definitivo da teologia cristã, tal como se desenvolveu desde a Ascensão de Cristo. Em um sentido muito real, Agostinho foi o primeiro protestante, porque ele baseou suas teorias em sua própria razão e interpretações da Escritura e praticamente ignorou a tradição dos Padres. Sua falha em considerar os ensinamentos dos Padres Orientais teve conseqüências desastrosas para a unidade dos cristãos. Os cristãos ortodoxos não seguem um único Padre, mas buscam o consenso dos Padres para guiá-los a compreender a Sagrada Tradição da Igreja. Agostinho ignorou o consenso dos Padres. Como resultado, ele advogou ensinamentos que romperam a continuidade da crença e prática da antiga Igreja indivisa. Mais do que qualquer outra pessoa, Agostinho lançou as bases para a separação doutrinária do Ocidente da Igreja Oriental. 

À medida que a devoção a Agostinho aumentou no Ocidente, o conhecimento dos Padres Orientais diminuiu. À medida que o Ocidente mergulhava no que os historiadores chamam de Idade das Trevas, menos pessoas conseguiam ler o grego e, portanto, não podiam buscar a iluminação dos Padres Orientais. Ao mesmo tempo, o esforço de Alcuíno e aqueles na corte de Carlos Magno e seus sucessores para afirmar sua independência de Constantinopla levou-os a enfatizar a tradição ocidental de modo que eles esqueceram os insights dos Padres Orientais. Como Agostinho era o maior Padre ocidental, era natural que os teólogos ocidentais o procurassem em busca de orientação. No entanto, como resultado, eles perderam o equilíbrio que teria existido comparando as conclusões de Agostinho com os Padres Orientais. Contudo, a Igreja Católica Romana nunca perdeu por completo a memória dos Santos Padres do Oriente, e recusou-se a aceitar o agostinianismo sem reservas. Os reformadores protestantes, especialmente Lutero e Calvino, por outro lado, não reconheceram suficientemente a autoridade dos padres orientais. Conseqüentemente, eles adotaram uma teologia que é baseada nas conseqüências lógicas de alguns dos ensinamentos de Agostinho.


Do livro "The Historic Church - An Orthodox View of Christian History" por Pe. John W. Morris 

Notas

352 Jurgens, The Faith of the Early Fathers, vol. III, p. 1
353 Diarmaid MacCulloch, The Reformation: A History, (New York: Penguin Books, 2005), p. 111
354John Calvin, Institutes pp. xxi-x
355 Augustine, “On the Gift of Perseverance,” in Nicene Fathers, First Series, vol. V. P. 548
356 Hans von Campenhausen, The Fathers of the Church, (Peabody: Hendrickson Publishers, Inc, 1998) vol. II, p. 268
357 Walker, A History of the Christian Church, pp. 121, 199-200; Jurgens, The Faith of the Early Fathers, vol. III, p. 1
358 St. Augustine, The Confessions of St. Augustine, trans. by Rex Warner (New York: Mentor-Omega Books, 1963), p. 174
359 Romans 13:13-14
360 St. Augustine, Confessions, pp. 182-183
361 Campenhausen, The Fathers of the Church, vol. II, p. 219
362 Walker, A History of the Christian Church, p. 130-131
363 Matthew 13:24-30, 37-43; Augustine of Hippo, “Brief on the Conference with the Donatists [A.D. 411]” in Jurgens, The Faith of the Early Fathers, vol. III, p. 89
364 St. Matthew 13:24-30; Augustine of Hippo, “Sermon XXXVIII, Sermons on New-Testament Lessons,” in -Nicene Fathers, First Series, vol. VI, p. 386
365 Walker, A History of the Christian Church, p. 202
366 Nota 1, no Sermão XLIX, em St. Augustine of Hippo Sermons, p. 418; Walker, A History of the Christian Church, p. 203
367 St. Gregory Nazianzen, “On the Holy Spirit,” in Nicene Fathers, Second Series, vol. VII, p. 320
368 Olson, Christian Thought, p. 276
369 St. Augustine, “On The Trinity,” in Nicene Fathers, First Series, vol. III, p. 100, 127 - 129, 142, 215.
370 St. John Chrysostom, “Homilies on St. John” in Nicene Fathers, First Series, vol. XIV, p. 6
371 Richard Haugh, Photius and the Carolingians The Trinitarian Controversy, (Nordland, Mass.: Nordland Publishing Company, 1975), p, 27, 89. Service Book of the Holy Eastern Orthodox Catholic and Apostolic Church According to the Use fo of the Antiochian Orthodox Christian Archdiocese of North America (Englewood: Antiochian Orthodox Christian Archdiocese of North America, 1971), p. 110
372 Runcimen, Eastern Schism, p. 31
373 Lossky, Mystical Theology, p. 56
374 St. Augustine, “On The Trinity,” p. 100, 216, 225
375 St. John 15:26
376 Lossky, Mystical Theology, p, 59; Aristeides Papadakis, Crisis in Byzantium: The Filioque Controversy in the Patriarchate of Gregory II of Cyprus (1283-1289) (Crestwood: St. Vladimir’s Seminary Press, 1997), p. 85
377 John Romanides, An Outline of Orthodox Patristic Dogmatics (Rollingsford: New Hampshire, 2004), p. 35
378 Papadakis, Crisis in Byzantium, p. 87
379 Armstrong, A History of God, p. 200
380 Olson, Christian Theology, p. 310
381 Lossky, Mystical Theology, p. 7
382 St. John of Damascus, Orthodox Faith, p. 196
383 Boris Bobrinskoy, The Mystery of the Trinity: Trinitarian Experience and Vision in the Biblical and Patristic Tradition (Crestwood: St. Vladimir’s Seminary Press, 1999), p. 285
384 Meyendorff, Byzantine Theology, p. 145
385 “The Canons and Decrees of the Council of Trent. A.D. 1563,” in John H. Leith, ed, Creeds of the Churches (Atlanta: John Knox Press, 1983), p. 406
386 John S. Romanides, The Ancestral Sin (Ridgewood, New Jersey: Zephr Publishing, 2002), p. 167
387 John Breck, The Sacred Gift of Life (Crestwood: St. Vladimir’s Seminary Press, 1998), p. 30
388 St. Basil, “Letter CCLXI, To the Sozopolitans,” in Nicene Fathers, Second Series, vol, VIII, p. 298
389 St. Cyril, “Commentary on Romans,” quoted in Romanides, Ancestral Sin, p.168
390 John Meyendorff, Byzantine Theology: Historical Trends and Doctrinal Themes, (New York: Fordham University, Press, 1976), p. 145
391 Ibid., p. 144; Olson, Christian Theology, p. 272;
392 Seeberg, History of Doctrines, vol I, p. 343
393 McBrien, Catholicism, p. 164.
394 “The Council of Trent, Decree Concerning Original Sin,” in Leith, Creeds of the Churches, p. 404
395 Dr. Ludwig Ott, Fundamentals of Catholic Dogma (Rockford: Tan Books and Publishers, Inc, 1960), p. 110
396 Catechism of the Catholic Church, pp. 101-102
397 Augustine, “On the Spirit and the Letter,” in Nicene Fathers, First Series, vol. V, p. 84.
398 Augustine, “On the Predestination of the Saints,” Ibid, p. 515
399 Theophilus of Antioch. “Theophilus to Autocyus,” in Ante-Nicene Fathers, vol. II, p. 104; and Irenaeus of Lyon, “Against Heresies,” in Ante-Nicene Fathers, vol. I, p. 521
400 Olson, Christian Theology, pp. 296-301; Thunberg, Man and Cosmos, p. 71
401 Ireneaus, “ Against Heresies,”in Ante-Nicene Fathers, vol. I, p. 518
402 St. John Chrysostom, in Nicene Fathers, Second Series, vol. XIV, p. 425
403 John Chrysostom, “Homilies of St. Matthew,” Nicene Fathers, Second Series, vol. x, pp. 494 - 495
404 St. John of Damascus, Orthodox Faith, p. 263
405 Augustine of Hippo, “Forgiveness and the Just Deserts of Sins, and the Bap-
tism of Infants,” in Jurgens, The Faith of the Early Fathers, vol. iii, p. 92.
406 Seeburg, History of Doctrines, vol. I, p. 370; Lossky, Mystical Theology, p. 198
407 Romans 2:14; Philippians 2:12; John Cassian, “Thirteen Conference: On God’s Protection,” in St. John Cassian: John Cassian: The Conferences, trans. by Boniface Ramsey (New York: Paulist Press, 2003) pp. 467- 481, 491
408 Romans 2:14; John Chrysostom, “Romans,” in Nicene Fathers, First Series, vol. xi., p. 365
409 Cyril of Jerusalem, “Lectures,” in Nicene Fathers, Second Series, vol., vii, p. 24
410 Sophrony, Life, p. 49.
411 St. Vincent of Lerins, “The Notebooks,” in Jurgens, The Faith of the Early Fathers, vol III, pp. 262-263
412 St. Prosper of Aquitaine, “The Grace of God and Free Choice: A Book Against the Conference Master,” in Ibid., vol. III, p. 193
413 Leith, John, Creeds of the Churches, (New York: Oxford University Press, 1983) p.37-45; Walker, A History of the Christian Church, p. 211
413 Leith, John, Creeds of the Churches, (New York: Oxford University Press, 1983) p.37-45; Walker, A History of the Christian Church, p. 211
414 St. Gregory I, “Moral Teachings From Job,” in Jurgens, The Faith of the Early Fathers, vol. III, p. 317
415 “Council of Trent,” “Canons on Justification” in Leith, Creeds of the Churches, p. 420
416 Walker, A History of the Christian Church, p. 667
417 St John 12:32
418 I Timothy 2:4
419 Romans 5:18
420 The Liturgikon, p. 285
421 Augustine, “On Marriage and Concupisence,” Nicene Fathers, First Series, vol. V, pp. 274-275
422 Augustine, The City of God, in Ibid, vol. II, p. 276
423 Uta Ranke-Heinemann, Eunuchs for the Kingdom of Heaven (New York: Doubleday, 1990), pp, 91-92 
424 Genesis 2:24
425 St. Matthew 19:5-6; Paul Evdokimov, The Sacrament of Love (Crestwood: St. Vladimir’s Seminary Press, 1985), p. 117
426 Bishop Hilarion Alfeyev, The Mystery of Faith: An Introduction to the Teaching and Spirituality of the Orthodox Church, (London: Darton Longman & Todd, 2002), pp. 150-151
427 David C. Ford, Women and Men in the Early Church: The Full Views of St. John Chrysostom, (South Canaan: Ste. Tikhon’s Seminary Press, 1996), pp. 46-48
428 “Canons I, IV, and IX, Gangra A.D. 325-381,” in Nicene Fathers, Second Series, Vol.XIV, pp. 93-95
429 “Quinisext,” in Ibid., p. 361
430 Ephesians 5:24-33
431 I Corinthians 7:1-5
432 Hebrews 13:4
433 Latourette, A History of Christianity, p. 224
434 Hebrews 13:4
435 Socrates, Ecclesiastical History, p. 18
436 Schaff, History of the Christian Church, vol. III, pp. 247-250; Ranke-Heinemann, Eunuchs, pp. 100-107
437 MacCulloch, The Reformation, p. 28
438 “Gangra. A.D. 325-381,” “Canon IV,” in Nicene Fathers, Second Series, vol. XIV, p. 93
439 “The Apostolic Canons,” “Canon XII,” and “Canon V,” in Ibid, p. 594
440 “Quinisext. A.D. 692,” “Canon XIII,” in Ibid, p. 371 Chapter 10 

