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domingo, 7 de março de 2021

O "Reavivamento Carismático" como um Sinal dos Tempos (Pe. Serafim Rose)


Nota do blog: O capítulo "O 'Reavivamento Carismático' como um Sinal dos Tempos" faz parte do livro "Ortodoxia e a Religião do Futuro" do Pe. Serafim (Rose). Tendo sido publicado em publicado em português pela Editora São Savas, optamos por remover do blog o texto do capítulo em questão. O livro pode ser adquirido através do site da Editora:

https://editorasaosavas.lojaintegrada.com.br/ortodoxia-e-a-religiao-do-futuro-pe-serafim-rose

 

sábado, 21 de julho de 2018

Uma comparação: Francisco de Assis e São Serafim de Sarov (M. V. Lodyzhenskii)

Durante a minha oração, duas grandes luzes apareceram diante de mim (deux grandes lumibres m'ont ete montrees) - uma em que reconheci o Criador e outra em que me reconheci.
- Palavras de Francisco sobre sua oração

Ele (o padre Serge) pensou sobre como ele era uma lâmpada acesa, e quanto mais ele sentia isso, mais ele sentia um enfraquecimento, um apagamento da luz espiritual da verdade queimando nele.
- L.N. Tolstói: "Padre Serge"

Os verdadeiramente justos sempre se consideram indignos de Deus.
- Dictum de São Isaac, o Sírio

Estudando os dados biográficos de Francisco de Assis, um fato de grande interesse em relação ao misticismo desse asceta católico romano é o aparecimento de estigmas em sua pessoa. Os católicos romanos os consideram uma manifestação impressionante, como o selo do Espírito Santo. No caso de Francisco, esses estigmas assumiram a forma das marcas da paixão de Cristo em seu corpo.

A estigmatização de Francisco não é um fenômeno excepcional entre os ascetas do mundo católico romano. A estigmatização parece ser característica do misticismo católico romano em geral, aconteceu tanto antes de Francisco, quanto depois. Peter Damian, por exemplo, fala de um monge que carregou a representação da cruz em seu corpo. Caesar de Geisterbach menciona um noviço cuja testa tinha a impressão de uma cruz. [1] Além disso, uma grande quantidade de dados existe, atestando o fato de que após a morte de Francisco ocorreu uma série de estigmatizações que, posteriormente, foram minuciosamente estudadas por vários pesquisadores, particularmente nos últimos tempos. Esses fenômenos, como diz V. Guerier, iluminam sua fonte primária. Muitos deles foram submetidos a observação cuidadosa e registrados em detalhes, por exemplo, o caso de Veronica Giuliani (1660-1727) que estava sob observação do médico; Luisa Lato (1850-1883), descrita pelo Dr. Varleman, [2] e Madelaine N. (1910), descrita por Janat. [3]

No caso de Francisco de Assis, deve-se notar que a Igreja Católica Romana reagiu à sua estigmatização com a maior reverência. Aceitou o fenômeno como um grande milagre. Dois anos depois de sua morte, o papa canonizou Francisco como santo. O principal motivo para sua canonização foi o fato dos milagrosos estigmas em sua pessoa, que foram aceitos como indicações de santidade. Este fato é de interesse singular para os cristãos ortodoxos, já que nada semelhante é encontrado nas vidas dos santos da Igreja Ortodoxa - um destacado expoente do qual é o santo russo Serafim de Sarov.

Deve-se mencionar aqui que os relatos históricos da estigmatização de Francisco não dão origem a quaisquer dúvidas no mundo acadêmico. A este respeito, é feita referência a Sabbatier que estudou a vida de Francisco, e especialmente sua estigmatização, em detalhes. Sabbatier chegou à conclusão de que os estigmas eram definitivamente reais. Sabbatier procurou encontrar uma explicação da estigmatização na área inexplorada da patologia mental, em algum lugar entre a psicologia e a fisiologia. [4]

Antes de prosseguir com uma explicação da estigmatização de Francisco do ponto de vista místico ortodoxo - o objetivo principal deste artigo - uma investigação dos estigmas como fenômenos fisiológicos será empreendida, uma vez que tal investigação contribuirá com informações valiosas para uma avaliação ortodoxa posterior do "misticismo" do santo católico romano.

Guerier inclui em seu trabalho sobre Francisco as descobertas científicas de G. Dumas, que analisou o processo de estigmatização do ponto de vista psicossomático. [5] A seguir, as conclusões a que Dumas chegou a respeito dos estigmáticos:

1. É preciso reconhecer a sinceridade dos estigmáticos e que os estigmas aparecem espontaneamente, ou seja, não são ferimentos auto-infligidos, infligidos enquanto a pessoa está em um estado inconsciente. 
2. As feridas nos estigmáticos são consideradas fenômenos relacionados ao sistema circulatório (vasos sanguíneos) e são explicadas como efeitos de sugestão mental que afetam a digestão, a circulação do sangue, as secreções glandulares. Pode resultar em lesões cutâneas.
3. As feridas no estigmáticos aparecem enquanto estão em estado de êxtase que ocorre quando alguém é absorvido em algum tipo de imagem poderosa contemplada, e entrega o controle a essa imagem. 
4. Os estigmas aparecem não apenas como resultado da imagem passiva de uma ferida no corpo, mas, de acordo com o testemunho de estigmáticos, quando a imagem é acompanhada pela ação ativa da própria imagem - especificamente a de um raio ardente ou lança, visto como provindo de uma ferida contemplada, que fere o corpo do estigmático. Freqüentemente, isso acontece gradualmente, e não com a primeira visão, até que o grau eventualmente seja alcançado onde a imagem contemplada durante o êxtase finalmente ganha controle sobre o sujeito contemplativo.
Dumas estabeleceu os seguintes critérios gerais para a estigmatização: todos os estigmáticos experimentam dor insuportável nas partes afetadas do corpo, não importando a forma que os estigmas tomem - impressão da Cruz no ombro; vestígios dos espinhos de uma coroa de espinhos na cabeça; ou, como com Francisco de Assis, como feridas nas mãos, pés e no lado. Juntamente com a dor, eles experimentam grande deleite no pensamento de que eles são dignos de sofrer com Jesus, para expiar, como Ele fez, pelos pecados dos quais eles são inocentes. [6] (Isso, é claro, é compatível com a "teoria da satisfação" da Igreja Católica Romana, que é desconhecida pela Igreja Ortodoxa.) [7]

As generalizações de Dumas são extremamente interessantes, pois implicam que, no processo de estigmatização, além do estado emocional apaixonado (um êxtase emocional do coração), um grande papel também é desempenhado por: a) um elemento mental; b) uma imagem mental apresentando sofrimento agudo; c) auto-sugestão, isto é, uma série de impulsos mentais e volitivos dirigidos para transferir os sofrimentos da imagem imaginada em; d) sentimentos físicos - dor; e, finalmente, e) a produção sobre si das marcas (feridas) do sofrimento - estigmas.

As observações de Dumas reconhecem mais fatores do que o emocional (que William James considera a fonte do misticismo) [8], que desempenham um papel igual, se não maior, no processo de estigmatização. Estes podem ser resumidos como:
1. Um intenso trabalho da imaginação mental,
2. Sugestão
3. Sentimentos sensuais e,
4. Manifestações fisiológicas.
O significado destes será aparente mais tarde.

Na sequência da breve análise científica sobre os estigmáticos em geral, dados específicos, relativos ao êxtase e à visão de Francisco, contidos no trabalho de Fioretti, que darão o pano de fundo conducente à visão, bem como uma descrição do fenômeno.

A estigmatização de Francisco de Assis, devido aos resultados de sua visão, é atribuída a uma oração singular. A oração é um apelo intenso de sua parte para que ele possa experimentar os sofrimentos de Cristo em seu corpo e alma. Na oração, Francisco deseja a instigação Divina da experiência e tem sede de experimentar isso não apenas com sua alma, mas com seu corpo. Assim, entregando-se à oração extática, ele não renunciou ao seu corpo, mas estava convidando sensações terrenas ou corporais, isto é, sofrimento físico.

A oração de Francisco foi respondida. A crônica diz que "Francisco sentiu-se completamente transformado em Cristo". Essa transformação não foi apenas em espírito, mas também no corpo, ou seja, não apenas nas sensações espirituais e psicológicas, mas também nas físicas. Como a visão realmente ocorreu?

Primeiro de tudo, inesperadamente para ele, Francisco viu algo descrito como milagroso: ele viu um Serafim de seis asas, semelhante ao descrito pelo profeta Isaías, descendo do céu até ele. (Primeiro estágio da visão). Então, depois que o Serafim se aproximou, Francisco, sedento por Jesus e sentindo-se "transformado em Cristo", começou a ver Cristo no Serafim, pregado na cruz. Nas palavras da crônica, "E este Serafim chegou tão perto do santo que Francisco pôde ver clara e distintamente no Serafim a imagem do Crucificado". (Segundo estágio da visão). Francisco reconheceu na imagem do Serafim o próprio Cristo que tinha descido a ele. [9] Ele sentiu o sofrimento de Cristo em seu corpo, assim seu desejo de experimentar esse sofrimento foi satisfeito. (Terceiro estágio da visão). Então os estigmas começaram a aparecer em seu corpo. Sua oração fervorosa e ardente parecia ser respondida. (Quarto estágio da visão).

A incrível complexidade da visão de Francisco é surpreendente. Sobre a visão inicial do Serafim, que aparentemente havia descido do céu até Francisco, estava sobreposta outra imagem - a que Francisco desejava ter acima de tudo, a do Cristo Crucificado. O processo de desenvolvimento dessas visões deixa a impressão de que a primeira visão (a do Serafim), tão inesperada e súbita, estava fora do âmbito da imaginação de Francisco, que ansiava por ver o Cristo Crucificado e experimentar Seus sofrimentos. Desta maneira, pode-se explicar como uma concepção tão complexa, em que ambas as visões, as duas imagens - a do Serafim e de Cristo - encontram espaço na consciência de Francisco.


A experiência de Francisco de Assis é notável e de singular interesse para os cristãos ortodoxos, pois, como mencionado acima, nada semelhante é encontrado na experiência da Igreja Ortodoxa com uma longa linhagem de ascetas e uma história igualmente longa de experiências místicas. De fato, todas as coisas que Francisco experimentou no processo de sua estigmatização são as mesmas armadilhas que os Padres da Igreja repetidamente advertiram contra!

Recordando como os ascetas da Igreja Ortodoxa compreendem a mais elevada (espiritual) oração como descrita na Filocalia, deve ser enfatizado aqui que eles consideraram esta oração, junto de seus próprios esforços pessoais, como uma operação sinérgica (homem cooperando com Deus) para alcançar o desapego, não só de tudo físico ou sensorial, mas também do pensamento racional. Isto é, na melhor das hipóteses, uma elevação espiritual direta da pessoa para Deus, quando o próprio Senhor Deus, o próprio Espírito Santo, intercede pelo suplicante com "gemidos que não podem ser proferidos". [10] Como exemplo, São Isaac da Síria em suas Direções diz: "Uma alma que ama a Deus, em Deus, e somente nEle encontra paz. Primeiro se liberte de todos os seus apegos externos, então seu coração será capaz de unir-se com Deus, porque a união com Deus é precedida pelo desapego da matéria". [11] É o simples falar de São Nilo do Sinai, no entanto, que critica com clareza distinta e apresenta uma séria justaposição à suposta visitação Divina que Francisco experimentou. No Texto sobre a Oração, ele admoesta: "Nunca deseje nem busque qualquer rosto ou imagem durante a oração. Não deseje ter uma visão sensorial, de anjos, poderes ou Cristo, para não perder sua mente ao confundir o lobo com o pastor e adorar os inimigos - os demônios. O começo do engano (prelest ou plani) da mente é a vanglória, que move a mente para tentar representar a Deidade de alguma forma ou imagem." [12]

A oração extática de Francisco foi respondida, mas à luz dos conselhos de Santo Isaac e São Nilo, claramente não por Cristo. A crônica diz que "Francisco se sentiu completamente transformado em Cristo", transformado não só no espírito, mas também no corpo, ou seja, não apenas nas sensações espirituais e psicológicas, mas também nas físicas. Embora admitindo que Francisco estava plenamente convencido de que ele havia sido espiritualmente levado ao Logos, a ascensão de sensações físicas especiais não pode, de acordo com Santo Isaac, ser atribuída à ação de um poder espiritualmente bom.

