quarta-feira, 25 de outubro de 2017

Transição de Gênero e Transcendendo o Gênero (Metropolita Hieroteos de Nafpaktos)


                  Joaquim e Ana 

O "Novo Homem" do "Terceiro Sexo Indeterminado"

Por Sua Eminência Metropolitana Hieroteos

de Nafpaktos e Agiou Vlasiou

Até hoje nós sabíamos que havia dois gêneros, o masculino e o feminino, ou homem e mulher. Havia também alguns que vacilavam disto por várias razões, primariamente devido às paixões. Mas recentemente surgiu outra pessoa do "terceiro gênero", como foi nomeada pelos tribunais, depois de muitos anos de luta feita por essas pessoas de "gênero indeterminado" ou "terceiro gênero".

Alguém chamado Norrie May-Welby, que nasceu na Escócia como homem, posteriormente foi para a Austrália, onde passou por uma cirurgia de mudança de gênero para se tornar uma mulher. Por acreditar que ele não se sentia confortável como um indivíduo do gênero feminino, ele decidiu interromper a terapia hormonal para ter uma operação para evitar pertencer a um gênero "predeterminado". Então ele começou uma longa luta para ser legalmente reconhecido como uma pessoa de gênero "indeterminado".

Na quarta-feira, 2 de abril de 2014, "o Supremo Tribunal da Austrália decidiu que o Estado de Nova Gales do Sul deveria reconhecer a existência desse terceiro gênero "indeterminado" ao qual Norrie May-Welby pertence" (Ta Nea, 04/04/2014). Assim, nasceu uma pessoa de um "sexo indeterminado" (sexo não-específico), que não é nem homem nem mulher.

Fica-se impressionado ao ponto que uma pessoa pode alcançar: uma pessoa que está frustrada e quer experimentar novas experiências e situações. Há muitos que, reivindicando direitos humanos para todas as pessoas, estão prontos para aceitar e adotar tal mentalidade. Mas se começarmos a aceitar os direitos humanos sem quaisquer restrições necessárias, chegaremos a uma catástrofe social.

A filosofia existencial, ao falar de liberdade, diz que o maior problema de liberdade é  que "a existência nos é dada", que não temos o direito ou a capacidade de escolher o nosso gênero, que nos é dado sem a possibilidade de fazer uma escolha. Bem, agora esse direito pessoal foi aceito e até mesmo reconhecido pelo Estado. Mas, onde a sociedade pode chegar com essas considerações?

A dualidade de gênero nos foi dada e, de fato, possui uma infra-estrutura biológica. Deus criou pessoas como homem e mulher e, dessa forma, as pessoas se desenvolveram na sociedade, e assim a raça humana se multiplicou. Infelizmente, devido a muitas causas, existe hoje na sociedade uma "corrupção genética" e o próprio homem intervém nesta questão.

Na Igreja, no entanto, temos a capacidade de transcender o que nos foi "dado na existência" com a vida em Cristo. São Máximo, o Confessor, identificando as cinco divisões (isto é, incriado e criado, mental e sensível, céu e terra, paraíso e ecumene, homem e mulher), escreve que na vida em Cristo começamos a transcender a divisão do homem e da mulher, prosseguindo para transcender todas as divisões. Os santos da Igreja vivem em um estado angélico, como está escrito no troparion, "como anjos no mundo celebremos", mas também se tornam anjos no céu, de acordo com as palavras de Cristo, "serão como anjos no céu" (Mt 22:30).

Quando as pessoas não conhecem e não podem se tornar um anjo em Cristo, então, em sua mania, voluntariamente se tornam uma pessoa de "gênero indeterminado" e pior ainda, já que até os animais têm uma distinção de gênero.


Ekklesiastiki Paremvasi, “Ὁ «νέος ἄνθρωπος» τοῦ «τρίτου ἀκαθορίστου φύλου»”, May 2014

terça-feira, 24 de outubro de 2017

O Caminho Ortodoxo: Deus como Mistério (Kallistos Ware) [Parte 2/8]


CONTEÚDO
1 Prólogo - Sinais no Caminho 
2 Deus como Mistério 
3 Deus como Trindade 
4 Deus como Criador 
5 Deus como Homem 
6 Deus como Espírito 
7 Deus como Oração 
8 Epílogo - Deus como Eternidade 


Como desconhecidos, mas sendo bem conhecidos.
2 Coríntios 6:9

Deus não pode ser entendido pela mente. Se pudesse ser entendido, ele não seria Deus.
Evágrio Pôntico

Certo dia, alguns dos irmãos vieram ver Abba Antônio, entre eles, Abba José. Desejando testá-los, o ancião mencionou um texto da Escritura, e, começando com o mais novo, perguntou o que significava. Cada um explicou o melhor que pôde. Mas para cada um, o velho disse: "Você ainda não encontrou a resposta". Por último, ele disse a Abba José: "E o que você acha que o texto significa?" Ele respondeu: "Não sei". Então Abba Antônio disse: "Verdadeiramente, Abba José encontrou o caminho, porque ele disse: eu não sei".
Ditos dos Pais do Deserto

Como amigo falando com seu amigo, o homem fala com Deus, e aproximando-se com confiança, ele se encontra diante da face d'Aquele que habita a luz inacessível.
São Simeão, o Novo Teólogo

A Alteridade e a Proximidade do Eterno

O que, ou quem, é Deus?

O viajante no Caminho espiritual, quanto mais avança, mais consciente se torna-se de dois fatos contrastantes - da alteridade e proximidade do Eterno. Em primeiro lugar, ele percebe cada vez mais que Deus é um mistério. Deus é "o inteiramente Outro", invisível, inconcebível, radicalmente transcendente, além de todas as palavras, além de toda compreensão. "Certamente uma criança acabou de nascer", escreve o católico romano George Tyrrell, "sabe tanto do mundo e seus caminhos como o mais sábio de nós pode saber dos caminhos de Deus, cuja influência se estende sobre o céu e a terra, o tempo e a eternidade." Um cristão na tradição ortodoxa concordará com isso inteiramente. Como os Pais Gregos insistiram: "Um Deus que é compreensível não é Deus." Ou seja, um Deus que afirmamos compreender de forma exaustiva por meio do nosso raciocínio não é mais do que um ídolo, moldado a nossa própria imagem. Tal "Deus", decisivamente, não é o Deus verdadeiro e vivo da Bíblia e da Igreja. O homem é feito à imagem de Deus, mas o inverso não é verdadeiro.

No entanto, em segundo lugar, esse Deus de mistério está, ao mesmo tempo, claramente próximo de nós, preenchendo todas as coisas, presente por toda parte ao nosso redor e dentro de nós. E ele está presente, não apenas como uma atmosfera ou uma força sem nome, mas de forma pessoal. O Deus que está infinitamente além do nosso entendimento revela-se a nós como pessoa: ele chama cada um por nosso nome e nós respondemos. Entre nós e o Deus transcendente, há uma relação de amor, semelhante em espécie àquela que existe entre cada um de nós e os seres humanos mais queridos para nós. Conhecemos outros seres humanos através do nosso amor por eles, e através do amor deles por nós. Assim também é com Deus. Nas palavras de Nicolau Cabasilas, Deus nosso Rei é

mais afetuoso do que qualquer amigo,
mais justo do que qualquer governante,
mais amoroso do que qualquer pai,
mais  parte de nós do que nossos próprios membros,
mais necessário para nós do que o nosso próprio coração.

Estes, então, são os dois "pólos" na experiência humana do Divino. Deus está mais longe, e mais próximo, de nós, do que qualquer outra coisa. E percebemos, paradoxalmente, que esses dois pólos não se anulam: pelo contrário, quanto mais somos atraídos para um "pólo", mais vividamente nos tornamos conscientes do outro ao mesmo tempo. Avançando no Caminho, cada um descobre que Deus torna-se cada vez mais íntimo e sempre mais distante, bem conhecido e ainda desconhecido - conhecido para uma pequena criança, incompreensível para o mais brilhante teólogo. Deus habita em uma "luz inacessível", mas ainda assim o homem está em sua presença com uma confiança amorosa e se dirige a ele como a um amigo. Deus é ponto de chegada e o ponto de partida. Ele é o anfitrião que nos acolhe no final da jornada, mas é também o companheiro que caminha ao nosso lado a cada passo do Caminho. Como Nicolau Cabasilas diz: "Ele é  tanto a estalagem na qual descansamos por uma noite como o final de nossa jornada".

Mistério, mas pessoa: vamos considerar esses dois aspectos a seguir.

Deus como Mistério

A menos que comecemos com um sentimento de admiração e reverência - com o que muitas vezes é chamado de senso do numinoso -, faremos pouco progresso no Caminho. Quando Samuel Palmer visitou pela primeira vez William Blake, o velho perguntou-lhe como ele abordava a pintura. 'Com temor e tremor', Palmer respondeu. "Então você será capaz", disse Blake.

Os Pais Gregos comparam o encontro do homem com Deus à experiência de alguém caminhando sobre as montanhas na névoa: ele dá um passo à frente e de repente descobre que ele está na borda de um precipício, sem um chão sob os pés, mas apenas um abismo sem fundo. Ou então eles usam o exemplo de um homem de pé na noite, em uma sala escura: ele abre uma pequena brecha na janela, e, quando olha para fora um súbito relâmpago o faz cair para trás, momentaneamente cego.  Tal é o efeito de ficar frente a frente com o mistério vivo de Deus: somos atingidos por uma vertigem;  todos os pontos de apoio familiares desaparecem, e não parece não haver nada que possamos entender; nossos olhos internos tornam-se cegos, nossas suposições normais são estilhaçadas.

Os Pais também tomam como símbolos do Caminho espiritual as duas figuras do Antigo Testamento, Abraão e Moisés. Abraão, vivendo ainda em sua antiga morada em Ur dos Caldeus, recebe a instrução de Deus: "Sai do teu país, e da tua parentela, e da casa de teu pai, para uma terra que eu vou te mostrar" (Gen. 12:1). Aceitando o chamado divino, ele sai de seu ambiente familiar e se aventura no desconhecido, sem qualquer ideia clara de seu destino final. Ele simplesmente recebeu a ordem, 'Sai...' e, com fé, ele obedece. Moisés recebe sucessivamente três visões de Deus: primeiro ele avista Deus em uma visão de luz na Sarça Ardente (Êxodo 3: 2); em seguida, Deus lhe é revelado na mistura de luz e escuridão, na "coluna da nuvem e do fogo", que acompanha o povo de Israel pelo deserto (Êxodo 13:21); e então, por fim, ele encontra Deus em uma "não-visão", quando fala com Ele na "escuridão espessa" no topo do Monte Sinai (Êxodo 20:21).

Abraão viaja da  casa de sua família para um país desconhecido; Moisés progride da luz para a escuridão. E assim acontece com cada um que segue o Caminho espiritual. Saindo do conhecido para o desconhecido, avançamos da luz para a escuridão. Nós não procedemos simplesmente da escuridão da ignorância para a luz do conhecimento, mas avançamos da luz do conhecimento parcial para um conhecimento maior que é muito mais profundo que só pode ser descrito como a "escuridão do desconhecimento". Como Sócrates, começamos a perceber quão pouco que entendemos. Vemos que não é tarefa do cristianismo fornecer respostas fáceis a todas as questões, mas sim tornar-nos progressivamente conscientes de um mistério. Deus não é tanto o objetivo do nosso conhecimento, mas a causa de nossa admiração. Citando o Salmo 8:1: "Ó Senhor, Senhor nosso, quão admirável é o teu nome em toda a terra", São Gregório de Nisa afirma: "O nome de Deus não é conhecido; é admirado."

Reconhecendo que Deus é incomparavelmente maior do que qualquer coisa que possamos dizer ou pensar sobre Ele, achamos necessário referirmo-nos a ele não apenas por meio de declarações diretas, mas por meio de figuras e imagens. Nossa teologia é em grande medida simbólica. No entanto, os símbolos por si só são insuficientes para transmitir a transcendência e a "alteridade" de Deus. Para apontar para o mysterium tremendum, precisamos usar declarações negativas e afirmativas, dizendo o que Deus não é em vez do que ele é. Sem o uso do caminho da negação, daquilo que é chamado de abordagem apofática, nossa conversa sobre Deus torna-se seriamente enganosa. Tudo o que afirmamos em relação a Deus, por mais correto que seja, fica longe da verdade viva. Se dissermos que Ele é bom ou justo, devemos, de imediato, acrescentar que sua bondade ou justiça não devem ser medidas pelos nossos padrões humanos. Se dissermos que Ele existe, devemos qualificar isso de imediato, acrescentando que Ele não é um objeto existente entre muitos, que em seu caso a palavra "existir" tem um significado único. Portanto, o caminho da afirmação é equilibrado pelo caminho da negação. Como diz o Cardeal Newman, continuamente estamos "dizendo e não dizendo, com um resultado positivo". Tendo feito uma afirmação sobre Deus, devemos passar além dela: a afirmação não é falsa, mas nem ela nem qualquer outra forma de palavras podem conter a plenitude do Deus transcendente.