sexta-feira, 5 de julho de 2019

A ascensão do papado (Pe. John W. Morris)


Razões pelas quais o Oriente e o Ocidente se distanciaram

No sábado, 16 de julho de 1054, o Patriarca Michael Cerularius e seu clero se reuniram para preparar as Vésperas na majestosa Igreja da Santa Sabedoria em Constantinopla. De repente, três homens de Roma, o cardeal Humbert de Silva Cândida, Frederico da Lorena, chanceler do bispo de Roma, e o arcebispo Pedro de Amalfi, invadiram a grande catedral. Sem dizer uma palavra, eles marcharam até o altar e deixaram um decreto excomungando o patriarca e seus seguidores em nome do bispo de Roma. Ao saírem, eles pararam na porta para sacudir a poeira de seus pés enquanto a congregação chocada assistia. [305] Os relatos mais populares da história da igreja tratam esse triste episódio como o início do Grande Cisma entre o Ocidente que se tornou a Igreja Católica Romana e o Oriente ou a Igreja Ortodoxa. No entanto, não é tão simples assim.

Os eventos de 1054 fazem parte de um processo que começou séculos antes do Cardeal Humbert marchar na Igreja da Santa Sabedoria. O cisma não ocorreu repentinamente em 1054, mas se desenvolveu durante um período de muitos anos. Separados pela língua, eventos políticos e cultura, as Igrejas do Oriente e do Ocidente haviam se separado há muitos anos. A Igreja Oriental abraçou o modelo conciliar de organização da igreja previsto nos decretos dos Sete Concílios Ecumênicos, enquanto a Igreja Ocidental evoluiu para uma monarquia papal. O Oriente manteve-se fiel aos ensinamentos dos Concílios Ecumênicos e dos Padres Orientais, enquanto o Ocidente se voltava cada vez mais para um homem, Agostinho de Hipona, cuja abordagem racional e conclusões legalistas diferiam significativamente das dos Padres Orientais. As autoridades orientais reconheceram o direito dos sacerdotes de gozar a felicidade do Santo Matrimônio, enquanto o papa e seus bispos exigiram que seu clero abraçasse o celibato. Todos esses papéis desempenharam um papel no estranhamento que levou à divisão do cristianismo na igreja católica romana e igreja ortodoxa.