As sensações físicas de Francisco podem ser explicadas como o trabalho de sua própria imaginação mental se movendo paralelamente ao seu êxtase espiritual. É difícil dizer, neste exemplo dado, o que foi dominante no engano de Francisco (prelest): seu orgulho espiritual, ou seu mentalismo (imagens mentais); mas, em qualquer caso, o mentalismo foi bastante forte. Isto é confirmado pelas circunstâncias substantivas da visão incomumente complexa que foi apresentada a Francisco depois que ele se sentiu completamente transformado em Jesus, o que é claramente um estado muito grave de prelest, tendo suas raízes, como diz São Nilo, na vanglória.

O exagero da exaltação de Francisco, que foi notado na descrição de sua visão, revela-se muito fortemente quando comparado com a majestosa visão de Cristo que São Serafim de Sarov experimentou enquanto servia como diácono na Grande Quinta-Feira da Semana da Paixão. [13]

Em contraste com Francisco, São Serafim não buscou "sentir-se transformado em Jesus" através de suas orações e trabalhos. Ele orou de maneira simples e profunda, arrependendo-se de seus pecados. Durante o curso de sua oração, e como resultado de seus grandes atos ascéticos, o poder místico da Graça cresceu nele, o que ele não sentiu, nem percebeu. De pé diante do trono (Mesa Sagrada) com um coração ardente, como nas palavras de Elias de Ekdik "... a alma, tendo se libertado de tudo externo, é unida à oração e à oração, como uma espécie de chama rodeando a alma como o fogo faz o ferro, torna tudo ardente, "[14] São Serafim inesperadamente ficou aturdido com a aparência do Poder Divino Misterioso. São Serafim nem imaginou, nem sonhou, nem esperou por tal visão.Quando ela ocorreu, ele ficou tão surpreso que levou duas horas para ele "voltar a si mesmo". Mais tarde, ele mesmo descreveu o que havia acontecido. No começo, ele foi atingido por uma luz incomum, como se fosse do sol. Então ele viu o Filho do Homem em glória, brilhando mais do que o sol com uma luz inefável e cercado "como por um enxame de abelhas" pelos poderes celestes. Saindo do Portão Norte (do santuário), Cristo parou diante do amvon e, erguendo Suas mãos, abençoou os que serviam e os que oravam. A visão então desapareceu.

Vários itens no relato da visão de São Serafim são de interesse neste estudo. Primeiramente, em contraste direto com a oração, a oração de São Serafim é desprovida de qualquer elemento que remotamente sugerisse que ele desejava quaisquer sinais visíveis (sensoriais) da Presença Divina. Ainda menos ele pensou em sua vida que era digno de ser "transformado em Jesus", como Francisco orou. A característica fundamental da oração do Santo é uma profunda humildade, evidenciada pela sua confissão articulada de pecado que o levou ao arrependimento em oração. O significado disso, como os Padres da Igreja apontam repetidamente, é que a verdadeira humildade efetivamente impede a pessoa de cair na vanglória.

Um segundo aspecto profundo da oração de São Serafim é o fato de que nenhum favor da Manifestação Divina é pedido a Deus. Nem, é claro, como mencionado anteriormente, houve qualquer coisa alheia ao seu arrependimento, pensamento ou imagem enquanto ele orava. Isso, é claro, seria compatível com o arrependimento de São Serafim, já que sua articulação indica claramente que ele mesmo nunca foi enganado a ponto de pensar que tinha alcançado um nível de dignidade onde, apesar de seus pecados, ele poderia ousadamente pedir por Coisas sagradas. Se ele tivesse pensado sobre si mesmo dessa maneira, ele teria facilmente caído em vaidade. A oração de São Serafim visava exatamente o oposto, o que de fato o tornava digno da Visão Divina. São Máximo, o Confessor na Primeira Centúria do Amor, expressou assim: "Aquele que ainda não alcançou o conhecimento de Deus inspirado pelo amor, pensa alto naquilo que faz de acordo com Deus. Mas um homem que o recebeu repete em seu coração as palavras de nosso antepassado Abraão, quando Deus lhe apareceu: "Eu sou terra e cinzas" (Gn.18: 27)."

Com relação à visão de São Serafim, deve-se notar que o estado espiritual mais elevado, alcançado pelo caminho indicado pelos ascetas na Filocalia, se desenvolve no coração de uma pessoa fora das esferas mental e sensual e, conseqüentemente, fora da esfera da imaginação mental. Abba Evagrios em seus Textos sobre Vida Ativa - Para Anatolios, diz:
A mente não verá o lugar de Deus em si, a menos que se eleve acima de todos os pensamentos de coisas materiais e criadas; e não pode se elevar acima deles a menos que se torne livre das paixões que a ligam a objetos sensoriais, incitando pensamentos sobre eles. Livrará-se das paixões por meio de virtudes e de simples pensamentos por meio da contemplação espiritual; mas descartar-se-á mesmo isso quando aparecer a luz que, durante a oração, marca o lugar de Deus. [16]
A experiência da união mística do homem com Deus é, portanto, muito difícil de transmitir em termos humanos. Acontece, no entanto, que visões são permitidas a pessoas que cultivaram a ausência de paixão em si mesmas, mas na maioria desses casos essas visões são momentâneas, e elas atingem o ser interior da pessoa - elas vêm como se de dentro. São Isaac, o Sírio, elabora: "Se você é puro, então o céu está dentro de você; e em si mesmo você verá anjos, e com eles e neles, o Senhor dos Anjos." [17] Os Padres da Igreja Ortodoxa ensinam que todas essas experiências estão além de qualquer expectativa do homem humilde, pois o asceta em sua humildade não se sente digno delas.

Recapitulando a experiência de São Serafim, pode-se ver que ela possui as seguintes características:

1. Simplicidade;
2. Arrependimento;
3. Humildade;
4. Uma visão inesperada além das categorias sensoriais e racionais;
5. Êxtase espiritual ou arrebatamento.

Enfatizando o último item, São Isaac, citado acima, explica: "... a contemplação de uma visão hiperconsciente, concedida pelo Poder Divino, é recebida pela alma - dentro de si, imaterial, repentina e inesperadamente; é descoberta e revelada por dentro, porque, nas palavras de Cristo, "o reino dos céus está dentro de você' - Essa contemplação dentro da imagem, impressa na mente oculta (o intelecto superior) se revela sem qualquer pensamento sobre ela". [18]

Dos pontos acima extraídos de uma comparação das duas visões e do que Francisco e São Serafim experimentaram nestas, há uma nítida diferença no misticismo dos dois. O misticismo de São Serafim aparece como um êxtase puramente espiritual, como algo concedido ao asceta, como um presente de uma visão espiritual, como uma iluminação de seu intelecto superior, [19] enquanto a experiência espiritual de Francisco é um misticismo induzido por sua vontade, e obviamente obscurecido por sua própria imaginação e sensualidade.

Outra diferença distintiva entre os dois é a relação diferente expressa por eles em relação a Cristo. Em contraste com São Serafim, que experimentou o poder espiritual de Cristo em seu coração e aceitou a Cristo dentro de si, Francisco em seu imaginar, recebeu sua impressão principalmente da vida terrena de Cristo. Francisco estava absorto no aspecto externo do sofrimento de Cristo. Essa impressão veio sobre ele no Monte La Verna como se de fora.

Concomitante ao seu desejo muito forte de experimentar o sofrimento de Cristo, foi sua compulsão para imitar outros aspectos da vida de Jesus. Ele não apenas enviou seus próprios "apóstolos" para várias regiões da Terra para pregar, dando-lhes virtualmente as mesmas instruções que o Salvador deu a Seus apóstolos, [20] mas ele mesmo produziu diante de seus discípulos pouco antes de sua morte algo similar a Grande Mística Ceia. "Ele lembrou", diz seu biógrafo, "aquela refeição santificada que o Senhor celebrou com seus discípulos pela última vez". [21] Esta presunção não pode ser desculpada com base em sua vida incomum, independentemente de quão severo foi seu ascetismo ou quantas coisas virtuosas ele fez. É uma indicação primordial, do ponto de vista Ortodoxo, da gravidade de sua queda na condição de engano espiritual.

Antes de prosseguir, é imperativo esboçar brevemente a condição chamada prelest. Em termos gerais, de acordo com o metropolita Antony Khrapovitsky, prelest (ou plani) geralmente resulta quando o diabo engana a pessoa sugerindo o pensamento de que lhe foram concedidas visões (ou outros dons da Graça). Então o maligno constantemente cega sua consciência, convencendo-o de sua aparente santidade e promete-lhe o poder de operar atos maravilhosos. O maligno conduz tal asceta ao cume de uma montanha ou ao teto de uma igreja, e mostra-lhe uma carruagem de fogo, ou alguma outra coisa maravilhosa, que o levará ao céu. O enganado então entra nela (isto é, ele aceita a ilusão) e cai de cabeça no abismo, e é precipitado até a morte sem arrependimento. [22]

O que fica claro a partir de uma análise tão breve de prelest é que o sujeito que passa pela experiência normalmente sucumbiu a alguma forma de orgulho, geralmente de vanglória, daí a presunção de que ele finalmente alcançou um estado de onde ele se engana ao pensar que não mais deve estar atento quanto à possibilidade de cair no pecado, ou até mesmo em blasfêmia contra Deus. É, evidentemente, o pecado luciferiano e, por definição, o mais difícil de enfrentar, daí a importância e ênfase constante na escrita religiosa, no que diz respeito à obediência ascética e à humildade até o fim da vida terrena.

Já foi mostrado acima que a visão de Francisco contém fortes marcas de engano espiritual. O que resta, portanto, é uma caracterização do trabalho e dos atos de Francisco que permanecerão como a principal caracterização de seu misticismo. Apresentando alguns incidentes da vida de Francisco, e depois, contrastando-os com os incidentes da vida de São Serafim de Sarov, será possível tirar uma conclusão final a respeito do misticismo desses dois ascetas. Deve-se afirmar aqui que os exemplos de incidentes escolhidos são geralmente característicos dos sujeitos.

Está registrado no Fioretti que Francis uma vez não cumpriu as regras de um jejum estrito por causa de uma doença. Isso oprimiu a consciência do asceta a tal ponto que decidiu se arrepender e se punir. A crônica afirma:

... ele ordenou que as pessoas fossem reunidas nas ruas de Assis para um sermão. Quando ele terminou o sermão, ele disse ao povo que ninguém deveria sair até que ele retornasse; ele mesmo entrou na catedral com muitos irmãos e com Pedro de Catani e disse a Pedro para fazer o que ele lhe dissesse para fazer de acordo com seu voto de obediência e sem objeção. Este último respondeu que não podia e não deveria desejar ou fazer nada contra a vontade [de Francisco] nem para ele nem para si mesmo. Então Francisco tirou o manto externo e ordenou a Pedro que colocasse uma corda no seu pescoço e o levasse seminu até as pessoas, até o lugar onde ele havia pregado. Francisco ordenou a outro irmão que enchesse uma taça com cinzas e, tendo subido à eminência de onde havia pregado, derramasse as cinzas sobre sua cabeça. Este, no entanto, não lhe obedeceu, já que ele estava tão angustiado com essa ordem por causa de sua compaixão e devoção a Francisco. Mas o irmão Pedro segurou a corda nas mãos e começou a arrastar Francis para trás de si, como este havia ordenado. Ele mesmo chorou amargamente durante isso, e os outros irmãos foram banhados em lágrimas de pena e pesar. Quando Francisco tinha sido assim conduzido seminu diante do povo para o lugar de onde ele havia pregado, ele disse: 'Você e todos os que deixaram o mundo segundo o meu exemplo e seguem o caminho da vida dos irmãos, consideram-me um homem santo mas diante do Senhor e de você me arrependo porque durante esta minha doença comi carne e gordura de carne'. [23]

É claro que o pecado de Francisco não foi tão grande e dificilmente merecia a forma dramática de penitência em que Francisco revestiu seu arrependimento, mas essa era uma característica geral da piedade de Francisco. Ele se esforçou para idealizar tudo o que um asceta era obrigado a fazer; ele se esforçou também em idealizar o próprio ato ascético de arrependimento.