Assim, o Caminho espiritual revela-se um caminho de arrependimento no sentido mais radical. Metanoia, a palavra grega para arrependimento, significa literalmente "mudança de mente". Ao aproximarmo-nos de Deus, devemos mudar a nossa mente, despojando-nos de todas as nossas formas habituais de pensar. Devemos nos converter não só na nossa vontade, mas também no nosso intelecto. Precisamos inverter nossa perspectiva interior,  manter a pirâmide de cabeça para baixo.

No entanto, a "escuridão espessa" em que entramos com Moisés revela-se uma escuridão luminosa ou deslumbrante. A maneira apofática de "desconhecer" não nos leva ao vazio, mas à plenitude. Nossas negações são, na realidade, supra-afirmações. Destrutiva na forma externa, a abordagem apofática é afirmativa em seus efeitos finais: ela nos ajuda a alcançar, para além de todas as afirmações positivas ou negativas, para além de toda linguagem e de todo o pensamento, uma experiência imediata do Deus vivo.

Isto está implícito, na verdade, na  própria palavra "mistério". No sentido religioso correto do termo, "mistério" significa não só ocultação, mas também desvelamento.  A palavra grega mysterion está ligada com o verbo myein, que significa "fechar os olhos ou a boca". O candidato para iniciação em certas religiões de mistérios pagãs era primeiramente vendado e conduzido através de um labirinto; então, de repente, seus olhos descobertos e ele via, os emblemas secretos do culto ao redor dele. Assim, por "mistério", no contexto cristão, não nos referimos meramente àuquilo que é desconcertante e misterioso, um enigma ou um problema insolúvel. Um mistério é, ao contrário, algo que é revelado ao nosso entendimento, mas que nunca compreendemos exaustivamente porque conduz à profundidade ou à escuridão de Deus. Os olhos são fechados - mas eles também são abertos.

Portanto, ao falarmos de Deus como um mistério, somos levados ao nosso segundo "pólo". Deus está escondido de nós, mas ele também nos é revelado: revelado como pessoa e como amor.

Fé em Deus como Pessoa

No Credo, não dizemos: "Creio que há um Deus"; nós dizemos: "Creio em um só Deus". Entre a crença de que há e a crença em, há uma distinção crucial. É possível, para mim, crer que alguém ou algo existe, e, ainda assim, que essa crença não tenha nenhum efeito prático sobre minha vida. Posso abrir a lista telefônica de Wigan e verificar os nomes registrados em suas páginas; e, enquanto leio, estou preparado para acreditar que algumas (ou mesmo a maioria) dessas pessoas realmente existem. Mas eu não conheço nenhuma delas pessoalmente, eu nunca visitei Wigan, e minha crença de que elas existem não faz diferença para mim. Quando, por outro lado, eu digo a um amigo muito querido, "Eu creio em você", estou fazendo muito mais do que expressar a crença de que essa pessoa existe. "Eu creio em você" significa: Eu recorro a você, confio em você, coloco minha confiança total em você e espero em você. E é isso que estamos dizendo a Deus no Credo. A fé em Deus, portanto, não é o mesmo que o tipo de certeza lógica que alcançamos na geometria euclidiana. Deus não é a conclusão de um processo de raciocínio, a solução de um problema matemático. Acreditar em Deus não é aceitar a possibilidade de sua existência porque nos foi provado por algum argumento teórico, mas é confiar n'Aquele que conhecemos e amamos. A fé não é o pressuposto de que algo pode ser verdade, mas a certeza de que alguém está presente.

Pelo fato da fé não ser uma certeza lógica, mas um relacionamento pessoal, e pelo fato deste relacionamento pessoal ser ainda muito incompleto em cada um de nós e precisar continuamente desenvolver-se ainda mais, não é impossível que a fé coexista com a dúvida. Os dois não são mutuamente exclusivos. Talvez haja alguns que, pela graça de Deus, conservem ao longo de sua vida a fé de uma criança, permitindo-lhes aceitar sem questionar tudo o que lhes foi ensinado. Para a maioria daqueles que vivem no ocidente hoje, no entanto, essa atitude simplesmente não é possível. Temos que clamar também: "Eu creio, Senhor! ajuda a minha incredulidade". (Marcos 9:24). Para muitos de nós, essa continuará sendo nossa oração constante até os próprios portões da morte. No entanto, a dúvida não significa, por si só, falta de fé. Pode significar o oposto - que nossa fé está viva e crescendo. Pois a fé não implica complacência, mas assumir riscos, não nos desligando do desconhecido, mas avançando audazmente para encontrá-lo. Aqui, um cristão ortodoxo pode prontamente fazer suas as palavras do bispo J.A.T. Robinson: "O ato de fé é um diálogo constante com a dúvida". Como Thomas Merton corretamente diz: "A fé é um princípio de questionamento e luta antes de se tornar um princípio de certeza e paz".

A fé, portanto, significa uma relação pessoal com Deus; um relacionamento ainda incompleto e vacilante, mas ainda assim real. Trata-se de conhecer Deus não como uma teoria ou princípio abstrato, mas como pessoa. Conhecer uma pessoa é muito mais do que conhecer fatos sobre essa pessoa. Conhecer uma pessoa é essencialmente amar ele ou ela; não pode haver consciência real de outras pessoas sem amor mútuo. Não temos conhecimento genuíno daqueles que odiamos. Aqui, então, estão as duas formas menos enganosas de falar sobre o Deus que supera nossa compreensão: ele é pessoal e ele é amor. E estas são basicamente duas maneiras de dizer a mesma coisa. Nosso modo de entrada no mistério de Deus é através do amor pessoal. Como "A Nuvem do Não-Saber"  diz: "Ele pode ser amado, mas não pensado. Por amor, ele pode ser alcançado e mantido, mas pelo pensar nunca".

Como uma indicação ofuscada desse amor pessoal existente entre o fiel e o Sujeito de sua fé, vamos dar três exemplos ou ícones (ikons) verbais. O primeiro é do relato do martírio de São Policarpo, do século II. Os soldados romanos haviam acabado de chegar para prender o já idoso Bispo Policarpo, e levá-lo ao que ele sabia que devia ser a sua morte:

Quando soube que tinham chegado, ele desceu e falou-lhes. Todos ficaram maravilhados com sua idade e sua calma, e se perguntaram por que as autoridades estavam tão ansiosas para prender um homem velho como ele. De imediato, Policarpo ordenou que comida e bebida fossem servidas, tanto quanto quisessem, embora fosse tarde; e pediu-lhes que lhe dessem uma hora para rezar sem ser perturbado. Quando concordaram, ele levantou-se e rezou, e estava tão cheio da graça de Deus que, durante duas horas, não pôde ficar em silêncio. Enquanto ouviam, ficaram cheios de espanto, e muitos deles se arrependeram por terem prendido um idoso tão santo. Ele se lembrou do nome de todos os que havia conhecido, grandes e pequenos, comemorados ou desconhecidos, e de toda a Igreja Católica em todo o mundo.

Tão forte e arrebatador era seu amor por Deus, e por toda humanidade em Deus, que, nesse momento de crise, São Policarpo pensa apenas nos outros e não no perigo que ele mesmo estava correndo. Quando o governador romano lhe diz para salvar sua vida, rejeitando Cristo, ele responde: "Por 86 anos eu fui seu servo, e ele não me fez nada errado. Como então eu posso blasfemar contra meu Rei, que me salvou?"

O segundo é o relato de São Simeão, o Novo Teólogo no século XI, descrevendo como Cristo revelou-se em uma visão de luz:

Tu brilhste sobre mim com um resplendor radiante e, assim me pareceu, surgiste para mim em Tua totalidade enquanto, com todo o meu ser, eu olhava abertamente para Ti. E quando eu disse: "Mestre, quem és?" então ficaste satisfeito por falar pela primeira vez comigo, o pródigo. Com que gentileza falaste comigo, enquanto, admirado e tremendo, refleti um pouco dentro de mim e disse: "O que essa glória e esse brilho deslumbrante significam? Como posso ser escolhido para receber essas grandes bênçãos?" "Eu sou Deus", respondeste, "que se fez homem por tua causa; e porque me procuraste com todo o teu coração, daqui em diante serás meu irmão, meu herdeiro e meu amigo."

Como terceiro exemplo, uma oração de um bispo russo do século XVII, São Dimitrii de Rostov:

Vem, minha Luz, e ilumina minha escuridão.
Vem, minha Vida e me reviva da morte.
Vem, meu Médico, e cura minhas feridas.
Vem, Chama do amor divino, e queime
os espinhos dos meus pecados, acendendo meu coração com a
Chama do Teu amor.
Vem, meu Rei, senta-te no trono do meu coração
e reina ali.
Pois
Tu és meu Rei e meu Senhor.

Três "Indicadores"

Deus, então, é Aquele a quem amamos, nosso amigo pessoal. Não precisamos provar a existência de um amigo pessoal. Deus, diz Olivier Clemente, "não é uma evidência externa, mas o chamado secreto dentro de nós". Se acreditamos em Deus, é porque O conhecemos diretamente em nossa própria experiência, não por causa de provas lógicas. No entanto, uma distinção precisa ser feita entre "experiência" e "experiências". A experiência direta pode existir sem necessariamente acompanhar experiências específicas. De fato, muitos creem em Deus por causa de alguma voz ou visão, como São Paulo recebeu no caminho de Damasco (Atos 9: 1-9). Há muitos outros, porém, que nunca passaram por experiências particulares desse tipo, mas que ainda podem afirmar que, presente durante a vida como um todo, há uma experiência total do Deus vivo, uma convicção em um nível mais fundamental do que todas as suas dúvidas. Mesmo que eles não possam apontar para um lugar ou momento preciso do caminho como Santo Agostinho, Pascal ou Wesley puderam, eles podem afirmar com confiança: eu conheço Deus pessoalmente.

Tal, então, é a "evidência" básica da existência de Deus: um apelo à experiência direta (mas não necessariamente às experiências). No entanto, embora não possa haver demonstrações lógicas da realidade divina, existem certos "indicadores". No mundo que nos rodeia, como também dentro de nós, há fatos que clamam por uma explicação, mas que permanecem inexplicáveis a menos que nos comprometamos a crer em um Deus pessoal. Três desses "indicadores" exigem menção particular.

Primeiro, há o mundo que nos rodeia. O que vemos? Muita desordem e desperdício evidente, muito desespero trágico e sofrimento aparentemente inútil. E isso é tudo? Certamente não ... Se existe um "problema do mal", também há um "problema do bem". Onde quer que olhemos, vemos não só confusão, mas beleza. Em flocos de neve, folhas ou insetos, descobrimos padrões estruturados de uma delicadeza e equilíbrio que nada fabricado pela habilidade humana pode igualar. Não devemos sentimentalizar essas coisas, mas não podemos ignorá-las. Como e por que esses padrões surgiram? Se eu pegar um baralho de cartas da fábrica, com os quatro naipes organizados em sequência, e começar a embaralhá-lo, então quanto mais ele é embaralhado, mais o padrão inicial desaparece e é substituído por uma justaposição sem sentido. Mas, no caso do universo, o contrário aconteceu. A partir de um caos inicial, surgiram padrões de uma complexidade e significado cada vez maiores, e entre todos esses padrões, o mais intrincado e significativo é o próprio homem. Por que o processo que acontece com o baralho de cartas é exatamente  invertido no nível do universo? O que, ou quem, é responsável por essa ordem e design cósmico? Tais questões não são despropositadas. É a razão em si que me impele a buscar uma explicação sempre que percebo ordem e sentido.

"O Grão era Oriente e Trigo Imortal, que nunca deveria ser colhido, nem nunca foi semeado. Eu pensei que havia permanecido de Eternidade a Eternidade. A Poeira e as Pedras da Rua eram preciosas como Ouro... As Árvores Verdes, quando eu as vi primeiro através de um dos Portões, me Transportaram e me Arrebataram: sua Doçura e Beleza incomum fizeram meu coração pular, e quase enlouquecido de Êxtase, eram Coisas tão estranhas e Maravilhosas..." As percepções da infância de Traherne da beleza do mundo encontram paralelo em numerosos textos de fontes ortodoxas. Aqui, por exemplo, estão as palavras do Príncipe Vladimir Monomakh de Kiev:

Veja como o céu, o sol, a lua e as estrelas, a escuridão e a luz, e a terra que está posta sobre as águas, são ordenados, ó Senhor, por tua providência! Veja como os diferentes animais, e os pássaros e peixes, são adornados pelo seu carinho, ó Senhor! Esta maravilha, também, admiramos: como Tu criaste o homem do pó e quão variada é a aparência dos rostos humanos: embora devamos reunir todos os homens em todo o mundo, mesmo assim não há nenhum a mesma aparência, mas cada um pela sabedoria de Deus tem sua própria aparência. Também nos admiramos como os pássaros do céu saem do seu paraíso: eles não ficam em um país, mas vão, fortes e fracos, em todos os países, ao comando de Deus, para todas as florestas e campos.

Essa presença de sentido no mundo, bem como a confusão, a coerência e a beleza, bem como a inutilidade, nos fornece um primeiro "indicador" em direção a Deus. Encontramos um segundo "indicador" dentro de nós mesmos. Por que, diferente do meu desejo de prazer e antipatia pela dor, tenho dentro de mim um sentimento de dever e obrigação moral, um senso de certo e errado, uma consciência? E essa consciência não me diz simplesmente para obedecer os padrões que os outros me ensinaram; ela é pessoal. Por que, além disso, colocado como estou no tempo e no espaço, encontro dentro de mim aquilo que Nicolau Cabasilas chama de "sede infinita" ou sede do que é infinito? Quem sou eu? O que eu sou?