Ironicamente, a distância e as dificuldades na comunicação que permitiram que o Oriente e o Ocidente evoluíssem de maneiras tão diferentes também preservaram a unidade da Igreja. Enquanto os líderes das Igrejas do Oriente e do Ocidente não tivessem consciência das diferenças que estavam se desenvolvendo, era possível ignorá-las e manter uma ilusão de unidade. Quando Roma tentou impor sua abordagem ocidental ao Oriente, o cisma foi inevitável. Entretanto, assim como o Oriente e o Ocidente se separaram por muitos anos antes dos trágicos eventos de 1054, foi necessário anos para finalizar o rompimento entre Oriente e Ocidente em dois corpos eclesiásticos separados. Apesar da ação radical do Cardeal Humbert, o cisma teve pouco efeito até que, mais uma vez, o Ocidente tentou impor sua autoridade sobre a Igreja Oriental.Desta vez, os agentes do imperialismo eclesiástico ocidental não usaram as vestes de um cardeal, mas a armadura dos cavaleiros das cruzadas. Quando os exércitos ocidentais invadiram o Oriente, os conquistadores ocidentais depuseram bispos legítimos no Oriente e impuseram uma hierarquia ocidental e o catolicismo romano aos fiéis ortodoxos. Assim, o cisma tornou-se mais do que uma disputa entre Roma e Constantinopla, mas começou a afetar o cotidiano dos cristãos orientais que ressentiam a remoção de seus bispos e imposição da latinização de suas Igrejas. Como resultado, o cisma tornou-se uma realidade final que persiste até o presente.

Conciliar ou Papal: o choque entre duas visões diferentes da Igreja

Embora o Oriente e o Ocidente estivessem unidos na Era dos Concílios Ecumênicos, cada um tinha opiniões diferentes sobre a natureza da Igreja. O Oriente considerava a Igreja uma federação de igrejas locais autônomas. O Oriente também operava de acordo com uma visão conciliar da administração da Igreja, segundo a qual a Igreja tomava decisões em concílio, seguindo o exemplo do Concílio Apostólico registrado no décimo quinto capítulo do livro de Atos. Assim, os bispos administravam suas dioceses com a assistência do concílio dos presbíteros. Em cada província, o Metropolita ou Patriarca presidia um concílio, eventualmente chamado de Santo Sínodo, dos bispos, que administrava os assuntos da igreja na província. Finalmente, um concílio geral ou ecumênico tomava decisões relativas à Igreja internacional. No entanto, mesmo um concílio de todos os bispos da Igreja não poderia ser considerado um Concílio Ecumênico até que a Igreja, o clero e os leigos, aceitasse suas decisões. Por exemplo, a Igreja rejeitou o “Concílio Ladrão" de Éfeso de 449 porque este abraçou os ensinamentos heréticos de Eutiques. Em vez disso, a Igreja aceitou as decisões do Concílio de Calcedônia de 451, reconhecendo-o como o Quarto Concílio Ecumênico, que condenou a heresia monofisista.

A compreensão conciliar oriental da administração da igreja cresceu diretamente do ensinamento dos Padres de que a Igreja é uma Assembléia Eucarística. São Paulo estabeleceu a base para a visão de que a Divina Liturgia cria a Igreja quando escreveu: “Porque há um só pão, nós, que somos muitos, somos um só corpo, pois todos participamos do único pão”. [306] Na Divina Liturgia de São João Crisóstomo, antes de orar para que o Espírito Santo desça sobre o pão e o vinho, o celebrante suplica ao Espírito Santo que desça “sobre nós”. [307] Quando o pão e o vinho são transformados no Corpo e Sangue de Cristo, os membros individuais da Igreja local são transformados na Igreja que é o Corpo de Cristo. Os ofícios do bispo e do sacerdote surgiram diretamente da necessidade de alguém liderar os fiéis na celebração da Divina Liturgia. Era natural que o bispo que presidia a Eucaristia também presidisse a comunidade local. O modelo da comunidade local reunida para a celebração da Divina Liturgia conduz à reunião dos líderes das comunidades locais em concílio para liderar a Igreja regional e internacional. Ao mesmo tempo, desde que devidamente entendida, a Eucaristia é a obra de toda a comunidade e não simplesmente do clero, a Igreja é também uma comunidade. Como o líder da Divina Liturgia não pode fazer nada sozinho, mas somente pode presidir a assembléia, um bispo não está acima da Igreja, mas dentro e na Igreja, ocupando apenas um dos ofícios necessários para a celebração adequada da Eucaristia e a administração da comunidade local, regional e internacional dos cristãos.

Por outro lado, o Ocidente desenvolveu um modelo de administração muito diferente, que tratava a Igreja como uma instituição não muito diferente do estado romano, com o bispo funcionando da mesma maneira que o imperador. Assim, em vez de concílios, o bispo de Roma, também chamado de Papa, tornou-se o único governante da Igreja Ocidental, que ele administrou como o imperador romano e outros monarcas absolutos da Europa medieval. Os Papas alegaram que seu status de sucessores de São Pedro lhes dava autoridade especial que os colocava não apenas acima de outros bispos, mas também acima de um concílio geral de todos os bispos da Igreja. Portanto, ao contrário de outros bispos, a autoridade do papa se estendia muito além de sua própria diocese porque o bispo de Roma começou a reivindicar jurisdição universal sobre todos os outros bispos da Igreja. Enquanto os papas restringiram essa reivindicação aos bispos do Ocidente, os patriarcas e bispos orientais trataram as reivindicações papais como uma questão puramente ocidental. No entanto, quando alguns Papas tentaram exercer autoridade sobre os bispos do Oriente, os bispos orientais recusaram-se a renunciar à sua autonomia local porque consideravam a reivindicação papal à jurisdição universal uma inovação injustificada. Quando os papas se recusaram a reconsiderar sua exigência de obediência universal, o cisma entre Oriente e Ocidente foi o resultado inevitável.

O lugar de Roma na igreja apostólica

Significativamente, a maioria dos historiadores católicos romanos reconhece que os papas não tinham jurisdição universal durante os primeiros séculos da história cristã. Em vez disso, eles reconhecem que o papado, como existe hoje, foi o resultado de séculos de crescimento e evolução. Por exemplo, o papa não alcançou autoridade completa sobre a doutrina católica romana até a declaração da infalibilidade papal no Concílio Vaticano I em 1870. Um historiador católico romano escreveu: “A primazia da Igreja de Roma naturalmente não apareceu de uma só vez e em todo o seu desenvolvimento externo. Desenvolveu-se organicamente e conforme necessário.” [308]

Bispo da maior e mais influente cidade do mundo, o Bispo de Roma ocupou naturalmente uma posição de grande prestígio. A maior parte dos cristão se voltava para a Igreja de Roma em busca de liderança desde o princípio da história da igreja. Qualquer pessoa que defendesse uma causa teria sua posição fortalecida com o apoio de Roma. Por essa razão, tanto os hereges quanto os teólogos ortodoxos tentaram ganhar o favor do bispo de Roma para sua causa. Em 343 ou 344, o Concílio de Sardica, um dos concílios locais reconhecidos pelo Concílio em Trullo, concedeu aos bispos depostos o direito de solicitar que o bispo de Roma nomeasse bispos locais para ouvir seu apelo. No entanto, o cânon não deu ao papa a autoridade para resolver a questão por si mesmo. [309]

