domingo, 27 de setembro de 2020

Divórcio e Novo Casamento no Ocidente Latino: Uma História Esquecida

Ao longo dos últimos anos, tem havido uma série de artigos de internet que falam das diferenças entre o Ocidente latino e o Oriente grego sobre a questão da indissolubilidade do casamento, do divórcio e do novo casamento. Os Católicos muitas vezes viram o Oriente grego como se desviando do ensino correto sobre o assunto. E tanto os Ortodoxos quanto os Católicos viram o ocidente latino como um monolito em relação à sua posição sobre o divórcio e o novo casamento. A verdade da questão, no entanto, é muito mais complexa. O Ocidente latino há muito tempo teve uma rica tradição de permitir o divórcio e o novo casamento sob uma variedade de circunstâncias e sob uma série de condições. Meu objetivo aqui é ilustrar-lhes e argumentar que essa tradição foi dificilmente menor, mas muito popular por muitos séculos no Ocidente latino. De muitas maneiras, essa tradição era análoga à tradição grega no Oriente.

Antes de começar esta lista, permita-me fazer a seguinte declaração. Há muito relacionando com a palavra grega ou a cláusula porneia em Mateus 19:9. Para uma breve introdução ao grande argumento sobre esse ponto, veja a seguinte postagem no blog de Shameless Popery. Não conheço o grego, então não vou tentar oferecer a minha própria interpretação do texto grego original nem citar fontes secundárias a meu favor, pois não posso avaliar de forma crítica a compreensão do grego. No entanto, estou bastante satisfeito em trabalhar com a Vulgata e a vasta literatura latina sobre o assunto. Além disso, acho que é importante enfatizar que, durante muitos séculos, a cláusula porneia ou em latim a cláusula fornicationem (veja Vulgata Mt 19:9) foi entendida como uma cláusula de exceção. Muitas vezes, essa tradição é desconsiderada como algo menor. Se alguém olha apenas para os Pais da Igreja, eles talvez estejam corretos. No entanto, deve-se ter em mente que mesmo o grupo de Pais da Igreja que mantinha a opinião maioritária de nenhum segundo casamento é ainda dividido em várias opiniões de grupos menores. Por exemplo, Basílio e Tertuliano ambos reprovaram fortemente os segundos casamentos, mesmo após a morte de um cônjuge. Uma vez visto nesta luz, começamos a entender que a questão do novo casamento como um todo, bem como o novo casamento após o divórcio, é um assunto extraordinariamente complexo no primeiro milênio da Igreja, tanto no Ocidente latino como no Oriente grego.



Em termos do Oriente grego e suas tradições, há um blog católico que já fez uso deles para argumentar a respeito da indissolubilidade do casamento. Na verdade, aqui está um e outro pelo apologista Dave Armstrong. Não vou entrar em detalhes sobre como eles estão enganados com a afirmação de que a Igreja Ortodoxa ignorou o consenso dos Pais da Igreja Oriental a respeito da indissolubilidade do casamento. Só farei o breve comentário que muitos desses Pais da Igreja estão falando no contexto do gênero parenético. Além disso, citarei brevemente um artigo excelente sobre o assunto:
"A ideia pela qual o vínculo matrimonial subsiste, apesar de um divórcio justificado, ou seja, fundado na cláusula de exceção de Mateus, é formalmente contraditória com a posição geral dos Padres Orientais. Seria tedioso mencionar todos os testemunhos explícitos para tal. Basta mencionar São João de Crisóstomo, que confirma que, pelo adultério, o casamento se dissolve e que depois da fornicação, o marido deixa de ser o marido. Quanto a São Cirilo de Alexandria, ele afirma expressamente: 'Não é um decreto de divórcio que dissolve o casamento diante de Deus, mas más ações.'" (Bispo Peter L’Huillier, “The Indissolubility of Marriage in Orthodox Law and Practice,” St. Vladimir’s Theological Quarterly 32 (1988): 206.)
Se alguém quiser ler mais sobre a questão específica dos Padres da Igreja Oriental, então eu encorajo que leiam o seguinte artigo citado acima, que também aborda os Pai da Igreja Latina:

Bispo Peter L’Huillier, “The Indissolubility of Marriage in Orthodox Law and Practice,” St. Vladimir’s Theological Quarterly 32 (1988): 199-221.