A resposta para essas questões está longe de ser óbvia. Os limites da pessoa humana são extremamente amplos; cada um de nós pouco sabe sobre o seu eu verdadeiro e profundo. Por meio de nossas faculdades de percepção, voltada ao interior e ao exterior, por meio da nossa memória e através do poder do inconsciente, ampliamos o espaço, nos esticamos para trás e para a frente no tempo, e alcançamos além do espaço e o tempo até a eternidade. "Dentro do coração existem profundidades insondáveis", afirmam as Homilias de São Macário. "É apenas um vaso pequeno: e ainda assim existem dragões e leões, e há criaturas venenosas e todos os tesouros da iniquidade; caminhos acidentados, irregulares e abismos abertos estão lá. Também está Deus, os anjos, a vida e o Reino, há luzes e os apóstolos, as cidades celestiais e os tesouros da graça: todas as coisas estão lá ".


Desta forma, temos, dentro do nosso próprio coração, um segundo "indicador". Qual é o significado da minha consciência? Qual é a explicação para a minha sensação de infinito? Dentro de mim, há algo que continuamente me faz olhar além de mim mesmo. Dentro de mim, carrego uma fonte de maravilha, uma fonte de auto-transcendência constante.

Um terceiro "indicador" é encontrado em meus relacionamentos com outras pessoas. Para cada um de nós - talvez uma ou duas vezes apenas em todo o curso de nossa vida - houve momentos súbitos de descoberta, quando vimos o mais profundo ser e verdade do outro revelados a nós, e experimentamos sua vida interior como se fosse nossa. E esse encontro com a verdadeira personalidade do outro é, uma vez mais, um contato com o transcendente e atemporal, com algo mais forte do que a morte. Dizer ao outro, com todo nosso coração, "eu te amo", é dizer: "Você nunca morrerá". Em tais momentos de compartilhamento pessoal, sabemos, não por argumentos, mas por convicção imediata, de que há vida além da morte. É assim que, em nossas relações com os outros, bem como em nossa experiência de nós mesmos, temos momentos de transcendência, apontando para algo que está além. Como sermos leais a esses momentos e como podemos dar sentido a eles?

Esses três "indicadores" - no mundo que nos rodeia, no mundo dentro de nós e em nossas relações interpessoais - podem servir juntos como um meio de aproximação, levando-nos ao limiar da fé em Deus. Nenhum desses "indicadores" constitui uma prova lógica. Mas qual é a alternativa? Devemos dizer que a aparente ordem no universo é mera coincidência; que a consciência é simplesmente o resultado do condicionamento social; e que, quando a vida neste planeta finalmente for extinta, será como se tudo o que a humanidade que viveu e todas as nossas potencialidades nunca tivessem existido? Essa resposta parece-me não apenas insatisfatória e desumana, mas também extremamente irracional.

É fundamental para meu caráter como ser humano que eu busque em todos os lugares explicações com sentido. Faço isso com as coisas menores da minha vida: não devo fazer isso também com a maior? A crença em Deus me ajuda a entender porque o mundo deve ser como é, com sua beleza e bem com sua feiura; porque eu deveria ser como eu sou, com minha nobreza, bem como com minha miséria; e porque eu deveria amar os outros, afirmando seu valor eterno. Para além da crença em Deus, não consigo ver nenhuma outra explicação para tudo isso. A fé em Deus me permite dar sentido às coisas, vê-las como um todo coerente, de uma forma que nada mais pode fazer. A fé me permite fazer um a partir de muitos.

Essência e Energias

Para indicar os dois "pólos" do relacionamento de Deus conosco - desconhecido, mas ainda assim bem conhecido, escondido, mas ainda assim revelado - a tradição ortodoxa estabelece uma distinção entre a essência, a natureza ou o ser interior de Deus, por um lado, e suas energias, operações ou atos de poder, por outro.

"Ele está fora de todas as coisas de acordo com sua essência", escreve Santo Atanásio, "mas está em todas as coisas através de Seus atos de poder." "Conhecemos a essência através da energia", afirma São Basílio. "Ninguém jamais viu a essência de Deus, mas acreditamos na essência porque experimentamos a energia." Pela essência de Deus se entende a sua alteridade, pelas energias sua proximidade. Porque Deus é um mistério além do nosso entendimento, nunca conheceremos sua essência ou ser interior, nem nesta vida, nem na era por vir. Se conhecêssemos a essência divina, quer dizer que conheceríamos Deus da mesma forma que Ele próprio conhece a si mesmo; e isso não podemos fazer, já que ele é Criador e somos criados. Mas, enquanto a essência interior de Deus está para sempre além da nossa compreensão, Suas energias, graça, vida e poder enchem todo o universo e são diretamente acessíveis a nós.

A essência, portanto, significa a transcendência radical de Deus; as energias, a Sua imanência e a onipresença. Quando os ortodoxos falam das energias divinas, não querem dizer com isso uma emanação de Deus, um "intermediário" entre Deus e o homem, ou uma "coisa" ou "dom" que Deus concede. Pelo contrário, as energias são o próprio Deus em sua atividade e auto-manifestação. Quando um homem conhece ou participa das energias divinas, ele realmente conhece ou participa do próprio Deus, na medida em que é possível para um ser criado. Mas Deus é Deus, e nós somos homens; e assim, enquanto Ele nos possui, não podemos possuí-lo da mesma forma.

Assim como seria errado pensar nas energias como uma "coisa" concedida a nós por Deus, seria igualmente enganador considerar as energias como "uma parte" de Deus. A Divindade é simples e indivisível, e não tem partes. A essência significa Deus inteiro, como ele é em si mesmo; as energias significam Deus inteiro, como ele é em ação. Deus em sua totalidade está completamente presente em cada uma das suas energias divinas. Deste modo, a distinção essência-energia é uma maneira de declarar simultaneamente que Deus inteiro é inacessível e que Deus inteiro em seu amor, saindo de si, tornou-se acessível ao homem.

Em virtude desta distinção entre a essência divina e as energias divinas, podemos afirmar a possibilidade de uma união direta ou mística entre o homem e Deus - o que os Padres Gregos denominam a theosis do homem, a sua "deificação" - mas ao mesmo tempo, excluímos qualquer identificação panteísta entre os dois: porque o homem participa nas energias de Deus, não na essência. Existe união, mas não fusão ou confusão. Embora 'unido' com o divino, o homem ainda permanece homem; ele não é engolido ou aniquilado, mas entre ele e Deus continua sempre a existir uma relação "Eu-Tu" de pessoa para pessoa.

Assim, é nosso Deus: incognoscível em sua essência, mas conhecido em suas energias; além e acima de tudo que podemos pensar ou expressar, mas mais próximo de nós do que nosso próprio coração. Através da via apofática, esmagamos todos os ídolos ou imagens mentais que formamos dele, pois sabemos que todos são indignos de sua grandeza insuperável. Ainda assim, ao mesmo tempo, por nossa oração e por nosso serviço ativo no mundo, descobrimos a cada momento Suas energias divinas, Sua presença imediata em cada pessoa e cada coisa. Diariamente, de hora em hora tocamos Nele. Nós não estamos, como Francis Thompson disse, "em terra estranha". Ao nosso redor está a "uma coisa repleta de esplendores"; a escada de Jacob é "lançada entre o céu e a Charing Cross":

Ó mundo invisível, nós te vemos,
Ó mundo intangível, nós te tocamos,
Ó mundo incognoscível, nós te conhecemos,
Inapreensível, nós te apanhamos.

Nas palavras de John Scotus Eriugena, "Toda criatura visível ou invisível é uma teofania ou aparição de Deus". O cristão é aquele que, onde quer que olhe, vê Deus em todos os lugares e se alegra com Ele. Não sem razão, os primeiros cristãos atribuíram a Cristo este provérbio: "Levante a pedra e você me encontrará; corte a madeira em dois e aí estou Eu."

* * *

Imagine um penhasco íngreme, com uma extremidade saliente no topo. Agora imagine o que uma pessoa provavelmente sentiria se colocasse seu pé na beira deste precipício e, olhando para o abismo abaixo, não visse nenhuma base sólida nem nada a que se agarrar. Isso é o que eu acho que a alma vivencia quando vai além de sua base nas coisas materiais, em sua busca por aquilo que não tem dimensão e que existe desde toda a eternidade. Porque ali não há nada de que se possa apoiar, nem lugar, nem tempo, nem medida, nem qualquer outra coisa; as nossas mentes não podem aproximar-se dele. E assim a alma, escorregando em cada ponto do que não pode ser apreendido, fica tonta e perplexa e volta mais uma vez ao que lhe é conatural, satisfeita agora em apenas saber isto sobre o Transcendente, que é completamente diferente da natureza das coisas que a alma conhece.

São Gregório de Nissa 


Pense em um homem de pé à noite dentro de sua casa, com todas as portas fechadas; e então suponha que ele abra uma janela exatamente no momento em que há um relâmpago repentino. Incapaz de suportar o seu brilho, ele se protege fechando os olhos e afastando-se da janela. Assim é acontece com a alma que está encerrada no reino dos sentidos: se alguma vez ela espreita pela janela do intelecto, ela é inundada pelo brilho, como um raio, da promessa do Espírito Santo que está dentro dela. Incapaz de suportar o esplendor da luz desvelada, logo fica desnorteada no seu intelecto e recua inteiramente sobre si mesma, refugiando-se, como em uma casa, entre coisas sensoriais e humanas.

São Simeão, o Novo Teólogo


Qualquer um que tenta descrever a Luz inefável em linguagem é um verdadeiro mentiroso, não porque ele odeie a verdade, mas por causa da inadequação de sua descrição.

São Gregório de Nissa

Abandonai os sentidos e o funcionamento do intelecto, e tudo o que os sentidos e o intelecto podem perceber, e tudo o que não é e o que é; e, através do desconhecimento, alcançai, tanto quanto possível, a unidade com aquele que está além de todo ser e conhecimento. Desta forma, através de um desapego rigoroso, absoluto e puro de si mesmo e de todas as coisas, transcendendo todas as coisas e libertado de todas, sereis conduzidos para o alto, para esse resplendor da escuridão divina que está além de todos os seres.

Entrando na escuridão que ultrapassa o entendimento, encontrar-nos-emos conduzidos, não apenas à brevidade da fala, mas ao perfeito silêncio e ao desconhecimento.

Esvaziado de todo o conhecimento, o homem une-se na parte mais elevada de si mesmo, não com nenhuma coisa criada, nem com ele mesmo, nem com outro, mas com Aquele que é totalmente incognoscível; e, não conhecendo nada, ele conhece de uma maneira que ultrapassa o entendimento.

São Dionísio, o Aeropagita 

A forma de Deus é inefável e indescritível, e não pode ser vista com olhos de carne. Ele é na glória incontível, na grandeza incompreensível, na altura inconcebível, na força incomparável, na sabedoria inacessível, no amor inimitável, na beneficência inefável.

Assim como a alma do homem não é vista, porque é invisível aos homens, mas sabemos da sua existência através dos movimentos do corpo, assim também Deus não pode ser visto pelos olhos humanos, mas é visto e conhecido através da sua providência e das suas obras.

Teófilo de Antioquia

Não conhecemos Deus na Sua essência. Conhecemo-Lo antes pela grandeza da Sua criação e pelo Seu cuidado providencial por todas as criaturas. Pois, dessa maneira, como que usando um espelho, chegamos ao conhecimento da Sua infinita bondade, sabedoria e poder.

São Máximo, o Confessor

A coisa mais importante que acontece entre Deus e a alma humana é amar e ser amado.

Kallistos Kataphygiotis

O amor a Deus é extático, fazendo-nos sair de nós mesmos: não permite que o amante pertença mais a si mesmo, ele pertence apenas ao Amado.

São Dionísio, o Areopagita

Eu sei que o Imóvel desce;

Eu sei que o invisível aparece para mim;

Eu sei que aquele que está longe de toda a criação

Leva-me para dentro de si e esconde-me nos seus braços,

E então encontro-me fora do mundo inteiro.

Eu, um frágil e pequeno mortal no mundo,

Contemplo o Criador do mundo, todo ele, dentro de mim;

E sei que não morrerei, porque estou dentro da Vida,

Tenho toda a Vida brotando como uma fonte dentro de mim.

Ele está no meu coração, ele está no céu:

Tanto ali como aqui ele se mostra a mim com igual glória.

São Simeão, o Novo Teólogo


Fé e Ciência na Gnosiologia Ortodoxa (Pe. George Metallinos)

  


A. Problema ou pseudoproblema?
 
A antítese e consequente colisão entre fé e ciência é um problema para o pensamento ocidental (franco-latino) e é um pseudoproblema para a tradição patrística Ortodoxa. Isto é baseado nos dados históricos dessas duas regiões.  O (suposto) dilema da fé versus a ciência aparece na Europa Ocidental no século XVII, com o desenvolvimento simultâneo das ciências positivas. Por essa mesma época, temos o aparecimento das primeiras posições Ortodoxas sobre esta questão. É um fato importante que esses desenvolvimentos no Ocidente estão acontecendo sem a presença da Ortodoxia. Nos últimos séculos, houve um distanciamento e uma diferenciação espiritual entre o Ocidente [racional] e o Oriente Ortodoxo. Este fato é delineado pela "des-Ortodoxia" e "desigrejação" do mundo ocidental europeu e pela filosofia e legalismo da fé e sua eventual formação como religião na mesma área. Assim, a religião é a refutação(pretensa) da Ortodoxia e, de acordo com o Pe. John Romanides, a doença do ser humano. Portanto, a Ortodoxia permaneceu historicamente como um não participante na fabricação da atual civilização Ocidental Europeia, que também, em tamanho, é diferente da civilização do Oriente Ortodoxo.