A idealização de Francisco dos atos cristãos de ascetismo também pode ser notada em sua relação com o ato de esmola. Isso pode ser visto no modo como Francisco reagia aos mendigos. Aos olhos de Francisco, os mendigos eram criaturas de estatura muito alta, em comparação com outras pessoas. Na visão desse místico católico romano, um mendigo era portador de uma missão sagrada, sendo uma imagem dos pobres, vagando por Cristo. Portanto, em suas instruções, Francisco obriga seus discípulos a pedir esmolas. [24]

Finalmente, o entusiasmo idealizado de Francisco foi especialmente revelado em suas lembranças do sofrimento terreno de Cristo. Na biografia de Francisco, diz que "estando embriagado de amor e compaixão por Cristo, o abençoado Francisco apanhou um pedaço de madeira do chão e, levando-o na mão esquerda, esfregou a mão direita sobre ele como se fosse um arco sobre um violino, enquanto cantava uma canção francesa sobre o Senhor Jesus Cristo. Este canto terminou com lágrimas de compaixão pelo sofrimento de Cristo e, com sinceros suspiros, Francisco, entrando em transe, olhou para o céu ... " [25]

Não pode haver dúvida, como até mesmo eufemisticamente biógrafos de Francisco atestam, que este importante fundador da Ordem Franciscana era demonstrativo em seus atos de arrependimento, revelando visualmente a ausência de um grau crítico de vigilância necessária na vida ascética para a aquisição da verdadeira humildade. De fato, sempre que as indicações da humildade de Francisco são expostas nos Fioretti, elas nunca faltam de uma presunção comprometedora quer quando Deus supostamente lhe fala, por exemplo, pela boca do irmão Leão, [26] ou quando ele presume que ele tenha sido escolhido por Deus "para ver o bem e o mal em toda parte", quando testado pelo irmão Masseo por sua humildade. [27] É verdade que Francisco descreve sua vileza e miséria, mas falta em tudo isso algum remorso ou contrição que indicasse que ele se considerava indigno diante de Deus. Embora ele freqüentemente falasse da necessidade de humildade, e desse aos irmãos franciscanos instruções úteis a esse respeito, ele mesmo, ao longo de toda a sua vida, experimentou isso apenas em situações isoladas, ainda que muito fortes; veio de forma não totalmente livre, como indicado acima, do exagero e do melodrama. Nada pode ser tão revelador neste assunto, no entanto, como suas próprias declarações aos irmãos. Em certa ocasião, ele disse aos seus discípulos: "Não reconheço em mim nenhuma transgressão que eu não pudesse expiar por meio de confissão e penitência. Pois o Senhor, em Sua misericórdia, concedeu-me o dom de aprender claramente em oração o que eu tenho satisfeito ou desagradado a ele". [28] Estas palavras, claro, estão longe de ser genuinamente humildes. Elas sugerem, antes, o discurso daquele homem virtuoso que estava satisfeito consigo mesmo (o fariseu) que, na parábola, estava no templo, enquanto o publicano se prostrava num canto, implorando a Deus com palavras de verdadeira humildade: "Deus tem piedade de mim pecador ".

Quando os atos de "humildade" de Francisco são comparados com a luta de mil dias de São Serafim na rocha, um grande contraste resulta. Lá, enquanto em batalha com suas paixões, São Serafim clamou as próprias palavras do publicano repetidamente: "Deus tem piedade de mim pecador". Nesse feito, não há exaltação nem exibição de ostentação. São Serafim está simplesmente recorrendo aos únicos meios possíveis que lhe são abertos para o perdão depois, a. do reconhecimento de suas paixões; b. de uma contrição brotando de seu remorso sobre sua condição espiritual; c. da necessidade de superar as paixões; d. de sua consciência de sua incapacidade e indignidade de realizar isso sozinho e; e. de seu longo e árduo apelo a Deus por misericórdia.


Mesmo durante seus últimos anos, quando São Serafim experimentou muitas percepções de força espiritual extraordinária, bem como comunhão direta com Deus, ele nunca sucumbiu à auto-satisfação, ou auto-adulação. Isto é bastante aparente em sua agora famosa conversa com N. Motovilov, [30] bem como durante sua conversa com o monge João quando ele manifestou, através da Graça de Deus, uma luminosidade incomum. De fato, São Serafim foi incapaz de expressar o estado da luminosidade em suas próprias palavras. Além disso, é bem conhecido que São Serafim era portador de um dom extraordinário de clarividência, bem como de visão profética. O coração das pessoas que chegavam até ele era um livro aberto para ele, mas nem uma vez ele compromete os dons extraordinários que recebeu com qualquer demonstração de auto-importância ou presunção. Suas declarações e atos (em contraste - com os de Francisco de Assis - a consciência de Francisco era que ele havia expiado seus pecados e estava agradando a Deus) estão em consonância com o que os ascetas detalham na Filocalia, sobre o homem humilde. Nas palavras de São Isaac, o Sírio:

Os verdadeiramente justos sempre pensam em si mesmos que são indignos de Deus. E que eles são verdadeiramente justos é reconhecido pelo fato de que eles se reconhecem como miseráveis e indignos da preocupação de Deus e confessam isto secretamente e abertamente e são trazidos a isto pelo Espírito Santo para que eles não permaneçam sem a solicitude e trabalho que é apropriado para eles enquanto estão nesta vida. [31]

Os impulsos emocionais de Francisco em direção à humildade, semelhantes ao incidente mencionado acima na praça de Assis, eram em geral manifestações raras. Geralmente sua humildade não aparecia como um sentimento, mas como um reconhecimento racional de seus poderes fracos em comparação com o Poder Divino de Cristo. Isto foi claramente afirmado em sua visão sobre o Monte La Verna quando "duas grandes luzes", como diz a crônica, "apareceram diante de Francisco: uma em que ele reconheceu o Criador, e a outra na qual ele se reconheceu. E naquele momento, vendo isto, ele orou: Senhor! O que eu sou diante de Ti? Que significado eu tenho, um insignificante verme da terra, Seu insignificante servo, em comparação com Sua força?" Por seu próprio reconhecimento, Francisco, naquele momento, estava submerso na contemplação, na qual ele via a profundidade infinita da Divina Misericórdia e o abismo de seu próprio nada.

Desnecessário ressaltar, é a primeira declaração das "duas grandes luzes", que manifestamente mostra o caráter cognitivo de sua posterior pergunta dirigida a Deus, que, em essência, é um processo muito ousado de comparação. Ali aparece, portanto, uma severa contradição na passagem que não pode ser comparada em nenhum sentido aos relatos lúcidos patrísticos ou escriturísticos sobre a humildade.

A humildade de São Serafim, como notado, não era tanto uma consciência racional de seus pecados, mas uma emoção profundamente sentida. Em seus ensinamentos, orais e escritos, em nenhum lugar diz que ele se comparou com a Divindade, tirando conclusões disso em relação ao seu status espiritual. Ele constantemente se entregou apenas a um único impulso emocional: o sentimento de sua própria indignidade (imperfeição) que resultou em arrependimento sincero. Teófano o Recluso, um asceta russo da Igreja Ortodoxa, expressou o sentido disso assim: "O Senhor aceita somente o homem que se aproxima dele com um sentimento de pecado. Portanto, ele rejeita qualquer um que se aproximar Dele com um sentimento de retidão." [32]

Se, como resultado do acima exposto, alguém chegasse a uma conclusão sobre a humildade de Francisco com base nas prescrições ascéticas para os monásticos em relação à humildade na Filocalia, então o místico latino não aparece como o ideal da humildade cristã. Uma dose substancial de sua própria retidão foi adicionada à sua consciência de que ele estava agradando a Deus. Algo similar, de uma análise ortodoxa do misticismo de Francisco, pode ser aplicado a partir da história de Lev Tolstói, o padre Serge: "Ele [o asceta Serge] pensou", diz Tolstói, "sobre como ele era uma lâmpada acesa, e quanto mais ele sentia isso, mais ele sentia um enfraquecimento, um apagamento da luz espiritual da verdade queimando nele". [33]

Lembrando a advertência de São Nilo, mencionada anteriormente, esta triste avaliação dos resultados espirituais do ascetismo de Francisco é corolário, ou mais precisamente, é um prelest anterior ao severo engano que ele sofreu no Monte La Verna, onde ele anunciou que tinha tornar-se um grande luminar.

Assim, a consciência de Francisco de que ele também era "uma luz", que ele tinha o dom de saber agradar a Deus, encontra o severo pronunciamento do pai da vida ascética, Antônio o Grande, que afirma que se não há extrema humildade em uma pessoa, humildade de todo o coração, alma e corpo, então ele não herdará o Reino de Deus. [34] A afirmação de Santo Antônio reconhece que somente a profunda humildade pode erradicar o poder mental perverso que leva à auto-afirmação e à auto-satisfação. Apenas essa humildade, penetrando na própria carne e no sangue do asceta, pode, de acordo com o sentido do ensinamento dos ascetas cristãos ortodoxos, salvá-lo das associações obsessivas do pensamento humano orgulhoso.

Humildade é o poder essencial que pode conter a mente inferior com suas paixões mentais, [35] criando na alma de um homem o solo para o desenvolvimento desimpedido da mente superior, [36] e daí, através da Graça de Deus, para o mais alto nível da vida ascética - o conhecimento de Deus.

"O homem sábio em humildade", diz São Isaac, o Sírio, "é a fonte dos mistérios da nova era". [37]

CONCLUSÂO

A principal causa que ofuscou o caminho da vida ascética de Francisco pode ser atribuída à condição fundamental da Igreja Católica Romana, na qual Francisco foi nutrido e treinado. Nas condições daquele tempo e nas condições da própria Igreja Romana, a verdadeira humildade não poderia ser formada na consciência do povo. O "Vigário de Cristo na Terra", com suas pretensões não apenas à autoridade espiritual, mas também à temporal, era um representante do orgulho espiritual. Orgulho espiritual maior do que a convicção da própria infalibilidade não pode ser imaginado. [38] Esta falha básica não poderia senão afetar a espiritualidade de Francisco, bem como a espiritualidade dos católicos romanos em geral. Assim como o papa, Francisco sofria de orgulho espiritual. Isto é muito evidente em seu discurso de despedida aos franciscanos quando ele disse: "Agora Deus está me chamando, e eu perdoo todos os meus irmãos, tanto os presentes como os ausentes, suas ofensas e seus erros e perdoo seus pecados tanto quanto é em meu poder". [39]

Estas palavras revelam que em seu leito de morte, Francisco sentiu-se poderoso o suficiente para perdoar os pecados como o papa. Sabe-se que a remissão de pecados fora do Sacramento da Penitência e da Eucaristia na Igreja Romana era uma prerrogativa do poder papal. [40] A pretensão de Francisco desta prerrogativa só poderia ter sido com a certeza de sua própria santidade.

Em contraste, os ascetas da Santa Ortodoxia nunca se permitiram apropriar-se do direito de remissão dos pecados. Todos eles morreram na consciência de sua própria imperfeição e com a esperança de que Deus em Sua Misericórdia os perdoaria de seus pecados. Basta lembrar as palavras do grande asceta tebaidiano do século V São Sisoe em apoio a isso. Cercado no momento de seu iminente repouso, por seus irmãos, ele parecia estar conversando com pessoas invisíveis, como relata a crônica, e os irmãos perguntaram: "Pai, diga-nos com quem você está conduzindo uma conversa?" São Sisoe respondeu: "Eles são anjos que vieram me levar, mas eu estou orando para que me deixem por um curto período de tempo para que eu possa me arrepender." Quando os irmãos, sabendo que Sisoe era perfeito em virtude, responderam: "Você não precisa de arrependimento, pai", o santo respondeu: "Verdadeiramente, não sei nem mesmo se já comecei a me arrepender". [41]

Finalmente, como evidenciado nos parágrafos anteriores, o misticismo de Francisco de Assis revela que esse fundador altamente considerado da Ordem Franciscana se moveu progressivamente em sua vida em uma condição crescente de prelest desde o momento em que ouviu o mandamento de renovar a Igreja Católica Romana, através da visão extraordinária do Cristo Crucificado no Monte La Verna e até a hora de sua morte. Por mais surpreendente que possa parecer para alguns, ele carrega muitas características que são protótipos do Anticristo, que também será visto como casto, virtuoso, altamente moral, cheio de amor e compaixão, e que será considerado santo (mesmo como divindade) por pessoas que permitiram que o romantismo carnal substituísse a Sagrada Tradição da Santa Igreja.

