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sábado, 31 de outubro de 2020

São Gregório Palamas e a Tradição dos Pais (Pe. George Florovsky)

Seguindo os Pais

"SEGUINDO OS SANTOS PAIS" ... Era habitual na Igreja Antiga introduzir afirmações doutrinárias através de frases como esta. O Decreto de Calcedônia abre precisamente com estas mesmas palavras. O Sétimo Concílio Ecumênico introduz sua decisão sobre os Santos Ícones de uma forma mais elaborada: "Seguindo o ensinamento divinamente inspirado dos Santos Pais e a Tradição da Igreja Católica." A didaskalia dos Pais é o termo de referência formal e normativo.

Isso era muito mais do que apenas um "apelo à antiguidade". De fato, a Igreja salienta sempre a permanência de sua fé através dos tempos, desde o princípio. Esta identidade, desde os tempos apostólicos, é o sinal mais evidente e expressão da fé correta - sempre a mesma. No entanto, a "antiguidade" por si só não é uma prova adequada da verdadeira fé. Além disso, a mensagem cristã era obviamente uma "novidade" impactante para o "mundo antigo" e, de fato, um chamado à "renovação" radical. O "Velho" passou, e tudo foi "feito Novo". Por outro lado, as heresias também podem apelar ao passado e invocar a autoridade de certas "tradições". De fato, as heresias frequentemente persistiam no passado.[1] As fórmulas arcaicas podem muitas vezes ser perigosamente enganosas. O próprio Vicente de Lerins estava plenamente consciente desse perigo. Bastaria citar esta tocante passagem dele: "E agora, que inversão espantosa da situação! Os autores da mesma opinião são julgados católicos, mas os seguidores - heréticos; Os mestres são absolvidos, os discípulos são condenados; Os escritores dos livros serão filhos do Reino, seus seguidores irão para a Geena" (Commonitorium, cap. 6). Vincente tinha em mente, evidentemente, São Cipriano e os Donatistas. O próprio São Cipriano enfrentou a mesma situação. "Antiguidade" como tal pode ser apenas um preconceito inveterado: nam antiquitas sine veritate vetustas erroris est (Epist. 74). Ou seja - " costumes antigos " como tais não garantem a verdade. "Verdade" não é apenas um "hábito".

A verdadeira tradição é apenas a tradição da verdade, traditio veritatis. Esta tradição, segundo Santo Irineu, está fundamentada em, e assegurada por, aquele carisma veritatis certum [carisma seguro da verdade], que foi "depositado" na Igreja desde o início e preservado pela sucessão ininterrupta do ministério episcopal. A "tradição" na Igreja não é uma continuidade da memória humana, nem uma permanência de ritos e hábitos.É uma tradição viva - depositum juvenescens, na expressão de Santo Irineu. Por conseguinte, não pode ser contada entre mortuas régulas [entre regras mortas]. Em última análise, a tradição é uma continuidade da presença permanente do Espírito Santo na Igreja, uma continuidade da orientação e da iluminação divina. A Igreja não está presa pela "letra". Ao contrário, ela é constantemente movida pelo "Espírito". O mesmo Espírito, o Espírito da Verdade, que "falou pelos Profetas", que guiou os Apóstolos, ainda está continuamente guiando a Igreja na compreensão e entendimento mais pleno da verdade divina, de glória em glória.

"Seguindo os Santos Pais" ... Isto não é uma referência a alguma tradição abstrata, em fórmulas e proposições. É primariamente um apelo ao testemunho santo. De fato, apelamos aos Apóstolos, e não apenas a uma "Apostolicidade" abstrata. Do mesmo modo, referimo-nos aos Pais. O testemunho dos Pais pertence, intrínseca e integralmente, à própria estrutura da crença Ortodoxa. A Igreja está igualmente comprometida com o kerygma dos Apóstolos e com o dogma dos Pais. Podemos citar neste ponto um admirável antigo hino (provavelmente, da pena de São Romano, o Melodista). "Preservando o kerigma dos Apóstolos e os dogmas dos Pais, a Igreja selou a única fé e vestindo a túnica da verdade, ela molda corretamente o tecido ricamente adornado da teologia celeste e louva o grande mistério da piedade " [2].

A Mente dos Pais 

A Igreja é de fato "Apostólica". Mas a Igreja também é "Patrística". Ela é intrinsecamente "a Igreja dos Pais". Estas duas "notas" não podem ser separadas. Apenas por ser "Patrística", a Igreja é verdadeiramente "Apostólica". O testemunho dos Pais é muito mais do que uma simples característica histórica, uma voz do passado. Citemos outro hino - do ofício dos Três Hierarcas. "Pela palavra do conhecimento vós compusestes os dogmas que os pescadores estabeleceram primeiramente em palavras simples, no conhecimento pelo poder do Espírito, pois assim a nossa simples piedade teve que adquirir composição". Há, por assim dizer, dois estágios básicos na proclamação da fé cristã. "A nossa simples fé teve que adquirir composição." Havia um impulso interior, uma lógica interior, uma necessidade interna, nesta transição - do kerygma para o dogma. Com efeito, o ensinamento dos Pais, e o dogma da Igreja, são ainda a mesma "simples mensagem" que uma vez foi transmitida e depositada, uma vez para sempre, pelos Apóstolos. Mas agora ela é, por assim dizer, devidamente e plenamente articulada. A pregação apostólica é mantida viva na Igreja, não apenas meramente preservada. Neste sentido, o ensino dos Pais é uma categoria permanente da existência cristã, uma medida constante e última e critério de fé correta. Os Pais não são apenas testemunhas da fé antiga, testes antiquitatis. São, antes, testemunhas da verdadeira fé, testes veritatis. "A mente dos Pais" é um termo de referência intrínseco na teologia ortodoxa, não menos do que a palavra da Sagrada Escritura, e de fato nunca se separou dela. Como foi bem dito, "a Igreja Católica de todos as épocas não é meramente uma filha da Igreja dos Pais - ela é e continua a ser a Igreja dos Pais". [3]

O caráter existencial da teologia patrística

A principal marca distintiva da teologia patrística era seu caráter "existencial", se pudermos usar este neologismo contemporâneo. Os Pais teologizaram, como dizia São Gregório de Nazianzo, "à maneira dos Apóstolos, não à maneira de Aristóteles - alieutikos, ouk aristotelikos [lit. “como pescadores, não como Aristóteles”— ed] (Hom. 23. 12). A teologia deles ainda era uma "mensagem", um kerygma. Sua teologia ainda era "teologia kerigmática", mesmo que muitas vezes fosse logicamente arranjada e acompanhada de argumentos intelectuais. A referência final ainda era a visão da fé, ao conhecimento espiritual e à experiência. À parte da vida em Cristo, a teologia não tem convicção e, se separada da vida de fé, a teologia pode degenerar em uma dialética vazia, uma polylogia vã, sem nenhuma consequência espiritual. A teologia patrística estava existencialmente enraizada no compromisso decisivo da fé. Não era uma "disciplina" auto-explicativa que podia ser apresentada argumentativamente, isto é, aristotelikos, sem qualquer engajamento espiritual prévio. Na era das disputas teológicas e dos debates incessantes, os grandes Pais Capadócios protestaram formalmente contra o uso da dialética, dos "silogismos aristotélicos", e tentaram remeter a teologia de volta à visão da fé. A teologia patrística só poderia ser pregada" ou "proclamada" - pregada do púlpito, proclamada também nas palavras da oração e nos ritos sagrados, e de fato manifestada na estrutura total da vida cristã. Uma teologia deste tipo nunca pode ser separada da vida de oração e do exercício da virtude. "O clímax da pureza é o início da teologia", como diz São João Clímaco: Telos de hagneias hypotheosis theologias (Scala Paradisi, grau 30).

Por outro lado, a teologia deste tipo é sempre, por assim dizer, "propedêutica", uma vez que seu objetivo e propósito último é verificar e reconhecer o Mistério do Deus Vivo, e de fato testemunhá-lo, em palavras e atos. A "teologia" não é um fim em si mesma. Ela é sempre apenas um caminho. A teologia, e mesmo os "dogmas", apresentam não mais que um "contorno intelectual" da verdade revelada, e um testemunho "noético" da mesma. Somente no ato de fé é que este "contorno" é preenchido com conteúdo. As fórmulas cristológicas são plenamente significativas apenas para aqueles que encontraram o Cristo Vivo, e O receberam e reconheceram como Deus e Salvador, e estão habitando pela fé nEle, em Seu corpo, a Igreja. Neste sentido, a teologia nunca é uma disciplina auto-explicativa. Ela apela constantemente para a visão da fé. "O que vimos e ouvimos, anunciamos a vocês". À parte este "anúncio", as fórmulas teológicas são vazias e não têm qualquer consequência. Pela mesma razão, estas fórmulas nunca podem ser tomadas "abstratamente", ou seja, fora do contexto total da crença. É enganoso destacar declarações particulares dos Pais e desprendê-las da perspectiva total na qual foram realmente pronunciadas, assim como é enganoso manipular com citações desprendidas das Escrituras. É um hábito perigoso "citar" os Pais, ou seja, seus dizeres e frases isoladas, fora daquele quadro concreto no qual unicamente têm seu pleno e próprio significado e estão verdadeiramente vivos. "Seguir" os Pais não significa apenas "citá-los". "Seguir" os Pais significa adquirir a "mente" deles, seu phronema.

O significado da "Era" dos Pais

Agora, chegamos ao ponto crucial. O nome de "Pais da Igreja" é geralmente restrito aos doutores da Igreja Antiga. E atualmente assume-se que a autoridade deles depende de sua "antiguidade", de sua proximidade comparativa com a "Igreja Primitiva", com a "Era" inicial da Igreja. Já São Jerônimo teve que contestar esta idéia. De fato, não houve diminuição de "autoridade", nem diminuição na imediatez da competência espiritual e do conhecimento, no curso da história cristã. De fato, porém, esta idéia de "diminuição" afetou fortemente nosso pensamento teológico moderno. Na realidade, é muito frequentemente assumido, consciente ou inconscientemente, que a Igreja Primitiva estava, por assim dizer, mais próxima da fonte da verdade. Como uma admissão de nosso próprio fracasso e inadequação, como um ato de autocrítica humilde, tal suposição é sólida e útil. Mas é perigoso fazer dela o ponto de partida ou a base de nossa "teologia da história da Igreja", ou mesmo de nossa teologia da Igreja. De fato, a Era dos Apóstolos deve manter sua posição única. No entanto, foi apenas um começo. É amplamente assumido que a "Era dos Pais" também terminou, e por isso é considerada apenas como uma formação antiga, "antiquada" em um sentido e "arcaica". O limite da "Era Patrística" é definido de forma variada. É comum considerar São João de Damasco como o "último Pai" no Oriente, e São Gregório o Dialogista ou Isidoro de Sevilha como "o último" no Ocidente. Esta periodização tem sido justamente contestada em tempos recentes. Não deveria, por exemplo, o São Teodoro do Estúdio, pelo menos, ser incluído entre os "Pais"? Mabillon sugeriu que Bernardo de Claraval, o Doutor melífluo, foi "o último dos Pais, e certamente não desigual dos anteriores". [4] Na verdade, é mais do que uma questão de periodização. Do ponto de vista ocidental, "a Era dos Pais" foi sucedida, e de fato superada, pela "Era dos Escolares", que foi um passo essencial adiante. Desde a ascensão do Escolasticismo, a "Teologia Patrística" passou a ser antiquada, tornou-se na realidade uma "era passada", uma espécie de prelúdio arcaico. Este ponto de vista, legítimo para o Ocidente, tem sido, infelizmente, aceito também por muitos no Oriente, de forma cega e acrítica. Portanto, é preciso enfrentar a alternativa.  Ou se tem que lamentar o "atraso" do Oriente que nunca desenvolveu nenhum "escolasticismo" próprio. Ou é preciso se retirar para "Era Antiga", de forma mais ou menos arqueológica, e praticar o que tem sido descrito de forma astuciosa recentemente como uma "teologia da repetição". Esta última, de fato, é apenas uma forma peculiar de "escolasticismo" imitativo.

Agora, não é raro sugerir que, provavelmente, "a Era dos Pais" tenha terminado muito mais cedo do que São João de Damasco. Muito frequentemente não se prossegue além da Era de Justiniano, ou mesmo já do Concílio de Calcedônia. Leôncio de Bizâncio não era já "o primeiro dos Escolásticos"? Psicologicamente, esta atitude é bastante compreensível, embora não possa ser teologicamente justificada. De fato, os Pais do século IV são muito mais impressivos, e sua grandeza única não pode ser negada. No entanto, a Igreja permaneceu plenamente viva também depois de Nicéia e Calcedônia. A atual ênfase excessiva nos "primeiros cinco séculos" distorce perigosamente a visão teológica e impede a compreensão correta do próprio dogma calcedoniano. O decreto do Sexto Concílio Ecumênico é frequentemente considerado como uma espécie de "apêndice" de Calcedônia, interessante apenas para especialistas em teologia, e a grande figura de São Máximo, o Confessor, é quase completamente ignorada. Assim, o significado teológico do Sétimo Concílio Ecumênico é perigosamente obscurecido, e  resta perguntar-se por que a Festa da Ortodoxia deveria estar relacionada à comemoração da vitória da Igreja sobre os Iconoclastas. Não foi apenas uma "controvérsia ritualística"? Muitas vezes esquecemos que a famosa fórmula do Consensus quinquesaecularis [consenso dos cinco séculos], ou seja, até Calcedônia, era uma fórmula Protestante, e refletia uma peculiar "teologia da história" Protestante. Era uma fórmula restritiva, por mais que parecesse ser demasiado inclusiva para aqueles que queriam ser isolados na Era Apostólica. A questão é que a atual fórmula oriental dos "Sete Concílios Ecumênicos" dificilmente é muito melhor, se ela tende, como costuma fazer, a restringir ou limitar a autoridade espiritual da Igreja aos primeiros oito séculos, como se "a Era de Ouro" do Cristianismo já tivesse passado e estivéssemos agora, provavelmente, já em uma Idade do Ferro, muito mais abaixo na escala do vigor espiritual e da autoridade. Nosso pensamento teológico tem sido perigosamente afetado pelo padrão de decadência, adotado para a interpretação da história cristã no Ocidente desde a Reforma. A plenitude da Igreja foi então interpretada de forma estática, e a atitude para com a Antiguidade tem sido distorcida e mal interpretada. Afinal, não faz muita diferença, se restringimos a autoridade normativa da Igreja a um século, ou a cinco, ou a oito. Não deveria haver nenhuma restrição. Consequentemente, não há espaço para qualquer "teologia da repetição". A Igreja ainda é plenamente autoritativa como tem sido nas eras passadas, uma vez que o Espírito da Verdade a vivifica de forma não menos eficaz como nos tempos antigos.