O bispo de Roma como "primeiro entre iguais" na Igreja Apostólica

Não havia dúvida de que o papa mantinha a primazia da honra como "o primeiro entre iguais", durante os primeiros mil anos da história cristã. Por exemplo, Santo Inácio aborda a Igreja de Roma em palavras muito floreadas: “digna de honra, digna da mais alta felicidade, digna de louvor, digna de crédito, digna de ser considerada santa e que preside sobre amor…” [310] No entanto, esse status honorário não conferiu ao papa a jurisdição universal. Na mesma carta, Santo Inácio também tem o cuidado de limitar a autoridade real do bispo de Roma à "região dos romanos". [311] Durante sua discordância com o papa Santo Estêvão sobre o batismo, São Cipriano rejeitou especificamente a idéia de que Roma tinha autoridade sobre os outros bispos. Ele escreveu, “Certamente o restante dos apóstolos era exatamente o que Pedro era; eles eram dotados de uma parte igual de ofício e poder ... O episcopado é um todo único, no qual cada parte do bispo lhe dá o direito e a responsabilidade pelo todo.” [312]

Embora os bispos romanos tenham começado a reivindicar autoridade sobre outros bispos bem cedo, demorou séculos para que eles fossem fortes o suficiente para forçar essas reivindicações. Como a Igreja primitiva usava as divisões administrativas já usadas pelo Império Romano, o bispo de Roma exercia apenas jurisdição sobre as dez províncias governadas pelo prefeito de Roma durante os primeiros cinco séculos da história da Igreja. Por exemplo, no final do primeiro século, São Clemente, o bispo de Roma, tinha autoridade para aconselhar a Igreja de Corinto em sua Epístola à Igreja em Corinto, porque a cidade era uma daquelas governadas diretamente por Roma. Por essa razão, a Igreja de Corinto estava sob a autoridade do bispo da cidade imperial. Fora das áreas governadas diretamente de Roma, a Igreja Ocidental seguiu a mesma prática do Oriente, onde metropolitas e sínodos locais administravam a Igreja. Por exemplo, Milão operava como uma igreja independente ou autocéfala sob a liderança de seu próprio bispo, em vez da do bispo de Roma. [313] O bispo de Roma só conseguiu estender sua autoridade sobre os outros bispos do Ocidente depois de séculos de esforço. Roma nunca conseguiu persuadir os bispos orientais a aceitarem a autoridade papal. Infelizmente, os bispos orientais não tiveram consciência plena das reivindicações de Roma até que fosse tarde demais para evitar um conflito. Assim, Roma não exerceu jurisdição universal durante a era dos Concílios Ecumênicos. Tampouco Roma estava acima da autoridade de um concílio geral, como mais tarde os papas iriam reivindicar. Em vez disso, os bispos de Roma estavam sujeitos às decisões dos concílios ecumênicos, assim como qualquer outro bispo. Por exemplo, o Sexto Concílio Ecumênico, Constantinopla III, não hesitou em reivindicar autoridade sobre o Papa quando condenou o Papa Honório I em 680.

Os Cânones dos Concílios Ecumênicos e a Autoridade Papal

Não é possível reconciliar as reivindicações papais à jurisdição universal com os cânones dos Concílios Ecumênicos. Além de suas decisões doutrinárias, os Concílios adotaram regras chamadas cânones para regular a vida da Igreja. Como a Igreja usava as divisões administrativas do Império Romano, os bispos das capitais provinciais haviam presidido reuniões ou sínodos dos bispos das cidades menores da província desde o início da história da Igreja. Os bispos que viviam na capital provincial ou metrópole da região acabaram sendo chamados de metropolitas. O Primeiro Concílio de Nicéia reafirmou essa prática e reconheceu a autoridade dos sínodos provinciais para eleger os bispos das dioceses em suas províncias. O concílio também decretou que os sínodos locais dos bispos deveriam se reunir em cada província pelo menos duas vezes por ano, uma vez antes da Quaresma e uma vez no outono. Em 528, o imperador Justiniano decidiu que os metropolitas e bispos de uma província elegeriam bispos de uma lista de três candidatos nomeados pelo clero e pelos fiéis da diocese. [315] O cânone trinta e cinco dos cânones apostólicos, um conjunto de cânones antigos com autoridade ecumênica dada pelo Concílio de Trullo em 692, considerado pelos ortodoxos como uma continuação dos quinto e sexto concílios ecumênicos, resume o modelo oriental para a administração adequada da Igreja.

"Os bispos de cada nação devem reconhecer aquele que é o primeiro entre eles e considerá-lo como sua cabeça, e não fazer nada de importante sem o seu consentimento; mas cada um deles pode fazer somente as coisas que dizem respeito à sua própria paróquia e aos territórios sob sua responsabilidade. Mas não permita que ele (que é o primeiro) faça algo sem o consentimento de todos; pois assim haverá unanimidade e Deus será glorificado através do Senhor no Espírito Santo." [316]

O desenvolvimento dos cinco patriarcados

A partir da divisão da Igreja em Igrejas provinciais locais, o sistema de cinco patriarcas se desenvolveu. O Primeiro Concílio de Nicéia reafirmou a autoridade do Metropolita de Alexandria sobre as Igrejas no Egito e no Norte da África, Antioquia sobre as Igrejas no Oriente Médio e Roma sobre as Igrejas naquelas áreas governadas diretamente por Roma. [317] Com o tempo, os metropolitas de Roma, Alexandria e Antioquia começaram a ser chamados de patriarcas (da palavra grega para pai). Os bispos de Roma e Alexandria também adotaram o título de papa (também da palavra para pai).

Eventualmente, o Segundo Concílio Ecumênico aprovou um cânon que teria conseqüências amplas. O Segundo Cânon desse concílio decretou que “O Bispo de Constantinopla, no entanto, terá a prerrogativa de honra depois do Bispo de Roma; porque Constantinopla é a Nova Roma.” [318] Em 330, o imperador Constantino mudou a capital do Império Romano para Bizâncio, uma antiga vila grega de pescadores. Bizâncio, que ele renomeou para Constantinopla, tornou-se uma alternativa cristã à Roma pagã. [319] Finalmente, o Quarto Concílio Ecumênico, o Concílio de Calcedônia, em 451, que estabeleceu o padrão para a cristologia ortodoxa, concedeu a dignidade patriarcal a Jerusalém. [320] Isto completou a formação da Pentarquia ou divisão da Igreja em cinco Igrejas provinciais locais autônomas: Roma, Constantinopla, Alexandria, Antioquia e Jerusalém. A Igreja Ortodoxa continuou até hoje a ser uma federação de igrejas localmente governadas.