O triste fato é que a obtenção de um verdadeiro relacionamento espiritual com Cristo nunca foi uma possibilidade para Francisco, pois estando fora da Igreja de Cristo, era impossível que ele pudesse ter recebido a Graça Divina ou qualquer um dos dons do Espírito Santo. Seus dons eram de outro espírito.


Notas

1. Guerier, V., Francis, pp 312-313.

2. Luisa Lato, de dezessete anos, geralmente gozando de boa saúde, caia em uma condição de êxtase toda sexta-feira; o sangue fluía do seu lado esquerdo, e nas suas mãos e pés havia feridas correspondendo exatamente à posição das feridas no corpo do Salvador crucificado, na forma das feridas representadas nos crucifixos.

3. Guerier, pp 314-315.

4. Ibid., P 308.

5. Dumas, G., "La Stigmatisation chez les mystiques cretiens", Revue des deux Mondes, 1 de maio de 1907; em Guerier, pp 315-317.

6. Guerier, p 315.

7. Segundo os ortodoxos, a cruz não era uma necessidade imposta a Deus, nem o sangue do Filho Unigênito era uma fonte de satisfação para Deus Pai, como ensinam os escolásticos latinos. A questão de "satisfazer a Divina Justiça de Deus" é uma frase que não pode ser encontrada nas Escrituras, nem nos escritos dos Pais da Igreja, mas foi uma invenção de Anselmo de Canterbury (ca. 1100) que foi desenvolvida por Tomás de Aquino para tornar-se a doutrina soteriológica oficial no Ocidente latino. (compare isso com Athanasius, o Grande, A Encarnação da Palavra de Deus).

8. Será evidente, pela comparação neste artigo, que o "misticismo" na Igreja Ortodoxa está além de todas as categorias sensoriais, bem como todas as categorias racionais. O normativo para isso na vida ascética é desapego, ou desapego de todas as necessidades, sentimentos e até, em última instância, pensamentos positivos ou negativos.

9. Veja a vida de Santo Isaaky o Recluso das Cavernas de Kiev. Synaxis Press, Chilliwack, B.C., Canada, 1976, p 21.

10. Hyperconsciousness, p 292-293, 2nd ed.

11. Kadloubovsky, E. and Palmer, G., Early Fathers from the Philokalia, "St Isaac of Syria, Directions on Spiritual Training," Faber and Faber, London, 1959. (hereafter referred to as Early Fathers).

12. Early Fathers, p 140, paragraphs 114, 115, 116.

13. Saint Seraphim of Sarov, pp 61-62 (Rus. ed.), cited in the notes translated from the Russian, see above.

14. Philokalia, Vol 3, p 322, para 103 (Greek ed.).

15. Early Fathers, p 297, 47.

16. Op. cit., p 105, para 71.

17. Works of St. Isaac the Syrian, 3rd ed., Sermon 8, p 37.

18. Filocalia, Vol. 2, p. 467, parágrafo 49. Aqui devemos notar que a citada máxima de São Isaac, o Sírio - que uma visão espiritual é inesperada - não deve ser entendida como uma lei absoluta para todas as instâncias de tais visões. Por meio de uma exceção ao dito citado, mas como fenômenos completamente excepcionais, certos ascetas santos tiveram tais visões incomuns que foram antecipadas; mas eles tinham um pressentimento como uma profecia inconsciente, como uma profecia sobre o que inevitavelmente deve acontecer. Tal instância excepcional, por assim dizer, uma profecia de um milagre que iria acontecer, ocorreu com São Serge de Radonej no final de sua vida. Esse exemplo é descrito em detalhes na obra russa Hyperconsciousness, pág. 377. 

19. Ver nota de rodapé 13, Ch 1, pp 13-22.

20. "Vá em par por várias regiões da terra, pregando paz às pessoas e arrependimento pela remissão dos pecados." Guerier, p 27 (cf. Mc 6: 7-12)

21. Guerier, p 115.

22. Khrapovitsky, Antony, Confession: A Series of Lectures on the Mystery of Repentance. Holy Trinity Monastery Press, Jordanville, N.Y., 1975.

23. Guerier, p 127 (our emphasis).

24. Op. cit., p 129.

25. Op. cit., pp 103-104.

26. Brown, Raphael, The Little Flowers of St. Francis. Image Books, Garden City, N.Y., 1958, p 60.

27. Ibid., p 63.

28. Guerier, p 124.

29. A palavra paixões, como usada aqui, denota todos os impulsos contranaturais do homem (orgulho, vaidade, inveja, ódio, cobiça, ciúme, etc.) que resultaram da desobediência e queda dos antepassados.

30. Motovilov, N.A., A Conversation of St. Seraphim. St Nectarios Press, Seattle, 1973 (reprint).

31. Works of St. Isaac the Syrian, 3rd ed., Sermon 36, p 155.

32. Collected Letters of Bishop Theophan, 2nd part, Letter 261, p 103.

33. Posthumus Artistic Works of L. Tolstoy, Vol 2, p 30.

34. Philokalia, Vol 1, p 33.

35. Hyperconsciousness, On Mental Passions, 2nd ed., pp 65-74.

36. See above, On the Lower and Higher Minds, pp 6-23.

37. Works of St. Isaac the Syrian, p 37.

38. Compare com Dostoevsky, O Grande Inquisidor nos Irmãos Karamazov.

39. Sabbatier, p 352.

40. No século XV, Lutero protestou contra essa prerrogativa expressa na prática da concessão de indulgências.

41. Lives of Saints, Book 11, pp 119-120.
























http://orthodoxinfo.com/praxis/francis_sarov.aspx

quarta-feira, 25 de abril de 2018

Imagens Mentais na Devoção Privada Ortodoxa (Pe. Sergei Sveshnikov)

Assim como pode haver uma voz adequadamente treinada, pode haver uma alma adequadamente treinada.
—Fr. Alexander Yelchaninov

Esta apresentação é baseada na pesquisa que eu realizei para um livro intitulado Imagine That…: Mental Imagery in Catholic Roman e Eastern Orthodox Private Devotion, publicado em brochura em fevereiro de 2009 com a bênção de Sua Eminência, Arcebispo Kyrill de São Francisco. O trabalho é uma comparação analítica das atitudes católicas romanas e ortodoxas em relação a imagens mentais. Nesta apresentação, gostaria de me concentrar especificamente na tradição ortodoxa da oração.

* * * 
A Ortodoxia exibe um grande grau de uniformidade ao seguir um caminho de quietude de pensamento e silêncio mental para alcançar a oração do coração na devoção privada. São João Clímaco escreve em A Escada (28:19) que “o começo da oração consiste em afugentar pensamentos invasores ...” (285) A mente deve ser libertada de todos os pensamentos e imagens e focada nas palavras da oração. Além disso, no capítulo sobre a oração (28), São João instrui a não aceitar quaisquer imagens sensuais durante a oração, para que a mente não caia em insanidade (42; 289); e não contemplar até as coisas necessárias e espirituais (59; 292).

Ao contrário do catolicismo romano, a tradição ortodoxa não encoraja o uso de imagens mentais. De fato, quase parece proibir a imaginação sensorial durante a oração. Nas palavras de um dos anciãos ortodoxos contemporâneos, o abade Nikon (Vorobyev) (1894-1963), “aquilo que com firmeza, de forma decisiva, com ameaças e com súplicas é proibido pelos padres orientais — os ascetas ocidentais se esforçam para adquirir através de todos os esforços e meios”(424).

Um dos melhores resumos da tradição ortodoxa patrística da oração está contido nas obras do bispo Inácio (Bryanchaninov) (1807-1867), um estudioso do século XIX, teólogo e santo. Tendo estudado as obras de santos orientais e ocidentais em suas línguas originais, Santo Inácio também era conhecido como um homem de oração, e seus escritos respiram não apenas do vigor acadêmico, mas também da experiência prática pessoal.

Santo Inácio certamente reconhece que existem visões de Deus que são mostradas àqueles “que são renovados pelo Espírito Santo, que removem o velho Adão e revestem-se do Novo” (Works 2004, 1:86). “Assim”, escreve ele, “o santo apóstolo Pedro, durante a oração, viu uma folha notável descendo do céu. Assim, um anjo apareceu a Cornélio, o centurião, durante a oração. Assim, quando o apóstolo Paulo estava orando no templo de Jerusalém, o Senhor apareceu a ele e ordenou-lhe que partisse imediatamente de Jerusalém ... ”(1:86) Mas Santo Inácio (Bryanchaninov) categoricamente proíbe procurar ou esperar tais “estados sobrenaturais”:
A mente que ora deve estar em um estado totalmente verdadeiro. Imaginação, por mais atraente e bem aparentada que seja, sendo a criação intencional da própria mente, traz a última para fora do estado da verdade Divina, e conduz a mente a um estado de auto-elogio e engano, e é por isso que é rejeitada em oração.
A mente durante a oração deve ser cuidadosamente mantida sem qualquer imagem, rejeitando todas as imagens, que são desenhadas na habilidade da imaginação ... Imagens, se a mente permitir durante a oração, se tornarão uma cortina impenetrável, um muro entre a mente e Deus. (1:75)
Santo Isaac da Síria (700 d.C.), um bispo e teólogo, escrevendo séculos antes, transmite uma advertência similar àqueles que desejam visões, dizendo que tal pessoa é “tentada em sua mente pelo demônio que zomba dele” (174).

Endereçando especificamente as visões dos devotos do Senhor e dos santos, Santo Inácio ressalta que a imaginação humana pode levar a experiências sensoriais falsas, falsamente reconhecidas pela pessoa como provenientes de fora de sua mente:

Proteja-se da imaginação, que pode fazer você imaginar que vê o Senhor Jesus Cristo, que você o toca e abraça. Este é um jogo vazio de auto-opinião e orgulho! Isso é auto-elogio mortal! (1:33)
Se durante a sua oração aparecer aos seus sentidos ou espontaneamente em sua mente uma imagem de Cristo, ou de um anjo, ou de algum santo - em outras palavras, qualquer imagem - não aceite esta aparição como verdadeira de qualquer forma, não preste atenção a ela e não entre em uma conversa com ela. Caso contrário, você certamente sofrerá engano e danos mais sérios a sua alma, o que aconteceu com muitos. (1: 75-6; veja também Philokalia 5: 233)
Imaginar o Senhor e seus santos dá à mente como se a materialidade, conduz à opinião falsa e orgulhosa do eu - leva a alma a um estado falso, um estado de auto-elogio enganoso. (1: 76-7)
Em outras palavras, de acordo com Santo Inácio (Bryanchaninov), propositalmente criar imagens em nossa mente, e até mesmo aceitar aquelas que aparecem espontaneamente, não é apenas perigoso espiritualmente, mas também pode levar ao dano da alma, ou problemas psicológicos, “que ", diz ele," aconteceu a muitos.” Indubitavelmente, aqui, Santo Inácio refere-se à espiritualidade de alguns santos ocidentais: “Não brinque com a sua salvação. Tome a leitura do Novo Testamento e dos Santos Padres da Igreja Ortodoxa, mas não de Teresa e outros loucos ocidentais...” (25) Mas casos de transtornos mentais facilitados por orações ou estados mentais impróprios são também conhecidos em várias literaturas ortodoxas, especialmente nos paterikons.