O Legado da Teologia Bizantina

Um dos resultados imediatos de nossa periodização descuidada é que simplesmente ignoramos o legado da teologia bizantina. Estamos preparados, agora mais do que há apenas algumas décadas, para admitir a autoridade perene dos "Pais", especialmente desde o reavivamento dos estudos patrísticos no Ocidente. Mas ainda tendemos a limitar o escopo da admissão, e obviamente os "teólogos bizantinos" não são prontamente incluídos entre os "Pais". Estamos inclinados a discriminar bastante rigidamente entre "Patrística" - num sentido mais ou menos estreito - e "Bizantinismo". Ainda estamos inclinados a considerar o "Bizantinismo" como uma sequência inferior à Era Patrística. Ainda temos dúvidas sobre sua relevância normativa para o pensamento teológico. Entretanto, a teologia bizantina era muito mais do que apenas uma "repetição" da teologia patrística e o que nela era novo não era de qualidade inferior em comparação com a "Antiguidade Cristã". De fato, a teologia bizantina era uma continuação orgânica da Era Patrística. Houve alguma ruptura? O ethos da Igreja Ortodoxa Oriental alguma vez foi alterado, em algum ponto ou data histórica, que, no entanto, nunca foi unanimemente identificado, de modo que o desenvolvimento "posterior" foi de menor autoridade e importância que qualquer outro? Esta admissão parece estar silenciosamente implícita no comprometimento restritivo aos Sete Concílios Ecumênicos. Assim, São Simeão, o Novo Teólogo, e São Gregório Palamas são simplesmente deixados de fora, e os grandes Concílios Hesicastas do século XIV são ignorados e esquecidos. Qual é a posição e a autoridade deles na Igreja?

Porém, de fato, São Simeão e São Gregório ainda são mestres e inspiradores de todos aqueles que, na Igreja Ortodoxa, estão lutando pela perfeição, e estão vivendo a vida de oração e contemplação, seja nas comunidades monásticas sobreviventes, seja na solitude do deserto, e até mesmo no mundo. Estas pessoas fiéis não estão cientes de nenhuma suposta "ruptura" entre "Patrística" e "Bizantinismo". A Filocalia, esta grande enciclopédia de piedade oriental, que inclui escritos de muitos séculos, está, em nossos dias, se tornando cada vez mais o manual de orientação e instrução para todos aqueles que estão dispostos a praticar a Ortodoxia em nossa situação contemporânea. A autoridade de seu compilador, São Nicodemos da Santa Montanha, foi recentemente reconhecida e reforçada por sua canonização formal na Igreja. Neste sentido, somos levados a dizer que "a Era dos Pais" ainda continua na "Igreja Venerante". Não deveria ela continuar também em nossa busca teológica e em nosso estudo, pesquisa e instrução? Não deveríamos recuperar "a mente dos Pais" também em nosso pensamento teológico e ensino? Recuperá-la, de fato, não como uma forma arcaica ou uma pose, e não apenas como uma relíquia venerável, mas como uma atitude existencial, como uma orientação espiritual. Somente desta forma nossa teologia poderá ser reintegrada à plenitude de nossa existência cristã. Não basta manter uma "Liturgia Bizantina", como nós fazemos, restaurar a iconografia bizantina e a música bizantina, como ainda estamos relutantes em fazer consistentemente, e praticar certos modos de devoção bizantina. É preciso ir às próprias raízes desta "piedade" tradicional, e recuperar a "mente patrística". Caso contrário, podemos estar em perigo de estarmos divididos interiormente - como muitos em nosso meio estão de fato - entre as formas "tradicionais" de "piedade" e um hábito não muito tradicional do pensamento teológico. Trata-se de um perigo real. Como "veneradores", ainda estamos na "tradição dos Pais". Não deveríamos nos manter, consciente e declaradamente, na mesma tradição também como "teólogos", como testemunhas e doutores da Ortodoxia? Podemos manter nossa integridade por qualquer outra maneira?




São Gregório Palamas e Theosis 

Todas estas considerações preliminares são altamente relevantes para nosso propósito imediato. Qual é o legado teológico de São Gregório Palamas? São Gregório não foi um teólogo especulativo. Ele era um monge e um bispo. Ele não estava preocupado com problemas abstratos de filosofia, embora ele também estivesse bem treinado neste campo. Ele estava preocupado apenas com os problemas da existência cristã. Como teólogo, ele era simplesmente um intérprete da experiência espiritual da Igreja. Quase todos os seus escritos, exceto provavelmente as suas homilias, eram escritos ocasionais. Ele estava lutando contra os problemas de sua própria época. E era uma época crítica, uma era de controvérsia e ansiedade. De fato, era também uma era de renovação espiritual.

São Gregório havia sido suspeito de inovações subversivas por seus inimigos em seu próprio tempo. Esta acusação ainda é mantida contra ele no Ocidente. Na verdade, porém, São Gregório estava profundamente enraizado na tradição. Não é difícil rastrear a maioria de seus pontos de vista e motivos de volta aos Pais Capadócios e a São Máximo o Confessor, que foi, por sinal, um dos mais populares mestres do pensamento e devoção bizantina. De fato, São Gregório também estava intimamente familiarizado com os escritos de Pseudo-Dionísio. Ele estava enraizado na tradição. No entanto, em nenhum sentido sua teologia foi apenas uma "teologia da repetição". Era uma extensão criativa da tradição antiga. Seu ponto de partida era a Vida em Cristo.

De todos os temas da teologia de São Gregório, destacamos apenas um, o crucial e o mais controverso. Qual é o caráter básico da existência cristã? O objetivo e o propósito último da vida humana foi definido na tradição patrística como theosis [divinização]. O termo é bastante ofensivo para o ouvido moderno. Ele não pode ser adequadamente traduzido em nenhuma língua moderna, nem mesmo em latim. Mesmo em grego, ele é um tanto pesado e pretensioso. De fato, é uma palavra ousada. O significado da palavra é, no entanto, simples e lúcido. Foi um dos termos cruciais do vocabulário patrístico. Neste ponto, bastaria citar apenas São Atanásio. Gegonen gar anthropos, hin hemas en heauto theopoiese [Ele se fez homem para nos divinizar em si mesmo (Adelphium 4)]. Autos gar enenthropesen, hina hemeis theopoiethomen. [Ele se tornou homem para que pudéssemos ser divinizados (De Incarnatione 54)]. Santo Atanásio retoma aqui a idéia favorita de Santo Irineu: qui propter imensam dilectionem suam factus est quod sumus nos, uti nos perficeret esse quod est ipse [Que, através de seu imenso amor se tornou o que somos, para que Ele pudesse nos levar a ser o que Ele mesmo é (Adv. Haeres. V, Praefatio)] Era a convicção comum dos Pais Gregos. Pode-se citar amplamente São Gregório de Nazianzo. São Gregório de Nissa, São Cirilo de Alexandria, São Máximo, e de fato São Simeão, o Novo Teólogo. O homem permanece sempre o que ele é, isto é, criatura. Mas a ele é prometido e concedido, em Cristo Jesus, o Verbo que se fez homem, uma participação íntima no que é Divino: A vida eterna e incorruptível. A principal característica da theosis é, segundo os Pais, precisamente "imortalidade" ou "incorruptibilidade". Pois só Deus "tem imortalidade" -ho monos echon athanasian (I Tm 6,16). Mas o homem agora é admitido em uma "comunhão" íntima com Deus, através de Cristo e pelo poder do Espírito Santo. E isto é muito mais que uma comunhão "moral", e muito mais que uma simples perfeição humana. Somente a palavra theosis pode apresentar adequadamente a singularidade da promessa e da oferta. O termo theosis é certamente bastante embaraçoso, se pensarmos em categorias "ontológicas". De fato, o homem simplesmente não pode "tornar-se" deus. Mas os Pais estavam pensando em termos "pessoais", e o mistério da comunhão pessoal estava envolvido neste ponto. A theosis significava um encontro pessoal. É aquela relação íntima do homem com Deus, na qual toda a existência humana é, por assim dizer, permeada pela Presença Divina. [5]

No entanto, o problema permanece: Como mesmo esta relação pode ser compatível com a Transcendência Divina? E este é o ponto crucial. Será que o homem realmente encontra Deus, nesta vida presente na Terra? Será que o homem encontra Deus, verdadeiramente, em sua vida presente de oração? Ou será que não existe mais do que uma actio in distans? A afirmação comum dos Pais Orientais era que, em sua ascensão devocional, o homem encontra realmente Deus e contempla Sua Glória eterna. Mas como é possível, se Deus "habita na luz inacessível"? O paradoxo era especialmente acentuado na teologia oriental, que sempre esteve comprometida com a crença de que Deus era absolutamente "incompreensível" - akataleptos - e incognoscível em Sua natureza ou essência. Esta convicção foi poderosamente expressa pelos Pais Capadócios, especialmente na luta deles contra Eunômio, e também por São João Crisóstomo, em seus magníficos discursos Peri Akataleptou. Assim, se Deus é absolutamente "inacessível" em Sua essência, e, portanto, Sua essência simplesmente não pode ser "comunicada", como pode a theosis ser possível? "Insulta a Deus aquele que procura apreender Seu ser essencial", diz Crisóstomo.  Já em Santo Atanásio encontramos uma clara distinção entre a própria "essência" de Deus e Seus poderes e recompensas: Kai en pasi men esti kata ten heautou agathoteta, exo de ton panton palin esti kata ten idian physin [Ele está em tudo por seu amor, mas fora de tudo por sua própria natureza (De Decretis II)]. A mesma concepção foi cuidadosamente elaborada pelos Capadócios. A "essência de Deus" é absolutamente inacessível ao homem, diz São Basílio (Adv. Eunomium 1:14). Só conhecemos Deus em Suas ações, e por Suas ações: Hemeis de ek men ton energeion gnorizein legomen ton Theon hemon, te de ousia prosengizein ouch hypischnoumetha hai men gar energeiai autou pros hemas katabainousin, he de ousia autou menei aprositos [Dizemos que conhecemos nosso Deus a partir de suas energias (atividades), mas não professamos aproximar-nos de sua essência - pois suas energias descem até nós, mas sua essência permanece inacessível (Epist. 234, ad Amphilochium)]. No entanto, é um verdadeiro conhecimento, não apenas uma conjectura ou dedução: hai energeiai autou pros hemas katabainousin. Nas palavras de São João de Damasco, estas ações ou "energias" de Deus são a verdadeira revelação do próprio Deus: he theia ellampsis kai energeia (De Fide Orth. 1: 14). É uma presença real, e não apenas uma certa praesentia operativa, sicut agens adest ei in quod agit [como o ator está presente na coisa em que ele atua]. Este modo misterioso de Presença Divina, apesar da transcendência absoluta da Essência Divina, ultrapassa toda compreensão. Mas não é menos certa por essa razão.

São Gregório Palamas se encontra em uma antiga tradição neste ponto. Em Suas "energias", o Deus inacessível se aproxima misteriosamente do homem. E este movimento divino efetua o encontro: proodos eis ta exo, nas palavras de São Máximo (Scholia in De Div. Nom., 1: 5).

São Gregório começa com a distinção entre "graça" e "essência": he theia kai theopoios ellampsis kai charis ouk ousia, all' energeia esti Theou [a iluminação divina e divinizante e graça não é a essência, mas a energia de Deus (Capita Phys., Theol., etc., 68-9)]. Esta distinção básica foi formalmente aceita e elaborada nos Grandes Concílios de Constantinopla, 1341 e 1351. Aqueles que negavam esta distinção foram anátematizados e excomungados. Os anátematismos do Concílio de 651 foram incluídos no rito do Domingo da Ortodoxia, no Triodion. Os teólogos Ortodoxos estão vinculados a esta decisão. A essência de Deus é absolutamente amethekte [incomunicável].  A fonte e o poder da theosis humana não é a essência divina, mas a "Graça de Deus": theopoios energeia, hes ta metechonta theountai, theia tis esti charis, all' ouch he physis tou theou [a energia divinizadora, pela qual alguém que participa é divinizado, é uma graça divina, mas de nenhuma maneira a essência de Deus (ibid. 92-3)]. Charis não é idêntico à ousia. É theia kai aktistos charis kai energeia [Graça e Energia divina e incriada (ibid., 69)]. Esta distinção, entretanto, não implica ou efetua divisão ou separação. Tampouco é apenas um "acidente", oute symbebekotos (ibid., 127). As energias "procedem" de Deus e manifestam Seu próprio Ser. O termo proienai [proceder] simplesmente sugere diakrisin [distinção], mas não uma divisão: ei kai dienenenoche tes physeos, ou diaspatai he tou Pneumatos charis [a graça do Espírito é diferente da Substância, e ainda assim não separada dela (Theophan, p. 940)].

Na realidade, todo o ensino de São Gregório pressupõe a ação do Deus Pessoal. Deus se move em direção ao homem e o abraça por Sua própria "graça" e ação, sem deixar aquela phos aprositon [luz inacessível], na qual Ele habita eternamente. O objetivo último do ensinamento teológico de São Gregório era defender a realidade da experiência cristã. A salvação é mais do que o perdão. É uma genuína renovação do homem. E esta renovação é efetuada não pela descarga, ou liberação, de certas energias naturais implicadas no próprio ser criatural do homem, mas pelas "energias" do próprio Deus, que assim encontra e envolve o homem, e o admite em comunhão com Ele mesmo. De fato, o ensinamento de São Gregório afeta todo o sistema da teologia, todo o corpo da doutrina cristã. Começa com a clara distinção entre "natureza" e "vontade" de Deus. Esta distinção também era característica da tradição oriental, pelo menos desde Santo Atanásio. Poder-se-ia perguntar neste ponto: esta distinção é compatível com a "simplicidade" de Deus? Não deveríamos antes considerar todas estas distinções como conjecturas meramente lógicas, necessárias para nós, mas em última análise sem qualquer significado ontológico? Na realidade, São Gregório Palamas foi atacado por seus oponentes precisamente a partir desse ponto de vista. O Ser de Deus é simples, e nEle até mesmo todos os atributos coincidem. Já Santo Agostinho divergia, neste ponto, da tradição oriental. Sob os pressupostos agostinianos, o ensino de São Gregório é inaceitável e absurdo. O próprio São Gregório antecipou a amplitude das implicações de sua distinção básica. Se alguém não a aceita, argumentou ele, então seria impossível discernir claramente entre a "geração" do Filho e a "criação" do mundo, sendo ambos atos da essência, e isto levaria a uma completa confusão na doutrina trinitária. São Gregório era bastante formal nesse ponto.
Se de acordo com os opositores delirantes e aqueles que concordam com eles, a energia Divina não difere em nada da essência Divina, então o ato de criar, que pertence à vontade, não será de forma alguma diferente da geração (gennan) e processão (ekporeuein), que pertencem à essência. Se criar não é diferente da geração e da processão, então as criaturas não serão de forma alguma diferentes do Gerado (gennematos) e do Projetado [dAquele que procede] (problematos). Se este for o caso segundo eles, então tanto o Filho de Deus quanto o Espírito Santo não serão diferentes das criaturas, e todas as criaturas serão tanto o gerado (gennematos) quanto o projetado (problematos) de Deus Pai, e a criação será deificada e Deus estará classificado entre as criaturas. Por esta razão, o venerável Cirilo, mostrando a diferença entre a essência de Deus e a energia, diz que gerar pertence à natureza Divina, ao passo que criar pertence a Sua energia Divina. Isto ele mostra claramente dizendo: "natureza e energia não são a mesma coisa". Se a essência Divina não difere em nada da energia Divina, então gerar (gennan) e projetar (ekporeuein) não diferirá em nada de criar (poiein). Deus Pai cria através do Filho e no Espírito Santo. Assim, Ele também gera e projeta através do Filho e no Espírito Santo, de acordo com a opinião dos opositores e daqueles que concordam com eles. (Capita 96 e 97.)
São Gregório cita São Cirilo de Alexandria. Mas São Cirilo, neste ponto, estava simplesmente repetindo Santo Atanásio. Santo Atanásio, em sua refutação do arianismo, enfatizou formalmente a diferença última entre ousia [essência] ou physis [substância], por um lado, e a boulesis [vontade], por outro. Deus existe, e então Ele também age. Há uma certa "necessidade" no Ser Divino, na realidade não uma necessidade de compulsão, e não fatum, mas uma necessidade de ser em si. Deus é simplesmente o que Ele é. Mas a vontade de Deus é eminentemente livre. Ele em nenhum sentido é necessitado para fazer o que Ele faz. Assim, gennesis [geração] é sempre kata physin [segundo a essência], mas a criação é uma bouleseos ergon [energia da vontade] (Contra Arianos III. 64-6). Estas duas dimensões, a de ser e a de agir, são diferentes, e devem ser claramente distinguidas. Evidentemente, esta distinção não compromete de forma alguma a "simplicidade divina". No entanto, é uma distinção real, e não apenas um dispositivo lógico. São Gregório estava plenamente consciente da importância crucial desta distinção. Neste ponto, ele foi um verdadeiro sucessor do grande Atanásio e dos hierarcas Capadócios.