O Concílio de Calcedônia tomou outra decisão muito importante sobre a administração da Igreja. Em 451, o Vigésimo Oitavo Cânon do Concílio de Calcedônia reconheceu a igualdade do Bispo de Constantinopla com o Bispo de Roma. Significativamente, o cânon não baseou a primazia de honra romana na crença de que São Pedro foi o fundador tradicional da Igreja Romana. Em vez disso, os padres do concílio consideraram o bispo de Roma o sênior dos bispos do mundo porque ele era bispo da antiga capital do império. Como Constantinopla havia tomado o lugar da antiga Roma e era a nova capital do Império, os padres do concílio decretaram que o bispo de Constantinopla deveria ter o mesmo status que o bispo de Roma. [321]

A Visão da Primazia do Papa São Leão

O papa São Leão objetou fortemente ao cânon 28 do Concílio de Calcedônia. Seus argumentos são muito interessantes à luz das alegações de seus sucessores. Ele não se opôs ao cânon por causa de uma teoria da supremacia papal ou petrina. Em vez disso, ele rejeitou o cânon porque deixou de lado o ranking das Igrejas estabelecido pelo Primeiro Concílio Ecumênico, o Primeiro Concílio de Nicéia. [322] Especificamente, o bispo de Roma rejeitou este cânon porque o concílio elevou Constantinopla às custas de Alexandria e Antioquia, que o Concílio de Nicéia havia classificado em segundo e terceiro lugar. Ele escreveu: "Os direitos dos primazes provinciais não podem ser derrubados, nem os bispos metropolitanos devem ser defraudados de privilégios baseados na “antiguidade”". [323]


Roma começa a reivindicar autoridade sobre outros bispos

Por fim, os bispos de Roma esqueceram as palavras de São Leão e procuraram derrubar os “direitos dos primazes provincianos” ao reivindicar autoridade muito além do primado de honra como primeiro entre iguais tradicionalmente concedido ao bispo de Roma. Como o Patriarca do Ocidente, o papa já tinha influência sobre uma área geográfica muito maior do que qualquer outro patriarca. Ele também não tinha rivais no Ocidente para sua reivindicação de autoridade apostólica, porque nenhum outro bispo ocidental tinha uma reivindicação tão forte de origens apostólicas. Por exemplo, quando Santo Irineu, que era bispo no que hoje é a França, usou o exemplo de uma Igreja fundada por um apóstolo durante sua discussão com os gnósticos, ele usou naturalmente a Igreja Apostólica mais próxima, a Igreja de Roma. No entanto, muitas Igrejas Orientais poderiam reivindicar um ou mais Apóstolos como seus fundadores. São Tiago foi o primeiro bispo de Jerusalém. De acordo com a tradição universalmente reconhecida, São Pedro e São Paulo fundaram a Igreja de Antioquia. Alexandria remontava a São Marcos, que foi considerado o colaborador de São Pedro. Até mesmo, a relativamente nova Igreja de Constantinopla reivindicou Santo André como seu primeiro bispo. No entanto, a Igreja Oriental classificou as Igrejas locais com base no status da cidade do bispo e não nas origens dela. Assim, na visão oriental, Roma mantinha uma primazia de honra porque era a antiga capital do império, não porque os santos Pedro e Paulo foram martirizados lá. Por essa mesma razão, os cristãos orientais consideravam Constantinopla igual a Roma porque ela tomara seu lugar como a capital do império.

“Sobre esta Rocha, eu edificarei a minha Igreja…” São Mateus 16: 13-19 e as reivindicações do Papa

O Ocidente, por outro lado, classificou as igrejas locais em relação ao status de seu fundador. Assim, os cristãos ocidentais consideravam Roma a igreja de maior hierarquia porque foi fundada por São Pedro, que era universalmente reconhecido como o líder dos apóstolos, não porque era a antiga capital do império. Os defensores da autoridade romana recorreram a São Mateus 16: 13-19:

"E, chegando Jesus às partes de Cesaréia de Filipe, interrogou os seus discípulos, dizendo: Quem dizem os homens ser o Filho do homem? E eles disseram: Uns, João o Batista; outros, Elias; e outros, Jeremias, ou um dos profetas. Disse-lhes ele: E vós, quem dizeis que eu sou? E Simão Pedro, respondendo, disse: Tu és o Cristo, o Filho do Deus vivo. E Jesus, respondendo, disse-lhe: Bem-aventurado és tu, Simão Barjonas, porque to não revelou a carne e o sangue, mas meu Pai, que está nos céus. Pois também eu te digo que tu és Pedro, e sobre esta pedra edificarei a minha igreja, e as portas do inferno não prevalecerão contra ela; E eu te darei as chaves do reino dos céus; e tudo o que ligares na terra será ligado nos céus, e tudo o que desligares na terra será desligado nos céus."

Como o nome “Pedro” é obviamente derivado da palavra “Petros”, que significa rocha em grego, algumas autoridades argumentaram que a “pedra” sobre a qual Cristo pretende edificar Sua Igreja é a pessoa de São Pedro. Em 382, o papa Santo Damasio I, que foi o primeiro bispo de Roma a se referir a Roma como “a Sé Apostólica”, emitiu um decreto em que reivindicava primazia para Roma com base na promessa de Cristo a São Pedro: “tu és Pedro, e sobre esta pedra edificarei a minha igreja ” [324] As autoridades ocidentais identificaram São Pedro como “a pedra” sobre a qual Cristo edificaria a Sua Igreja.

No entanto, os Padres Orientais tinham uma interpretação muito diferente dessa passagem. São João Crisóstomo ensinou que Cristo usou o termo “pedra” para se referir à “fé de sua confissão”, ao invés da pessoa de São Pedro. [325] Significativamente, até o papa São Leão, o Grande, afirma que a fé em Cristo é a pedra sobre a qual a Igreja é construída. [326] São Cipriano de Cartago acreditava que a promessa de Cristo a São Pedro se aplica a todos os bispos porque ele considerava todos os bispos sucessores dos apóstolos e herdeiros da autoridade de São Pedro. [327] Assim como São Pedro era o líder dos Apóstolos porque professou a verdadeira fé em Cristo, cada bispo que professa a verdadeira fé em Cristo é um sucessor de São Pedro. [328]

A visão de São Cipriano do lugar de Roma na Igreja

Embora São Cipriano respeitasse a Igreja Romana, ele não hesitou em discordar publicamente do Papa durante a famosa disputa sobre as recepções de conversos de grupos heréticos e cismáticos. São Cipriano argumentou que todos os convertidos, incluindo aqueles que receberam o Batismo em um grupo herético ou cismático, devem entrar na Igreja através do Batismo. No entanto, o papa São Estevão discordou e argumentou que a Igreja deveria receber aqueles batizados fora da Igreja através de uma profissão de fé e do sacramento da Crisma. Quando soube que o bispo de Roma não concordava com ele, São Cipriano escreveu: “Ninguém entre nós se coloca como bispo dos bispos, ou pela tirania e terror força seus colegas a obedecer compulsoriamente”. [329] Os teólogos orientais também faziam uma distinção entre os apóstolos que tinham autoridade universal e seus sucessores, os bispos que têm autoridade apenas sobre uma área limitada. Assim, eles acreditavam que nem Roma nem qualquer outra Igreja herdou status especial de São Pedro. [330]

Os teólogos ocidentais desenvolveram uma interpretação muito diferente da declaração de Cristo a São Pedro. Eles argumentaram que Cristo especificamente quis dizer a pessoa de São Pedro e seus sucessores quando ele prometeu construir Sua Igreja sobre a “pedra”. São Jerônimo escreveu que a “cadeira de Pedro” em Roma é a “pedra sobre a qual a Igreja é construída”. [331] Santo Ambrósio também identificou São Pedro com a pedra sobre a qual Cristo fundou a Igreja.