Ao mesmo tempo, também gostaria de sugerir ler o artigo maravilhoso sobre o tratamento do casamento pelo Ocidente latino, que também usei em grande parte para tirar minhas principais fontes:

Jo-Ann McNamara e Suzanne F. Wemple, “Marriage and Divorce in the Frankish Kingdom,” em Women in Medieval Society, editado por Susan Mosher Stuard (Philadelphia: University of Pennsylvania Press, 1976), 95-124.

Agora, sem mais delongas, vejamos a lista! O propósito desta lista não é necessariamente provar nada contra a posição latina atual, mais notavelmente mantida pela Igreja Católica (embora mantida por alguns Protestantes também), sobre a indissolubilidade do casamento. Em vez disso, meu propósito aqui é destacar uma tradição de concílios, dois Pais da Igreja Latina e penitenciais medievais antigos usados pelos sacerdotes que claramente permitem o divórcio e o novo casamento em uma variedade de circunstâncias. Esta tradição no Ocidente latino remonta ao menos ao início do século IV.

CONCÍLIOS DA IGREJA LATINA

Concílio de Arles, 314 d.C.:
De his qui coniuges suas in adulterio depraehendunt, et idem sunt adulescentes fideles et prohibentur nubere, placuit ut, quantum possit, consilium eis detur ne alias uxores, viventibus etiam uxoribus suis licet adulteris, accipiant.
A respeito desses [homens] que descobrem suas esposas em adultério - e [que] são homens cristãos jovens, e [que] estão proibidos de se casar - foi decidido que, desde que possível, mesmo que sua esposa adúltera esteja viva, é preciso dar-lhes conselhos para não se casarem com outra mulher.
Concilium Arelatense, canon 10, em Conciliae Galliae A. 314-A.506, editado po C. Munier, CCSL volume 148 (Turnholt, 1963), p.11
Em relação ao Concílio de Arles, meu leitor pode ficar confuso se tiver lido o blog católico, onde o autor interpreta mal o cânone como apoiando a indissolubilidade do casamento. O problema com a tradução deles é que ela traduz incorretamente a frase-chave "quantum possit" como "tanto quanto possa ser"  Destaquei minha tradução da frase em azul. "Possit" é a forma subjuntiva do presente do verbo "possum", que significa "ser capaz", não "ser". O latim apropriado para a tradução inglesa do autor Católico seria o seguinte: "quantum sit", que na verdade nem teria sentido neste contexto. A implicação desta frase é que o homem pode se casar com outra mulher, enquanto sua primeira esposa ainda está viva, se ele se vê incapaz de se abster do sexo. Idealmente, ele se abstém. No entanto, se ele não puder, então ele deve se casar de novo para evitar a fornicação. Este cânone está longe de defender o princípio da indissolubilidade do casamento, uma vez que sanciona o novo casamento após o divórcio. Essa interpretação é reforçada pelo fato de ele receber apenas conselhos para não se casar novamente.

Concílio de Vannes, 465 d.C.:
Eos quoque, qui relictis uxoribus suis, sicut in evangelio dicitur excepta causa fornicationis, sine adulterii probatione alias duxerint, statuimus a communion similiter arcendos, ne per indulgentiam nostrum praetermissa peccata alios ad licentiam erroris invitent.

Além disso, aqueles que abandonaram suas esposas, como é dito no evangelho, exceto por causa da fornicação, que se casaram com outra pessoa sem prova de adultério, proibimos igualmente a comunhão, a fim de que não por nossa indulgência eles convidem mais pecados permitidos à licença do erro.