Foi recentemente sugerido que a teologia de São Gregório, deve ser descrita em termos modernos como uma "teologia existencialista". Na realidade, ela difere radicalmente das concepções modernas que são atualmente denotadas por este rótulo. De qualquer forma, em todo caso, São Gregório opôs-se definitivamente a todos os tipos de "teologias essencialistas" que fracassam em considerar a liberdade de Deus, o dinamismo da vontade de Deus, a realidade da ação divina. São Gregório remontaria esta tendência a Orígenes. Era o problema da metafísica impessoalista grega. Se existe algum espaço para a metafísica cristã, ela deve ser uma metafísica de pessoas. O ponto de partida da teologia de São Gregório era a história da salvação: na escala maior, a história bíblica, que consistia de atos divinos, culminando na Encarnação do Verbo e Sua glorificação através da Cruz e da Ressurreição; na escala menor, a história do homem cristão, lutando em busca da perfeição, e ascendendo passo a passo, até encontrar Deus na visão de Sua glória. Era comum descrever a teologia de Santo Irineu como uma "teologia dos fatos". E com não menos justificativa podemos descrever também a teologia de São Gregório Palamas como uma "teologia dos fatos".

Em nosso próprio tempo, estamos chegando cada vez mais à convicção de que "teologia dos fatos" é a única teologia Ortodoxa sólida. Ela é bíblica. É Patrística. Ela está em total conformidade com a mente da Igreja.

Neste contexto, podemos considerar São Gregório Palamas como nosso guia e mestre, em nosso esforço para teologizar a partir do coração da Igreja.

Capítulo VII de The Collected Works of Georges Florovsky, Vol. I, Bible, Church, Tradition: An Eastern Orthodox View

Notas

1. Foi recentemente sugerido que os gnósticos foram, de fato, os primeiros a invocar formalmente a autoridade de uma "Tradição Apostólica" e que foi o uso deles que moveu Santo Irineu a elaborar sua própria concepção de Tradição. D. B. Reynders, "Paradosis: Le proges de l'idee de tradition jusqu'a Saint Irenee", em Recherches de Theologie ancienne et medievale, V (1933), Louvain, 155-191. Em qualquer caso, os gnósticos costumavam se referir à "tradição".

2. Paul Maas, ed.. Fruhbyzantinische Kirchenpoesie, I (Bonn, 1910), p. 24.

3. Louis Bouyer, "Le renouveau des etudes patristiques," em La Vie Intellectuelle, XV (Fevrier 1947), 18.

4. Mabillon, Bernardi Opera, Praefatio generalis, n. 23 (Migne, P. L., CLXXXII, c. 26).

5. Cf. M. Lot-Borodine, "La doctrine de la deification dans I'Eglise grecque jusqu'au XI siecle," em Revue de l'histoire des religions, tome CV, Nr I (Janvier-Fevrier 1932), 5-43; tomo CVI, Nr 2/3 (Setembro-Dezembro 1932), 525-74; tomo CVII, Nr I (Janeiro-Fevereiro 1933), 8-55.

quarta-feira, 10 de junho de 2020

A Sabedoria Indisputável do Espírito Santo (Hieromonge Melquisedeque)

1. A Epistemologia Dual

No início de sua famosa trilogia, As Tríades, escrita em defesa dos hesicastas do Monte Athos, São Gregório Palamas apresenta ao seu leitor uma questão que toca o cerne da epistemologia teológica. Esta questão, que hoje pode parecer obsoleta, parece-me, ainda se encontra no centro da nossa compreensão de Deus e da realidade criada. A questão em linhas gerais é: "O que é exigido de nós para que possamos conhecer Deus?"  Além disso, "Que papel pode ter o aprendizado secular neste processo? O conhecimento das ciências naturais, da filosofia clássica e da educação secular, em geral, são apenas os pré-requisitos para tal conhecimento, ou talvez até mesmo a própria via  para ele, como afirmaram os opositores de Palamas? Ou existe algum outro tipo de via para esse conhecimento, como aquele que os hesicastas teriam seguido?"

Para começar, permita-me citar algumas linhas do início de As Tríades, demonstrando a questão que Palamas foi solicitado a responder:
Ouvi dizer por certas pessoas que os monges também devem buscar a sabedoria secular, e que se eles não possuírem essa sabedoria, é-lhes impossível escapar da ignorância e das falsas opiniões, mesmo que tenham alcançado o mais elevado nível de impassibilidade (apatheia); e que não se pode adquirir perfeição e santidade sem buscar conhecimento de todos os lugares, sobretudo da cultura helênica. Esta educação ... também conduz os homens ao conhecimento de Deus, pois Deus é cognoscível apenas através da mediação de suas criaturas. Também disseram: 'Como os princípios internos desses fenômenos se encontram na Mente criadora divina e primordial, e as imagens desses princípios existem em nossa alma, somos zelosos para compreendê-los... pelos métodos da distinção, do raciocínio silogístico e da análise; assim, tanto nesta vida como depois, desejamos ser conformados à semelhança do Criador". (Tr. 1.1q)
Segundo este relato, então (um relato que representa a posição dos oponentes dos hesicastas), a perfeição na santidade, a liberdade diante da ignorância, o conhecimento de Deus, e ter a semelhança de Deus na eternidade, tudo depende do empenho na pesquisa científica e no estudo da sabedoria helênica. Não há outro caminho para o conhecimento de Deus para além daquele concedido através da ordem criada.

O monge que perguntou sobre isso a Palamas não conseguiu responder a uma teoria tão sofisticada, que, além de detalhes científicos, incluía a idéia de ter na alma humana as imagens dos logoi eternos (Palamas chamou os adeptos desta doutrina de eikonognostes; cf. Tr.1.1.20). Mas, ao mesmo tempo, o monge sabia, por sua experiência monástica, que esta posição não poderia estar correta.

A resposta inicial de Palamas ao monge foi que o seu conhecimento era um tipo diferente, um conhecimento que possuía uma certeza inabalável, e que estes lhe foram concedidos pela graça do Espírito Santo. O monge não era capaz de entrar em uma disputa dialética com seu oponente devido à sua falta de erudição, mas isso para Palamas era de pouca importância, pois o monge possuía o que Palamas chama de "sabedoria indisputável" (sophia anamphilektos; cf. Tr. 2.1.8 ) concedida a ele pelo Espírito Santo. Afinal, com uma disputa dialética racional não se obtém uma verdade real, pois - como diz Palamas em seu famoso ditado - "todo argumento disputa com outro argumento" (logo palaiei pas logos; veja Tr. 1.1.1), e não há fim para essa troca de argumentos. Por outro lado, o conhecimento concedido pelo Espírito Santo estabelece o coração, o homem interior, na verdade (como testemunha a Epístola aos Hebreus; veja Heb. 13:9 e Tr. 1.1.1). Tal conhecimento permanece inabalável e não pode sujeitar-se a uma argumentação racional. É esse conhecimento inabalável estabelecido pelo Espírito Santo que São Gregório Palamas chama de "sabedoria indisputável". Palamas também é conhecido por sua defesa do método demonstrativo - ou apodeiktikos - na teologia (veja Yangazoglou, 1996).

Muitos dos Padres Gregos experimentaram uma relação intensamente ambivalente com as ciências naturais e com o aprendizado helênico clássico, e Palamas não é uma exceção a essa regra; pode-se notar isso, por exemplo, comparando seus 150 Capítulos com As Tríades. A chave para entender este problema hermenêutico enganosamente simples foi apontada pelo falecido professor de Teologia Patrística, Panagiotes Chrestou, que há mais de meio século introduziu ao mundo acadêmico o conceito do conhecimento duplo ou epistemologia dual dos Padres Bizantinos (Chrestou,1977, pp.153-163; isto foi posteriormente endossado e desenvolvido por Nikos Matsoukas em seu Teologia Dogmática e Credal de vários volumes). Os bizantinos examinaram a realidade através de dois tipos diferentes de lentes epistemológicas: uma via científica ou (talvez) filosófica para a ordem criada e uma via espiritual ou teológica para o âmbito divino e incriado. Os Padres poderiam usar essas duas vias, mas sem nunca fundi-las (Matsoukas, 1990, pp.137-180). O próprio Palamas é explícito sobre isso em As Tríades (1.3.14), onde ele contrasta o conhecimento das coisas da era atual com o conhecimento da era-por-vir escatológica, tão profundamente valorizada pelos monges Athonitas:  "O fim que está diante de nós consiste nas coisas boas futuras prometidas por Deus, a adoção dos filhos, a deificação e também a revelação, aquisição e desfrute das riquezas celestiais.  Ao mesmo tempo, sabemos que o conhecimento adquirido através do aprendizado secular atinge sua consumação juntamente com a era atual" (Tr. 1.3.14).

No Ocidente Medieval, no entanto, as coisas pareciam ser bem diferentes.  Uma distinção assim tão clara não era algo que os homens medievais das primeiras universidades apreciavam.  Embora talvez sujeitas à teologia, as ciências naturais e a filosofia eram indispensáveis na busca da verdade e perfeição, e mesmo da vida eterna, como sugere o texto acima de Palamas (veja Drakopoulos, 1987, pp.198-214; Lubac, 1998, pp.40-55).

Os problemas causados por essa relação medieval entre ciência, filosofia e religião, tanto nos círculos científicos como religiosos, desde a revolução copernicana em diante, são bem conhecidos.  Embora o panorama atual tenha mudado, fenômenos como o Criacionismo da Terra Jovem apoiado por cristãos fundamentalistas Protestantes e os militantes ataques semi-científicos contra o cristianismo de alguns representantes do fundamentalismo ateu são apenas subprodutos modernos desse antigo problema epistemológico (veja McGrath, 2010a, pp.77-92; McGrath, 2010b, pp. 17-41).

2. São Silvano, o Athonita

Permita-me neste ponto introduzir outro santo da Montanha Santa nesta discussão: São Silvano, o Athonita. Um camponês russo que se tornou monge na virada do século XX, São Silvano foi alguém cuja vida e escritos são um testemunho da sabedoria indisputável das Tríades de Palamas.  São Silvano poderia ser chamado de um teólogo do Espírito Santo e sua "epistemologia teológica" aponta precisamente para além de qualquer conhecimento secular. Em seu estilo muito simples, São Silvano consegue expressar questões complexas em poucas palavras, como ele faz neste extrato acerca da epistemologia dual:  "As coisas desta terra podemos aprender com a mente, mas o conhecimento de Deus e de todos os assuntos celestiais vem apenas através do Espírito Santo, e não pode ser aprendido meramente com a mente" (Sakharov, 1991, p.290).

É muito importante compreender esta simples afirmação de São Silvano, se quisermos estabelecer uma epistemologia teológica cristã Ortodoxa; e especialmente se quisermos buscar um verdadeiro conhecimento de Deus: Coisas terrenas são aprendidas com a mente; coisas pertencentes a Deus somente através do Espírito Santo. São Silvano é inflexível neste ponto: Deus não pode ser conhecido através da ordem criada, como os Barlaamitas quereriam (Tr. 1.1.q). Deus só pode ser conhecido pelo e no Espírito Santo. A contemplação da natureza ou o estudo das Escrituras ou dos Padres da Igreja pode funcionar como um impulso para o conhecimento de Deus, mas como ele diz: "Há uma grande distinção entre simplesmente crer que Deus existe, vê-lo na natureza ou nas Escrituras, e conhecer o Senhor pelo Espírito Santo" (Sakharov, 1991, p.301). São Silvano é claro: "Podemos dizer que podemos falar de Deus somente na medida em que conhecemos a graça do Espírito Santo" (Sakharov, 1991, p.358). E outra vez ele diz: "O Senhor é conhecido no Espírito Santo, e o Espírito Santo permeia todo o homem - alma, mente e corpo" (Sakharov, 1991, p.353). Consequentemente, segundo o ensinamento de São Silvano, não pode haver epistemologia teológica fora da revelação pelo Espírito Santo.

Neste contexto, São Silvano exemplifica um homem santo, que possuía o verdadeiro conhecimento de Deus, mas que claramente não tinha nenhum conhecimento científico ou aprendizagem clássica; temos outros exemplos semelhantes nos seguintes santos: João Batista, Estêvão Protomártir, Simeão Estilita, Serafim de Sarov, os Doze Apóstolos, e por fim o próprio Cristo. Palamas destaca ainda o fato de que São João Batista não conhecia  nem mesmo as Sagradas Escrituras, e que Cristo teria ensinado aos seus discípulos equações matemáticas, dialética, física e astronomia se ele tivesse considerado estas coisas como o verdadeiro caminho epistemológico para o conhecimento de Deus (Tr. 1.1.4-5; Sakharov, 1991, pp.291, 357). Palamas considera a sabedoria secular em uma veia muito paulina como sabedoria tornada "loucura" por Deus, como sabedoria meramente natural e "psíquica" que não pode obter a qualidade de sabedoria "espiritual" (Tr. 1.1.5.; 1. Cor. 1:18-25, Rom. 1:22 ). Palamas aceita-a como um dom natural de Deus, mas nada além disso. Ela não pode tomar o lugar do dom da graça incriada de Deus (Tr. 1.1.22 ).

Palamas é também muito cauteloso com a teologia apofática. Ele mantém que o Deus invisível é visto por aqueles que purificaram seus corações "não pela percepção sensorial ou pela intelecção ou pela via da negação, mas em virtude de um certo poder inexprimível" e "espiritualmente" (Tr. 1.3.30). Atribuir noções apofáticas a Deus na teologia ou (se o apofatismo é entendido como parte de uma ascensão espiritual, então) o abandono de tudo o que é criado, até mesmo a própria percepção sensorial, não são em si mesmos conhecimento de Deus, muito menos união com Deus. É o que vem depois do apofático que importa, ou seja, "a participação nas coisas divinas, sua doação e recepção, ao invés de sua negação", como diz Palamas (Tr. 1.3.18).  A cautela de Palamas é importante para nós hoje, pois tendemos a pensar na teologia, e às vezes até na vida espiritual, principalmente como uma preocupação intelectual. Seu comentário de uma homilia festal acerta o cerne da questão: "Dizer algo sobre Deus não é o mesmo do que encontrar-se com Deus" (Homilia 53; em Veniamin, 2009, p. 437).