São Simeão, o Novo Teólogo (949-1022), escrevendo no final do século X e início do século XI, adverte contra o método de oração mais tarde usado por Santo Inácio de Loyola e outros santos ocidentais como potencialmente levando a problemas mentais:

As características específicas deste... tipo de oração são tais: quando alguém, orando e erguendo as mãos, olhos e mente para o céu, imagina em sua mente os conselhos divinos, a bondade celestial, as fileiras dos anjos e as moradas dos santos; em outras palavras, tudo o que ele ouviu das Escrituras Divinas, ele reúne em sua mente ... Mas durante este tipo de oração, pouco a pouco, ele começa a tornar-se orgulhoso em seu coração, não entendendo isto; parece-lhe que o que ele está fazendo é da graça de Deus [dada] para o seu conforto, e ele pede a Deus para deixá-lo estar sempre neste estado. Mas este é um sinal de grande decepção… Tal pessoa, [se praticar este tipo de oração em reclusão] dificilmente será capaz de permanecer sã. Mas, mesmo que aconteça que ele não enlouqueça, ele, no entanto, não será capaz de adquirir virtudes ... (Filocalia 5: 463-4)
Comentando sobre esta passagem, Santo Inácio (Bryanchaninov) chama a oração imaginativa de “a mais perigosa”:

O mais perigoso dos tipos incorretos de oração consiste na pessoa que cria figuras imaginárias, aparentemente tomando-as emprestadas da Sagrada Escritura, mas na realidade - de seu próprio estado de queda e orgulho; e com essas figuras ele adula sua própria opinião, sua queda, sua pecaminosidade, engana a si mesmo. Obviamente, tudo o que é criado pela imaginação de nossa natureza caída, não existe na realidade, é pretenso e falso... Aquele que imagina, com o primeiro passo no caminho da oração deixa a área da verdade e entra na área de engano, paixões, pecado, Satanás. (Obras 1: 160-1)

O ensinamento de Santo Inácio (Bryanchaninov) continua a tradição de oração transmitida pelos Padres da Igreja Oriental. Grande parte dessa tradição foi compilada em uma grande obra intitulada Philokalia, que contém os escritos dos padres orientais do quarto ao décimo quinto século. Este trabalho, um marco da espiritualidade ortodoxa e uma autoridade ortodoxa inquestionável sobre a oração, proíbe o uso de imagens mentais em termos inequívocos. São Macário do Egito (300-391 dC), por exemplo, escreve que Satanás aparece para aqueles que buscam visões como um anjo de luz para nutrir neles uma opinião orgulhosa de si mesmos como visionários do divino, e por esse orgulho ele lidera e os conduz a destruição (ver 630). São Nilo do Sinai (falecido c. 430), discípulo de São João Crisóstomo, ensina que a mente deve ser “surda e muda durante a oração” (Filocalia 2: 208). “Quando você ora”, escreve ele, “não imagine Deus de forma alguma e não permita que sua mente forme qualquer imagem…” (2: 215) São Nilo também alerta para nem mesmo desejar ver quaisquer imagens ou visões: “Não deseje ver nenhum rosto ou imagem durante a oração. Não deseje ver anjos, ou poderes, ou Cristo, para não se tornar louco, tendo aceitado um lobo como pastor e adorado os inimigos - demônios ”(2: 221).

Da mesma forma, outro dos Padres do Oriente, São João Clímaco (525-606 d.C.) afirma que pelo menos algumas visões e revelações podem ser criadas pelo demônio do orgulho que as usa para plantar e nutrir o orgulho nos devotos:
Quando o demônio do orgulho se estabelece em seus servos, então, aparecendo para eles em um sonho ou em uma visão numa imagem de um anjo de luz ou um mártir, dá a eles revelações de mistérios, e como se um dom [espiritual], para que estes infelizes, tendo sucumbido à tentação, percam completamente a sua mente. (191)
Um Padre do Sinai, São Gregório (c. 1260-1346) mostra uma continuidade ininterrupta da tradição patrística da oração e continua a advertir contra as imagens mentais durante a oração:
Nunca aceite se você vir alguma coisa física ou espiritual, dentro de você ou de fora, mesmo que seja uma imagem de Cristo, ou um anjo, ou algum santo, ou uma luz lhe apareça e se mostre em sua mente. A mente em si tem um poder natural de imaginação e pode facilmente criar uma imagem fantasma de uma coisa que ela deseja ... Da mesma forma, uma lembrança de coisas boas ou ruins geralmente mostra suas imagens na mente e leva a mente à imaginação... (Philokalia 5: 224)

Em outro lugar, São Gregório repete o mesmo aviso ainda mais severamente:
Se quando estiver fazendo sua tarefa [de oração], você ver luz ou fogo fora ou dentro (de você), ou um rosto - de Cristo, por exemplo, ou um anjo, ou de outra pessoa - não o aceite, para não sofrer dano. E você mesmo não faça imagens; e aquelas que vêm por conta própria - não as aceitem e não permitam que sua mente as guardem. (Philokalia 5: 233)
Torna-se claro, portanto, por que a Tradição Oriental adverte tão severamente contra aceitar quaisquer imagens, mesmo aquelas aparentemente vindas de Deus. Em vez disso, enfatiza-se a humildade e o arrependimento, que são vistos como a base e o objetivo da oração. Santo Inácio (Bryanchaninov), resumindo essa ênfase para os novatos, escreveu:
No que diz respeito a vozes e aparições, é preciso ter uma cautela ainda maior: aqui, o engano dos demônios está mais próximo e mais perigoso... É por isso que os santos padres ensinaram àqueles que estão iniciando a oração a não confiar em vozes e aparições - mas a rejeitá-las e não aceitá-las, deixando isso para o julgamento e a vontade de Deus, mas para si mesmos considerando a humildade mais útil do que qualquer voz ou aparição. (Works 2004, 5: 306)
A oração mental, segundo os autores ortodoxos, é alcançada “quando o nous, puro de quaisquer pensamentos e idéias, ora a Deus sem distração” (Hierotheos 145). Esse tipo de oração é alcançada acalmando a mente, em vez de despertá-la com êxtase, ignorando as aparições, em vez de aceitá-las como um sinal de perfeição pessoal e impedindo deliberadamente a mente de criar pensamentos e imagens, em vez de usá-la para exercitar a imaginação. Assim, visões extáticas, que foram o cerne da devoção privada de alguns santos católicos romanos, são consideradas pela Tradição Oriental como uma tentação a ser evitada e combatida, ao invés de “favores” de Deus, como Teresa e Mechtilde as chamam. Do mesmo modo, desejar as imagens e visões ou criá-las com o uso da imaginação é visto como uma prática perigosa, que leva ao trauma neuro-psicológico, e não como uma forma aceitável de exercício espiritual.



* * *

No contexto da atitude proibitiva dos Padres Orientais em relação às imagens mentais, parece necessário mencionar brevemente a iconografia ortodoxa, elaborada e muito imaginativa. Os ícones da tradição ortodoxa são usados para oração, meditação e contemplação. No entanto, mesmo durante a oração diante dos ícones, que obviamente apresentam imagens visuais, o uso de imagens mentais, de acordo com a tradição ortodoxa, deve ser evitado. Santo Inácio (Bryanchaninov) escreve:
Os ícones sagrados são aceitos pela Santa Igreja com o propósito de despertar lembranças e sentimentos piedosos, mas de modo algum para despertar a imaginação. Em pé diante de um ícone do Salvador, permaneça como se estivesse diante do próprio Senhor Jesus Cristo, que está invisivelmente presente em todos os lugares e por Seu ícone está naquele lugar, onde está o ícone; diante de um ícone da Mãe de Deus, fique como se estivesse diante da Santíssima Virgem; mas mantenha sua mente sem imagens: há uma grande diferença entre estar na presença do Senhor ou estar diante do Senhor e imaginar o Senhor. (Works 2004, 1:76)
Os cânones específicos e regras estilísticas que guiam a escrita de um ícone ortodoxo, assim como o treinamento apropriado da mente, podem ser vistos como os meios para alcançar a meta formulada acima por Santo Inácio - a presença real diante do Senhor, em vez de expressar ou influenciar a imaginação visual.

* * *

Tendo brevemente descrito a posição ortodoxa sobre o uso de imagens mentais na oração, destaquei a rejeição e a não aceitação de visões e imaginação pelos Padres da Igreja. No entanto, existem algumas exceções e inconsistências notáveis. Por um lado, os autores patrísticos e ortodoxos estão certamente cientes de que alguns (talvez muitos) santos têm visões que vêm de Deus. Os relatos ortodoxos hagiográficos são abundantes em visões e revelações, incluindo alguns no que parece ser o estado de êxtase espiritual. Dos autores, cujos trabalhos foram examinados acima, São João Clímaco, por exemplo, relata uma aparição que ele teve durante a oração, na qual ele até teve um diálogo com o anjo:
Um anjo me iluminou quando tive sede de mais revelações. E novamente, estando no mesmo estado [de ver], perguntei-lhe: “Como era o Senhor antes de aceitar a imagem visível da natureza humana?” Mas o Príncipe das Hostes Celestes não podia me ensinar isso, e não tinha permissão. Então pedi a ele que me revelasse em que estado Ele está agora. "Em um que é específico para Ele", disse ele, "mas não nestes." Perguntei novamente: "Qual é o seu estado de estar à direita do Pai?" Ele respondeu: "É impossível aceitar o entendimento deste mistério através da audição.” Implorei a ele que me levasse a isso [ao entendimento], que eu o desejava. Mas ele disse: “Este tempo ainda não chegou, porque você ainda tem muito pouco do fogo da incorrupção em você.” No entanto, eu não sei e não posso dizer se eu estava no corpo ou fora do corpo quando isto estava acontecendo comigo. (274-5)
É interessante nesta passagem que São João continuou perguntando aos anjos sobre os assuntos que são difíceis de colocar dentro de um contexto soteriológico pessoal. De fato, pode ser questionável se saber em que estado Cristo se encontra à direita do Pai traria alguém para mais perto da salvação. É notável que o anjo se recusou a responder e elaborar sobre esses assuntos. No entanto, parece que São João não apenas teve uma visão, mas a aceitou, conversou com ela e desejou mais visões ou revelações.

São Gregório do Sinai ao recontar sobre seu encontro com um monge santo chamado Maximus Capsokalivite diz que este último não apenas teve visões, mas também discordou daqueles que as rejeitaram. Maximus se perguntou por que algumas pessoas rejeitaram visões apesar do próprio Deus as oferecer ao Seu povo através do Espírito Santo (Joel 2:28):
Assim, o profeta Isaías viu o Senhor erguido sobre um trono alto e cercado por serafins. O primeiro mártir, Estevão, viu os céus abertos e o Senhor Jesus à direita do Pai, e o resto. Da mesma forma, hoje também os servos de Cristo tem várias visões, que alguns não acreditam e não as aceitam como verdadeiras, mas as consideram enganos, e aqueles que as vêem dizem estar em um estado de engano. (Philokalia 5: 474)
Não fica claro se Maximus consideraria a maioria das visões extáticas católicas romanas como sendo de Deus, mas ele acrescenta um qualificativo: “Quando esta graça do Espírito Santo desce sobre alguém, então ela não lhe mostra algo usual das coisas deste mundo sensorial, mas mostra aquilo que ele nunca viu e nunca imaginou ”(5: 475). Um pensamento muito semelhante está contido nos ensinamentos de Santo Inácio (Bryanchaninov), que, apesar de ser um dos mais críticos das visões, sustenta que algumas delas são verdadeiras:
As verdadeiras visões e sentimentos espirituais pertencem à próxima era, são totalmente imateriais, não podem ser explicados na área dos sentidos, através de uma palavra material: tal é o verdadeiro sinal daquilo que é verdadeiramente espiritual. - A voz do Espírito é não material; é totalmente clara e totalmente não material: é uma voz noética. Da mesma forma, todos os sentimentos espirituais são não materiais, invisíveis, não podem ser explicados ou claramente transmitidos através de palavras materiais humanas ... (Works 2004, 5: 306-7)
No entanto, até mesmo Santo Inácio provavelmente reconheceria que algumas visões “transmitidas através de palavras materiais humanas” eram “verdadeiramente espirituais”. Não tenho conhecimento de nenhum autor ortodoxo, por exemplo, contestando a espiritualidade dos relatos hagiográficos das visões de um anjo como relatado por Abba Dorotheus de Gaza (505-565 dC), ou as visões da Theotokos por Santo André e Epiphanius (século 10), Sérgio de Radonej (ca. 1314-1392), Sergius e Herman de Valaam (século XIV? ), Tikhon de Zadonsk (1724-1783), ou Serafim de Sarov (1759-1833), a quem S. Inácio reverenciava como mestre de oração (ver, por exemplo, Works 2004, 1: 198), ou a visão do Senhor pelo mesmo Santo Serafim durante uma liturgia.