Os pontos de inflexão no curso de alteração dos europeus ocidentais incluem: escolástica (século XIII), nominalismo (século XIV), humanismo / renascimento (século 15), reforma (século XVI) e iluminismo (século XVII). Uma série de revoluções e, ao mesmo tempo, violações na estrutura da civilização da Europa Ocidental, que foi criada pela dialética desses dois movimentos.

A escolástica é apoiada na adoção da realia platônica. Nosso mundo é concebido como uma imagem da universalia transcendente (realismo, arquétipo). O instrumento do conhecimento é o intelecto mental. O conhecimento (incluindo o conhecimento de Deus) é realizado através da penetração da lógica na essência dos seres. É o fundamento da teologia metafísica, que pressupõe a Analogia Entis, a consequente relação ontológica entre Deus e o mundo, a analogia entre criados e não criados. O nominalismo aceita que as universais são nomes simples e não seres como no realismo. É uma luta entre platonismo e pensamento aristotélico, no pensamento europeu. No entanto, o nominalismo tornou-se o DNA, de certa forma, da civilização europeia, cujos elementos essenciais são o dualismo, filosoficamente, e o individualismo (eudomenismo), socialmente. A prosperidade se tornará a missão básica do homem ocidental, baseada teologicamente na teologia escolástica da Idade Média. O nominalismo (isto é, o dualismo) é o fundamento do desenvolvimento científico do mundo ocidental, que é o desenvolvimento das ciências positivas.

O Oriente Ortodoxo teve outra evolução espiritual, sob a orientação de seus líderes espirituais, os santos - e daqueles que os seguiram, os verdadeiros crentes - que permaneceram leais à tradição profético-apostólica-patrística; esta tradição está no extremo oposto da escolástica e de todos os desenvolvimentos espirituais históricos na palavra europeia.

No Oriente, o hesicasmo, ou a oração do coração, é dominante (e é a espinha dorsal da tradição Patrística) e isso é expresso com a experiente participação ascética na Verdade, em comunhão com o Incriado. A fé na possibilidade de unir Deus e o mundo (o Incriado e o criado) dentro da história é preservada no Oriente Ortodoxo. Isso, no entanto, significa a rejeição de todas as formas de dualismo. A ciência, na medida em que desenvolveu em "Bizâncio" / Romania, desenvolveu-se dentro deste quadro.

A revolução científica na Europa Ocidental do século XVII contribuiu para a separação dos campos da fé e do conhecimento. Resultou no seguinte princípio axiomático: a filosofia nova (positiva) apenas aceita verdades que são verificadas através do pensamento racional. É a autoridade absoluta do pensamento ocidental. As verdades desta nova filosofia são a existência de Deus, alma, virtude, imortalidade e julgamento. A aceitação delas, é claro, só pode ocorrer em uma iluminação teísta, pois também encontramos o ateísmo como elemento estrutural do pensamento moderno. As doutrinas eclesiásticas que são rejeitadas pela racionalidade são a natureza trinitária de Deus, a Encarnação, a glorificação, a salvação, etc. Essa religião natural e lógica, do ponto de vista ortodoxo, não só difere do ateísmo, mas é muito pior. O ateísmo é menos perigoso do que a sua distorção!
 
B. Gnosiologia Ortodoxa

Foi dito que, no Oriente, a antítese entre fé e ciência é um pseudoproblema, por quê? Porque a gnosiologia no Oriente é definida pelo objeto a ser conhecido, que é duplo: o Incriado e o criado. Somente a Santíssima Trindade é Incriada. O universo (ou universos) em que a nossa existência se realiza, é criado. A fé é o conhecimento do Incriado, e a ciência é o conhecimento do criado. Portanto, são dois tipos diferentes de conhecimento, cada um com seu próprio método e ferramentas de indagação.

O crente, movendo-se no território do sobrenatural, ou o conhecimento do Incriado, não é chamado a aprender algo metafisicamente ou a aceitar algo de forma lógica, mas a experimentar Deus ao estar em comunhão com Ele. Isto é conseguido, apresentando-o a um modo de vida ou método que leva ao conhecimento divino.

Foi corretamente afirmado que, se o cristianismo aparecesse pela primeira vez em nossa era, teria assumido a forma de uma instituição terapêutica, um hospital para restabelecer e restaurar a função do homem como um ser psicossomático. É por isso que São João Crisóstomo chama a Igreja de um hospital espiritual. O conhecimento sobrenatural-teológico é entendido na ortodoxia como pathos (experiência da vida), como participação e comunhão com o transcendente e não uma verdade pessoal inalcançável do Incriado, e certamente não um mero exercício de aprendizagem. Assim, a fé cristã não é a adoção contemplativa abstrata de verdades metafísicas, e sim a experiência de contemplar o Ser Verdadeiro: a experiência da Trindade Supersubstancial (Superessencial).

Isso expressa claramente que, na Ortodoxia, a autoridade é encontrada na experiência. A experiência de participar no Incriado, de ver o Incriado (como expressado pelos termos e "theosis" e "glorificação"), e não se baseia em textos ou nas Escrituras. A tradição da Igreja não é preservada nos textos, mas nas pessoas. Os textos ajudam, mas não são os portadores da Sagrada Tradição. A tradição é preservada pelos santos. Os seres humanos são portadores do Evangelho. A colocação de textos acima da experiência real do Incriado (uma indicação da religião da fé) leva à sua ideologização e, de fato, à sua idolatria. Isso, por sua vez, leva à autoridade absoluta do texto (fundamentalismo) e a todas as consequências bem compreendidas.

O pressuposto da função de conhecer o  Incriado, para a Ortodoxia, é a rejeição de todas as analogias (Entis ou Fide), nesta relação do criado e do  Incriado. São João de Damasco resume esta tradição Patrística anteriormente existente da seguinte maneira: é impossível encontrar, na criação, um ícone que revele o modo de existência da Santíssima Trindade. Porque, como poderia ser possível o criado, que é complexo e mutável e descritível, que tem forma e é perecível, revelar claramente a Essência Divina Superessencial, que está livre de todas essas categorias? (P.G. 94.821 / 21).

Portanto, agora se torna evidente por que a educação escolar e a filosofia mais especificamente, de acordo com a tradição patrística, não são pressupostos para o conhecimento de Deus (theognosis). Ao lado do grande acadêmico, São Basílio, o Grande (+379), também damos homenagem a Santo Antônio (+350), que por padrões de palavras não era sábio. No entanto, ambos são professores da fé. Ambos testemunham o conhecimento de Deus, São Antônio como alguém sem instrução e São Basílio como alguém mais educado do que Aristóteles. Santo Agostinho (+430) difere (algo que o Ocidente acharia muito doloroso, se eles soubessem sobre isso) da tradição patrística neste momento, quando ele ignora a gnosiologia bíblica e patrística e é, na essência, um neoplatonista! Com seu axioma credo ut intelligam (eu acredito para entender), ele introduziu o princípio que o homem é conduzido a uma concepção lógica de Revelação através da fé. Isso dá prioridade ao intelecto (a mente), que é considerado por essa forma de conhecimento como o instrumento ou ferramenta de conhecer tanto o natural quanto o sobrenatural. Deus é considerado um objeto cognoscível que pode ser concebido pelo intelecto humano (mente), assim como qualquer objeto natural pode ser concebido. Depois de Santo Agostinho, o próximo passo nesta evolução (com a intervenção da escolástica de Tomás de Aquino + 1274) será feito por Descartes (+1650) com seu axioma cogito, ergo sum (penso, logo existo) em que o intelecto (mente) é declarado como a base principal da existência.
 
C. Os dois tipos de conhecimento
 
É a tradição Ortodoxa que coloca e acaba com essa colisão teórica no campo da gnosiologia. Faz isso diferenciando os dois tipos de conhecimento e de sabedoria:

1. divino ou aquele que "vem de cima" e
2. secular (thyrathen) ou inferior.

O primeiro conhecimento é sobrenatural e o segundo é natural. Isso corresponde à distinção clara entre o Criado e o  Incriado, entre Deus e a criação. Esses dois tipos de conhecimento exigem dois métodos de aprendizagem. O método da sabedoria divina, é a comunhão do homem com o  Incriado através do coração. É realizado através da presença da Energia  Incriada de Deus no coração do homem. O método da sabedoria secular, a ciência, é realizado exercendo o poder intelectual / lógico do homem. A Ortodoxia estabelece uma hierarquia clara entre os dois tipos de conhecimento e seus métodos.

O método da gnosiologia sobrenatural, na Tradição Ortodoxa, é chamado de hesicasmo e é identificado com a vigilância e a purificação (nepsis e katharsis) do coração. Hesicasmo é identificado com a Ortodoxia. A Ortodoxia, patristicamente falando, é inconcebível fora da sua prática hesicásta. O hesicasmo, em sua essência, é uma prática de cura ascética, de purificar o coração das paixões para reavivar a faculdade noética dentro do coração. Deve-se notar, neste ponto, que o método do hesicasmo como prática de cura também é científico e prático. Portanto, a teologia, em condições adequadas, pertence às ciências práticas. A classificação acadêmica da teologia entre as ciências teóricas ou as artes começou no século XII, no ocidente, e se deve à mudança da teologia para a metafísica. Portanto, aqueles no Oriente que condenam a nossa própria teologia, demonstram a sua ocidentalização, uma vez que eles, essencialmente, condenam e rejeitam uma caricatura desfigurada do que consideram teologia. Mas o que é a função noética? Nas Sagradas Escrituras há, já, a distinção entre o espírito do homem (seu nous) e o intelecto (o logos ou a mente). O espírito do homem na patrística é chamado de nous para distingui-lo do Espírito Santo. O espírito, o nous, é o olho da alma (ver Mateus 6: 226).

A faculdade noética é chamada da função do nous dentro do coração e é a função espiritual do coração, sua função paralela é o coração como o órgão que bombeia o sangue em nossos corpos. Essa faculdade noética é um sistema mnemônico que existe com as células cerebrais. Estes dois são conhecidos e são detectados pela ciência humana, que a ciência não pode, contudo, conceber o nous. Quando o homem atinge a iluminação pelo Espírito Santo e se torna o templo de Deus, o amor próprio muda para o amor incondicional e então torna-se possível construir relações sociais reais apoiadas nessa reciprocidade incondicional (uma disposição de sacrificar-se pelos nossos semelhantes) em vez de uma reivindicação "auto-interessada" de direitos individuais, de acordo com o espírito da sociedade na Europa Ocidental.

Assim, algumas consequências importantes são entendidas: primeiro, que o cristianismo em sua autenticidade é a transcendência da religião e uma concepção da Igreja como meramente uma instituição de regras e deveres. Além disso, a Ortodoxia não pode ser concebida como uma adoção de alguns princípios ou verdades, impostas de cima. Esta é a versão não-ortodoxa das doutrinas (princípios absolutos, verdades impostas). Conceitos e significados na Ortodoxia são examinados através de sua verificação empírica. O estilo dialético-intelectual de pensar sobre teologia, bem como dogmatizar, são estranhos à autêntica tradição Ortodoxa.

O cientista e professor do conhecimento do  Incriado, na Tradição Ortodoxa, é o Geronta / Starets (o Ancião ou Pai Espiritual), o guia ou "professor do deserto". A gravação de ambos os tipos de conhecimentos pressupõe o conhecimento empírico do fenômeno.

O mesmo é válido no campo da ciência, onde apenas o especialista entende a pesquisa de outros cientistas do mesmo campo. A adoção de conclusões ou descobertas de um ramo científico por não especialistas (ou seja, aqueles que não conseguem examinar experimentalmente a pesquisa dos especialistas) é baseada na confiança da credibilidade dos especialistas. Caso contrário, não haveria progresso científico.

O mesmo vale para a ciência da fé. O conhecimento empírico dos santos, profetas, apóstolos, pais e mães de todas as eras é adotado e fundado sobre a mesma confiança. A tradição patrística e os Concílios da Igreja funcionam nesta experiência provável. Não há Concílio Ecumênico sem a presença dos glorificados / deificados (theoumenoi), aqueles que veem o divino (este é o problema dos concílios de hoje!). A doutrina ortodoxa resulta dessa relação.