O crescimento das reivindicações papais

Com o passar dos séculos, os bispos de Roma procuraram mais e mais poder e autoridade. Como resultado, a primazia de honra originalmente mantida pelos papas lentamente evoluiu para uma primazia de jurisdição, pelo menos no Ocidente. O papa Santo Inocêncio escreveu em 417 que todas as questões importantes da Igreja não seriam resolvidas até que “até que tivessem chegado ao conhecimento desta Sé”. [332] O Papa São Leão I, que conseguiu persuadir a Igreja a renunciar o Concílio Ladrão de Éfeso e condenar o monofisismo no Concílio de Calcedônia em 451, escreveu: “todos os dons fluem para todo o corpo a partir próprio Pedro, como se fossem da cabeça, de tal maneira que qualquer um que ousasse separar-se da solidariedade de Pedro perceberia que já não era um participante do mistério divino”. Ele também escreveu que “embora os bispos tenham uma dignidade comum, eles não são todos do mesmo nível”. Em vez disso, ele argumentou que uma hierarquia de bispos surgiu com os primados regionais que significava que “o cuidado da Igreja Universal convergiria na única Sé de Pedro”. [334] Durante o tempo de São Leão, o Bispo de Roma começou a estender seu poder fora da Itália central para o Norte da África, Espanha e Gália (a França moderna). [335] No entanto, essas áreas já faziam parte do Patriarcado Ocidental. São Leão não fez nenhum esforço para ampliar sua autoridade sobre os bispos orientais. [336] Assim, embora São Leão tenha objetado o Cânon 28 de Calcedônia, ele continuou a reconhecer os direitos históricos dos metropolitas regionais aprovados pelo Primeiro Concílio Ecumênico e nunca tentou exercer jurisdição sobre os Patriarcas Orientais.

As invasões germânicas e o fim do Império Romano no Ocidente

A transferência do imperador e de sua corte para Constantinopla deixou um vácuo de poder na Itália e no Ocidente que o bispo de Roma preencheu enquanto assumia cada vez mais as funções do governo secular. Quando o governo imperial foi incapaz de lidar com as invasões germânicas, o papa interveio para proteger a Itália central dos bárbaros. Em 376, os visigodos ou godos ocidentais, uma tribo germânica, cruzaram o Danúbio até o Império Romano, fugindo dos hunos, que haviam invadido sua terra natal. Em 378, eles derrotaram o exército imperial na Batalha de Adrianópolis. Liderados por Alarico, eles invadiram a Itália. Para enfrentar este desafio, Stilicho, o líder dos exércitos imperiais no Ocidente, retirou suas tropas do Reno em 406, abrindo assim o caminho para uma invasão maciça por outras tribos germânicas. Em 410, o exército de Alarico ocupou a própria Roma. A fim de afastar os visigodos de Roma, o Imperador concedeu-lhes o direito de estabelecer e governar a Gália Ocidental, a França moderna. A partir daí, os visigodos se mudaram para a Espanha, onde estabeleceram um reino que durou até a conquista muçulmana em 741. Em 452, o papa São Leão liderou uma delegação representando o imperador que persuadiu Átila, o Huno, a não invadir a Itália. Em 455, ele apelou com sucesso a Gaiseric, o líder dos vândalos, para não atacar a cidade imperial. Eventualmente, outra tribo alemã, os francos, estabeleceu-se na Gália. Finalmente, em 476, Odovacar, um general germânico, destituiu Romulus Augustus, o Imperador do Ocidente, terminando assim o Império Romano do Ocidente. [337] No entanto, o Império Romano continuou a existir no Oriente até a conquista turca de Constantinopla em 1453. Porque a cidade imperial foi construída à vista de Bizâncio, uma antiga vila de pescadores gregos, os historiadores chamam o Império Romano do Oriente de Império Bizantino. Durante o tempo considerado "a Idade das Trevas", pela maioria dos historiadores ocidentais, a civilização floresceu em Constantinopla.

A conquista germânica do Ocidente e a queda do Império Romano do Ocidente tiveram outra conseqüência profunda na história da Igreja. O Ocidente entrou em uma era de isolamento durante a qual seus eruditos esqueceram a língua grega que servira de veículo para a expressão da fé desde a escrita do Novo Testamento. Consequentemente, as maiores mentes do Ocidente negligenciaram as obras dos pioneiros da teologia cristã, os Padres Gregos. Em vez disso, eles desenvolveram sua própria abordagem teológica que eventualmente diferiu significativamente da abordagem dos teólogos orientais. O Ocidente cresceu cada vez mais independente do Oriente, resultando no estabelecimento de um Império do Ocidente, eventualmente conhecido como o Sacro Império Romano. Ao mesmo tempo, alguns líderes ocidentais sucumbiram a um tipo de nacionalismo ocidental que denegria a teologia oriental e desempenhou um papel importante no crescente distanciamento entre os cristãos orientais e ocidentais.

A transformação do papado: de bispo de Roma para monarca da Itália central

A queda do Império no Ocidente teve um impacto profundo no crescimento do papado. À medida que o poder do Império no Ocidente se desintegrava, o papa viu-se forçado a assumir as funções de governo, tornando-se assim o principal símbolo de estabilidade no Ocidente e o principal governante de Roma e da Itália central. Como os bispos de Roma assumiram o papel anteriormente ocupado pelas autoridades romanas na Itália central, eles também começaram a funcionar de acordo com a lei do império romano. Assim, os papas começaram a reivindicar todos os direitos reservados pela lei romana ao monarca. Uma vez que a lei romana previa que todo o poder repousava nas mãos do governante, os bispos de Roma começaram a reivindicar todo o poder para si mesmos. [338]

São Gregório o Grande 

São Gregório o Grande, bispo de Roma de 590 a 614, desempenhou um papel importante na transformação do papado em um poder principesco. Nascido em Roma por volta de 540, São Gregório foi o primeiro monge a se tornar papa.[339] Ele serviu como representante do papa Pelágio II em Constantinopla e o sucedeu quando morreu em 590. Na Igreja Ortodoxa, São Gregório costuma ser chamado de Dialogus por causa de sua obra Diálogos das Vidas e dos Milagres dos Padres Italianos. [340] Ele também está associado à Divina Liturgia dos Dons Pré-Santificados celebrada nas Igrejas Ortodoxas durante a Grande Quaresma. Ele reformou a Liturgia Romana e desempenhou um papel importante na padronização do canto ocidental ou gregoriano. São Gregório também fez grandes reformas na administração papal de suas terras na Sicília, Itália e Província, usando a renda para cuidar dos pobres que viviam nas áreas sob seu controle. Além disso, ele negociou com os lombardos, uma tribo germânica que invadiu a Itália em 568. Como resultado, ele se tornou o governante de fato de Roma e da Itália central. [341]