Parece que a aparente inconsistência em relação às visões nos escritos patrísticos ortodoxos pode vir de sua natureza pastoral (os escritos). Enquanto os Padres estão conscientes das verdadeiras visões de Deus e as experimentam, eles também estão cientes dos perigos reais ao longo do caminho espiritual e alertam os adeptos menos experientes a não aceitarem quaisquer visões até que um certo nível de maturidade espiritual e habilidade de discernir espíritos seja alcançado. Em outras palavras, os Padres advertem os noviços a não terem o Satã como iconógrafo. Tendo fundado a oração no arrependimento e na humildade, em vez de em visões e revelações, a pessoa permanece no caminho correto e é capaz de superar as tentações e ataques do diabo, independentemente da presença de quaisquer visões ou de sua ausência. A oração fundada em visões extáticas, por outro lado, segundo o pensamento ortodoxo, coloca a alma, especialmente a de um novato, no caminho de grande perigo.

O uso voluntário e consciente da imaginação, por outro lado, encontra menções favoráveis ou pelo menos tolerantes em obras ortodoxas influenciadas pela espiritualidade ocidental. São Teófano, o Recluso (1815-1894), por exemplo, que é geralmente visto como um pouco mais tolerante com a espiritualidade ocidental do que Santo Inácio (Bryanchaninov) (com quem São Teófano entrou em polêmica em mais de uma ocasião), escreveu que Imaginar o Senhor é aceitável: "Quando você contempla o Divino, então você pode imaginar o Senhor como quiser", mas acrescenta: "Durante a oração, você não deve manter [em sua mente] nenhuma imagem ... Se você permitir imagens, há um perigo de começar a rezar para um sonho ”(qtd. in Kuraev, Desafio 121).

Outro exemplo de influência ocidental pode ser visto nas obras de Nicodemos da Montanha Santa (1749-1809), um dos compiladores da Philokalia. Sua famosa obra, que foi impressa em inglês sob o título Unseen Warfare, foi baseada no Combattimento Spirituale por um padre católico romano Lorenzo Scupoli (Manual, 26), enquanto os Exercícios Espirituais de Nicodemos foram baseados em Esercizii Spirituali de Piramonti (28). Nicodemos, em seu Manual do Conselho Espiritual, adverte sobre os perigos do uso da imaginação, mas admite: “Por fim, é permissível, ao lutar contra certas imaginações inapropriadas e más apresentadas pelo inimigo, usar outras imaginações apropriadas e virtuosas” (152). A sabedoria de tal conselho foi questionada por Santo Inácio (Bryanchaninov), que sugeriu que um de seus correspondentes parasse de ler Unseen Warfare (que havia sido recentemente traduzido para o russo por Teófano o Recluso) (ver Works 2004, 5: 274). Embora nunca saibamos se o correspondente do santo escutou o conselho, o importante aqui é o fato de que até mesmo obras de respeitados autores ortodoxos, como São Nicodemos, podem ser questionadas sem muita hesitação, devido à dissonância que criam com o estrito caminho ortodoxo de oração.

Resumo

Embora existam diferenças na opinião de autores ortodoxos, como Santo Inácio (Bryanchaninov) e São Teófano o Recluso, a atitude geral da Tradição Ortodoxa proíbe o uso de imagens mentais na oração. Mesmo que os adeptos nos degraus mais altos da escada espiritual tenham visões e revelações, o conselho geral para aqueles que não alcançaram a perfeição é rejeitar ou pelo menos ignorar todas e quaisquer visões e aparições como potencialmente perigosas. A base e o princípio fundador da oração ortodoxa é visto no arrependimento e na humildade, e não no êxtase e nos “favores”.

Com respeito ao uso consciente da imaginação durante a oração, a proibição da Tradição Ortodoxa é igualmente forte. Algum uso da imaginação é visto por alguns autores como admissível fora da oração, mas todas as fontes ortodoxas conhecidas por mim falam unanimemente contra o uso consciente e intencional da imaginação durante a oração. Assim, parece haver uma clara diferença na área do uso de imagens mentais entre a oração católica romana como exemplificada por Santa Teresa de Ávila, Angela de Foligno e Inácio de Loyola, por um lado, e a tradição ortodoxa de oração como apresentado pelos Santos Inácio (Bryanchaninov), Nilo e Gregório do Sinai, João Clímaco e outros. Enquanto alguns dos teólogos citados acima podem ter escrito em parte em reação à experiência mística ocidental, outros - Macário (século 4), Nilo (quinto século), João (século VI), Isaac (século 7), e Simeão, o Novo Teólogo. (10-11os séculos) —constituem uma tradição anterior que antecede as vidas de Santa Teresa e Santo Inácio por vários séculos. Assim, a influência formativa dessa tradição patrística pode ser traçada através dos escritos de autores ortodoxos posteriores.

Fonte

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Nota do blog skemmata: a seguir um trecho de uma entrevista com o Hiermonge Gabriel (Bunge). Na época ele ainda era um monge Católico Romano (mais tarde converteu-se ao Cristianismo Ortodoxo).

Pe. Pável Velikanov: A pergunta seguinte está relacionada a alguns exemplos, que são frequentemente percebidos no âmbito Ortodoxo como um sinal da tendência errônea do misticismo católico. Se no Oriente a condição principal da oração contínua (ação espiritual) é situada na purificação cristalina da alma para a ação da Luz Divina nela, no entanto, o exemplo daqueles como Teresa de Ávila é representado como algo totalmente oposto: o propósito dos sacrifícios é o de alcançar o êxtase no qual a pessoa vive com Deus. Eu gostaria de ouvir seu comentário sobre isso.  

Hieromonge Gabriel (Bunge): Na Igreja Católica existem dois tipos de mίstica: uma de continência (mental) e outra de exaltação. Ambas estão enraizadas na tradição monástica. A primeira corrente, reminiscente dos santos, Macário, Antônio, Evágrio, é a mίstica interior, da "ação espiritual". Mas já no homilίas do mesmo Macário se encontra a outra corrente, que é um misticismo mais emocional. Por esta razão, ele é tradicionalmente considerado um representante atenuado do movimento messaliano, ou seja, de um monaquismo exaltado. Penso que aqui encontramos simplesmente diferentes tipos de temperamentos espirituais, por isso é difícil encontrar uma linguagem comum: o da atividade espiritual dirá ao seu oponente: "Você é uma pessoa sensual", enquanto este, por sua vez, responderá: "Você só pensa, você não tem experiência interior". Estas duas opiniões são incorretas. Ao mesmo tempo, tenho que admitir, que no Ocidente, durante a Idade Média, existiam correntes místicas, especialmente femininas, que para mim são estranhas e inacessíveis. Eu pertenço a um tipo de escola diferente. Não possuo, por assim dizer, aqueles órgãos com a ajuda dos quais me seria mais fácil entender essa mística afetiva, de exaltação. Para mim, a regra básica de qualquer tipo de vida espiritual é a moderação, a ausência de exaltação, pois esta última é, na realidade, o fundamento para a sedução diabólica. É exatamente isso que notamos entre os carismáticos. É preciso ser muito cauteloso, muito sábio, ter grande simplicidade e pureza para não se equivocar, para não cair nesse erro, que Evágrio já chamava de a imitação dos estados espirituais e místicos. Isso é chamado hoje de autossugestão de estados, ou seja, de estados espirituais figurativos (imaginados). Teófano o Recluso (eremita), que, por sinal, é muito popular no Ocidente, tinha um entendimento muito bom do misticismo ocidental. Uma vez ele exclamou: "Ah, esses Católicos que não conseguem distinguir entre o psíquico e o espiritual!" E de fato, enquanto converso com aqueles que se confessam a mim, vejo que essas pessoas muitas vezes confundem essas duas coisas. Eu tenho que ensiná-los, ajudá-los a ver a diferença entre o sensual, que ocorre com eles, e o verdadeiramente espiritual, que é concedido por Deus. As pessoas frequentemente percebem algo dentro de si, e pensam: "Eis aqui, eis aqui o espiritual."

Fonte

sexta-feira, 1 de setembro de 2017

Experiências "Fora do Corpo" na Literatura Ocultista (Pe. Seraphim Rose) - Parte 1/2


Experiências "fora do corpo" na Literatura Ocultista
1. O Livro Tibetano dos Mortos 
2. Os escritos de Emanuel Swedenborg 
3. O "Plano Astral" da Teosofia
4. "Projeção Astral" 
5. "Viagem Astral" 
6. Conclusão sobre o Reino "Fora do Vorpo" 
Uma Nota sobre Reencarnação 

       A fim de explicar as experiências "pós-morte" os pesquisadores contemporâneos quase invariavelmente se voltam para aquela forma de literatura que afirma ser baseada na experiência do reino "fora do corpo": a literatura oculta ao longo dos séculos, desde o livro dos mortos egípcio e o tibetano até os mestres e experimentadores oculistas de nossos dias. Quase nenhum desses pesquisadores, por outro lado, prestam qualquer atenção séria ao ensinamento cristão sobre a vida após a morte, ou às fontes escriturísticas e patrísticas sobre as quais se baseia. Por que isso?

      A razão é muito simples: o ensinamento cristão provém da revelação de Deus ao homem sobre o destino da alma após a morte, e enfatiza principalmente o estado último da alma no céu ou no inferno. Embora exista também uma abundante literatura cristã descrevendo o que acontece com a alma após a morte, baseada em experiências de primeira mão pós-morte ou fora do corpo (como apresentado no capítulo anterior nos "telônios aéreos"), esta literatura ocupa definitivamente um lugar secundário quando comparado ao ensinamento cristão primário do estado final da alma. A literatura baseada na experiência cristã é muito útil para elucidar e tornar mais vívidos os pontos básicos da doutrina cristã.

       Na literatura ocultista, no entanto, exatamente o oposto ocorre: a ênfase principal é sobre a experiência da alma no reino "fora do corpo", ao passo que o estado último da alma é geralmente deixado impreciso ou aberto a opiniões pessoais e suposições, supostamente baseadas nessas experiências. Os pesquisadores de hoje são mais facilmente atraídos pelas experiências de escritores ocultistas (que parecem ser capazes de pelo menos algum grau de "investigação científica") do que para o ensinamento do cristianismo, que exige um compromisso de crença, fé e uma vida espiritual de acordo com ele.


       Neste capítulo, tentaremos apontar algumas das armadilhas dessa abordagem, que não é de modo algum "objetiva", como parece a algumas pessoas, e oferecer uma avaliação das experiências ocultas "fora do corpo" do ponto de vista do Cristianismo Ortodoxo. Para que possamos fazer isso, temos de considerar algumas das obras ocultistas que os pesquisadores de hoje estão usando para elucidar as experiências "pós-morte".




1. O Livro Tibetano dos Mortos

       O livro tibetano dos mortos é um livro budista do século VIII que provavelmente transmite as tradições pré-budistas de um período muito antigo. Seu título tibetano é "Libertação Através da Escuta no plano Pós-Morte", e é descrito pelo editor inglês como "um manual místico de orientação no outro mundo de muitas ilusões e reinos" (p.2). É lido próximo ao corpo do recém-falecido para benefício da alma, porque, como diz o próprio texto, "durante os momentos de morte ocorrem várias ilusões enganosas" (p.115). Essas, o editor escreve, "não são visões da realidade, mas nada mais do que... os (próprios) impulsos intelectuais que assumiram uma forma personificada" (p.31). 


       Nos últimos estágios dos 49 dias de experiência pós-morte descritos no livro, há visões de deidades "pacíficas" e "furiosas" - todas as quais, de acordo com a doutrina budista, consideradas ilusórias. (Discutiremos adiante, ao examinar o natureza desse reino, por que essas visões são, de fato, em grande parte, ilusões). O fim de todo esse processo é a descida final da alma em uma "reencarnação" (também discutido abaixo), que os ensinos budistas consideram como um mal a ser evitado pelo treinamento budista. O Dr. C.G Jung, em seu Comentário Psicológico sobre o livro, acha essas visões muito semelhantes às descrições do mundo pós-morte na literatura espírita do ocidente moderno - ambas "dão uma impressão repugnante da absoluta inanidade e banalidade das comunicações do 'mundo espiritual'".

       Em dois aspectos há semelhanças notáveis entre o livro tibetano dos mortos e as experiências de hoje, e isso explica o interesse do Dr. Moody e de outros pesquisadores neste livro. Em primeiro lugar, a experiência "fora do corpo" descrita nos primeiros momentos da morte é essencialmente a mesma descrita nas experiências contemporâneas (assim como na literatura Ortodoxa): a alma do falecido aparece como um "corpo ilusório brilhante" que é visível para outros seres da mesma natureza, mas não para os homens na carne; a princípio não sabe se está vivo ou morto; observa as pessoas ao redor do corpo, ouve os gemidos dos lamentos, e tem todas as faculdades sensoriais; tem movimento desimpedido e pode atravessar objetos sólidos (pp. 98-100, 156-160). Em segundo lugar, há uma "nítida luz primária vista no momento da morte", que os pesquisadores contemporâneos identificam com o "ser de luz" descrito por muitas pessoas hoje em dia. 