São Sofrônio de Essex e São Silvano o Atonita 

3. O Método Supremo para o Conhecimento de Deus

Qual, então, é o "método epistemológico" que tanto Palamas como Silvano aprovariam? Ambos consideram apenas um só caminho efetivo para o conhecimento de Deus, ou seja, que existe apenas um só método epistemológico que pode levar ao conhecimento real de Deus, e este é uma vida de acordo com os mandamentos do Evangelho, uma vida que envolve arrependimento e auto-sacrifício, e que leva à participação na verdadeira vida do próprio Deus. Escreve Palamas:
Aquele que melhora sua vida ao longo do tempo, de acordo com os mandamentos de nossos teólogos [das Escrituras], se enche de sabedoria divina, e se torna verdadeiramente uma imagem e semelhança de Deus. Isto ele realiza somente através da observância dos mandamentos do Evangelho (Tr. 1.1.4 ).
Palamas reforça sua posição invocando a autoridade de Dionísio, o Areopagita, para o qual a união com Deus, que implica conhecimento existencial Dele, é possível apenas através do "amor e pondo em prática os veneráveis mandamentos" (Eccl. hier. 2, PG 3, 392A). São Silvano se junta a eles ao afirmar: "Podemos estudar tanto quanto quisermos, mas ainda não chegaremos a conhecer o Senhor, a menos que vivamos segundo os Seus mandamentos, pois o Senhor não se faz conhecido através do aprendizado, mas pelo Espírito Santo" (Sakharov, 1991, p.354).

Seria impossível aqui descrever em detalhes todo o conteúdo do programa que os mandamentos evangélicos envolvem, mas vou me referir brevemente a ele, através de São Silvano. Em geral, o caminho de São Silvano é o "fardo leve" dos Evangelhos e ele coloca muito pouca ênfase em feitos ascéticos, como jejuns ou prostrações, especialmente quando separados da obediência, pois estes podem simplesmente estimular a vanglória (Sakharov, 1991, p.422). Ao invés disso, ele observa:
Não precisamos de riqueza ou aprendizado para conhecer o Senhor - temos simplesmente de ser obedientes e sóbrios, ter um espírito humilde e amar os nossos próximos. O Senhor amará uma alma como esta e por Sua própria vontade se manifestará a ela... (Sakharov, 1991, p.354).
Mas para São Silvano há ainda mais um passo para o conhecimento de Deus. A seguinte história da década de 1930 nos dá a diretriz suprema. O então jovem hierodiácono Sofrônio perguntou ao Ancião Silvano qual era, em poucas palavras, o conteúdo do Novo Testamento. A resposta de São Silvano foi sucinta: "Todo o conteúdo do Novo Testamento está incluído nestas três palavras: amai a vossos inimigos" (comunicação pessoal: Nicholas Sakharov). E de fato, em seus escritos, Silvano vincula esse princípio à nossa busca epistemológica: "O Espírito Santo é amor, e Ele concede à alma força para amar os seus inimigos. E aquele que não ama seus inimigos não conhece Deus" (Sakharov, 1991, p.105).

Os indicadores do verdadeiro caminho, então, segundo São Silvano, são obediência, humildade e amor aos seus inimigos. Ao longo de seus escritos, ele também fornece orientações de como discernir se o conhecimento espiritual que possamos ter recebido é verdadeiramente concedido pelo Espírito Santo ou não. Os dois sinais mais importantes da experiência genuína do Espírito Santo, me parece, são a paz e a alegria, que muitas vezes são vistas como as principais características do reino escatológico de Deus, tanto no Novo Testamento (veja, por exemplo, Jo 17:13, 14:27, Rm 14:17) como nos Padres da Igreja (veja, por exemplo, Ambigua 7 de São Máximo o Confessor, PG 91, 1088-9). Palamas acrescenta a estes uma série de outros elementos distintivos para discernir a verdade do erro ou da ilusão, como por exemplo: "desprezar a glória humana, o desejo pelas coisas celestiais, o apaziguamento dos pensamentos, o descanso espiritual (alegria, paz), a humildade, o acalmar dos prazeres e das paixões, e uma excelente disposição da alma" (Tr. 1.3.48). E se as coisas derem errado, São Silvano dá o aviso: "O inimigo oferece a doçura da alma misturada com a autosatisfação vaidosa, e assim a presença do engano se torna conhecida" (Sakharov, 1991, p.444).

Por fim, se a sabedoria deste mundo é vista como "loucura" por São Paulo e São Gregório Palamas, então o caminho da cruz, o caminho da humildade e do amor aos nossos inimigos, que são "loucura" para os sábios deste mundo, tornam-se, na realidade, o próprio método epistemológico para conhecer o "objeto" último do conhecimento, Deus. Este é, se assim preferir, um método "heurístico" que requer um envolvimento total do conhecedor no processo de conhecer a Deus; um processo, no final do qual Deus se manifesta ao buscador do conhecimento em um encontro absolutamente pessoal.

Concluindo, gostaria de fazer a seguinte proposta sugestiva. Hoje todos nós desejamos falar em termos de categorias ontológicas. Uma pessoa filosoficamente orientada teria se oposto a introduzir categorias morais na epistemologia, como eu fiz aqui; ao passo que um moralista poderia reagir à minha leve filosofização, ao falar do conhecimento de Deus. Parece-me, então, que o verdadeiro problema reside precisamente no fato de que nós, nos meios teológicos modernos, temos provocado uma cisão entre a ética e a epistemologia, entre a vida espiritual e a teologia, e ao fazermos isso, temos privado ambas de seus fundamentos ontológicos. Se quisermos conceder-lhes seu verdadeiro valor ontológico, nós, parece-me, precisamos de reuni-los para despertar nossa "consciência dogmática" (Sakharov, 1991, pp.184-192), numa busca que nos leva através da "loucura" da cruz à indisputável sabedoria do Espírito Santo de Cristo.

The Indisputable Wisdom of the Holy Spirit escrito pelo Hieromonge Melquisedeque

Obras citadas

Chrestou, Panagiotes K., 1977, “Double Knowledge according to Gregory Palamas”, em Theological Inquieries 3 [em grego], Thessaloniki: The Patriarchal institute for Patristic Studies (o artigo foi publicado pela primeira vez em 1963), pp.153-163.

Drakopoulos, Panagiotes, 1987, The Middle Ages: Greek and Western [em grego], Athens: Epopteia Publications, segunda edição.

Gendle, Nicholas, (trad.),1983, Gregory Palamas: The Triads, com introdução de J. Meyendorff e prefácio de J. Pelikan, New York, Ramsey, Toronto: Paulist Press.

Lubac, Henri de, 1998, Medieval Exegesis: The Four Senses of Scripture,vol. 1, traduzido por M. Sebanc, Edinburgh: T&T Clark Ltd (edição original francesa 1959).

Matsoukas, Nikos, 1990, Dogmatic and Creedal Theology: An introduction to Theological Epistemology [em grego], Thessaloniki: Pournaras Publications, segunda edição.

McGrath, Alister E., 2010a, Mere Theology: Christian Faith and the Discipleship of the Mind, London: SPCK.

—. 2010b, Science and Religion: A New introduction, Chichester: Wiley-Blackwell, segunda edição.

Meyendorff, Jean, 1973, Grégoire Palamas: Défense des saints hésychastes, com intro., texto crítico, trad. francesa e ntoas, vols 1 e 2, Louvain: Spicilegium Sacrum Lovaniense, segunda edição. [Aqui abreviado como ‘Tr.’]

Sakharov, Archimandrite Sophrony, 1991, Saint Silouan the Athonite, trad. do russo por R. Edmonds, Essex: Stavropegic Monastery of St. John the Baptist (ed original russa 1952).

Veniamin, Christopher, 2009, Saint Gregory Palamas: The Homilies, com intro., trad. inglesa e notas, Waymart, Pennsylvania: Mount Thabor Publishing.

Yangazoglou, Stavros, 1996, “Philosophy and Theology: The Demonstrative Method in the Theology of St. Gregory Palamas”, em The Greek Orthodox Theological Review 41, 1-18.

domingo, 7 de junho de 2020

O Conceito das Energias Divinas (David Bradshaw)

Se passou mais de meio século desde que o Pe. Georges Florovsky, Vladimir Lossky e o Pe. John Meyendorff começaram a chamar a atenção do mundo ocidental para São Gregório Palamas (1296-1359).[2] Em linhas gerais, suas afirmações em seu favor enquadram-se em três tópicos: eclesiástico, histórico e teológico. No nível eclesiástico, eles mantiveram que o pensamento de Palamas não era meramente algo bizantino tardio arcano de interesse apenas para os estudiosos, mas que representava o ensinamento autêntico e afirmado autoritativamente da Igreja Ortodoxa Oriental. Do ponto de vista histórico, mantiveram que o pensamento de Palamas está em plena continuidade com o dos Padres Gregos, incluindo Santo Atanásio, os Padres Capadócios, São Dionísio o Areopagita (embora o Pe. Meyendorff tivesse reservas a este ponto), São Máximo o Confessor, São João de Damasco, e São Simeão o Novo Teólogo. Por fim, no nível teológico eles mantiveram que o ensinamento de Palamas assim entendido - ou seja, como o culminar da tradição patrística grega - é de valor essencial hoje, representando a melhor e mais convincente forma de entender a relação de Deus com o mundo.

Essas três afirmações tiveram destinos muito diferentes. A primeira ganhou aceitação praticamente unânime; a segunda ganhou ampla aceitação, embora longe de unanimidade, e continua sendo objeto de debate acadêmico; e a terceira não recebeu muita atenção, para não falar de concordância, para além dos limites da Ortodoxia. Raramente se encontra Palamas sendo mencionado dentro das discussões populares ou semi-populares do cristianismo, ou em obras de estudiosos fora da teologia acadêmica. Dentro dos meus próprios dois campos, a história da filosofia e a filosofia da religião, ele permanece virtualmente desconhecido. Isso não acontece porque os filósofos não se interessam pela tradição cristã; o mesmo período tem visto análises filosóficas abundantes do pensamento de Agostinho, Anselmo, Aquino, Scotus e outros. Isso ocorre porque, para a maioria dos estudiosos ocidentais, a tradição cristã permanece quase que exclusivamente a tradição cristã ocidental. Apesar de seu considerável valor, a obra de Florovsky, Lossky e Meyendorff não conseguiu fazer muita diferença diante dessa predominante predileção.

Quais são as razões por não terem conseguido? Acredito que houve duas causas primárias. Os defensores de Palamas não conseguiram colocar seu pensamento dentro da história da filosofia ocidental, da forma como Agostinho, Aquino e os demais luminares que mencionei podem ser colocados dentro dela; e não conseguiram explicá-lo diretamente em relação às suas fontes bíblicas. Certamente, essas duas exigências podem parecer funcionar com propósitos diferentes, pois a primeira nos faria chegar a Palamas via Platão, Aristóteles e Plotino, e a segunda nos faria lê-lo diretamente sob a luz da Escritura. Mas é importante lembrar que a Bíblia e a filosofia grega não são dois âmbitos de discurso separados e distintos. Uma vez que tratam do mesmo assunto - Deus e a alma, como disse Agostinho - e trabalham na mesma língua (grego) com grande parte da mesma bagagem de conceitos, cada uma lança luz sobre a outra. Isto é especialmente evidente no caso do conceito das energias divinas, que é tão central ao pensamento de Palamas. Energeia é um termo cunhado por Aristóteles e de grande importância para a filosofia grega, mas é também proeminente nos escritos paulinos, ocorrendo ali (como substantivo ou o verbo correspondente, energein) vinte e seis vezes. Para compreender o uso que os Padres Gregos fizeram desse conceito, e particularmente Palamas, é preciso levar em conta essas duas fontes sobrepostas e interligadas.

No que segue eu tentarei introduzir o conceito das energias divinas, apresentando-o em relação às suas fontes filosóficas e bíblicas. Inevitavelmente terei que deixar passar muitos pontos de interesse, e de fato a história como contarei aqui meramente resume em detalhes a obra que apresentei em outro lugar.[3] Falarei relativamente pouco sobre o próprio Palamas, pois os pontos básicos do conceito das energias divinas surgiram muito antes de Palamas nos Padres Capadócios do século IV. No entanto, embora Palamas só entra em cena próximo do fim, espero fornecer o pano de fundo essencial à luz do qual sua obra deve ser compreendida e avaliada.


Como já mencionei, o termo energeia foi cunhado por Aristóteles. Suas primeiras obras o utilizam para significar o exercício ativo de uma capacidade, como o da visão ou do pensamento, distinto da mera posse da capacidade. É fácil ver como desde esse início ele passou a ser utilizado de duas formas, de outra forma não relacionadas, para a atividade e para a atualidade. (Seu termo correlato dunamis também tem dois significados, capacidade e potencialidade). Estes dois sentidos, que nos parecem bastante distintos, às vezes se reconvergem. Em Metafísica ix.6 Aristóteles distingue energeia e movimento - ou mudança (kinēsis) -  com base no fato de que um movimento ou mudança é ordenado para algum fim extrínseco - como a construção de casas tem como objetivo uma casa - ao passo que uma energeia é o seu próprio fim.  Os exemplos que ele apresenta são ver, pensar, entender, viver bem e felicidade [eudaemonia]. Evidentemente são atividades, mas são atividades que são plenamente atuais no sentido de que elas contêm seu próprio fim e, portanto, são plenamente completas a cada momento de sua existência, ao invés de exigirem um período de tempo para sua conclusão. Aristóteles ilustra essa diferença com o chamado "teste do tempo verbal", ou seja, que a cada momento que alguém vê (ou pensa, ou assim por diante) ele também "viu", ao passo que a cada momento que alguém constrói uma casa, ele também não construiu uma casa.

A aplicação mais interessante da energeia neste sentido se encontra na teoria de Aristóteles sobre o Primeiro Motor. O  Primeiro Motor é um ser cuja substância (ousia) é energeia (Met. xii.6 1071b20). Isto é verdade em três sentidos distintos, mas relacionados. Primeiro, como o Primeiro Motor é utilizado para explicar o movimento, ele mesmo não pode estar sujeito ao movimento e, portanto, ele é pura atualidade, no sentido de não ter potencialidade para mudar ou ser agido. Segundo, pelo fato de sua atividade de causar movimento ter de ser contínua e eterna, ele não pode ter capacidades não-realizadas para agir; tudo o que ele pode fazer já faz e tem feito desde toda a eternidade, tudo de uma vez e como um todo. Também neste sentido ele é pura atualidade.

Para o terceiro sentido, devemos considerar mais de perto o que o Primeiro Motor faz. Aristóteles percebeu que a noção de uma causa que move os outros sem ela mesma ser movida ou mudada é bastante intrigante. Sua explicação inicial de como isto é possível é que o Primeiro Motor move os outros como um "objeto de pensamento e desejo" (Met. xii.7 1072a26). Esta explicação está longe de ser satisfatória, pois não deixa claro porque o Primeiro Motor deve agir para causar movimento, como todo o argumento pressupôs desde o início. Assim, Aristóteles desenvolve essa idéia com sua famosa teoria de que o Primeiro Motor é um pensamento auto-pensante, um ser cujo "pensamento é pensamento de pensamento" (Met. xii.9 1075b34). Precisamente como isto esclarece de que forma o Primeiro Motor é uma causa de movimento é uma questão controversa que não precisamos entrar aqui.4 Para nossos propósitos o importante é que isto implica que há um terceiro sentido no qual o Primeiro Motor é energeia, desta vez no sentido de atividade ao invés de atualidade: ou seja, a substância do Primeiro Motor nada mais é do que a atividade auto-subsistente do pensamento.