Embora estivesse ciente da primazia de honra que herdou como bispo de Roma, São Gregório não abusou de sua posição. Em vez disso, ele respeitava os direitos dos outros patriarcas. Ele escreveu que “o cuidado de toda a Igreja foi entregue ao santo Apóstolo e Príncipe de todos os Apóstolos, Pedro”. [342] No entanto, ele não considerou o prestígio devido ao sucessor de São Pedro como propriedade exclusiva do Bispo de Roma,  porque ele também reconheceu que as Igrejas de Alexandria e Antioquia também poderiam reivindicar São Pedro como seu fundador. Assim, de acordo com São Gregório, o Bispo de Roma não é o único sucessor de São Pedro. Ele considerou os bispos de Alexandria e Antioquia também sucessores de São Pedro, que compartilham as honras concedidas ao bispo de Roma como sucessor de São Pedro. [343] Por exemplo, ele contestou quando Eulogius, o Patriarca de Alexandria, respondeu a um pedido que ele havia feito tal como São Gregório havia ordenado. Em vez disso, ele escreveu: “Pois em posição vocês são meus irmãos, no caráter meus pais. Não ordenei, mas estava desejoso de indicar o que parecia ser proveitoso ”. [344]

São Gregório contestou fortemente quando São João o Jejuador, o Patriarca de Constantinopla, começou a usar o título de “Patriarca Ecumênico”. São Gregório, que nunca aprendera grego, apesar de seus anos em Constantinopla, não entendeu o que João realmente quis dizer quando usou o título "ecumênico". São Gregório confundiu a palavra "ecumênico" com a palavra “universal” e achou que o bispo da nova Roma reivindicava a autoridade universal. São Gregório argumentou que até mesmo São Pedro não presumiu assumir o título de “universal”. Em vez disso, ele alega que se qualquer bispo “toma para si esse nome, pelo qual ele se torna a cabeça de todos os bons… a honra de todos os sacerdotes é removida...” Ele também escreveu que "Se um Patriarca é chamado de "universal", o título de Patriarca, no caso dos demais, é derrogado."  Em vez de reivindicar o título de “Universal”, para si mesmo, São Gregório escreveu que ele se considerava “o servo de todos os sacerdotes ...” [345] No entanto, o termo “ecumênico” como usado por São João o Jejuador não significava universal, mas foi simplesmente uma conseqüência de seu status como bispo de Constantinopla quando a cidade imperial governava o império ecumênico. Ao chamar a si mesmo de patriarca ecumênico, São João o Jejuador não reivindicou autoridade universal. Em vez disso, ele estava enfatizando seu relacionamento com as autoridades imperiais, que se tornaram muito importantes durante o conflito com os monofisitas. [346]

A aliança entre o bispo de Roma e o rei dos francos

A crise iconoclasta desempenhou um papel muito significativo na divisão entre o papado e a Igreja oriental. Os papas Gregório II e III denunciaram o imperador Leão III, que havia proibido imagens. Como alternativa, eles formaram um relacionamento com o rei dos francos, que governou o que hoje é a França, bem como partes da Alemanha moderna e da Bélgica, como uma alternativa de depender do poder imperial então herético. Desde a missão do bispo Ulfilas, um ariano, aos godos em 341, a maioria das tribos germânicas havia sido ariana. No entanto, em 496, Clovis, o rei dos francos, abraçou o cristianismo ortodoxo.[347] Quando os lombardos ameaçaram Roma, o papa Gregório III pediu ajuda a Carlos Martel. Carlos ocupava o cargo de prefeito do palácio, uma espécie de primeiro-ministro, para o rei dos francos. Carlos, o filho Pepino II de Heristal, ganhou o título de "Martel", que significa "Martelo", de sua vitória sobre os mouros na Batalha de Tours ou Poitiers em 732, salvando a França e o resto da Europa Ocidental da conquista muçulmana . Embora Carlos não tenha conseguido responder favoravelmente ao pedido de ajuda, esse apelo iniciou o processo que levou a uma aliança entre os governantes dos francos e os bispos de Roma.[348]

A doação de Pepino

No oitavo século, o prefeito do palácio havia se tornado o verdadeiro soberano dos francos e o rei dos francos uma figura impotente. Em 751, o filho e sucessor de Carlos, Pepino o Breve, derrubou com sucesso o último governante merovíngio, Childeric III, e assumiu o trono com a bênção do papa Zacarias. Isso solidificou a relação entre os Papas e Pepino o Breve e seus descendentes, que tiveram um grande impacto na história da Igreja. Quando os lombardos, outra tribo germânica, ameaçaram atacar Roma, o papa Estêvão II apelou para Pepino, em busca de apoio. O rei dos francos e seus exércitos derrotaram os lombardos e conquistaram a Itália central em 754. Pepino ocupou Ravenna, a última base do Império do Oriente na Itália. Em 756, o monarca franco emitiu a "Doação de Pepino", reconhecendo o bispo de Roma como o governante de Ravena, Roma e Itália central. Isto estabeleceu os Estados Papais e fez do Papa o monarca legal sobre a Itália central, completando o processo que começou quando os Bispos de Roma começaram a assumir a maioria das responsabilidades abdicadas pelas autoridades imperiais após o estabelecimento de Constantinopla e o início das invasões germânicas. Embora tenha perdido a maior parte de suas terras durante a unificação da Itália no século XIX, o bispo de Roma ainda era um monarca, governando o pequeno enclave conhecido como Cidade do Vaticano. [349]

A transformação do bispo em monarca como resultado das invasões germânicas e da doação de Pepino teve um grande impacto no papado. Naquela época, os monarcas reivindicaram autoridade absoluta. Para ter sucesso em um mundo de príncipes competidores, um governante tinha que ser forte e agressivo, ou outro príncipe mais forte e mais agressivo conquistaria suas terras. Assim, os Papas tornaram-se governantes fortes e agressivos. Eventualmente, os Papas começaram a conduzir suas responsabilidades espirituais como Bispo de Roma da mesma maneira que conduziam suas responsabilidades seculares como governante da Itália central. Isso levou a uma transformação do papado, pois, como os papas governaram como monarcas absolutos sobre os Estados Papais, eles começaram a se considerar monarcas absolutos sobre a Igreja.

Carlos Magno e o estabelecimento do Império do Ocidente

O dia de Natal, em 800, foi um momento decisivo na história da Europa. Quando seus inimigos o acusaram de corrupção e imoralidade, o Papa Leão II apelou a Carlos I, filho de Pepino e sucessor por apoio. O rei dos francos e um grupo de seus bispos chegaram a Roma, onde declararam o papa inocente de qualquer atitude errada. Quando Carlos, também conhecido como Carlos o Grande ou Carlos Magno, chegou à comunhão durante a missa de Natal, o papa Leão III o coroou como "imperador dos romanos". Carlos mais tarde afirmou que sua coroação foi uma surpresa completa. [350] Os historiadores ainda discutem se Carlos sabia ou não das intenções do papa antecipadamente. Independentemente de ter ou não buscado a coroa imperial, a ação de Leão teve consequências de longo alcance. Ao assumir a autoridade para tornar um homem um imperador, o papa colocou o imperador sob sua autoridade. Eventualmente, os Papas reivindicaram não apenas o poder de tornar um homem imperador, mas o poder de remover um imperador. Ao mesmo tempo, coroando um imperador sem referência a Constantinopla, o bispo de Roma declarou sua independência da nova Roma e de seus governantes.