       Não há razão para duvidar de que o que está descrito no livro tibetano dos mortos se baseia em algum tipo de experiência "fora do corpo"; mas veremos abaixo que o verdadeiro estado pós-morte é apenas uma dessas experiências e que devemos ter cuidado ao aceitar qualquer experiência "fora do corpo" como uma revelação do que realmente ocorre com a alma após a morte. As experiências de médiuns ocidentais também podem ser genuínas; mas certamente não transmitem mensagens reais dos mortos, como pretendem. 

       Há uma certa semelhança entre o livro tibetano dos mortos e o mais antigo livro egípcio dos mortos. Este último descreve a alma após a morte passando por muitas transformações e encontrando muitos "deuses". No entanto não existe uma tradição viva de interpretação deste livro e, sem isso, o leitor moderno apenas pode supor o significado de alguns de seu simbolismo. De acordo com este livro, o falecido sucessivamente toma forma de uma andorinha, de um falcão de ouro, de uma serpente com pernas e pés, de um crocodilo, de uma garça, de uma flor de lótus, etc., e encontra estranhos "deuses" e seres de outro-mundo (os "Quatro Sábios Macacos", a deusa do hipopótamo, vários deuses com cabeças de cachorros, chacais, macacos, pássaros, etc.). 


       As experiências elaboradas e confusas do reino "pós-morte" descritas neste livro contrastam bastante com a claridade e simplicidade das experiências cristãs. Embora também se baseie, como parece, em algum tipo de experiências "fora do corpo" reais , este livro é tão cheio de visões ilusórias como o tibetano dos mortos e certamente não pode ser tomado como uma descrição real do estado da alma pós-morte.

2. Os Escritos de Emanuel Swedenborg


       Outro dos textos ocultistas que os pesquisadores contemporâneos estão investigando que oferece uma maior esperança de ser compreendido, pois é dos nossos tempos modernos, é completamente ocidental em sua mentalidade, e pretende ser Cristão. Os escritos do visionário sueco Emanuel Swedenborg (1688-1722) descrevem as visões de um outro mundo que começaram a aparecer em sua meia-idade. Antes que suas visões começassem, ele era um típico intelectual do século XVIII da Europa, fluente em muitas línguas, um escolar, cientista e inventor, um homem ativo na vida pública, supervisor de indústrias suecas de mineração e membro da Casa dos Nobres - em suma, um "homem universal" nos primeiros anos da ciência, enquanto ainda era possível um único homem dominar quase todo conhecimento de seu tempo. Ele escreveu cerca de 150 trabalhos científicos, alguns dos quais (como seu tratado anatômico de  4 volumes, O Cérebro) estavam bem a frente de seu tempo. 



       Então, no 56º ano de sua vida, ele voltou sua atenção para o mundo invisível e, nos últimos 25 anos de sua vida, produziu um número imenso de obras religiosas descrevendo o céu, o inferno, os anjos e os espíritos - tudo baseado em suas experiências pessoais.
Emanuel Swedenborg

       Suas descrições dos reinos invisíveis são desconcertantemente similares a terra: em geral, no entanto, estão de acordo com a maioria da literatura ocultista. Quando uma pessoa morre, de acordo com o relato de Swedenborg, entra-se no "mundo dos espíritos", que está meio caminho do céu e do inferno. Este mundo, embora seja espiritual e não material, é tão semelhante a realidade material que não se sabe a princípio que morreu (461); ela possui um mesmo tipo de "corpo" e faculdades sensíveis como possuía em seu corpo terreno. No momento da morte há uma visão de luz - brilhante e indistinta- e há uma "revisão" de sua vida e de suas ações boas e más. Ela encontra seus amigos e conhecidos deste mundo (494), e por algum tempo continua uma existência muito semelhante à que tinha na terra, exceto que tudo é muito mais "interior"; atrai-se para aquelas coisas e pessoas pelas quais nutre amor, e a realidade é determinada pelo pensamento - assim que se pensa em um ente querido, tal ente torna-se presente, como se chamado (494). Uma vez que se acostuma a estar neste mundo espiritual, é ensinado por seus amigos sobre céu e inferno, e é levado para várias cidades, jardins e parques (495).

    Neste "mundo dos espíritos" intermediário, aquele que faleceu "prepara-se" para o céu em um processo de educação que leva de alguns dias a um ano (498). Mas o "Céu", como descrito por Swedenborg, não é muito diferente do "mundo dos espíritos", e ambos são muito semelhantes à terra (171). Há pátios e salões como na terra, parques e jardins, casas e quartos para "anjos", com muitas mudanças de roupa entre eles. Há governos e tribunais - todos, naturalmente, mais "espirituais" do que na terra. Existem igrejas e serviços religiosos, com clérigos que dão sermões e que ficam confusos se alguém na congregação discorda deles. Há casamentos, escolas, criação e educação de crianças, vida pública - em suma, quase tudo o que pode ser encontrado na Terra que pode se tornar "espiritual". O próprio Swedenborg falou com muitos dos "anjos" no céu (todos esses, ele acreditava, eram apenas as almas dos mortos), bem como com os estranhos habitantes de Mercúrio, Júpiter e outros planetas; ele discutiu com Martinho Lutero no "céu" e o converteu para sua crença, mas não conseguiu convencer Calvino contra a crença na predestinação. "Inferno" é descrito como um lugar semelhante à terra, onde os habitantes são caracterizados por egoísmo e má ações.

     Pode-se facilmente entender por que Swedenborg foi considerado pela maioria de seus contemporâneos como um louco, e por que até recentemente suas visões raramente foram levadas a sério. Entretanto, sempre houve alguns que reconheceram que, apesar de todas as estranhezas de suas visões, ele esteve em contato real com a realidade invisível: seu contemporâneo mais jovem, o filósofo alemão lmmanuel Kant, um dos principais fundadores da filosofia moderna, levou-o muito a sério e acreditou nos vários exemplos da "clarividência" de Swedenborg, conhecidos em toda a Europa; e o filósofo americano Emerson, em seu longo ensaio sobre Swedenborg, Homens Representativos, chamou-o de "um dos gigantes da literatura, que não pode ser medido por universidade inteiras de escolares ordinários". Hoje, é claro, a revitalização do interesse pelo ocultismo trouxe-o à tona como um "místico" e "vidente" não vinculado ao cristianismo doutrinário; e, em particular, os pesquisadores de experiências "pós-morte" encontram paralelos notáveis ​​entre suas descobertas e suas descrição dos primeiros momentos após a morte.



     Há poucas dúvidas de que Swedenborg esteve em contato real com espíritos invisíveis e que ele recebeu "revelações" deles. Uma análise de como ele recebeu estas "revelações" nos mostrará qual é o verdadeiro reino em que esses espíritos habitam.


       A história dos contatos de Swedenborg com os espíritos invisíveis - que ele registrou em grande detalhe em suas volumosas obras Diário dos Sonhos e Diário Espiritual (2300 páginas) - revela precisamente as características de contatos com os demônios do ar, como descrito por Bispo Inácio. Desde a infância Swedenborg praticou uma forma de meditação, envolvendo relaxamento e concentração intensa; com o tempo, passou a ver uma chama esplêndida durante sua meditação, que aceitou com confiança e interpretou como um sinal de "aprovação" de suas idéias. Isto o preparou para a abertura da comunicação com o reino dos espíritos. Mais tarde, ele começou a ter sonhos com Cristo e de ser recebido em uma sociedade de "imortais", e gradualmente tornou-se consciente da presença de "espíritos" em torno dele. Finalmente, os espíritos começaram a aparecer para ele em estado de vigília. A primeira dessas últimas experiências ocorreu quando estava viajando em Londres: uma noite, depois de comer demais, ele de repente viu uma escuridão e répteis rastejando no chão, e então um homem sentado no canto da sala, que disse apenas "não coma muito" e desapareceu na escuridão. Embora estivesse assustado com esta aparição, confiava nela como sendo algo "bom" porque dava conselhos "morais". Então, como ele próprio relatou, "durante a mesma noite o mesmo homem revelou-se a mim novamente, mas eu não estava assustado agora. Ele então disse que era o Senhor Deus, o Criador do Mundo e Redentor, e que me escolhera para explicar aos homens o sentido espiritual da Escritura e que ele mesmo me explicaria o que eu deveria escrever sobre este assunto; naquela mesma noite foi aberto para mim, de modo que fiquei completamente convencido da sua realidade, o mundos dos espíritos, o céu e o inferno... Posteriormente, o Senhor abriu diariamente, muitas vezes, os meus olhos corporais, de modo que no meio do dia eu podia ver o outro mundo, e em estado de perfeita vigília conversar com anjos e espíritos."

       É bastante claro a partir desta descrição que Swedenborg começou um o contato com o reino aéreo de espíritos caídos e que todas as suas revelações posteriores vieram desta fonte. O "céu" e o "inferno" que ele viu eram também partes deste reino aéreo, e as "revelações" que ele registrou são uma descrição das ilusões desse reino que os espíritos caídos muitas vezes produzem para os crédulos, com seus próprios objetivos em vista. Um olhar sobre uma outra literatura ocultista nos mostrará mais das características deste reino.


 3. O "Plano Astral" da Teosofia

     A teosofia dos séculos XIX e XX, que é uma mistura das idéias ocultistas do oriente e do ocidente, ensina em detalhes sobre este reino aéreo, considerando-o composto por vários "planos astrais". ("Astral" vindo de "das estrelas" é um termo fantasioso para se referir ao nível da realidade "além do terreno".) De acordo com um resumo do ensinamento, "os planos (astrais) compreendem as habitações de todas as entidades sobrenaturais, o local dos deuses e os demônios, o vazio onde residem as formas-pensamento, a região habitada pelos espíritos do ar, outros elementos e os vários céus e infernos com seus anfitriões angélicos e demoníacos... Com a ajuda de procedimentos rituais, pessoas treinadas acreditam que podem "ascender nos planos", e experimentar essas regiões em plena consciência."


       De acordo com este ensinamento, entra-se no "plano astral" (ou "planos", dependendo se este reino é visto como um todo ou em suas "camadas") na morte e, como no ensino de Swedenborg, não há uma mudança repentina em seu estado e nenhum julgamento; continua-se a viver como antes, apenas fora do corpo, e começa-se a "atravessar todos os sub-planos do plano astral, em seu caminho para o mundo-do-céu". Cada sub-plano é cada vez mais refinado e "interior" e a progressão através deles, longe de envolver temor e a incerteza como fazem os "telônios aéreos" cristãos, é um momento de prazer e alegria: "A alegria da vida no plano astral é tão grande que a vida física em comparação parece não ser vida.... Nove em cada dez não gostam de voltar para o corpo. "(Powell, p.94).


     Teosofia, invenção da médium russa Helena Blavatsky, foi fundada no final do século XIX, numa tentativa de dar uma explicação sistemática dos contatos mediúnicos com os "mortos" que se multiplicavam no mundo ocidental desde o grande surto de fenômenos espíritas na América em 1848. Até hoje seu ensino sobre o "plano astral" (embora muitas vezes não chamado por esse nome) é o padrão usado por médiuns e outros amadores no ocultismo para explicar suas experiências no mundo dos espíritos. Embora os livros teosóficos sobre o "plano astral" estejam preenchidos com a mesma "inanidade repugnante e banalidade" que o Dr. Jung utiliza para caracterizar toda a literatura espírita, ainda assim, atrás desta banalidade há uma filosofia subjacente básica da realidade do outro mundo que encontra simpatia nos investigadores contemporâneos. A visão de mundo humanista atual está mais favoravelmente disposta para um outro mundo que é agradável ao invés de doloroso, que permite um "crescimento" ou "evolução" tranquila em vez da finalidade do juízo, que permite "outra chance" de preparar-se para uma realidade superior em vez de determinar o destino eterno de alguém pelo comportamento na vida terrena. O ensinamento da teosofia dá exatamente essas características exigidas pela "alma moderna" e afirma que baseia-se na experiência. 