Evidentemente isso não significa que o Primeiro Motor não pensa em nada exceto em si mesmo e, portanto, tem uma mente bastante empobrecida. Pelo contrário, seu pensamento, de alguma forma, abrange todo o conteúdo inteligível possível; afinal, se não o fizesse, haveria um tipo de pensar no qual poderia engajar-se, mas não o faz, e a esse respeito deixaria de ser plenamente atual. Ao dizer que o Primeiro Motor 'pensa a si mesmo', o que Aristóteles quer dizer é que, precisamente porque seu ato de pensar é plenamente atual, esse ato é idêntico ao seu objeto, pois não há nada além do objeto - nenhuma potência não-realizada - constituindo o ato como aquilo que ele é. A compreensão de Aristóteles sobre o Primeiro Motor é, a este respeito, semelhante à visão de Hume de que o eu é um conjunto de impressões e idéias. (Quanto ao pensamento humano, Aristóteles diria que nossos eus são distintos do nosso pensamento atual, pois incluem uma vasta gama de potências não-realizadas; no caso do Primeiro Motor, entretanto, essa distinção desaparece). Dada a identidade do pensamento do Primeiro Motor com seu objeto, um resultado notável segue: o Primeiro Motor não só pensa todo o conteúdo inteligível possível, ele é todo conteúdo inteligível possível, existindo tudo de uma só vez como uma única substância eterna e plenamente atual. Aristóteles não extrai essa conclusão explicitamente, mas comentadores posteriores, a começar por Alexandre de Afrodísia, o fizeram, e ele se tornou um ingrediente fundamental na síntese de Platão e Aristóteles realizada pelos Neoplatonistas.

Meu interesse aqui não está no Primeiro Motor como tal, mas no que tudo isso implica sobre o significado de energeia. No Primeiro Motor temos um ser que tanto pensa como é todo o conteúdo inteligível possível, existindo como um único todo eterno e imutável. A estrutura inteligível das coisas, porém, é o que faz com que elas sejam o que são. (Esta é a doutrina aristotélica conhecida que forma é substância, articulada particularmente em Metafísica vii.17).  Assim, pode-se igualmente dizer que o Primeiro Motor está presente em todas as coisas, conferindo [transmitindo] - ou melhor, constituindo - a estrutura inteligível delas, e, portanto, o ser delas. Diante de tudo isso, quando dizemos que o Primeiro Motor é pura energeia, como devemos traduzir esse termo? Atividade? Atualidade? Simplesmente, a resposta é ambos - e, portanto, nenhum dos dois. Parece-me que o mais próximo que podemos chegar em inglês é dizer que é pura energia. Especificamente, tenho em mente o sentido deste termo dado no American Heritage Dictionary como um "poder exercido com vigor e determinação", e ilustrado com a frase, "devotar as próprias energias a uma causa digna". Mas é claro que nenhuma ilustração extraída de objetos ordinários será adequada à noção de um ser que é pura energia, uma energia que constitui o ser de outras coisas.

Ao mesmo tempo, observemos que Aristóteles assume que pode-se falar de forma sensível sobre como é ser o Primeiro Motor. Por exemplo, ele afirma que seu modo de vida é "como o melhor do qual desfrutamos ..., pois sua energia (energeia) também é deleite", e acrescenta que ele "está sempre naquele bom estado em que às vezes nós estamos" (Met. xii.7 1072b14-25). Para que não pensemos na identificação do Primeiro Motor com a energia como uma espécie de redução fisicalística, devemos lembrar que ele é um ser com estados mentais em algum sentido análogos aos nossos. Que existe tal analogia é pressuposto na identificação de sua atividade como pensamento (noēsis), pois pensar é algo em que nós também nos engajamos, embora de forma incomparavelmente mais parcial e limitada.

A relevância de tudo isso para a teologia patrística torna-se mais clara quando vemos como isso foi adaptado e retrabalhado dentro do Neoplatonismo. Para tal, devemos levar em conta uma maneira bem diferente de pensar sobre o primeiro princípio, que se desenvolveu ao lado daquela de Aristóteles e representa uma alternativa radical a ela. Sem dúvida, muitas críticas podem ser feitas à teologia de Aristóteles, mas uma das mais importantes é que ela não tem espaço para um senso apropriado do mistério do divino. Afinal, se o Primeiro Motor é a soma de todo conteúdo inteligível, então o que ele é pode, em princípio, ser compreendido pelo ato de pensar (noēsis), por mais longe que o nosso próprio pensar fique aquém desse ideal.  A exortação de Aristóteles, perto do fim de sua obra Ética a Nicômaco, para que nos tornemos como Deus, engajando-nos na contemplação (x.7 1177b32-35) é uma ilustração de como, a seu ver, a atividade intelectual humana é capaz de nos levar ao isomorfismo parcial com a própria essência de Deus.

Basta nos dirigirmos a Platão para ver que uma maneira radicalmente diferente de pensar sobre o primeiro princípio é possível. Como essa alternativa veio a tomar forma dentro do Neoplatonismo, ela é a síntese de três elementos distintos. O primeiro é a famosa afirmação na República de que o Bem é "além do ser" (509b). Esta afirmação só adquire todo o seu peso quando considerada à luz da associação, que era tradicional na filosofia grega pelo menos desde Parmênides, entre o ser e a inteligibilidade. Se é verdade, como diz Parmênides, que "o mesmo é tanto pensar quanto ser" (Frag. 3), então, se o Bem é além de ser, também deve ser além da inteligibilidade. A força de atração para essa conclusão foi tão forte que os Neoplatonistas a adotaram sem hesitação, ignorando silenciosamente outros aspectos na República que sugerem que o Bem é um objeto inteligível.

O segundo elemento é a descrição do Uno na Primeira Hipótese de Parmênides. Nesta seção do diálogo, Parmênides oferece a interpretação mais rigorosa possível para a noção de unidade. Ele conclui que o Uno não tem limites ou forma, não se encontra em repouso nem em movimento, não é semelhante nem dessemelhante a qualquer outra coisa nem mesmo a si mesmo e, por fim, que não participa do ser, não tem nome e não é objeto de conhecimento, percepção ou opinião (Parm. 137c-142a). Tomada isoladamente, essa descrição totalmente negativa pode parecer não passar de uma reductio dialética da interpretação parmenidiana da unidade. Havia, no entanto, um terceiro elemento no pensamento de Platão, que levou os neoplatonistas a ver nele algo em vez de uma forma de gesticular, totalmente por negação, em direção a uma realidade inefável. Esse terceiro elemento foi a descrição do Uno nas doutrinas não escritas de Platão. Aristóteles nos diz em Metafísica que Platão apresentou um Uno que, em conjunto com a Diáda Indefinida, é a fonte das Formas (Met. i.6). Ele também observa que alguns na Academia identificaram este Uno com o Bem (Met. xiv.4 1091b13-14). É bastante plausível ver o próprio Platão como estando entre este grupo, pois afinal o Bem na República é também a fonte das Formas, na medida em que ele é a causa do ser e da verdade das mesmas. [5] Intérpretes posteriores, juntando estes vários fragmentos, concluíram que o Uno das doutrinas não escritas, o Uno de Parmênides, e o Bem na República são um só e o mesmo.

Aqui temos, então, um primeiro princípio bem diferente do de Aristóteles: incognoscível, inominável, a fonte do ser para outras coisas, enquanto ele mesmo "além do ser". Mas, por ser também o Bem, todas as coisas de alguma forma incipiente o buscam. A grande conquista de Plotino foi harmonizar essa concepção platônica do primeiro princípio com a de Aristóteles. Plotino identificou o Uno (ou Bem) como o primeiro princípio último, e o Primeiro Motor de Aristóteles renomeou como Intelecto (nous), a primeira hipóstase após o Uno.  O Uno é uma não-coisa, não é um ser em particular, porque é a fonte de todo ser em particular. No transbordamento de sua bondade ele dá origem ao Intelecto, que é todas as coisas na medida em que ele está presente em todas como seu ser, inteligibilidade, vida e outras perfeições.  O objeto do pensamento do Intelecto é de certa forma o Uno, mas como o Intelecto não pode apreender o Uno em sua unidade, ele o refrata em uma vasta gama de objetos inteligíveis separados (noēta), que são as Formas. Um aspecto importante desta síntese plotiniana é seu cuidadoso equilíbrio entre os modos apófático e catafático de descrição. O Uno é primariamente (embora não apenas) descritível apofaticamente, em termos do que ele não é; o Intelecto é primariamente (embora não apenas) descritível catafaticamente, em termos do que ele é.

Para nossos propósitos, claro, o ponto mais importante é o uso que Plotino fez do conceito de energeia. Eu argumentei anteriormente que o Primeiro Motor é pura energia, uma energia que constitui o ser de outras coisas. É natural perguntar se esta concepção é verdadeiramente coerente; isto é, se uma energia que não é a energia de alguma coisa, algum agente ativo que não é ele mesmo simplesmente idêntico à energia, realmente faz sentido. Plotino responde a esta pergunta com a chamada "teoria dos dois atos". O Intelecto emana do Uno precisamente como seu ato ou energia externa, o que Plotino chama de energeia ek tēs ousias, a energia que emana da substância. Até aqui, portanto, a resposta é que o Intelecto, como uma energia, é dependente do Uno. No entanto, Plotino estava demasiado imerso em Aristóteles para pensar que a substância não é em si uma espécie de energeia (ponto enfatizado em Metafísica viii.2). Assim, ele também apresenta uma energeia tēs ousias, um ato ou energia interna constituindo a substância, da qual o ato externo é uma espécie de imagem. Sua ilustração favorita é o fogo, que tem um calor interno que constitui sua substância e um calor externo que ele emite para o mundo, mas a distinção deve ser perfeitamente geral.

Em última análise, resulta que o ato interno de todas as coisas, que não o Uno, é alguma forma de contemplação, pois todas as coisas, que não o Uno, são o que são ao contemplar o seu anterior na cadeia da emanação. Se o próprio Uno possui um ato interno é um ponto sobre o qual Plotino hesitou. Creio que ele concluiu que a resposta é sim, e identificou esse ato com uma autoconsciência plenamente direta e não mediada.[6] Este é um ponto que teve pouca influência dentro da tradição patrística grega, no entanto, a menos que haja um eco dele na declaração de Gregório de Nissa de que "a vida do Ser Supremo é amor."[7]

II 

Tal, em linhas gerais, é a tradição filosófica grega relativa a energeia. Agora passemos a São Paulo. Na interpretação dos usos paulinos de energeia é importante estar atento aos desenvolvimentos sutis do significado do termo durante a época helenística. Como uma ajuda para a clarificação, observemos primeiro a amplitude do significado do termo inglês 'energy'. Aqui está o verbete para 'energy' no American Heritage Dictionary:
1. a. Vigor ou poder em ação. b. Vitalidade e intensidade de expressão. 2. A capacidade de ação ou de realização: faltou-lhe energia para terminar o trabalho. 3. (Geralmente plural) Poder exercido com vigor e determinação: devotar as próprias energias a uma causa digna. 4. (Física) O trabalho que um sistema físico é capaz de realizar na mudança do seu estado atual para um estado de referência especificado.
Podemos deixar de lado o sentido 4 por ser irrelevante para o período antigo. Para mostrar que energeia significa energia em um autor antigo, deve-se mostrar que seu sentido corresponde a um dos sentidos de 1-3. Já sugeri que dentro da discussão de Aristóteles sobre o Primeiro Motor, ele ocorre aproximadamente no sentido 3. Entretanto, esta utilização por Aristóteles teve pouco impacto durante o período helenístico, quando os tratados técnicos de Aristóteles, incluindo Metafísica, aparentemente não estavam em circulação.[8] Mais frequentemente em autores helenísticos energeia significa ou 'atividade' ou 'atividade característica, operação'. Há também passagens ocasionais em Polybius e Diodorus Siculus onde seu significado corresponde ao de 'energia' no sentido 1, um desenvolvimento aparentemente impulsionado por algumas passagens ambíguas na Retórica de Aristóteles.[9]

São Paulo
Quando nos voltamos para São Paulo em contraste com este pano de fundo helenístico, o primeiro ponto que chama a atenção é que Paulo reserva energeia e energein (a forma ativa do verbo correspondente) para a ação de agentes espirituais - Deus, Satanás, ou demônios.[10] Isso foi algo sem precedentes. Fontes anteriores tinham usado ambos os termos livremente de várias maneiras, inclusive para a ação de objetos materiais, seres humanos e os elementos naturais, bem como de seres espirituais. Isto é verdade até mesmo para duas fontes que, em outros aspectos, frequentemente fornecem precedentes importantes para o uso paulino, a Septuaginta e Filo de Alexandria.[11]

A restrição de Paulo de energeia e energein à ação sobrenatural foi tão marcante que aparentemente estabeleceu um precedente para a literatura cristã subsequente. As doze ocorrências dos dois termos nos Padres Apostólicos se referem todas às ações de Deus, Cristo, anjos, ou demônios. Por exemplo, no Pastor de Hermas pureza, santidade e contentamento são energeiai do anjo da justiça que acompanha todo homem, e raiva, amargura, gula, luxúria e orgulho são energeiai do anjo da iniquidade.(12) A Epístola de Barnabé refere-se a Satanás simplesmente como ho energōn, "o ativo", e Primeiro Clemente fala de como Deus manifesta as estruturas eternas do mundo pela ação que realiza (tōn energoumenōn).(13) O mesmo padrão existe nos Apologistas Gregos.  Em Justino Mártir energein é praticamente um termo técnico para a atividade dos demônios, sendo utilizado assim em dezenove de suas vinte ocorrências. Justino da mesma forma utiliza energeia exclusivamente em relação aos agentes sobrenaturais -  quatro vezes em relação aos demônios, uma vez em relação a Deus e outra em relação a Cristo. Atenágoras (em Legatio) e Teófilo, juntos, usam as duas palavras vinte e duas vezes, todas em referência a Deus, demônios ou ídolos (que eles consideram como demônios sob outro nome). [14]
Esta associação entre energeia/energein e agência sobrenatural não foi desprovida de efeito sobre o significado dos dois termos. A energeia de um agente sobrenatural, quando ela está presente em um ser humano, é mais prontamente entendida como um poder ou capacidade para certos tipos de ação.  Assim, encontramos energeia mudando para o significado de uma "capacidade de ação ou de realização" ('energia' no sentido 2), e energein mudando para o significado de "ser ativo de uma maneira que transmite uma energia". Até que ponto essas mudanças aconteceram dentro de uma determinada passagem é muitas vezes difícil de se determinar, mas em geral me parece que elas já são aparentes nos Apologistas Gregos. Assim Justino diz que Moisés "pela inspiração e energia (energeian) de Deus, pegou bronze e fez uma figura de cruz", e que Simão Mago foi capaz de realizar atos de magia "pela habilidade dos demônios energizantes" (dia tēs tōn energountōn daimonōn technēs).[15] Teófilo relata que demônios expulsos pelo exorcismo se vangloriaram de terem outrora transmitido energia ativamente em Homero, Hesíodo e outros poetas pagãos (eis ekeinous energēsantes). [16] Atenágoras semelhantemente afirma que os profetas proferiram o que foi energizado dentro deles pelo Espírito Santo (ha enērgounto exephōnēsan).[17] Reconhece-se que, na maioria dos casos, se considerarmos energeia como atividade ou operação, e energein como ser ativo ou operar, teremos um sentido aceitável (embora menos vívido). Mas no terceiro século há claramente passagens onde energia no sentido 2 é o único significado possível. Por exemplo, nas Constituições Apostólicas, o autor, falando como um dos Apóstolos, afirma que no Pentecostes "o Senhor Jesus nos enviou o dom do Espírito Santo, fomos preenchidos com Sua energia (eplēsthēmen autou tēs energeias) e falamos com novas línguas".[18] Traduzir esta afirmação como "fomos preenchidos com Sua atividade (ou operação)" fracassaria em expressar sua clara importância, que é que o Espírito Santo estava ativamente presente nos apóstolos, transmitindo uma nova capacidade de ação.