Portanto, a fé ortodoxa é tão dogmática quanto a ciência. Aqueles que falam de preconceito peticionado pela fé, não devem esquecer as palavras de Marc Bloch, de que toda pesquisa científica é tendenciosa desde o início, caso contrário, a pesquisa não seria possível. O mesmo vale para a fé. A Ortodoxia faz uma distinção entre os dois tipos de conhecimento (e sabedoria) e seus métodos e ferramentas, evitando assim qualquer confusão entre eles, bem como qualquer conflito. A estrada permanece aberta a confusão e conflito, somente onde as condições e a essência do cristianismo estão perdidas. No entanto, no ambiente ortodoxo, existem algumas analogias ilógicas. Tal como a possibilidade de ter alguém que se destaca na ciência, no entanto, no que diz respeito ao conhecimento divino é uma criança espiritualmente; e vice-versa, alguém que é ótimo em conhecimento divino e completamente analfabeto na sabedoria humana como o mencionado Santo Antônio, o Grande. Nada, no entanto, impede a possibilidade de possuir os dois tipos de sabedoria / conhecimento, como é o caso dos Grandes Pais e Mães da Igreja. Isto é exatamente o que os hinos da Igreja para a matemática do século III, Santa Catarina, a Sábia, como possuidora de ambos os tipos de conhecimento: A mártir tendo recebido a sabedoria de Deus desde a infância, aprendeu toda a sabedoria secular também ...

D. A dialética Deus-Homem
 
Assim, o crente ortodoxo experimenta na correlação das duas sabedorias, uma dialética de Deus-homem. E para usar a terminologia cristológica, todo conhecimento deve permanecer colocado e se mover dentro de seus limites. O problema dos limites de cada tipo de conhecimento é assim: a superação desses limites leva à confusão de suas funções e, finalmente, ao seu conflito. De acordo com o acima exposto, os Santos Padres defenderam o uso correto da ciência e da educação. São Gregório, o Teólogo, afirma: "A educação não deve ser desonrada". O mesmo Padre, em sua segunda Oração teológica, também estabelece os limites de ambos os tipos de sabedoria. São Gregório diz que o antigo sábio (Platão no Timeu) disse: "É difícil conhecer Deus e impossível expressá-lo [verbalmente]". No entanto, o mesmo grego e cristão, São Gregório, entende que é impossível expressar (descrever) Deus com palavras, além disso é absolutamente impossível compreendê-Lo! Isto é, Platão já apontou os limites da razão humana e é importante acrescentar que não há racionalismo na filosofia grega antiga. São Gregório também demonstra a impossibilidade de superar esses limites e a concepção do Incriado por meio do conhecimento do criado.

A distinção e a hierarquia simultânea dos dois tipos de conhecimento foram apontadas por São Basílio, o Grande quando ele afirma que a fé deve prevalecer em palavras relativas a Deus e as provas feitas pela razão. Que a fé se origina da ação e da energia do Espírito Santo. A fé para São Basílio é a iluminação do Espírito Santo no coração. (P.G. 30, 104B-105B). Ele também dá um exemplo clássico do uso ortodoxo do conhecimento científico em seu Hexameron (P.G. 29, 3-208). Ele repudia as teorias cosmológicas dos filósofos sobre a eternidade e a auto-existência do mundo e prossegue para a síntese de fatos bíblicos e científicos, através dos quais ele supera a ciência. Além disso, ao rejeitar os ensinamentos materialistas e heréticos, ele chega à interpretação teológica (mas não metafísica) da natureza da criação. A mensagem central deste trabalho é que o suporte lógico do dogma é impossível baseado apenas na ciência. O dogma pertence a outra esfera. Está acima da razão e da ciência, ainda assim dentro dos limites de outro conhecimento. O uso do dogma com o conhecimento verbal leva à transformação da ciência em metafísica. Ao passo que o uso da razão no domínio da fé prova sua fraqueza e relatividade. Portanto, não há crença de que não seja pesquisada na gnosiologia ortodoxa, mas cada campo é pesquisado com seus próprios critérios: Ciência com seus pressupostos e Conhecimento Divino com seus pressupostos.

A expressão mais trágica do corpo cristão alienado é a atitude eclesiástica no Ocidente em relação a Galileu. O caso poderia ser caracterizado como superando os limites da jurisdição. Mas é muito mais grave, é a confusão dos limites do conhecimento e do conflito. É um fato que essa perda da sabedoria "elevada" no Ocidente e o modo de alcançá-la, fizeram com que o intelecto (mente) fosse usado como uma ferramenta não só da sabedoria humana, mas também da Sabedoria Divina. O uso do intelecto no campo da ciência leva inevitavelmente à rejeição do sobrenatural como incompreensível e seu uso no campo da fé pode levar à rejeição da ciência quando se considera estar em conflito com a fé. Essa mesma maneira de pensar e a mesma perda de critérios, também é traída pela rejeição do sistema copernicano no Oriente (1774-1821). A ciência, por sua vez, se vinga da condenação da Galileu pela Igreja romana, na pessoa de Darwin, com sua teoria da evolução.

E. Transplante do problema ocidental para o Oriente Ortodoxo
 
O Iluminismo europeu consistia em uma luta entre o empirismo físico e a metafísica de Aristóteles. Os iluministas também são filósofos e racionalistas. Os iluministas gregos, com Adamantios Korais como seu patriarca, eram metafísicos em sua teologia e foram eles que transportaram o conflito entre empiristas e metafísicos para a Grécia. No entanto, os monges ortodoxos do Monte Athos, os Kollyvades e outros pais Hesicastas permaneceram empiristas no seu método teológico. A introdução da metafísica em nossa teologia popular e acadêmica é devida, principalmente, a Korais. Por esta razão, Korais tornou-se a autoridade para os teólogos acadêmicos, bem como para os movimentos morais populares. Isso significa que a purificação do coração deixou de ser considerada como um pressuposto da teologia e seu lugar foi tomado pela educação escolástica. O mesmo problema apareceu na Rússia, na época de Pedro o Grande (17-18 século). Assim, os Padres são considerados filósofos (principalmente Neo-platonistas, como São Agostinho) e assistentes sociais. Isso se tornou o protótipo dos pietistas na Grécia. Além disso, Hesicasmo é rejeitado como obscurantismo. As chamadas ideias progressistas de Korais compõem-se do fato de que ele era um defensor do uso calvinista e não católico da metafísica, e suas obras teológicas são intensas neste pietismo calvinista (moralismo).

No entanto, para os Padres, a Ortodoxia é anti-metafísica, pois busca continuamente a certeza empírica, por meio do método hesicasta. É por isso que o hesicasmo dos Kollyvades é empírico e científico. Ratio de acordo com São Nicodemos, o Hagiorita é empírico. Isto é ilustrado pelos Hesicastas do século 18, na forma como eles aceitam o progresso científico do Ocidente. Os Kollyvades reconheceram pontos de vista científicos como, por exemplo, São Nicodemos o Hagiorita fez em seu trabalho, Symbouletikon, onde aceita as últimas teorias de seu tempo no funcionamento do coração. Santo Athansios Parios não luta contra a própria ciência, mas é usado pelos iluministas ocidentalizados da nação grega. Eles consideravam a ciência como a obra de Deus e como uma oferta para a melhoria da vida. Mas o uso da ciência em uma luta metafísica contra a fé, tal como foi praticado no Ocidente, e como foi transferido para o Oriente, é bastante oposto pelos teólogos tradicionais dos séculos 18 e 19. Os erros estão ao lado dos iluministas gregos que, sem ter nenhum relacionamento com o ponto de vista patrístico do conhecimento, embora fossem sacerdotes e monges, transferiram o conflito europeu de metafísicos e empiristas para a Grécia, falando sobre a religião irracional. Ao passo que, os Padres da Ortodoxia, discriminaram entre os dois tipos de conhecimento fazendo uma distinção ao mesmo tempo entre o racional e o supra-racional.

O problema do conflito entre fé e ciência, além da confusão do conhecimento, transforma em ídolo estes dois tipos de conhecimento. Assim, uma apologética fraca e mórbida apareceu no cristianismo (por exemplo, um professor grego de Apologética há muitos anos produziu uma prova matemática da existência de Deus!). Na ortodoxia, no entanto, esse dualismo não é evidente. Nada exclui a coexistência da fé e da ciência quando a fé não é metafísica imaginária e a ciência não falsifica seu caráter positivo com o uso da metafísica. A compreensão mútua da ciência e da fé é ajudada pela linguagem científica atual.

O princípio da indeterminação (que não há causalidade) é um tipo de apofatismo na ciência. O retorno aos Padres, portanto, ajuda a superar o conflito. A aceitação dos limites dos dois tipos de conhecimento (Criado e Incriado) e o uso do órgão ou ferramenta apropriado para cada um deles é o elemento da Ortodoxia e dos Pais, que coloca a sabedoria terrena abaixo do conhecimento superior ou divino.

Em contraste, a confusão dos dois tipos de conhecimento no pensamento ocidental, promove suas interpretações errôneas mútuas e continua promovendo conflito. Uma igreja que persiste na teologia metafísica, sempre será obrigada a implorar o perdão de Galileu. Mas uma Ciência que também ignora seus limites, se deteriorará na metafísica e tratará a existência de Deus (que não é sua responsabilidade) ou rejeita completamente Deus.

sexta-feira, 20 de outubro de 2017

Francos, Romanos, Feudalismo e Doutrina: uma interação entre teologia e sociedade (Pe. John Romanides) - PARTE 2:


Teologia Empírica versus Teologia Especulativa


Na parte 1 apresentamos um resumo da evidência que testifica que o feudalismo na Europa Ocidental não resultou do entrelaçamento de raças e costumes Romanos e Germânicos, como se crê comumente, mas sim da subjugação do Oeste Romano por seus conquistadores. Os francos então voltaram a sua atenção para a escravização eclesiástica e doutrinal da România Papal, tentando causar um cisma entre o Papado e a România Oriental. Este esforço falhou enquanto a nação Romana permaneceu sob o controle do trono Papal.
Os historiadores europeus e americanos tratam a alienação entre o Leste e o Oeste como se fosse inevitável, por conta da suposta separação do próprio Império Romano em Oriental e Ocidental, devido à diferenças linguísticas e culturais, e por conta da famosa distinção entre o legalismo Ocidental versus a especulação Oriental. (1) Esta evidência fortemente sugere que tais tentativas de explicação entre o Oriente e o Ocidente são condicionadas por preconceitos inerentes à tradição cultural dos Francos e da velha propaganda de séculos do Papado Franco.
A evidência aponta claramente para a unidade nacional, cultural e linguística entre o Leste e o Oeste (que por vezes quase colocou a França de joelhos), e que sobreviveu até o momento em que os papas Romanos foram substituídos pelos Francos. Que os papas Romanos Pré-Tusculanos nunca aceitaram a condenação franca do Leste Europeu por alegada heresia, mas, muito pelo contrário, participaram na condenação dos Francos , (ainda que sem se citar nomes) são fatos que devem ser seriamente considerados.  
Os princípios dos Decretos de procedimento jurídico foram uma parte do papado por pelo menos cem anos antes que o Leste dos Francos lhe tomassem. Porém, é certo que os papas Romanos nunca os teriam pensado em aplicar administrativamente se os sínodos fossem substituídos por monarquias diretas legisladas pelos papas, como ocorreu depois. Os Francos resistiram à vigilância jurídica dos papas Romanos. Eles nunca teriam aceitado um papa Romano ordenando e comandando, como os Romanos Orientais nunca aceitariam ordens de Papas Francos.
Não tivessem os Francos tomado o Papado, é muito provável que o sínodo local da Igreja de Roma (com o papa o presidindo) , eleito de acordo com o decreto eleitoral 769 aprovado pelo Oitavo Sínodo Ecumênico em 879, teria resistido, e não existiriam quaisquer diferenças significativas entre o papado e os outros quatros Patriarcados Romanos.
Porém, as coisas não se deram deste modo. O Papado foi alienado do Leste pelos Francos, de modo que nos damos de cara com a história de uma alienação, ao contemplarmos justamente a Cristandade dividida. Em qualquer caso, a estrutura administrativa da Igreja não pode ser julgada e avaliada simplesmente se ou não ela cumpriu com a antiga lei canônica e seus costumes, como frequentemente aconteceu com o lado Ortodoxo. Nem se pode simplesmente apelar para a alegada necessidade da Igreja de se adaptar às mudanças e circunstâncias dos tempos, para supostamente melhorar o que é bom, tornando-o mais eficaz.
Muitos dos protestantes de hoje aceitariam tal abordagem, mas não concordariam que a adaptação não poderia ser elevada a dogma, como foi feito pelo próprio Papado. Os teólogos Latinos, Protestantes e Ortodoxos concordariam que a autêntica Cristandade precisa ter uma continuidade com seu passado apostólico, mas devem ao mesmo tempo se adaptar a situações correntes e suas necessidades. Isto quer dizer que a interação entre teologia e sociedade é aceita como uma necessidade normal na história da Cristandade. Entretanto, os Cristãos estão divididos porque cada grupo vê a adaptação do outro como uma quebra perigosa à continuidade e, consequentemente, à autenticidade.