Concilium Vernerticum, canon 2, CCSL, 148: Page 152
Concílio de Soissons, 744 d.C.:
Similiter constituimus, ut nullus laicus homo Deo sacratam feminam ad mulierem non habeat nec sua parentem; nec maritus vivente sua muliere aliam non accipiat, nec mulier vivente suo viro alium accipiat, quia maritus mulierem suam non debet dimittere, excepta causa fornicationis deprehensa.

Da mesma forma, estabelecemos que nenhum leigo pode ter seus parentes ou uma monja como esposa. Nem pode o marido casar com outra enquanto sua esposa viver, nem pode a esposa casar com outro enquanto seu marido viver, porque o marido não deve rejeitar sua esposa, a menos que um caso de adultério tenha sido descoberto. 
Concilium Suessionense, canon 9, MGH, Concilium 2.1: 35

[Nota do tradutor: aqui o autor do texto fez uma pequena alteração corrigindo uma imprecisão que foi apontada por um dos leitores (pelo usuário PatriciusPulcher). Na presente tradução optei por não manter aquilo que foi corrigido]

Quanto a qual é meu argumento atual sobre o Concílio de Soissons (744), acredito que as chances de ele apoiar meu argumento - que o divórcio e o novo casamento eram permitidos de forma bastante ampla no Ocidente latino durante a Antiguidade Tardia e a Alta Idade Média - eram de cerca de 50-50. O próprio cânon não diz explicitamente que o novo casamento é permitido após o divórcio. Ele apenas explica que um divórcio pode acontecer. Se a sua formulação implica que um novo casamento é possível nos casos de adultério, bem, o cânon pode ser lido de ambas as maneiras. Pode ser lido que o novo casamento em tais casos só pode ocorrer uma vez que a primeira esposa morra ou que pode ocorrer independentemente. Este cânone ocorre junto ao Concílio de Compiègne (757) e ao Concílio de Verberie (?758-768?), cujos cânones são muito mais claros quanto à permissibilidade de divórcio e novo casamento. Como sugeri em minha resposta a PatriciusPulcher, Compiègne e Verberie poderiam ser lidos como esclarecimentos de Soissons. Mas essa linha de argumentação não é infalível, pois supõe consistência entre os três concílios, quando a inconsistência pode muito bem ter sido a realidade histórica. Portanto, deixo aqui Soissons como meu exemplo mais ambíguo, sobre o qual não posso chegar a conclusões firmes.

Concílio de Compiègne, 757 d.C.:
Si quis homo habet mulierem legittimam, et frater eius adulteravit cum ea, ille frater vel illa femina qui adulterium perpetraverunt, interim quo vivunt, numquam habeant coniugium. Ille cuius uxor fuit, si vult, potestatem habet accipere aliam.

Se qualquer homem tem uma esposa legal, e seu irmão cometeu adultério com ela, esse irmão e essa mulher que cometeu adultério nunca podem se casar enquanto estiverem vivos. Aquele homem que foi seu cônjuge, se ele desejar, tem o poder de casar com outra.

Capitularia regum francorum, canon 11, MGH 1: 38

Concílio de Verberie, ?758-768? d.C.:

Si qua mulier mortem viri sui cum aliis hominibus consiliavit, et ipse vir ipsius hominem se defendo occiderit et hoc probare potest, ille vir potest ipsam uxorem dimittere et, si voluerit, aliam accipiat. 

Se uma esposa conspirou no assassinato de seu marido com outro homem, e o próprio homem [Nota: o marido] mata o outro homem em legítima defesa e é capaz de provar isso, esse homem é capaz de divorciar-se de sua esposa e, se desejar, casar-se com outra. 