Carlos Magno foi um dos governantes mais importantes da história européia. Ele ampliou o reino dos francos incluindo a maior parte da Europa Ocidental. Carlos Magno também reorganizou a Igreja em suas terras, restabelecendo o sistema dos Metropolitas regionais, chamados Arcebispos, que supervisionavam os bispos dentro de suas províncias. Na Alemanha, Carlos Magno estabeleceu quatro arcebispados: Mainz, Colônia, Trier e Salzburgo. Ele também fundou escolas e bibliotecas em catedrais, mosteiros e igrejas paroquiais para aumentar o aprendizado e a devoção do clero. Essas instituições, fundadas por Alcuíno de York, seu principal conselheiro em assuntos eclesiásticos, lançaram as bases para o desenvolvimento intelectual da Europa durante a Idade Média. Alcuíno também padronizou o texto da Liturgia Ocidental impondo a Liturgia da Igreja Romana nas terras dominadas por Carlos Magno. [351] As atividades intelectuais de Alcuíno e seus partidários na corte de Carlos Magno, em Aachen, tiveram um profundo impacto na história da Igreja. A fim de enfatizar a independência do Império de Carlos Magno do Império Bizantino ou Oriental, eles criaram uma nova forma de teologia cristã, que os historiadores chamam de teologia alemã ou franca. A nova escola do pensamento cristão enfatizou os Padres latinos e praticamente ignorou os Padres orientais ou gregos. Como Agostinho foi o maior Padre latino, ele se tornou a principal fonte de pensamento teológico no que se tornou a Igreja Católica Romana. O resultado foi uma visão parcial do cristianismo que se tornou mais e mais legalista e racionalista. Isso levou a um abismo cada vez maior entre a teologia oriental e ocidental.

Do livro "The Historic Church: An Orthodox View of Christian History" por Pe. John W. Morris

Notas

305 Stephen Runciman, The Eastern Schism (Oxford: The Clarendon Press, 1955), pp. 47-48
306 I Corinthians 10:17
307 The Liturgikon, p. 288
308 Karl Bihlmeyer, Hermann Tuchle, Church History (Westminster: The Newman Press, 1968) vol. I, p. 114
309 Sardica. A.D. 343 or 344, “Canons III, IV, and V,” in Nicene Fathers, Second Series, vol. XIV, pp. 416-419
310 Ignatius, “The Epistle of Ignatius to the Romans,” in Ante-Nicene Fathers, vol. I, p. 73
311 Ibid.
312 Cyprian, “Unity of the Catholic Church,” pp. 126-127
313 Meyendorff, Imperial Unity and Christian Divisions, p. 64
314 John Meyendorff, “St. Peter in Byzantine Theology,” in John Meyendorff, ed. The Primacy of Peter (Crestwood: St. Vladimir’s Seminary Press, 1992), p. 69
315 Ibid., p. 44
316 “The Apostolic Canons,” in Nicene Fathers, Second Series, Vol. XIV, p. 596
317 “Canons IV, V, VI, and VII in I Nicea,” in Nicene Fathers, Second Series, vol. XIV, pp. 11-17.
318 I Constantinople, “Canon II,” in Nicene Fathers, Second Series, vol. XIV, p. 178
319 “The Apostolic Canons,” in Nicene Fathers, Second Series, Vol. XIV, p. 596
320 “Decree on the Jurisdiction of Jerusalem and Antioch,” in Ibid., p. 266
321 Ibid, p. 267-268
322 St. Leo, “Letter CIV” in Ibid., vol. XII, p. 75
323 St. Leo, “Letter CVI To Anatolis, Bishop of Constantinople, in Rebuke of His Self-Seeking,” in Ibid., pp. 77-79
324 St. Damascus I, Pope, “The Decree of Damascus,” in Jurgens, Early Fathers, vol. I, p. 406; Walker, A History of the Christian Church, p. 151
325 St. John Chrysostom, The Gospel of St. Matthew, in Nicene Fathers, Second Series, vol. X, p. 333
326 Leo the Great, “Sermon LXII,” in Nicene Fathers, Second Series, vol. XII, p. 174
327 Veselin Kesich, “Peter’s Primacy in the New Testament and the Early Tradition,” in Meyendorff, The Primacy of Peter, p. 63
328 Philip Sherrard, Church, Papacy, and Schism: A Theological Enquiry, (Limmi, Evia, Greece: Denise Harvey Publisher, 1996), pp. 29-30
329 Quasten, Patrology, p. 375-376
330 Kesich, “Peter’s Primacy,” pp. 56-66
331 Jerome, “Letter 15,” in Greenslade, Early Latin Theology, p. 308
332 St. Innocent I, “Letter of Pope Innocent to the Fathers of the Council of Carthage, Jan. 27, 417 A.D. [In requirendis],” in Jurgens, Early Fathers, p. 182
333 St. Leo I, “Letter of Leo I to the Bishops of the Province of Vienne, July, 445 A.D. [Divinae cutum]” in Ibid., p. 369
334 St. Leo I, “Letter of Pope Leo I to Anastasus, Bishop of Thessalonica A.D. 446 (?) [Quanta fraternitate]” in Ibid., p. 270
335 Walker, A History of the Christian Church, p. 152
336 Meyendorff, Imperial Unity and Christian Divisions, p. 154
337 Norman F. Cantor, Medieval History: The Life and Death of A Civilization (London: The Macmillan Company, 1969), pp. 116-120; Walker, A History of the Christian Church, p. 150
338 Sherrard, Church Papacy and Schism, pp. 55-57
339 Meyendorff, Imperial Unity and Christian Divisions, p. 302
340 Jurgens, Early Fathers, vol. III, pp. 308-319
341 Walker, A History of the Christian Church, pp. 214-215
342 St. Gregory The Great, “Epistle XX to Mauricus Augustus,” in Nicene Fathers, Second Series, vol. XII, p. 168
343 St. Gregory the Great, “Epistle XL To Eulugius, Bishop,” in, Ibid, p. 229
344 St. Gregory the Great, “Epistle XXX To Eulogius, Bishop of Alexandria,” in Ibid., p. 241
345 St. Gregory the Great, “Epistle XX To Mauricus Augustus,” and “Epistle XLIII To Eulogius and Anastasius, Bishops” in Ibid pp. 168-170-171, 178
346 Cantor, Medieval History, p. 173; Meyendorff, Imperial Unity and Christian Divisions, p. 305
347 Walker, A History of the Christian Church, 148, 150
348 Bihlmeyer, and Tuchle, Church History, vol. II, p. 41
349 Ibid., p. 42
350 Cantor, Medieval History, p. 199
351 Cantor, Medieval History, pp. 207; Walker, A History of the Christian Church, pp. 240-241; Bihlmeyer, Tuchle, Church History, p. 47 Chapter 9