Teologia Empírica


Talvez uma chave para desenrolarmos esta série de questões que esperam por escrutínio de especialistas, seria adotar os métodos usados nas ciências positivas e relegar os métodos já em uso das ciências sociais para um nível inferior. Claro que não se pode aplicar tais métodos para um exame de Deus e da vida após a morte, mas alguém pode fazê-lo quando se tratar desta vida, levando em consideração as experiências espirituais nas várias religiões.
Na exaltada tradição Ortodoxa, a experiência espiritual genuína é o fundamento das formulações dogmáticas que, por sua vez, são guias necessários para nos conduzir à glorificação. Traduzido na linguagem científica, isto significaria que a verificação pela observação é expressa em símbolos descritivos os quais, por sua vez, agem como guias para que outros experimentem esta mesma verificação por observação. Assim, as observações dos primeiros astrônomos, biólogos, químicos, físicos e médicos tornam-se a observação de seus sucessores.
Exatamente da mesma maneira, a experiência de glorificação dos profetas, apóstolos e santos são expressas em formas linguísticas, cuja proposta é agir como guia para a mesma experiência de glorificação por seus sucessores.
A tradição de observação empírica é a pedra angular que esquadrinha a realidade factual a partir de hipóteses em todas as ciências positivas. O mesmo também é verdadeiro para o método teológico patrístico da ortodoxia.
Uma característica básica do método escolástico Franco, desencaminhado pelo Platonismo Agostiniano e o Aristotelismo Tomista, foi sua confiança ingênua na existência objetiva das coisas racionalmente especuladas por ele. Ao seguir Agostinho, os Francos substituíram o interesse patrístico pela observação espiritual, (que eles encontraram firmemente estabelecido na Gália quando primeiro conquistaram esta área) por uma fascinação pela metafísica. Eles não suspeitaram que tais especulações não tinham fundamento nem na realidade criada, nem na espiritual.
Ninguém hoje aceitaria como verdadeiro o que não é empiricamente observável, ou pelo menos verificável por inferência, a partir de um efeito comprovado e assim o foi com a teologia patrística. A especulação dialética sobre Deus e a Encarnação são rejeitadas como tais. Apenas aquelas coisas que podem ser testificadas pela experiência da Graça de Deus no coração são aceitas. “Não vos carregueis com ensinamentos estranhos e diversos. Pois é bom que o coração seja confirmado pela graça”, uma passagem de Hebreus 13,9, citada pelos Pais para este efeito.


A Bíblia e a Tradição


Os Padres não entendem teologia como uma ciência especulativa ou teorética, mas como uma ciência positiva em todos os sentidos. Esta é a razão de porque o entendimento patrístico da inspiração Bíblica deve ser similar à inspiração dos escritos no campo das ciências positivas. (2)
Os manuais científicos são inspirados pela observação de especialistas. Por exemplo, o astrônomo registra o que ele observa através dos instrumentos que são postos à sua disposição. Por conta deste treinamento no uso de instrumentos, ele é instigado pelos corpos celestes e vê coisas invisíveis a olho nu. O mesmo é verdadeiro para todas as ciências positivas. No entanto, livros sobre ciência nunca podem substituir observações científicas. Tais escritos não são as próprias observações, mas sobre estas observações.
Isto é verdadeiro até mesmo quando equipamentos fotográficos ou acústicos são usados. O equipamento não substitui as observações, mas simplesmente adiciona às observações seus registros. Cientistas não podem ser substituídos pelos livros que escrevem, nem pelos instrumentos que inventam ou usam.
O mesmo é verdadeiro acerca do entendimento ortodoxo da Bíblia e os escritos sobre os Pais. Nem a Bíblia, nem os escritos sobre os Pais são revelação ou palavra de Deus. Eles são sobre a revelação e a Palavra de Deus.
Revelação é a aparição de Deus aos profetas, apóstolos e santos. A Bíblia e os escritos dos pais são sobre estas aparições, mas não a própria aparição. E esta é a razão de porque á chamado profeta, apóstolo e santo quem vê a Deus, e não simplesmente quem lê sobre suas experiências de glorificação. E é evidente que nem um livro sobre a glorificação, nem quem lê tal livro poderá jamais substituir um profeta, apóstolo ou santo que tenha tido a experiência da glorificação.
Os escritos de cientistas são acompanhados por uma tradição de interpretação, encabeçada pelos cientistas que os sucedem os quais, por treinamento e experiência, sabem o que seus colegas quiseram dizer com a linguagem usada e agora repetem as observações descritas. Também é assim na Bíblia e com os escritos dos Pais. Apenas aqueles que têm a mesma experiência de glorificação como seus predecessores profetas, apostólicos e patrísticos podem entender os escritos Bíblicos e patrísticos sobre a glorificação e os estágios espirituais conducentes a ela.  Aqueles que chegaram à glorificação sabem como eles foram guiados até lá, e também como guiar outros, e eles são os garantidores da transmissão da mesma tradição.
Este é o coração do entendimento Ortodoxo da tradição e sucessão apostólica que o distingue das tradições Latina e Protestante, ambos provenientes da teologia dos Francos.
Seguindo Agostinho, os francos identificaram a revelação com a Bíblia e acreditaram que Cristo deu à Igreja o Espírito Santo como guia para seu correto entendimento. Isto seria similar a reivindicar que os livros sobre biologia foram revelados pelos micróbios e as células ainda que os biólogos não os tivessem visto pelo microscópio, e estes mesmos micróbios e células inspirariam os professores no futuro a compreender corretamente estes livros sem o auxílio dos microscópios.
E, de fato, os francos acreditaram que os profetas e apóstolos não viram o próprio Deus, exceto talvez Moisés e Paulo. O que estes profetas e apóstolos alegadamente viram e ouviram foram símbolos fantasmáticos de Deus, cujo propósito seria o de transmitir conceitos sobre Deus à razão humana. Enquanto tais conceitos chegam à existência, a natureza humana de Cristo é uma realidade permanente e o melhor conversor dos conceitos sobre Deus.
Não se precisa então nem de telescópios, nem de microscópios, nem da Visão de Deus, mas preferencialmente de conceitos sobre as realidades invisíveis, os quais a razão humana é por natureza supostamente capaz de entender.
Os historiadores notaram a ingenuidade da mente religiosa franca que estava chocada com a afirmação de que a observação tem um primado sobre a análise racional. Mesmo o telescópio de Galileu conseguiu mudar esta convicção. No entanto, vários séculos antes de Galileu, os Francos se chocaram com a afirmação da Roma Oriental, lançada por São Gregório Palamas (1296-1359), do primado da experiência e observação sobre a razão na teologia.
Os teólogos latinos de hoje ainda se servem da abordagem metafísica de seus predecessores, e continuam a apresentar os teólogos da Roma Oriental, como os hesicastas, como aqueles que preferem a ignorância à erudição, em sua abordagem acerca da união ascendente com Deus. Isto é o equivalente a afirmar que um cientista é contra a educação porque ele insiste no uso de telescópios e microscópios ao invés da filosofia na busca da análise descritiva do fenômeno natural.
O assim chamado movimento humanista na România Oriental foi uma tentativa de reavivar a antiga filosofia Grega, cujas tentativas já haviam sido rejeitadas, muito antes que a moderna ciência a conduzisse à sua substituição no Ocidente Moderno. Apresentar o assim chamado movimento humanista como um reavivamento da cultura é negligenciar o fato de que a pesquisa real estava entre o primado da razão sobre a observação e a experiência.


Instrumentos, observação, conceitos e linguagem
A ciência moderna nasceu pelo acúmulo de técnicas de comprovação com a ajuda de instrumentos e de teorias imaginativas propostas pelo intelecto. A observação por meio destes artefatos abriu um vasto campo de conhecimento que teria sido absolutamente impossível e mesmo inimaginável para o intelecto.
O universo tornou-se um mistério muito maior ao homem do que alguém seria capaz de imaginar, e os indícios são fortes de que ainda se provará ser um mistério muito maior do que o homem de hoje possa imaginar. À luz disso, pensa-se com humor dos bispos que não foram capazes de compreender a realidade, tampouco a magnitude, do que eles viram por meio do telescópio de Galileu. Mas a magnitude da ingenuidade dos Francos tornou-se ainda maior quando eles perceberam que estes mesmos líderes clericais que não haviam entendido o significado de uma simples observação estavam afirmando o conhecimento da essência e natureza de Deus.
A tradição latina não podia entender o significado de um instrumento mediante o qual os profetas, apóstolos e santos alcançaram a glorificação.
Similar às ciências contemporâneas, a Teologia Ortodoxa também depende de um instrumento que não é identificado com a razão ou o intelecto. O nome Bíblico para ele é: coração. Cristo disse: “Bem aventurados os puros de coração porque verão a Deus”. (3)
O coração não está normalmente limpo, i. e., ele não costuma funcionar da forma que lhe é própria. Como as lentes de um telescópio ou microscópio, ele deve ser polido para que a luz possa atravessá-lo e permitir ao homem focar em sua visão espiritual das coisas não visíveis a olho nu.
De igual modo, alguns Pais deram o nome de νους para a faculdade da alma que opera com o coração quando restaurado às suas capacidades normais, e reserva o nome λογος e διανοια para o intelecto e a razão, ou para o que hoje chamamos de cérebro. De modo a evitar confusão, nós usamos os termos de faculdade noética e oração noética para designar a atividade do νους no coração (νοερα ευχη).
É no coração e não no cérebro que o teólogo se forma. A teologia inclui como todas as demais ciências, o intelecto, mas é no coração que o intelecto e a integralidade do ser humano observa e sente a Lei de Deus.
Um das diferenças básicas entre a Ciência e a Teologia Ortodoxa é que o homem tem seu coração ou faculdade noética dados pela natureza, de modo que ele próprio cria seus instrumentos de observação científica.
Uma segunda diferença básica é a seguinte: por meio de seus instrumentos, e a energia radiada por ou sobre o que se observa, os cientistas veem coisas que se pode descrever com palavras, mesmo que por vezes inadequadamente. Estas palavras são símbolos de experiência humana acumulada.
Em contraste a isto, a experiência de glorificação é ver a Deus, o qual não tem qualquer similaridade com as coisas criadas, nem mesmo ao intelecto e aos anjos. Deus é literalmente único e não pode em nenhum sentido ser descrito em comparação com o que possa ser qualquer coisa criada, mesmo que pensada ou imaginada. Nenhum aspecto de Deus pode ser expresso em um conceito ou em uma coleção de conceitos.
Pode-se literalmente perceber-se porque a teoria das ideias de Platão ou mesmo das formas em Agostinho (em que as criaturas são literalmente cópias de protótipos arquetípicos reais na mente divina), são consistentemente rejeitados pelos Pais da Igreja.
Assim, a experiência da glorificação não tem lugar na especulação agostiniana sobre Deus por meio do uso de analogias psicológicas, nem na afirmação de alguns teólogos Russos de que os Pais da igreja supostamente teologizaram sobre Deus na base de algum tipo de “personalismo”. Os Padres não aplicam a Deus nem qualquer termo ou conceito. A razão é clara. Todos os Pais enfatizam, e é precisamente isto o que querem dizer, que não há absolutamente nenhuma similaridade entre Deus e Suas criaturas. Isto significa que os nomes de Deus ou a linguagem sobre Deus não pretendem ter o mesmo significado que o intelecto é capaz de obter quando revela a essência de Deus pelo intelecto.  Preferencialmente, a proposta de linguagem sobre Deus é para ser um guia nas mãos de um pai espiritual que conduz seu pupilo através de vários estágios de perfeição e conhecimento até a glorificação, onde se vê que o que os santos antes dele insistiram sobre Deus como completamente distinto dos conceitos usados acerca Dele.
É por esta razão que as afirmações positivas sobre Deus são contrabalançadas por afirmações negativas, não apenas a fim de purificar as positivas de suas imperfeições, mas de modo a tornar claro que Deus não é em nenhum sentido similar aos conceitos convencionados pelas palavras, já que Deus está acima de todo nome e conceito dirigido a Ele.  
Os Pais insistem contra a heresia Eunomiana de que a linguagem é um desenvolvimento humano não criado por Deus. Argumentando a partir do Antigo Testamento, São Gregório de Nissa afirmou que o hebraico é uma das mais novas línguas do Oriente Médio, uma posição considerada hoje como correta. Compare esta posição com a afirmação de Dante de que Deus criou o hebraico para que Adão e Eva pudessem falar e o preservaram para que Cristo também pudesse usar esta linguagem de Deus. Ora, Cristo não falou o hebraico, mas o aramaico.
A análise de Nissa da linguagem bíblica foi dominante entre os escritores da Roma Oriental. Eu encontrei quatro teorias típicas de Dante até agora apenas entre os Eunomianos e Nestorianos. Dadas tais pressuposições, pode-se ver porque os pais insistem que estudar o universo, ou engajar-se na especulação filosófica não contribui em nada para os estágios de perfeição que conduzem à glorificação.
A doutrina da Santíssima Trindade e da encarnação, quando tomados fora de seu contexto empírico e revelador, tornam-se ou tornaram-se ridículos. O mesmo pode ser dito da distinção entre a essência e as energias incriadas de Deus. Conhecemos tal distinção a partir da experiência de glorificação desde o tempo dos profetas. Ela não foi inventada por São Gregório Palamas. Mesmo os atuais teólogos judeus continuam a vê-la claramente no Antigo Testamento.
A despeito de Deus ter criado o universo, o qual continua na Sua dependência, Deus e o universo não pertencem a uma categoria de verdade. As verdades a respeito da criação não podem se aplicar a Deus, nem pode a verdade de Deus ser aplicada à Criação.