Até que ponto o uso do próprio São Paulo se encaixa neste padrão? Esta pergunta não admite uma resposta simples, pois o uso de São Paulo é sutil e variado. Uma razão pela qual a maioria dos estudiosos tem sido hesitante em ver nisso algo mais do que os significados tradicionais dos dois termos é que (ao contrário dos Padres Apostólicos e dos Apologistas Gregos) ele aparentemente não reserva a forma média/passiva de energein, energeisthai, para os agentes espirituais. Tomando esse verbo como médio, como ele é normalmente traduzido, os sujeitos dos quais ele é usado incluem "os movimentos do pecado", conforto, morte, fé, poder, a energeia divina, a palavra de Deus e o "mistério da iniquidade".[19] É certamente estranho que Paulo use o substantivo e a forma ativa do verbo com consistência programática, ao passo que usa a forma média de maneira aparentemente tão aleatória.

Na verdade, pode ser demonstrado que energeisthai na antiguidade nunca é médio, mas apenas passivo, e além disso, que o uso do termo por Paulo foi uniformemente considerado como passivo pelos Padres da Igreja. Assim entendido, o significado de energeisthai se enquadra como correlativo à energein, significando (dependendo do contexto) ou "ser atuado" ou "ser tornado efetivo, ser energizado". Que energeisthai é passivo já foi reconhecido em torno da virada do século passado por dois eminentes estudiosos do Novo Testamento, Joseph B. Mayor e J. Armitage Robinson. [20] Infelizmente o trabalho deles foi ignorado pela maioria dos tradutores e lexicógrafos subsequentes, como acontece, por exemplo, no artigo sobre energein no Dicionário Teológico do Novo Testamento. A principal causa deste equívoco parece ser o legado da Reforma.

A principal causa deste descuido parece ser o legado da Reforma. Um dos principais textos sobre a questão do sola fide é Gálatas 5:6, "Estar circuncidado ou incircunciso de nada vale em Cristo Jesus, mas sim a fé di’ agapēs energoumenē". Se tomarmos energoumenē aqui como médio, então o significado é (como traduzido pela A.V.) "fé que opera pelo amor". Se tomarmos energoumenē como passivo, então o significado ou é "fé que se torna [tornada] efetiva pelo amor", ou, mais pontualmente, "fé energizada pelo amor". Obviamente um adepto do sola fide deve insistir na primeira destas interpretações, e é isso que Lutero faz em seu comentário sobre Gálatas.[21] Por uma ironia da história, os polemicistas Católicos também tiveram que aceitar esta interpretação, pois a frase é traduzida na Vulgata como fidem quae per caritatem operatur, e a Vulgata foi confirmada como a tradução Católica Romana oficial pelo Concílio de Trento.  (De fato, a Vulgata, de forma consistente, traduz tanto energein quanto energeisthai como operatur, irremediavelmente confundindo qualquer tentativa de distingui-los.) [22] O resultado foi que ambos os lados tiveram um importante papel na manutenção da visão tradicional.

Não vou repetir aqui a evidência de que energeisthai é passivo, simplesmente observando que me parece tão sólido quanto tal caso poderia ser.[23] Uma vez que o verdadeiro significado desta palavra é reconhecido, o uso de Paulo nos versículos anômalos acaba se encaixando no padrão predominante, pois o agente não expresso em praticamente todos os casos é Deus ou Satanás. Eu revisei em outro lugar todas as passagens relevantes em detalhe.[24] Aqui vou mencionar apenas algumas que parecem especialmente significativas. Uma é Colossenses 1:29, onde Paulo se refere a si mesmo como "esforçando-se segundo a operação (ou energia, energeia) de Cristo, que é tornada efetiva (ou energizada, energoumenēn) em mim" (Colossenses 1:29).  Este versículo traz bem à tona a tendência sinérgica do pensamento de Paulo. Por um lado, a energia divina está operando [agindo] dentro de Paulo, transformando-o, de modo que, a partir deste ponto de vista, ele é o objeto da atividade de Deus; por outro, ela encontra expressão na própria atividade de Paulo, de modo que a livre agência [ação] de Paulo e a de Deus coincidem. De fato, não só as ações a que Paulo alude nesta passagem exibem pleno engajamento e autocontrole, elas assim o fazem mais do que as suas ações anteriores à sua conversão. Como a história é contada em Atos, Saulo ficou preso no auto-engano até que Deus o libertou no caminho de Damasco. Agora a energia divina que opera nele também é sua, mais verdadeiramente do que qualquer coisa que ele fez foi sua antes de ele parar de "recalcitrar contra os aguilhões" (Atos 9:5).

Outras passagens também evidenciam o que acredito que podemos chamar, sem exagero, a ontologia sinérgica de Paulo. Uma de particular clareza é Filipenses 2:12-13: "De sorte que, meus amados, assim como sempre obedecestes, não só na minha presença, mas muito mais agora na minha ausência, assim também operai (katergazesthe) a vossa salvação com temor e tremor; porque Deus é o que opera em vós (ho energōn en humin) tanto o querer como o efetuar [fazer] (energein), por sua boa vontade." Aqui a exortação para agir é acompanhada de um lembrete de que é Deus quem está agindo. Nenhum dos dois nega o outro; os filipenses são ao mesmo tempo agentes livres responsáveis pela sua própria salvação, e a arena em que Deus opera para realizar essa salvação. Tendo esta dualidade em mente, poderíamos legitimamente traduzir, "Deus é o que transmite energia em vós tanto o querer como o efetuar, por sua boa vontade", onde "efetuar" se refere tanto à ação dos filipenses como à ação de Deus como ela é expressa neles. Esta tradução ajuda a mostrar por que para Paulo não há contradição em exortar os filipenses a fazer algo que ele também entende como a obra [ação] de Deus. A natureza peculiar da atividade de Deus é que ela transmite a energia para fazer a Sua vontade, embora essa energia tenha de ser livremente expressa ou "trabalhada" [operada] para ser eficaz.

Por fim, observemos uma passagem que foi de suma importância para os Padres Gregos, a descrição dos dons do Espírito em I Coríntios 12.
Portanto, vos quero fazer compreender que ninguém que fala pelo Espírito de Deus diz: Jesus é anátema, e ninguém pode dizer que Jesus é o Senhor, senão pelo Espírito Santo. Ora, há diversidade de dons, mas o Espírito é o mesmo. E há diversidade de ministérios, mas o Senhor é o mesmo.E há diversidade de operações (energēmatōn), mas é o mesmo Deus que opera (ho energōn) tudo em todos.... Porque a um pelo Espírito é dada a palavra da sabedoria; e a outro, pelo mesmo Espírito, a palavra da ciência; e a outro, pelo mesmo Espírito, a fé; e a outro, pelo mesmo Espírito, os dons de curar; e a outro a operação de milagres; e a outro a profecia; e a outro o dom de discernir os espíritos; e a outro a variedade de línguas; e a outro a interpretação das línguas. Mas um só e o mesmo Espírito opera (energei) todas estas coisas, repartindo particularmente a cada um como quer. (12:3-11)
Esta passagem começa com a afirmação de que mesmo uma ação tão ordinária e voluntária como dizer que Jesus é o Senhor requer a cooperação do Espírito. Segue listando uma variedade de dons espirituais, cada um deles um energēma (algo realizado) do Espírito. Eles incluem não só dons extraordinários como a operação de milagres, mas também qualidades mais comuns, como a fé e a "palavra de sabedoria". Mais uma vez, não há uma linha divisória entre o natural e o divino. Qualquer crente é chamado a uma vida de cooperação contínua com o Espírito, uma cooperação que pode se manifestar de inúmeras maneiras, tanto excepcionais como mundanas.

Falar de sinergia poderia ser equivocado se isso indicasse um quadro de dois agentes iguais que simplesmente optam por trabalhar juntos. Evidentemente, como nesses casos um é o Criador e o outro uma criatura, a ação do último depende, para sua realidade, do apoio ativo do primeiro. Considero que Paulo interpreta esta noção à luz da experiência comum (que ele partilhou vividamente) de sentir que as ações de cada um não eram verdadeiramente suas enquanto a pessoa estava mergulhada no pecado e no auto-engano. Na sua concepção, a sinergia, a cooperação de Deus e do homem, não é uma relação simétrica nem é uma relação em que o poder divino suplanta e substitui o humano. É, ao invés disso, uma em que o humano se torna plenamente humano ao abraçar o divino. Esta não é uma idéia radicalmente nova; de fato, é um tema proeminente no Antigo Testamento.[25] O que é novo é o uso do vocabulário de energeia para expressá-lo.
III

Estamos agora em condições de ver o uso que os Padres Gregos fizeram dessas idéias. Para ser breve, vou focar na controvérsia eunomiana de meados do século IV. Eunômio era um ariano filosoficamente sofisticado que tinha um simples argumento de que o Filho não é Deus. O argumento era que Deus é ingênito ou não-gerado, e, mais ainda, isso não é apenas um atributo privativo ou uma concepção humana, mas a própria essência divina (ousia). Uma tal ousia não pode ser compartilhada com outro através da geração; assim, o Filho, que é gerado do Pai, não pode ser de uma só essência (homoousion) com o Pai. Quanto a termos como "vida", "luz", e "poder", que no Novo Testamento são usados tanto em relação ao Pai como ao Filho, Eunômio argumentou que eles devem ser entendidos de forma diferente nos dois casos. Uma vez que a essência divina é inteiramente simples, "cada palavra usada para significar a essência do Pai é equivalente em força de significado a 'o ingênito' (para agennēton)". [26] Ditas a respeito do Pai tais palavras significam a essência divina; ditas a respeito do Filho elas significam uma criatura.

A tarefa de responder a Eunômio coube a São Basílio de Cesaréia. Basílio se opôs tanto à premissa de que a ousia divina pode ser conhecida quanto à de que, por causa da simplicidade divina, todos os termos não-privativos ditos a respeito de Deus são idênticos em significado. Ele escreve:
Dizemos que conhecemos a grandeza de Deus, Seu poder, Sua sabedoria, Sua bondade, Sua providência sobre nós, e a justiça de Seu julgamento, mas não Sua própria essência (ousia)... "Mas Deus," diz ele [Eunômio], "é simples, e qualquer atributo d'Ele que você tenha considerado como cognoscível pertence à Sua essência." Os absurdos envolvidos neste sofisma são inumeráveis. Quando todos esses sublimes atributos são enumerados, todos eles são nomes de uma essência? E há a mesma força mútua em Sua magnitude e Sua bondade, Sua justiça e Seu poder criador, Sua presciência e Sua concessão de recompensas e punições, Sua majestade e Sua providência? Ao mencionar qualquer um destes, estamos declarando Sua essência?
A questão, então, é como caracterizar a distinção entre aquilo que em Deus não pode ser conhecido (a ousia divina) e aquilo que pode ser conhecido, como o poder, a sabedoria e a bondade divinas. A resposta de Basílio emerge na continuação da passagem:
As energias são várias, e a essência simples, mas dizemos que conhecemos nosso Deus através de Suas energias, mas nós não pretendemos nos aproximar de Sua essência. Suas energias descem até nós, mas Sua essência permanece além do nosso alcance. [27]
Como eu o entendo, Basílio está aqui aplicando ao Deus cristão a distinção entre ousia e energeia encontrada na tradição filosófica, e particularmente em Plotino.

O fato dele fazer isso levanta pelo menos duas questões distintas. Uma é a da relação ontológica entre a essência e as energias. Em Plotino o ato externo do Uno emana como a hipóstase distinta do Intelecto. Algo semelhante é verdadeiro aqui em Basílio? A outra questão é a da liberdade divina, ou, mais precisamente, da capacidade de fazer algo diferente. Em Plotino, o Uno não poderia fazer algo diferente do que produzir o Intelecto. Obviamente, Plotino vê este fato não como uma deficiência, mas como uma expressão da liberdade do Uno, pois nada além da própria natureza do Uno o determina a agir como ele age. Em contraste, na tradição cristã Deus é considerado suficientemente semelhante a uma pessoa e, pelo menos em alguns casos, como a criação do mundo, Ele poderia fazer algo diferente. Deveríamos então dizer que Suas energias poderiam ser diferentes do que são?

Quanto à primeira questão, claramente para Basílio as energias não são uma hipóstase separada ou uma série de hipóstases; antes, elas são atos que Deus realiza. Muitos estudiosos prefeririam, na realidade, traduzir energeia na passagem que citei como 'operação', e considerar Basílio como dizendo apenas que as operações de Deus descem até nós. Creio que toda a história da distinção entre ousia divina e energeia, tanto no pensamento pagão como no cristão, argumenta contra tal posição. Encontro apoio neste ponto em um interessante argumento semântico apresentado pelo irmão de Basílio, São Gregório de Nissa. Gregório adota a concepção, que era difundida na antiguidade, de que um nome é de alguma forma indicativo da forma ou das características intrínsecas da coisa nomeada. Como Deus não tem forma, Ele não tem nome no sentido próprio. Ao invés disso, termos como "deus" (theos) denominam a energeia divina de supervisão ou governança.[28] (Gregório deriva theos de theaomai, contemplar/observar). Aqui é claro que, por energeia, Gregório tem em mente uma operação. Entretanto, não pode ser apenas uma operação, pois então ao falar de Deus estaríamos falando de uma operação de Deus - ou seja, uma operação de uma operação, e assim por diante em uma regressão infinita. De alguma forma, por energeia, Gregório e Basílio parecem entender tanto aquilo que Deus é, quanto aquilo que Deus realiza.

Acredito que isto é perfeitamente inteligível à luz da história que temos percorrido. Desde a época de sua introdução por Aristóteles, energeia sempre indicou a energia que Deus tanto é como age. Plotino refinou este quadro ao distinguir entre o ato interno e o externo, mas não o derrubou. Basílio e Gregório, por sua vez, corrigem Plotino ao rejeitar a distinção de hipóstase entre o Intelecto e o Uno. Para eles a distinção relevante é, antes, aquela entre Deus como Ele existe em Si mesmo e é conhecido apenas por Ele mesmo, e Deus como Ele se manifesta aos outros. O primeiro é a ousia divina, o segundo, as energias divinas. É importante notar que ambos são Deus, mas concebidos de forma diferente: Deus como incognoscível e como cognoscível, como inteiramente além de nós e como ao nosso alcance.

Ao colocar a distinção desta maneira, porém, não devemos supor que a essência e as energias estejam separadas por um limite fixo e permanente. Os Capadócios pensam, ao invés disso, naquilo que é incognoscível em Deus como uma espécie de horizonte retrocedente. Precisamente o fato de não podermos conhecer Deus, como Ele próprio conhece a Si mesmo, nos leva a procurar conhecê-Lo cada vez mais profundamente. São Gregório Nazianzeno expressa vivamente esse sentimento de anseio que está sempre sendo satisfeito e buscando satisfação:
Em Si mesmo [Deus] reúne e contém todo o ser, não tendo princípio no passado nem fim no futuro; como um grande mar de ser, ilimitado e incontido, transcendendo todo pensamento, tempo e natureza. Ele é apenas esboçado pela mente, e isso de forma muito limitada e insuficiente - não das coisas que Lhe dizem respeito diretamente, mas das coisas ao Seu redor; uma imagem (phantasias) é obtida de uma fonte e outra de outra, e são combinadas em algum tipo de representação (indalma) da verdade, que nos escapa antes de ser capturada, e que nos foge antes de ser compreendida. Ela ilumina a faculdade diretiva em nós, mesmo quando esta está purificada, e sua aparência é como um relâmpago rápido que não permanece. Parece-me que, na medida em que é compreensível, o divino nos atrai para si mesmo [...]. No entanto, admiramos o incompreensível, e desejamos mais intensamente o objeto de admiração, e sendo desejado, ele purifica, e purificando nos torna deiformes [semelhantes a Deus]. [29]
As "coisas ao redor de Deus" são, entendo, outro nome para as energias divinas.[30] Dois pontos nesta passagem são especialmente dignos de nota. Um é a necessidade do jogo das imagens, "uma imagem é obtida de uma fonte e outra de outra", a fim de formar algo como uma concepção adequada de Deus. Aqui encontramos a fundamentação filosófica subjacente à imensa variedade da poesia litúrgica e da expressão iconográfica dentro da tradição cristã oriental. O outro ponto é a sequência que vai da admiração, ao desejo, à purificação, e finalmente a homoiōsis theōi, à semelhança com Deus. Um leitor filosófico não pode deixar de notar os ecos nisto de Platão e Aristóteles: por exemplo, da famosa afirmação de Aristóteles de que a filosofia começa com um senso de admiração, e da ênfase platônica na necessidade da purificação da alma, e do tema encontrado em ambos os autores de que o telos humano é alcançar uma semelhança com Deus.