      A fim de dar uma resposta cristã ortodoxa a este ensinamento, devemos examinar mais de perto as experiências específicas que são ocorrem no "plano astral." Mas onde vamos examinar? A comunicação dos médiuns são notoriamente não confiáveis e incertas. O contato feito com o "mundo espiritual" através dos médiuns é muito sombrio e indireto para constituir prova convincente da natureza desse mundo. As experiências "pós-morte" de hoje, por outro lado, são muito breves e inconclusivas para serem tomadas como evidência da natureza real do outro mundo.



       Mas existe uma espécie de experiência no "plano astral" que pode ser estudada com mais detalhes: na linguagem teosófica é chamada "projeção astral" ou "projeção do corpo astral". É possível, através do desenvolvimento de certas técnicas mediúnicas, não apenas entrar em contato com espíritos desencarnados, como fazem os médiuns comuns (quando suas sessões são genuínas), mas realmente entrar em seu reino e "viajar" em seu meio. Pode-se muito bem ser cético ao ouvir tais experiências em tempos antigos, mas acontece que essa experiência se tornou relativamente comum - e não apenas entre os ocultistas - em nossos tempos, e já há uma extensa literatura de experiência de primeira mão neste reino.



4. “Projeção Astral"



       É bem conhecido ao cristão ortodoxo que o homem pode, de fato, ser elevado além das limitações de sua natureza corporal e viajar até reinos invisíveis. A natureza exata dessa viagem não nos interessa aqui. O próprio apóstolo Paulo não sabia se estava "no corpo ou fora do corpo" quando foi elevado até o terceiro céu (II Cor. 12: 2), e não há necessidade de especular sobre como o corpo pode tornar-se suficientemente refinado para entrar no céu (se sua experiência realmente foi "no corpo"), ou que tipo de "corpo sutil" a alma pode ser revestida durante uma experiência "fora do corpo"  - se, de fato, essas coisas possam ser conhecidas nesta vida. Nos é suficiente saber que a alma (em qualquer tipo de "corpo") pode realmente ser elevada pela graça de Deus e contemplar o paraíso, bem como o reino aéreo dos espíritos abaixo do céu.


       Muitas vezes, na literatura ortodoxa, tais experiências são descritas como "fora do corpo", assim como a experiência de Santo Antônio dos "telônios aéreos" enquanto estava em oração, descritas acima. O bispo Inácio Brianchaninov menciona dois ascetas no século XIX, cujas almas também deixaram seus corpos enquanto estavam em oração - o ancião Basilisk da Sibéria, cujo discípulo era o famoso Zosima, e ancião-schema Inácio (Isaiah), amigo pessoal do Bispo Inácio (Bispo Inácio, Obras Completas, vol. III, p. 75). A mais impressionante experiência "fora do corpo" nas vidas dos santos ortodoxos é provavelmente a de Santo André o Tolo-por-Cristo de Constantinopla (século X), que, embora seu corpo evidentemente estivesse na neve nas ruas da cidade, foi elevado em espírito para contemplar o paraíso e o terceiro céu, uma parte da qual ele descreveu ao seu discípulo que registrou sua experiência (Vidas dos Santos, 2 de outubro).

      Essas experiências ocorrem somente pela graça de Deus e completamente à parte da vontade ou desejo dos homens. Mas "projeção astral" é uma experiência "fora do corpo" que pode ser buscada e iniciada por meio de certas técnicas. Esta experiência é uma forma especial daquilo que Bispo Inácio descreve como a "abertura dos sentidos" e é claro que - uma vez que o contato com espíritos é proibido aos homens, exceto pela ação direta de Deus - o reino que pode ser alcançado por este meio não é o céu, mas apenas o reino aéreo abaixo do céu, o reino habitado pelos espíritos caídos.

   Os textos teosóficos que descrevem esta experiência em detalhes estão tão cheios de opiniões e interpretações ocultas que são em grande parte inúteis para dar uma idéia das experiências reais desse reino. No século XX, no entanto, houve outro tipo de literatura que tratou dessa experiência: paralelo ao surgimento de pesquisas e experiências no campo da "parapsicologia" alguns indivíduos descobriram, por acidente ou por experiência, que eram capazes de ter a experiência de "projeção astral" e eles escreveram livros descrevendo suas experiências em linguagem não-ocultista e alguns pesquisadores compilaram e estudaram relatos de experiências "fora do corpo", escrevendo numa linguagem científica ao invés de uma linguagem ocultista. Aqui examinaremos vários desses livros.

       O lado "terreno" das experiências "fora do corpo" é bem descrito em um livro do diretor do Instituto de Pesquisas Psico-físicas de Oxford, Inglaterra. Em resposta a um apelo feito em setembro de 1966, na imprensa britânica e no rádio, o Instituto recebeu cerca de 400 respostas de pessoas que alegaram ter tido experiências pessoais fora do corpo. Tal resposta indica que essas experiências não são raras em nossos dias e que aqueles que as tiveram estão muito mais dispostos do que em anos anteriores a discuti-las sem medo de serem considerados "loucos". O Dr. Moody e outros pesquisadores descobriram as mesmas coisas em relação às experiências "pós-morte". Essas 400 pessoas receberam dois questionários para preencher, e o livro foi o resultado de uma comparação e análise das respostas desses questionários.

    As experiências descritas neste livro foram quase todas involuntárias, desencadeadas por várias condições físicas: estresse, fadiga, doença, acidente, anestesia, sono. Quase todas ocorreram na proximidade do corpo (não em um reino "espiritual"), e as observações feitas são muito semelhantes às feitas por pessoas que tiveram experiências "pós-morte": veem o próprio corpo de "a partir de fora", possuem todas as faculdades sensíveis (mesmo se em corpo fosse surdo ou cego), são incapazes de tocar ou interagir com o ambiente, "flutuam" no ar com uma sensação de extrema tranquilidade e bem-estar; a mente torna-se mais clara do que o normal. Algumas pessoas descreveram encontro com parentes falecidos ou viagens para paisagens que não pareciam fazer parte da realidade comum.

       Um investigador de experiências "fora do corpo", o geólogo inglês Robert Crookall, reuniu uma enorme quantidade de exemplos, tanto de ocultistas como médiuns, por um lado, e de pessoas comuns, por outro. Ele resume a experiência da seguinte maneira: "Um corpo-réplica, ou 'duplo' 'nasceu' do corpo físico e assumiu uma posição acima dele. Com o 'duplo' separado do corpo, houve  um 'apagão' na consciência (assim como a mudança de engrenagens em um carro causa uma ruptura momentânea na transmissão de potência)... Muitas vezes, houve uma revisão panorâmica da vida passada, e o corpo físico abandonado é comumente visto a partir do 'duplo' liberto... Ao contrário do que seria de esperar, ninguém descreveu sobre dor ou o medo causado por deixar o corpo - tudo parecia perfeitamente natural... A consciência, que operava através do 'duplo' separado, era mais extensa do que na vida comum... Às vezes, havia telepatia, clarividência e presciência. Os amigos "mortos" eram vistos frequentemente. Muitos dos depoentes expressaram grande relutância para voltar a entrar no corpo e, assim, retornar à vida terrena ... Este padrão geral de eventos em experiências fora do corpo, até então não reconhecidas, não pode ser explicado adequadamente pela hipótese de que todas essas experiências eram sonhos e que todos os duplos descritos eram meras alucinações. É possível, por outro lado, ser prontamente explicado pela hipótese de que essas eram experiências genuínas e que os 'duplos' eram corpos objetivos (embora ultrafísicos)".

       Esta descrição é praticamente idêntica, ponto a ponto, com o "modelo" do Dr. Moody de experiências pós-morte (Life After Life, p. 23-24). Essa identidade é tão precisa que só pode ser uma e a mesma experiência que está sendo descrita. Se assim for, é finalmente possível definir a experiência que o Dr. Moody e outros investigadores descreveram, e que causou tanto interesse e discussão no mundo ocidental por vários anos. Não é exatamente uma experiência "pós-morte"; é antes a experiência "fora do corpo", que é apenas a antecâmara para outras experiências muito mais extensas, seja da própria morte ou do que às vezes se chama "viagem astral" (que veremos mais adiante). Embora o estado "fora do corpo" possa ser chamado de "primeiro momento" da morte - se a morte realmente segue - é um erro grosseiro concluir com isso qualquer coisa sobre o estado "pós-morte", a menos que seja os fatos simples da sobrevivência e da consciência da alma após a morte, que quase ninguém que realmente acredita na imortalidade da alma nega de qualquer maneira. Além disso, pelo fato do estado "fora do corpo" não estar necessariamente vinculado à morte, devemos ser extremamente discernentes ao filtrar as evidências fornecidas por experiências extensas neste reino; em particular, devemos perguntar se as visões do "céu" (ou "inferno") que alguns estão experimentando hoje têm algo a ver com a verdadeira compreensão cristã do céu e do inferno, ou se são apenas algumas interpretações meramente naturais (ou demoníacas) do reino "fora do corpo".

       O Dr. Crookall - que tem sido o investigador mais minucioso neste campo até agora, aplicando a mesma cautela e preocupação por detalhes que caracteriza seus livros anteriores sobre as plantas fósseis da Grã-Bretanha - reuniu muito material sobre experiências do "paraíso" e "hades". Ele as considera como experiências naturais e virtualmente universais no estado "fora do corpo", e as distingue da seguinte maneira: "Aqueles que deixaram seus corpos naturalmente tendiam a vislumbrar condições brilhantes e tranquilas ("paraíso"), uma espécie de terra gloriosa; enquanto (aqueles que foram) expulsos à força... tendiam a se encontrar em condições relativamente obscuras, confinadas, como sonhos que correspondem ao "hades" dos antigos. No primeiro encontrou muitos ajudantes (incluindo os amigos e parentes "mortos" já mencionados); o último, às vezes, encontrou desencarnados que o impedia" (p. 14-15). As pessoas que possuíam o que o Dr. Crookall chama de "constituição corporal mediúnica" passam invariavelmente em primeiro lugar por uma região negra e nebulosa do "hades" e então por uma região de luz radiante que parece o paraíso. Este "paraíso" é descrito de forma variada (tanto por médiuns como não-médiuns) como "o cenário mais bonito já visto", "uma cena de beleza espantosa - um vasto jardim como um parque e a luz de lá é uma luz que nunca foi vista no mar ou na terra", "paisagem encantadora" com "pessoas vestidas de branco" (p. 117), "a luz torna-se intensa", "toda a terra estava brilhante" (p.127) .

       Para explicar essas experiências, Dr. Crookall admite a existência de uma "terra total" que compreende, no nível mais baixo, a terra física que conhecemos no cotidiano, cercada por uma esfera não-física interpenetrante com faixas de "hades" e "paraíso" nos limites inferior e superior (p. 87). Isto é, aproximadamente, uma descrição do que na linguagem ortodoxa é conhecido como o reino aéreo dos espíritos caídos do sub-céu, ou o "plano astral" da teosofia; as descrições ortodoxas desse reino, no entanto, não fazem distinções "geográficas" entre "superior" e "inferior" e enfatizam os enganos demoníacos que são parte integrante desse reino. O Dr. Crookall, pesquisador secular, nada sabe sobre esse aspecto do reino aéreo, mas ele testemunha, do ponto de vista "científico", um fato extremamente importante para a compreensão das experiências "pós-morte" e "fora do corpo": o "paraíso" e "inferno" visto por pessoas nestas experiências são apenas partes (ou aparências) do reino aéreo dos espíritos e não tem nada a ver com o verdadeiro céu e o inferno da doutrina cristã, que representam as eternas moradias das almas humanas (e de seus corpos ressuscitados), bem como dos espíritos imateriais. As pessoas no estado "fora do corpo" não são livres para "vagar" no verdadeiro céu e no inferno, que são abertos às almas apenas pela vontade expressa de Deus. Se alguns "cristãos" na "morte" vêem quase imediatamente uma "cidade celestial" com "portões perolados" e "anjos", é apenas uma indicação de que o que se vê no reino aéreo depende, em certa medida, das próprias experiências e expectativas do passado; mesmo os hindus moribundos vêem seus templos e seus "deuses". As verdadeiras experiências cristãs do céu e do inferno (como veremos no próximo capítulo) são de dimensões completamente diferentes.