Diagnose e Terapia




Tendo chegado a este ponto, voltaremos nossa atenção àqueles aspectos que diferenciam a teologia dos Romanos e a dos Francos que tiveram um forte impacto diferencial no desenvolvimento de suas doutrinas sobre a Igreja. A diferença básica pode ser listada sob a diagnose das doenças espirituais e suas terapias.
A Glorificação é a visão de Deus que afirma a igualdade de todos e o valor absoluto de cada homem. Deus ama a todos igualmente e indiscriminadamente, sem fazer acepção de seus status morais. Deus ama com o mesmo amor o santo e o possesso. Para se ensinar de outra forma, como fizeram Agostinho e os Francos, seria adequado provar que eles não tiveram a menor ideia do que era a glorificação.
Deus se multiplica e se divide a si mesmo em Suas energias incriadas indivisamente entre coisas divididas, para que assim Ele esteja presente em ato, ainda que ausente em Natureza, para cada criatura individual, estando presente e ausente ao mesmo tempo e em todo lugar. Este é o mistério fundamental da presença de Deus em Suas criaturas e mostra que os universais não existem em Deus e são, consequentemente, nenhuma parte do estágio de iluminação como na tradição Agostiniana.
O próprio Deus está ao mesmo tempo no céu e no inferno, na recompensa e no castigo. Todos os homens foram criados para verem a Deus incessantemente em Sua glória incriada. Se Deus será para cada homem céu ou inferno, delícia ou castigo, depende da resposta que cada homem dá ao amor de Deus e da transformação do homem de seu estado de egoísmo e egolatria para o amor Divino que não procura realizar os seus próprios fins.
Já que todos os homens verão a Deus, nenhuma religião pode afirmar de si mesma como tendo o poder de enviar as pessoas ou ao céu ou ao inferno. Isto significa que os verdadeiros pais espirituais preparam seus encargos espirituais para que a visão da Glória de Deus seja no paraíso e não no inferno, uma delícia e não um castigo. A proposta principal da Cristandade Ortodoxa então é preparar seus membros para uma experiência que todo ser humano terá mais cedo ou mais tarde.
Enquanto o cérebro é o centro da adaptação humana ao meio ambiente, a faculdade noética no coração é o órgão primário de comunhão com Deus. A queda do homem ou o estado do pecado herdado é esta: a) o fracasso da faculdade noética de suas funções próprias ou sua completa disfuncionalidade; b) sua confusão com as funções do cérebro e do corpo em geral; c) sua resultante escravidão ao meio.  
Cada indivíduo experimenta a falha de suas faculdades noéticas. Pode-se ver porque o entendimento agostiniano da queda do homem como uma culpa herdada pelo pecado de Adão e Eva não é, e não pode ser, aceito pela Tradição Ortodoxa.
Há dois sistemas de memória constituintes dos seres viventes, 1) a memória celular que determina a função e o desenvolvimento do indivíduo com relação a si mesmo; 2) a memória celular cerebral que determina a função do indivíduo em relação ao seu meio ambiente. Somado a isto, a tradição patrística é consciente da existência nos seres humanos de uma memória que não funciona normalmente ou que é sub-funcional alojada no coração, a qual, quando posta em ação pela oração noética, inclui uma memória incessante de Deus e consequentemente a normalização de todas as suas outras relações.
Quando a faculdade noética não está funcionando propriamente, o homem é escravizado pelo medo e pela ansiedade e todas as suas demais relações são essencialmente utilitárias. Assim, a raiz ou causa de todas as relações anormais entre Deus e o homem e entre nós e os homens decaídos é o mal funcionamento da faculdade noética, a qual acabará por usar Deus, seu próximo e a natureza para seu próprio entendimento de segurança e felicidade. O homem fora da glorificação imagina a existência de Deus ou dos deuses como projeções psicológicas de sua necessidade de segurança e felicidade.
Todos os homens possuem a faculdade noética no coração o que também quer dizer que todos estão em relação direta com Deus em vários níveis, dependendo do quanto a personalidade individual resiste à escravidão física e social que o rodeia e dependendo do quanto ele permite a si mesmo ser dirigido por Deus. Todo indivíduo é sustentando pela glória incriada de Deus e é uma morada para a Glória incriada de Deus e é a morada desta criação não criada e da luz mantenedora , que é chamada Lei, Poder, Graça, etc de Deus. A reação humana a esta relação direta ou comunhão com Deus pode variar desde o endurecimento do coração (ou seja, o esmorecimento da faísca da Graça) até a experiência de glorificação alcançada pelos profetas, apóstolos e santos.
Isto significa que todos os homens são iguais na posse desta faculdade noética, mas não na qualidade ou no grau de função.
É importante se ater à clara distinção entre espiritualidade, que é a faculdade noética primariamente enraizada no coração e a intelectualidade, que é a enraizada no cérebro. Assim:
  1. Uma pessoa com poucas realizações intelectuais pode atingir o mais alto nível de perfeição noética.
  2. Por outro lado, um homem com as mais altas realizações intelectuais pode cair no mais baixo nível da imperfeição noética.
  3. Pode-se também ao mesmo tempo chegar ao mais alto nível das realizações intelectuais e da perfeição noética.
  4. Pode haver uma realização intelectual escassa com endurecimento do coração.  
O papel da Cristandade foi originalmente mais próxima à profissão médica, especialmente no que hoje chamamos de psicólogos e psiquiatras.
O homem tem um mau funcionamento ou um desfuncionamento da faculdade noética no coração, e é a tarefa especialmente do clérigo aplicar a cura por meio da memória incessante de Deus, pela oração incessante ou iluminação.
A preparação para a visão de Deus ocorre em duas etapas: purificação e iluminação da faculdade noética. Sem isto, é impossível para o amor egoísta do homem seja transformado em amor desinteressado. Esta transformação ocorre no mais alto estágio de iluminação chamado teoria, que literalmente significa visão-em, neste caso a visão por meio da incessante e ininterrupta memória de Deus.
Aqueles que permanecem egoístas e autocentrados com o coração endurecido, fechado ao amor de Deus, não verão a Glória de Deus nesta vida. Porém a verão eventualmente, como um fogo eterno e que não se consome e uma escuridão eterna.  
No estado de teoria a faculdade noética é liberada da escravidão do intelecto, das paixões, do que o circunda e reza incessantemente. Ela é influenciada somente pela memória de Deus. Assim a oração noética funciona simultaneamente com as atividades normais cotidianas. Quando a faculdade noética chega a este estado que o homem se torna templo de Deus.
São Basílio, o Grande, escreve que “a morada de Deus é isto – ter Deus estabelecido em nós mesmos na memória. Ele se torna templo de Deus quando a continuidade da memória não é interrompida pelos cuidados terrenos, nem a faculdade noética sacudida por sofrimentos inesperados, mas escapando de todas estas coisas (faculdade noética) o amigo de Deus se retira para estar a sós com Deus, eliminando as paixões que colocam em risco a continência e permanecendo nas práticas que conduzem à virtude”. (4)
São Gregório o teólogo aponta que “devemos nos lembrar de Deus mais frequentemente do que respiramos; e basta dizer isto, não devemos fazer mais nada ... ou, para usar as palavras de Moisés, se  um homem adormece, ou se levanta, ou caminha por uma estrada, ou o que quer que esteja fazendo, ele deve ter isto impresso em sua memória para a sua purificação”. (5)
São Gregório insiste que teologizar é “permitido apenas àqueles que passaram em seus exames e alcançaram a theoria, e foram purificados na alma e no corpo, ou pelo menos estão sendo purificados”. (6)
Este estado de theoria é duplo e tem dois estágios: a) a memória incessante de Deus e b) a glorificação, um estado posterior, um dom que Deus dá aos Seus amigos de acordo com suas necessidades e as necessidades dos demais. Durante este último estágio de glorificação, a oração noética incessante é interrompida já que ela é substituída pela visão da Glória de Deus em Cristo. As funções normais do corpo, como dormir, comer, beber e a digestão são suspensas. Em outros casos, o intelecto e o corpo funcionam normalmente. Não se perde a consciência, como ocorre na experiência mística extática de Cristãos Não-Ortodoxos e das religiões pagãs. Ele está plenamente consciente e conversando com todos ao seu redor, exceto que ele vê tudo e todos saturados pela glória incriada de Deus, que não é nem luz ou trevas, nenhum lugar e todos os lugares ao mesmo tempo. Este estado pode ser curto, médio ou de longa duração. No caso de Moisés durou quarenta dias e quarenta noites. A face daqueles neste estado de glorificação dão uma imposição radiante, como a face de Moisés, que após a sua morte, teve seu corpo tornado uma relíquia sagrada. Estas relíquias produzem um estranho cheiro doce que pode se tornar forte. Em muitos casos, estas relíquias permanecem intactas em bom estado de preservação, sem que sejam embalsamadas. Eles são completamente rígidos da cabeça aos pés, luminosos, secos, e com nenhum sinal de putrefação.
Não há critério metafísico para distinguir as boas das más pessoas. É muito mais correto distinguir entre os muito sadios e os doentes. Os doentes são aqueles cuja faculdade noética está sendo limpa e iluminada.
Os níveis estão incorporados nos quatro Evangelhos e na vida Litúrgica da Igreja. Os Evangelhos de Marcos, Mateus e Lucas refletem o catecismo pré-batismal para a limpeza do coração, e o Evangelho de João reflete o batismo pós batismal que conduz à teoria pelo sentido do estágio da Iluminação. Cristo mesmo é o Pai Espiritual que conduz aos apóstolos, como ele fizeram com Moisés e os profetas, para glorificar através da purificação e da iluminação. (7)
Pode-se sumarizar estes três estágios de perfeição como: a) aqueles escravos que cumprem os mandamentos pelo temor de ver a Deus como um fogo que os consome; b) o negociante cuja motivação é a recompensa de ver a Deus como Glória; c) aqueles amigos de Deus cuja faculdade noética está completamente livre, cujo amor tornou-se desinteressado e por causa disso, está desejando ser condenado pela salvação de seu próximo, como nos casos de Moisés e Paulo.


O surgimento do Monasticismo, sua contribuição e declínio
Theoreticamente, o clero é supostamente eleito entre os fiéis que alcançaram a iluminação ou glorificação. O esquema histórico do processo mostra que se tornou habitual eleger bispos que não haviam alcançado a experiência espiritual dos quais os dogmas são expressão verbal, algo descrito por São Simão o Novo Teólogo. (d. 1042) , reconhecido como um dos maiores pais da Igreja. Isto revela que esta análise histórica é parte de uma auto-compreensão da Igreja ortodoxa.
Os três estágios de perfeição são 3 etapas do entendimento espiritual e, a seu tempo, existiu em cada comunidade. Isso é comparável a ter cada comunidade estudantes universitários, estudantes graduados e professores. Neste último caso, seriam os líderes que estão em níveis mais altos de iluminação. Porém, é possível que os líderes religiosos possam não ser espiritualmente no mesmo nível que os estudantes.
O resultado do colapso entre o clero na vida espiritual e o entendimento até agora descrito, foi o nascimento de um movimento ascético paralelo às comunidades episcopais. Isto transformou o movimento monástico, que preservara a tradição profética e apostólica da espiritualidade e da teologia. Quando prevaleceu o costume de que os bispos fossem recrutados entre os monges, a antiga tradição de bispos como mestres em espiritualidade e teologia foi geralmente restaurada, devido à poderosa influência de São Simão, Novo Teólogo. Esta restauração era tão forte que deu às Igrejas Romanas Orientais o vigor não apenas para sobreviver à dissolução e o desaparecimento do Império como também para manter a espiritualidade e a teologia dos Quatro Patriarcados Romanos em níveis surpreendentemente altos durante a ocupação do Império Otomano, até a chamada Revolução “Grega”.
Sob a influência dos cidadãos franceses e do agente Adamantios Koraes, oficialmente reconhecido pela Terceira Assembléia como o Pai do Novo Helenismo, o novo estado Grego decidiu que a Igreja da Grécia devia seguir o exemplo da Ortodoxia Russa, porque ela estava em estado avançado de Ocidentalização, especialmente desde o tempo de Pedro o Grande (1672-1725). O Estado Grego fundou a Igreja Grega, e literalmente forçou-a a se separar do Patriarcado Ecumênico de Constantinopla, nova Roma, e ao mesmo tempo declarou guerra ao monasticismo. A inacreditável ignorância de Adamantios Koraes transformou a ideologia sob a qual a nova espiritualidade e a nova teologia da Igreja Grega estava fundada.
A Igreja Russa deu um golpe contra a espiritualidade Ortodoxa e a sua teologia ao condenar Máximo do Monte Atos e os anciãos Trans-Volgas no século XVI. Em outras palavras, a Igreja Russa, tornou-se como uma detentora de livros sobre astronomia, biologia e medicina, mas deu um fim aos telescópios, microscópios e os cientistas que os usavam.  Isto tornou a Igreja presa da Ocidentalização sob Pedro, o Grande.
Uma das fascinantes peculiaridades da História é que enquanto o estado Grego estava se livrando da teologia e espiritualidade baseadas na oração noética, esta mesma tradição estava sendo reintroduzida na Rússia por meio das crianças espirituais de Paisios Velitchkovsky da Moldávia que faleceu em 1817.  
Foi extremamente feliz para a Ortodoxia que ao mesmo tempo que os seguidores de Koraes estivessem no poder e que o estado Grego não se estendesse ao Monte Atos com seus muitos mosteiros que foram deixados em paz pelo Império Otomano. De outro modo, as imbecilidades de Adamantios Koraes teriam tido efeito mais destrutivos sob a Ortodoxia Romana, agora chamada de Ortodoxia Bizantina, por causa deste mesmo Adamantios Koraes que se comprometeu a convencer os habitantes da Grécia Antiga que eles não eram mesmo Romanos, mas exclusivamente Gregos, o que supostamente os fez esquecerem-se de sua própria identidade nacional. A visão de Adamantios Koraes foi substituir a tradição de espiritualidade e teologia patrística, e mesmo da nacionalidade Romana, pela filosofia Grega e o nacionalismo como bases da teologia e da filosofia política. Não é talvez acidental que a França Napoleônica tenha revivido tais políticas pertencentes ao Romanos Orientais que são similares às de Carlos Magno, como descritas na Parte 1. Napoleão era, acima de tudo, descendente da nobreza franca da Toscana, estabelecida lá desde os tempos de Carlos Magno.  
Agora esta visão está morta, sepultada pelos avanços posteriores nas ciências modernas e no forte reavivamento da teologia patrística e sua espiritualidade com os Romanos ou denominados Bizantinos.