No entanto, a distinção fundamental entre Deus como Ele é conhecido por Si mesmo e como Ele é conhecido por nós foi derivada pelos Capadócios não de fontes filosóficas, mas da Bíblia. Mais obviamente, ela foi inspirada pelo encontro de Moisés com Deus no Monte Sinai, em Êxodo 33. Ali Deus adverte Moisés "não poderás ver a minha face, pois nenhum homem poderia me ver e continuar a viver". Entretanto, ele continua: "E acontecerá que, quando a minha glória passar, pôr-te-ei numa fenda da rocha, e te cobrirei com a minha mão, até que eu haja passado. E, havendo eu tirado a minha mão, me verás por detrás; mas a minha face não se verá" (Êxodo 33:22-23). Gregório Nazianzeno toma esta passagem como um modelo para entender sua própria experiência. Ao fazer isso ele faz uma distinção muito parecida com aquela que vimos em Basílio entre Deus como Ele é conhecido por Ele mesmo e como Ele "chega até nós":
O que é isso que aconteceu comigo, ó amigos iniciados e caros amantes da verdade? Eu estava correndo para alcançar [compreender] Deus, e assim subi ao monte, e afastei a cortina da nuvem, e entrei afastado da matéria e das coisas materiais, e até onde pude me recolhi dentro de mim. E então, quando olhei para cima, eu dificilmente vi as partes detrás de Deus, embora eu estivesse protegido pela rocha, a Palavra que se fez carne por nós. E quando olhei um pouco mais de perto, eu vi, não a natureza primeira e pura, conhecida por si mesma - conhecida pela própria Trindade, quero dizer; não aquela que permanece dentro do primeiro véu e é escondida pelos Querubins, mas apenas aquela parte dela que está na extremidade e chega até nós. E esta é, tanto quanto posso dizer, a majestade, ou como o santo David a chama, a glória que se manifesta entre as criaturas, que ela produziu e governa. Pois estas [isto é, a majestade e a glória] são as partes detrás de Deus, que Ele deixa para trás como sinais de si mesmo, como as sombras e reflexos do sol na água, que mostram o sol aos nossos olhos frágeis, porque não podemos olhar para o próprio sol. [31]
Mais amplamente, os Capadócios consideraram todas as teofanias bíblicas - incluindo, a mais famosa, a sarça ardente de Êxodo 3 - como indicando uma distinção semelhante. Em tais eventos Deus é conhecido precisamente como incognoscível; é a própria extremidade de Sua condescendência em aparecer e se fazer conhecido que sublinha o abismo profundo entre o Seu modo de ser e o nosso.[32]

À luz deste fundo bíblico, a noção de theōsis ou deificação pode parecer uma importação exterior. É neste ponto que o uso paulino do conceito de energeia se torna de importância crucial. Como mencionei anteriormente, uma passagem especialmente importante foi I Coríntios 12. Basílio em Sobre o Espírito Santo se baseia nesta passagem para desenvolver uma compreensão dos dons do Espírito como uma forma de energia divina. Ele escreve:
Assim como é o poder da visão no olho sadio, também é a energia (energeia) do Espírito na alma purificada. . . . E assim como a habilidade naquele que a adquiriu, assim é a graça do Espírito sempre presente no receptor, embora não continuamente ativa (energousa). Pois como a habilidade está potencialmente no artesão, mas somente em operação quando ele está trabalhando de acordo com ela, assim também o Espírito está presente com aqueles que são dignos, mas trabalha (energei) como a necessidade exige, nas profecias, ou nas curas, ou em alguma outra realização (energēmasin) de Seus poderes.[33]
Esta passagem é quase aristotélica em sua distinção entre um estado permanente da alma (em termos aristotélicos, primeira atualidade) e sua expressão ativa (segunda atualidade). Mas para Basílio estas são duas formas diferentes de energia, uma latente e outra ativa. Basílio entende a participação na energia divina como um estado contínuo da alma que encontra expressão, conforme a necessidade, em atos particulares. É isto que se entende por deificação na tradição patrística grega: uma participação contínua e progressivamente crescente nas energias divinas.[34]

É interessante observar como esse entendimento de participação no divino evita um certo beco sem saída presente no neoplatonismo pagão. Para Plotino não tanto participamos no Intelecto - muito menos no Uno - mas redescobrimos nossa verdadeira identidade como o Intelecto. Somos cada um, em nosso cerne mais verdadeiro, um intelecto não-caído (nous) que participa na unidade-em-multiplicidade do Intelecto, assim como a luz de cada lâmpada em uma sala participa na luz da sala, ou cada teorema de uma ciência participa no significado integral do todo. Ao redescobrirmos nossa verdadeira identidade como nous, deixamos para trás os acidentes da memória e da personalidade que nos individuam aqui abaixo, a fim de nos fundirmos na clareza prístina da atividade noética perfeita. Neoplatonistas posteriores, como Jâmblico e Proclo, se mostraram insatisfeitos com essa concepção fortemente impessoal do fim humano e tentaram de várias formas mitigá-la. Para os Capadócios, porém, tal problema nem mesmo surge. A distinção da essência e da energia os permite entender a comunhão humano-divina como ocorrendo dentro da esfera da atividade pessoal conjunta. Ao sermos deificados, participamos progressivamente na atividade de Deus, mas sem perder nossa identidade distinta. De fato, assim como São Paulo, eles crêem que só alcançamos plenamente nossa própria identidade quando tornamos nossa atividade a de Deus. Tal sinergia é, segundo eles, uma forma de conhecer Deus que não é inferencial, nem é noética no sentido aristotélico, nem é simplesmente uma questão de sentimento ou intuição. É o conhecimento que vem através da participação ativa na operação [atividade] do outro, conhecendo assim o outro como o autor daquela operação.

A partir de tudo isso, fica claro como a segunda das nossas duas questões, a de saber se as energias divinas podem ser diferentes do que são, deve ser respondida. A partir de tudo isso, fica claro como a segunda das nossas duas questões, a de saber se as energias divinas podem ser diferentes do que são, deve ser respondida. Se elas são a esfera da ação pessoal da maneira que descrevi, então pelo menos algumas delas poderiam ser diferentes; caso contrário, elas seriam uma espécie de emanação, ao invés dos atos livres de um Criador livre. No entanto, a mesma restrição significa que há limites para as maneiras que elas poderiam ser diferentes. O intervalo de atos que constituiriam uma expressão legítima do meu caráter é bastante grande, mas confio que pelo menos alguns atos, tais como assassinato, adultério ou traição, estão fora dele. Da mesma forma, se as energias divinas devem manifestar a ousia divina, então, embora elas possam variar enormemente, elas devem estar dentro do intervalo que está propriamente relacionado com a ousia divina (seja ele qual for!) como expressão da fonte. Por exemplo, Deus não precisa ter criado, e tendo em conta que Ele criou, Ele poderia ter criado o mundo de forma diferente do que Ele criou; além disso, mesmo tendo em conta que Ele criou este mundo, Ele poderia agir dentro dele de forma diferente, por exemplo, distribuindo diferentes dons espirituais. Assim, muitas das energias divinas, incluindo as de criação, providência e presciência, bem como os dons do Espírito, poderiam ser diferentes ou poderiam não existir sequer. Por outro lado, se Ele age, Sua ação é necessariamente boa. Portanto, se há energias, a bondade está entre elas. O mesmo pareceria ser verdade em relação à sabedoria, ao ser, ao poder, à vida, ao amor, à santidade, à beleza, à virtude, à imortalidade, à eternidade, ao infinito e à simplicidade, todas as quais os Capadócios, ou outros Padres da Igreja depois deles, listam entre as energias divinas.

Para saber se essas energias são necessárias, então, devemos perguntar se é possível que Deus não aja de modo algum - ou seja, se Ele poderia ser inteiramente sem energia (anenergēton). Até onde sei, esta questão não foi levantada em tais termos. No entanto, uma questão muito próxima - a de saber se haveria energias divinas mesmo à parte da criação - esteve no centro da famosa controvérsia hesicasta no século XIV que motivou a obra de Gregório Palamas. Certos monges conhecidos como hesicastas afirmaram ter tido uma visão do que eles chamavam de luz incriada. Se é possível que exista tal luz, e se assim é, qual é a sua natureza, tornou-se o foco de intenso debate. Por fim, decidiu-se que existe uma luz incriada e que ela é simplesmente a forma visível da energia divina.[35]

Isto significa que a energia divina está presente de alguma forma com a divindade desde toda a eternidade, muito independentemente do ato da criação. E isso, por sua vez, implica que a energia divina não é (como alguém poderia ser tentado a pensar) simplesmente a maneira pela qual Deus se manifesta às criaturas. É isso, com certeza, mas mesmo sem as criaturas ainda haveria uma auto-manifestação eterna dentro da divindade. Dentro de um contexto cristão é natural entender isso como o amor mútuo e a auto-revelação das pessoas da Trindade. Há indícios de tal concepção entre os primeiros Padres Gregos, a começar por Gregório de Nissa, mas infelizmente o debate sobre as energias divinas no século XIV não logrou tornar explícitas essas conexões.[36] Uma vez que elas são explicitadas, torna-se claro como pode haver energias divinas incriadas que não são 'emanações', como foi denunciado pelos críticos de Palamas.

IV

Que relevância essas idéias têm hoje em dia? Parece-me que a distinção patrística grega entre a essência e as energias em Deus tem uma série de vantagens sobre a teologia tradicional ocidental. Em primeiro lugar, ela consegue incorporar a abordagem apofática de Deus de uma maneira que a teologia ocidental não consegue. A ousia divina está além de qualquer ato de nomeação ou pensamento conceitual, conhecida apenas pela participação ativa em sua expressão energética. Tal concepção está de acordo tanto com as teofanias bíblicas quanto com o conceito de sinergia do Novo Testamento. Ela é também filosoficamente bem fundamentada, pois como Plotino viu, se Deus é a fonte da forma, Ele próprio não deve possuir forma alguma. Mas se Ele é a fonte da forma, Ele também deve estar presente nas coisas como a forma delas, a estrutura inteligível que faz delas o que elas são. Estes são os dois primeiros princípios clássicos: o Bem de Platão e o Primeiro Motor de Aristóteles. Enquanto Plotino os mantém separados como hipóstases distintas, os Pais Gregos os consideram duas maneiras de entender o único Deus.

Eu tenho constatado que é muitas vezes neste ponto que aqueles treinados dentro da tradição teológica ocidental se sentem mais desconfortáveis. Se não temos conceito ou 'nome' para a ousia divina, então como podemos falar de Deus de forma significativa? Com que fundamentos a Igreja pode articular doutrina e rejeitar heresias? E - talvez a preocupação mais forte - o que podemos realmente nos sentir confiantes de que sabemos sobre Deus? Poderia a ousia de Deus ser tão radicalmente diferente de Sua manifestação nas energias divinas que poderíamos ser enganados, mesmo numa afirmação tão básica como a de que Deus é bom?

Tais preocupações derivam, creio eu, de uma atenção inadequada à relação entre a essência e as energias. As energias divinas não são atos quaisquer, mas atos que manifestam o caráter divino; portanto, não pode haver a possibilidade de Deus de alguma forma se esconder atrás de uma fachada de energias falsas, parecendo ser bom ou benevolente quando Ele não o é. Ao dizer que Deus está "além" das perfeições que Ele confere às criaturas, o que se quer dizer não é que Ele não possui essas perfeições, mas que as possui de uma maneira que está fundamental e permanentemente além de nossas capacidades de apreensão. Como uma analogia, podemos considerar as capacidades dos Flatlanders (na encantadora fábula de E.A. Abbott, Flatland) de apreender as qualidades dos objetos tridimensionais. Quando uma esfera passa pelo mundo deles, eles a apreendem primeiro como um ponto, depois como um círculo que cresce, depois como um círculo que encolhe, e por fim novamente como um ponto. Eles apreendem corretamente que ela é redonda, mas ao mesmo tempo reconhecem que a maneira como ela é redonda supera em muito tudo o que eles podem compreender.  Que melhor forma poderia haver para eles reconhecerem essa dualidade do que dizerem que a esfera é ao mesmo tempo redonda e além da redondeza? Ambas as afirmações são verdadeiras, mas cada uma precisa da outra para evitar que sua própria verdade possa induzir ao erro.

Os Padres Gregos têm uma apreciação semelhante e cautelosa tanto da necessidade da linguagem quanto de sua capacidade  de induzir ao erro. Como observa Gregório Nazianzeno, nosso pensamento e discurso sobre Deus consiste em "uma imagem obtida de uma fonte e outra de outra, e combinadas em algum tipo de representação da verdade, que nos escapa antes de ser capturada, e que nos foge antes de ser compreendida." [37] O termo preferido pelos Capadócios para as concepções que formamos de Deus é epinoia. Uma epinoia é uma concepção formada pela reflexão em cima da experiência, fazendo uso de operações mentais como a analogia, associação, comparação, extrapolação, negação e análise. Usando os exemplos apresentados por Basílio, um único corpo pode ser analisado em epinoia em cor, forma, solidez, tamanho e assim por diante, e o trigo pode ser identificado sob diferentes epinoiai como fruto, semente e alimento.[38] Não há nada de errado em formar várias epinoiai de Deus, e de fato devemos fazer isso se quisermos falar significantemente sobre Ele. No entanto, não devemos esquecer que tais epinoiai são em parte moldadas por nossas próprias operações mentais.

A formação das epinoiai deve ser contrastada com noēsis, o tipo de pensamento que apreende a estrutura ontológica do objeto conhecido. De fato, segundo Aristóteles noēsis é plenamente isomórfico com o objeto conhecido, consistindo na própria forma do objeto passando a estar presente na mente. Para os Padres Gregos (como para os Neoplatonistas), como Deus não tem forma, Ele não é um objeto de noēsis.   Eles consideram o fato de estarmos limitados às epinoiai ao pensarmos nEle não como uma causa de desespero, mas de admiração; faz parte do que sempre nos atrai adiante para buscar conhecê-Lo mais. As afirmações dogmáticas têm um lugar necessário como orientação nessa busca, mas elas nunca devem ser confundidas com a aquisição da real experiência de Deus, que está além tanto das concepções humanas (epinoiai) quanto da noēsis.