Espiritualidade Ortodoxa, a mesma no Leste e no Oeste
De modo a termos um quadro claro do que isto significou em termos do diálogo atual, temos apenas que rememorar que a teologia e a espiritualidade dos Cristãos Romanos era absolutamente a mesma no Leste e no Oeste, se escrita em latim ou grego, com exceção de Agostinho.
As diferenças teológicas entre os francos carolíngios e os ortodoxos romanos são claramente visíveis nas diferenças entre Agostinho e Santo Ambrósio, que é comumente apresentado como o professor de Agostinho. Porém, não há evidências de que tenham existido relações fortes entre eles, até porque suas teologias apontam para sentidos contrários. Nós apontamos isso com alguns detalhes em outro lugar.


Porém, nós voltaremos nossa atenção para Gregório de Tours, que nos deu claro testemunho de que durante a Regra Franca Merovíngia, a espiritualidade ortodoxa e a teologia estavam florescendo na França. Ao mesmo tempo, eles não foram bem compreendidos pela nova classe de bispos administradores criada pelos reis francos. (Deixamos d elado São João Cassiano, já que ele é pré-franco e sua identificação com a espiritualidade oriental e sua teologia são inquestionáveis).
Gregório de Tours foi um grande admirador da espiritualidade e da teologia descritas nesta palestra. Ele reconheceu e expressou seu mais alto reconhecimento a São Basílio o Grande e a São João Cassiano de Marseille (uma vez diácono de São João Crisóstomo) como os guias do monasticismo na Gália. Em seus muitos escritos, Gregório de Tours nunca menciona Agostinho. O entendimento de Gregório da espiritualidade e teologia de São Basílio e de São João Cassiano é muito limitado e colorido com muitos erros, por vezes, hilários.
Gregório relata que no tesouro da Igreja de São Martinho, ele encontrou as relíquias dos mártires Agaune, membros das legiões tebanas enviadas a Gália em 287  para esmagar uma revolta. Gregório escreve que as “relíquias mesmas estavam em terrível estado de putrefação” (8) É claro que Gregório não sabia como reconhecer tais sagradas relíquias. Cadáveres mesmo em estado de putrefação leve não são relíquias santas, menos ainda em estado de terrível putrefação.
Gregório termina sua História dos Francos com os milagres e a morte de São Aredius abade de Limoges. Ele escreve que, “um dia quando o clero estava cantando salmos na Catedral, uma pomba voou para baixo do teto, flutuou suavemente ao redor de Aredius e depois pousou em sua cabeça. Isto foi, em minha opinião, um claro sinal de que ele estava cheio da graça do Espírito Santo. Ele ficou embaraçado com o que aconteceu e tentou afastar a pomba. Ela voou por um tempo e depois se instalou novamente, primeiro em sua cabeça e depois em seu ombro. Isso não aconteceu só na Catedral, mas quando Aredius estava na cela do bispo a pomba o acompanhou. Isto foi repetido dia após dia...” (9)
Aredius claramente tinha alcançado o estado de glorificação de longa duração. Porém, a ignorância de Gregório desta tradição levou-o a confundir e a substituir o símbolo linguístico da pomba usada para descrever esta experiência, com um pássaro real. A tentativa de afastar a pomba no entendimento de Gregório é o teste da visão de Aredius, que queria se certificar de não ser nem uma alucinação, nem algo demoníaco. Que a pomba se foi, e depois retornou, e então permaneceu nele dia após dia significa que ele estava em estado de glória, primeiro de curta duração e depois de longa duração. Que ele seguiu com seus afazeres de costume neste estado, que tal estado era perceptível àqueles que o rodeavam, os quais estavam em estado de iluminação, era também evidência deste estado de glória.
O mau entendimento de Gregório também é visível em sua descrição da vida de Patroklos, o Recluso. Gregório escreve que sua “dieta era pão embebido em água e polvilhado com sal. Que seus olhos nunca fechavam no sono. Ele rezava incessantemente, ou se ele parava de rezar por algum momento, ele gastava este tempo para ler ou escrever”. (10)
Gregório acreditava que para se rezar incessantemente, alguém teria que ficar indefinidamente acordado. Também desde que Patroklos era conhecido por gastar seu tempo lendo ou escrevendo, isto significava para Gregório que ele havia parado de rezar. Gregório estava inconsciente de que a oração incessante continua sem intervalo, estando em vigília, estando acordado, lendo, escrevendo, caminhando, falando, trabalhando, etc.
Em adição à afirmação de Gregório de que os “olhos de Pátroklos nunca fechavam” seria um milagre inédito. Quando Pátroklos estava em estado de glorificação, ele não apenas não dormia, como não bebia água ou comia pão. Mas ele não estava em tal estado de vida de forma ininterrupta. Durante este estado ele parou para rezar. Quando ele não estava em estado de glória, ele tanto dormiu três ou quatro horas por dia e rezou sem qualquer interrupção. Porém, quando estes desentendimentos estavam sendo recordados, havia muitos bispos na França que entendiam ainda menos do que Gregório.
Isto pode ser visto no caso onde certos bispos ordenaram o Lombardo asceta Vulfolaic a descer de sua coluna, afirmando que “não é certo o que estás a fazer. Tal pessoa esquisita não pode nunca ser comparada a São Simeão Estilita de Antioquia. O clima da região torna impossível que continueis a se atormentar deste jeito” (11) Evidentemente que a vida de São Daniel o Estilita de Constantinopla era ainda desconhecida na França.
Enquanto se está no estado de oração noética ou glória, quando se avança ou se retrocede entre estes dois estágios, obtém-se as forças físicas para que se resista aos efeitos do meio ambiente. Isto não significa auto-tormento ou tentativa de se apaziguar com Deus. A oração noética é também a chave para o entendimento do poder espiritual pelo qual os cristãos ortodoxos perseveram em seu martírio, e também porque aqueles que renunciaram a Cristo sob tortura fossem considerados em estado de queda na Graça, i.e, de iluminação ou oração noética.
O que é importante para Gregório é que ele apresenta Vulfolaic dizendo “agora ele é considerado um pecador por não obedecer aos bispos, ... eu nunca ousaria me atar a uFma coluna... pois isto seria desobedecer aos bispos” (12)
Temos aqui uma importante distorção do significado da obediência. É claro que nem Gregório, nem seus colegas sabiam o que Vulfolaic estava fazendo. Porém, o que eles sabiam é que ele tinha de assegurar a obediência dos fiéis de modo a preservar, tanto quanto possível, a lei e a ordem de seu mestre, o Rei Franco, que os nomeou. Logo, a desobediência a um bispo é um pecado de importância relevante.
A efetividade de bispos como oficiais da lei também foi reforçada pela distinção pagã entre céu e inferno que encontramos em Agostinho e Gregório de Tours. Ambos estão inconscientes de que o clero supostamente deve preparar o povo para a visão de Deus, que será experimentado por todos ou como um céu ou como um fogo ardente. Esta inconsciência é unida à mudança peculiar a tornar o homem um Deus. Para Gregório, Deus deve ser satisfeito pela obediência ao clero e pela participação nos sacramentos como condição para que o homem entre no paraíso.
A posição de Agostinho foi mais consistente com a ideia de que Deus predestinou alguns a ir ao céu e outros a permanecer no inferno. Por conta da culpa herdada de Adão e Eva, todos são dignos do inferno, assim que aqueles que escolherem o céu não possuem qualquer mérito em tal escolha já que seguem a escolha divina, que é consequentemente supostamente livre e incondicionada. Estas ideias de Agostinho seriam quase que hilárias se não fosse o fato de que milhões de europeus e americanos as tenha abraçado, e muitos ainda o façam.


Critério para uma nova União
O critério para reunir a Cristandade dividida não pode ser diferente daqueles usados para uma associação de cientistas. Os astrônomos ficariam chocados se tivessem que se associar a astrólogos. Membros de uma moderna associação médica ficariam chocados diante da suposição de terem de se reunir com aqueles que possuem curiosidades médicas ou com médicos tribais. Do mesmo modo, os Pais ficariam chocados com a ideia de uma união entre Ortodoxos e supersticiosos religiosos que não tem a mínima ideia do que é uma relíquia sagrada. Rejeitar este assunto com a desculpa de que tal teologia é apenas para monges, é o mesmo que afirmar que a cura do câncer só serve para os médicos.
A correta interação entre a Teologia e a Sociedade não é muito diversa da interação entre a ciência e a sociedade. Deste modo, a questão da estrutura organizacional ou administrativa, como nas ciências, é resolvida mediante o critério da eficácia da teologia em produzir os resultados que justifiquem a sua existência.
“Bem aventurados os puros de coração porque verão a Deus”.



Notas:
[ 1 ] As partes Europeias e do Oriente Médio que faziam parte do Império Romano foram esculpidas em áreas que, entre outros elementos linguísticos, continham  duas influências, a Celta e a Grega, que correram em paralelo uma para cada lado, para o Atlântico e o Oriente Médio. O lado Celta estava ao norte do lado Grego, exceto na Ásia Menor, onde a Galatia teve a banda Grega para o leste, o norte e o sul. O próprio norte da Itália era parte de um lado Celta e o Sul da Itália de um lado Grego, chamado aqui de Magna Grécia, que no Ocidente cobria o Sul da Espanha, a Gália e outras ilhas Mediterrâneas. Deve ser dada a devida consideração de que tanto os lados Celta e Grego fossem o oeste e o leste da Itália Romana. Os Romanos primeiro assumiram as partes Gregas e Celta e depois os povos falantes destas duas bandas. A parte Celta era quase toda ela completamente latinizada, e a parte Grega, não apenas permaneceu intacta, mas mesmo se expandiu devido à política romana de completar a Helenização das províncias orientais iniciada pelos macedônios. As razões de porque o lado Celta, mas não o Grego, tenha sido latinizado era que os Romanos eram eles próprios bilíngues de fato e em sentimento, já que nos tempos de sua expansão explosiva falavam tanto o Grego quanto o Latim, com uma forte preferência pelo último. Assim, se alguém está obrigado a falar tanto a língua das partes Ocidental quanto Oriental do Império, como o Latim ao Norte e o Grego ao sul da România Europeia, isto não é certamente a mesma coisa que chamar os Ocidentais de Latinos e os Orientais de Gregos, o mito franco, fabricado por razões que já aventamos na parte 1, mito que sobrevive até hoje. De fato, os Galatianos da Ásia Menor estavam ainda no quarto século falando o mesmo dialeto como os Treveri da província da Bélgica, na diocese romana da Gália. (Albert Grenier, Les Galois [Paris, 1970], p. 115.) A divisão entre o Latim Ocidental e o Grego Oriental é um mito franco, ainda hoje testemunhado por alguns dos 25 milhões de Romanos dos Bálcãs, que falam dialetos românicos e pelos falantes do Grego habitantes dos Balcãs e do Oriente Médio, que se chamavam de Romanos. Deve ser notado que é bem possível que os Galatianos da Ásia Menor falassem a mesma língua que seus ancestrais de Wallons na área dos Ardenas quando o legado do Papa João XV, o abade Leão, estava em Mouzon pronunciando a condenação de Gerbert d’Aurillac em 995.  
2 ] Para maior detalhe desta questão pode-se consultar meus estudos: "Critical Examination of the Applications of Theology," Proces - Verbaux du Deuxieme Congres de Theologie Orthodoxe. (Athens, 1978), pp. 413-41, and the various works quoted therein.
3 ] Matthew 5.8.
4 ] Epistle 2.
5 ] Theological Oration 1.5.
6 ] Ibid. 1.3
7 ] Sobre as relações entre o Evangelho de João e os Evangelhos Sinóticos ver o meu estudo "Justin Martyr and the Fourth Gospel," The Greek Orthodox Theological Review, 4 (1958-59), pp. 115-39.
8 ] The History of the Franks 10.31, trans. Lewis Thorpe (London, 1977), p. 601.
9 ] Ibid. 10.20, p. 589.
10 ] Ibid. 5.10, p. 265
11 ] Ibid.8.15, p. 447.
12 ] Ibid.


Tradução:  Rochelle Cysne