Assim os Padres Gregos apropriaram-se de Plotino tanto o modo apofático quanto o catafático de discurso, considerando ambos igualmente necessários para a articulação da crença cristã. Poder-se-ia esperar que Agostinho, com seu conhecimento de Plotino, tivesse seguido um caminho semelhante. Mas na realidade ele não seguiu. Agostinho pensa caracteristicamente em Deus como Verdade, a Verdade que está presente em nossa mente e que nos capacita a conhecer. Em consonância com a identificação clássica do pensar e do ser, ele também descreve Deus como ipsum esse, o ser em si mesmo. Estas duas descrições juntas resultam no que é em essência o entendimento plotiniano do Intelecto. Agostinho não faz uso do outro lado de Plotino, o entendimento de Deus como além de ser e além do intelecto. Certamente, ele reconhece que nesta vida não podemos conhecer a essência divina, mas isso é uma limitação da nossa existência corporal atual. Moisés e São Paulo são para Agostinho paradigmas de pessoas que, por um breve período de tempo, foram arrebatadas de seus corpos, desfrutando de uma visão direta da essência divina. Os bem-aventurados no céu, estando por fim afastados desta vida, desfrutarão de tal visão por toda a eternidade. Aquino adota essa idéia e a integra dentro de seu próprio quadro aristotélico. Ele argumenta que como ato puro Deus deve ser intrinsecamente inteligível, por mais que nossas limitações atuais nos impeçam de compreendê-Lo. Baseando-se no Livro X da Ética a Nicômaco, assim como Agostinho, ele identifica o telos da existência humana como a apreensão intelectual da essência divina.[39]

Essas diferenças em relação ao apofatismo apontam para uma segunda grande área de diferença, os papéis que as duas tradições atribuem à atividade pessoal. Eu salientei como os Padres gregos se basearam no conceito paulino de sinergia para entender o telos humano como uma participação cada vez mais profunda nas energias divinas. Tal participação começa nesta vida presente e envolve tanto o corpo quanto a alma. Nesta concepção, nossos presentes atos de obediência a Deus, buscando-O em oração e participando em Sua vida através da adoração e dos sacramentos são o tipo de coisa que, em última análise, são constitutivos de nossa bem-aventurança final. Nosso estado final será mais puro e mais rico, claro, mas será reconhecidamente em continuidade com essas formas presentes de conhecer a Deus. É duvidoso que o mesmo possa ser dito a respeito da concepção agostiniano-tomista. Segundo Aquino, na vida após a morte Deus infundirá os bem-aventurados com a lumen gloriae, a 'luz da glória' que os capacitará a apreender a essência divina.  Todos os nossos presentes atos são concebidos para nos levar até esse ponto. O corpo não tem papel real na visão beatífica e, de fato, Aquino afirma explicitamente que a ressurreição do corpo não é necessária para a beatitude e nada faz para aumentar sua intensidade. [40] Até onde eu posso ver, o mesmo se aplica à nossa memória e outras características pessoais.  Na longa discussão sobre a visão beatífica na Summa Contra Gentiles, a única concessão feita às diferenças pessoais é que o grau em que uma pessoa apreende a essência divina dependerá da virtude dessa pessoa nesta vida (III, 58). Isto em nada diminui o ponto básico de que a visão beatífica é estritamente um ato do intelecto. Como tal, não é mais um ato pessoal do que a theōria aristotélica, sobre a qual ela é modelada.

Por fim, tratarei brevemente uma terceira área de diferença, uma que é grande e merece uma exploração mais cuidadosa do que a que eu posso oferecer aqui. Grande parte da teologia natural tradicional é construída em torno do conceito da simplicidade divina. Agostinho e Aquino têm formas diferentes de abordar este ponto, mas concordam que todos os predicados não-relacionais e não-privativos ditos a respeito de Deus são formas diferentes de significar a essência divina. Parte do que isso implica é que a vontade de Deus é idêntica à Sua essência.[41] Das muitas dificuldades a que tal concepção dá origem, citarei duas. A primeira diz respeito à liberdade divina. Se Deus é livre - na maneira tradicionalmente aceita no cristianismo - Ele poderia querer de forma diferente do que Ele quer. Isso significa que, nesse caso, Sua essência seria diferente? E, se assim for, quão diferente ela poderia ser? Presumindo-se que há pelo menos algum aspecto da essência que nunca poderia ser diferente - digamos, a bondade divina - então deve haver uma distinção dentro da essência entre o que poderia ser diferente e o que não poderia. Porém, se algo é contrário à simplicidade divina, certamente é a presença de tal distinção dentro da essência divina! Agostinho e Aquino lidaram com esse problema de maneiras diferentes. A concepção considerada por Agostinho parece ter sido a de que Deus não poderia de fato agir diferente do que Ele age, pelo menos no que diz respeito à Sua criação deste mundo e tudo o que nele existe.[42] Apesar da autoridade enorme de Agostinho, esta concepção foi condenada (sem reconhecer suas credenciais agostinianas) no Concílio de Sens, em 1140. Assim, Aquino afirma que Deus tem o liberum arbitrium e poderia agir diferente do que Ele age. Mas como ele concilia esta afirmação com a simplicidade divina permanece profundamente obscuro.[43]

A segunda dificuldade diz respeito à reciprocidade entre Deus e as criaturas. Se a vontade divina é idêntica à essência divina, pareceria que a vontade divina não pode, de modo algum, ser uma resposta à iniciativa própria das criaturas, pois, nesse caso, as criaturas contribuiriam para determinar a essência divina. Aquino reconhece este problema, se ele é um, e vai em frente: sua posição é que a vontade de Deus não é, de forma alguma, uma resposta às criaturas, mas ela é determinada unicamente por Deus. É difícil ver como a prática religiosa mais tradicional, incluindo a oração peticionária, o sacrifício e até mesmo o simples desejo de agradar a Deus, pode fazer sentido em tal posição. De fato, como reconhece Aquino, nessa concepção a interpretação agostiniana da predestinação não apenas é verdadeira, mas é necessariamente verdadeira, pois Deus não poderia criar criaturas capazes de afetar - de qualquer maneira -  Seus julgamentos a respeito da salvação e da condenação.[44] No entanto, a posição agostiniana começou precisamente como a tentativa de exaltar a vontade divina sobre toda necessidade. Tais são os emaranhados a que alguém é conduzido pela simplicidade divina. 

São problemas como estes que levaram Pascal a exclamar que o Deus dos filósofos não é o Deus de Abraão, Isaac e Jacó. Evidentemente, precisa haver alguma outra forma de entender a simplicidade divina, que não envolva essas limitações inaceitáveis. Tal forma é proporcionada pela distinção da essência e das energias divinas. Os Padres Gregos pensam na simplicidade como uma energia divina, uma das formas pelas quais Deus se manifesta em Sua atividade. Assim como qualquer energia, Deus é tanto a simplicidade em si quanto além-da-simplicidade como sua fonte. Tal como o sol é simples e ainda assim possui uma infinidade indefinida de raios, também nada a respeito da simplicidade divina impede Deus de possuir uma infinidade indefinida de energias. Da mesma forma, nada impede que essas energias sejam afetadas pelas criaturas. As energias são precisamente o âmbito da reciprocidade, no qual Deus se comunica às criaturas e as convoca a se oferecerem a Ele.

Sem dúvida muitas questões ainda faltam ser respondidas. Espero ter dito o suficiente, no entanto, para mostrar que temos aqui uma maneira de pensar sobre Deus que é ao mesmo tempo profundamente tradicional e digna de atenção séria.

Retirado do livro Divine Essence and Divine Energies: Ecumenical Reflections on the Presence of God in Eastern Orthodoxy

Notas

1. Este artigo é reproduzido aqui a fim de fornecer um contexto no qual a maioria das contribuições fará mais sentido. Foi publicado anteriormente em Philosophy and Theology, 18 (2006): pp. 93-120.

2. Veja Georges Florovsky, 'St. Gregory Palamas and the Tradition of the Fathers', Greek Orthodox Theological Review, 5 (1959): pp. 119-31, reimpresso em Georges Florovsky, The Bible, Church, and Tradition: An Eastern Orthodox View (Belmont, MA, 1972); John Meyendorff, A Study of Gregory Palamas (Crestwood, NY, 1974, 2ª ed.), publicado originalmente como Introduction à l'étude de Grégoire Palamas (Paris, 1959); St. Grégoire Palamas et la mystique Orthodoxe (Paris, 1959); Vladimir Lossky, The Mystical Theology of the Eastern Church (Crestwood, NY, 1976), publicado originalmente como Essai sur la Theologie Mystique de l'Eglise d'Orient (Paris, 1944); The Vision of God (Crestwood, NY, 1983).

3. David Bradshaw, Aristotle East and West: Metaphysics and the Division of Christendom (Cambridge, 2004); ‘The Divine Energies in the New Testament’, St. Vladimir’s Theological Quarterly, 50/3 (2006): pp. 189–223; ‘The Divine Glory and the Divine Energies’, Faith and Philosophy, 23 (2006): pp. 279–98.

4. Bradshaw, Aristotle East and West, pp. 22–44.

5. Há também informações incompletas de uma palestra pública sobre o Bem na qual Platão supostamente fez essa identificação; veja Konrad Gaiser, ‘Plato’s Enigmatic Lecture “On the Good”, Phronesis, 25 (1980): pp. 5-37.

6. Bradshaw, Aristotle East and West, pp. 85–91.

7. Sobre a Alma e a Ressurreição (NPNF vol. 5, p. 450); cf. Bradshaw, Aristotle East and West, pp. 170–171.

8. Eles reentraram em circulação na edição de Andrônico de Rodes em meados do século I a.C., mas mesmo por algum tempo depois parecem ter sido pouco conhecidos (como ainda é verdade, por exemplo, em Clemente de Alexandria).

9. Bradshaw, Aristotle East and West, pp. 51–5.

10. Veja I Cor. 12:6, 10-11, Gal. 2:8, Ef. 1:11, 19-20, 2:2, 3:7, 4:16, Fil. 2:12-13, 3:21, Col. 1:29, 2:12, II Tess. 2:9, 2:11. Assumo, por uma questão de simplicidade, que Paulo foi, de fato, o autor de todos os escritos paulinos. Aqueles que duvidam disso podem, se quiserem, substituir as minhas referências a Paulo por uma circunlocução como "Paulo e seus imitadores".

11. Veja Bradshaw, Aristotle East and West, pp. 51–60, e ‘The Divine Energies in the New Testament’, p. 198.

12. Pastor de Hermas, Mandato 6.1-2.

13. Epístola de Barnabé 2.1.

14. Veja Bradshaw, 'The Divine Energies in the New Testament', pp. 198-9. Eu incluí nestas estatísticas as ocorrências passivas de energein.

15. Justino Mártir, I Apologia 26.60.

16. Teófilo, Ad Autolycum II.8.

17. Atenágoras, Legatio 9.

18. Constituições Apostólicas V.20.49. Esta obra é baseada no material de c. 200-20, embora compilada posteriormente.

19. Veja Rom. 7:5, II Cor. 1:6, 4:12, Gal. 5:6, Ef. 3:20, Col. 1:29, I Tess. 2:13, e II Tess. 2:7, respectivamente.

20. Joseph B. Mayor, The Epistle of St. James. The Greek Text with Introduction, Notes, and Comments (London and New York, 1892), pp. 177–9,  e J. Armitage Robinson, St. Paul's Epistle to the Ephesians: A Revised Text and Translation with Exposition and Notes (Londres e Nova York, 1903), pp. 244-7. Ambas as obras têm sido frequentemente reimpressas.

21. Martinho Lutero, Luther's Works, eds J. Pelikan e W.A. Hansen (St. Louis, 1964), vol. 27, p. 28. Para exemplos mais recentes desta perspectiva veja Gerhard Kittel, Theological Dictionary of the New Testament (Grand Rapids, 1964), vol. 2, p. 654; F.F. Bruce, The Epistle to the Galatians: A Commentary on the Greek Text (Grand Rapids, 1982), p. 232; Ronald Fung, The Epistle to the Galatians (Grand Rapids, 1988), pp. 228-30.

22. Somando-se à confusão, também traduz ergazetai e katergazetai por operatur, de modo que não pode haver esperança, para qualquer um que leia apenas a Vulgata, de reconhecer energeia/energein/energeisthai como um grupo de palavras distinto. Vale ressaltar que as epístolas paulinas não foram traduzidas por São Jerônimo, de modo que a versão na Vulgata é essencialmente o texto Latino Antigo. Nos perguntamos como Jerônimo poderia ter corrigido esta situação.

23. Bradshaw, ‘The Divine Energies in the New Testament’, pp. 201-8.

24. Veja ibid.; também Bradshaw, Aristotle East and West, pp. 121-2, do qual me baseio neste e nos próximos parágrafos.

25. Por exemplo, no Salmo 1, e nos salmos do arrependimento, como o Salmo 51.

26. Eunômio, Apologia 19, trad. Richard Paul Vaggione, Eunomius: The Extant Works (Oxford, 1987), p. 59.

27. Basílio, Epístola 234, trad. NPNF, vol. 8, p. 274, modificada. Veja também a passagem similar em Basílio, Contra Eunômio i.8.

28. Veja Bradshaw, Aristotle East and West, pp. 161-4, e James Le Grys, ‘Names for the Ineffable God: St. Gregory of Nyssa’s Explanation’, The Thomist, 62 (1988): pp. 333-54.

29. Gregório Nazianzeno, Orações 38.7, trad. NPNF, vol. 7, pp. 346-7.

30. Bradshaw, Aristotle East and West, pp. 166-7.

31. Gregório Nazianzeno, Orações 28.3, trad. NPNF, vol. 7, p. 289.

32. Veja mais Bradshaw, 'The Divine Glory and the Divine Energies'.

33. Basílio, Sobre o Espírito Santo XXVI, 61, trad. NPNF, vol. 8, p. 38.

34. Veja mais em Bradshaw, Aristotle East and West, pp. 172-8, 193-201, e Norman Russell, The Doctrine of Deification in the Greek Patristic Tradition (Oxford, 2004).

35. Veja Meyendorff, A Study of Gregory Palamas; Bradshaw, Aristotle East and West, pp. 229-42.

36. Veja Bradshaw, Aristotle East and West, pp. 214-20, 242, 273-4.

37. Gregório Nazianzeno, Orações 38.7, trad. NPNF, vol. 7, p. 346.

38. Contra Eunômio I.6; cf. G.C. Stead, 'Logic and the Application of Names to God', em Lucas F. Mateo-Seco e Juan L. Bastero (eds), El "Contra Eunomium I" en la Produccion Literaria de Gregorio de Nisa (Pamplona, 1988), pp. 303-20, para um estudo útil sobre o contexto helenístico deste conceito.

39. Bradshaw, Aristotle East and West, pp. 222-9, 254-7.

40. Veja Summa Theologiae I-II, q. 4, art. 5.

41. Agostinho, Confissões xi.10.12; xii.15.18; Aquinas, Summa Contra Gentiles I.73; Summa Theologiae I, q. 3, art. 3-4 e q. 19, art. 1.

42. Veja Roland Teske, 'The Motive for Creation according to Saint Augustine', The Modern Schoolman, 65 (1988): pp. 245-53. Como observa Teske, em Sobre a Livre Escolha da Vontade 3.9.24 Agostinho parece admitir que até mesmo a criação por Deus de criaturas que Ele anteviu que seriam eternamente condenadas era necessária, pois de outra forma Deus teria sido "invejoso" ao deixar de criar tudo o que Ele era capaz de criar (p. 251). Eu suspeito que Agostinho aqui estava seguindo Plotino, que da mesma forma mantém que o Uno deve produzir tudo o que ele é capaz de produzir (Enneads iv.8.6, v.5.12.45-8).

43. Bradshaw, Aristotle East and West, pp. 247-50, 259-62.

44. Veja Summa Theologiae I, q. 19, art. 5-6 e q. 23, art. 4–5.