Capitularia regum francorum, canon 5, MGH 1: 40

Sínodo de Roma, 826 d.C., que foi presidido pelo Papa Eugênio II:

De his, qui adhibitam sibi uxorem reliquerunt et aliam sociaverunt. Nulli liceat, excepta causa fornicationis, adhibitam uxorem relinquere et deinde aliam copulare; alioquin transgressorem priori convenit sociari coniugio. Sin autem vir et uxor divertere pro sola religiosa inter se consenserint vita, nullatenus sine conscientia episocopi fiat, ut ab eo singulariter proviso constituantur loco. Nam uxore nolente aut altero eorum etiam pro tali re matrimonium non solvatur.

Forma minor: Nullus excepta causa fornicationis uxorem suam dimittat. Si vero vir et uxor pro religion dividi voluerint, cum consensus episcopi hic faciant. Nam si unus voluerit et alius noluerit, etiam pro tali re matrimonium non solvatur.

Quanto àqueles homens, que se divorciaram [de suas] esposas casadas e se casaram com outra. Que ninguém, exceto pelo motivo de fornicação, se divorcie de sua esposa casada e depois se case com outra. De outra forma, é adequado que o transgressor seja casado com o primeiro cônjuge. Entretanto, se um homem e uma esposa consentirem no divórcio entre si em favor de uma vida monástica, de modo algum será assim sem o conhecimento conjunto do bispo, para que possam ser colocados por ele em um único local preparado. Pois [se] devido a uma esposa ou a seu marido que não queira, que não seja dissolvido em favor do casamento.

Forma abreviada: Que ninguém se divorcie de sua esposa, exceto pelo motivo de fornicação. Em verdade, se um homem e uma esposa desejam separar-se para [buscar] uma vida religiosa, que o façam com o consentimento do bispo aqui. Pois se um deseja e outro não deseja, que o casamento não seja dissolvido.

Concilia Romanum, canon 36, MGH, Concilia aevi Karolini, 2.1: 582

Como se pode constatar facilmente, a tradição canônica para um novo casamento após o divórcio no Ocidente latino era forte no primeiro milênio.

Os Pais da Igreja: Jerônimo e Ambrosiastro 

Examinemos agora dois dos Pais da Igreja latina.

São Jerônimo em Mateus 19:9, 398 d.C.:

É apenas a fornicação que atinge o afeto por sua esposa. De fato, a "uma só carne" que ele tem com sua esposa, ele compartilha com outra mulher. Pela fornicação, ela se separa de seu marido. Ela não deve ser mantida, para que ela não faça com que seu marido também seja amaldiçoado, pois a Escritura diz: "Aquele que mantém uma adúltera é insensato e ímpio (Provérbios 18:22)". Portanto, sempre que há fornicação e suspeita de fornicação, uma esposa é livremente divorciada. E como pode ter acontecido que alguém tenha apresentado uma falsa acusação contra uma pessoa inocente, e por causa do segundo casamento-união tenha lançado uma acusação contra a primeira esposa, é ordenado o divórcio da primeira esposa de tal forma que ele não tenha uma segunda esposa enquanto a primeira estiver viva. Pois ele diz o seguinte: Se você se divorcia de sua esposa não por causa da luxúria, mas por causa de uma injúria, por que após a experiência do primeiro casamento infeliz você se admite no perigo de um novo casamento? E além disso, poderia ter acontecido que, de acordo com a mesma lei, a esposa também teria dado uma carta de divórcio ao marido. E assim, pela mesma precaução, é ordenado que ela não receba um segundo marido. E como uma prostituta e ela, que já foi adúltera, não tinha medo de ser censurada, é ordenado ao segundo marido que, se ele se casar com tal mulher, ele ficará sob a acusação de adultério.

Jerome, Commentary on Matthew, Patrologia Latina 26: 0135A – 0135B 

Jerome, Commentary on Matthew 19:9, Trad. por Thomas P. Scheck, Commentary on Matthew (Washington D.C.: Catholic University of America Press, 2008): 216-217

Esta passagem do comentário de Jerônimo é muitas vezes mal interpretada como significando que ele apóia a indissolubilidade do casamento aqui. Este simplesmente não é o caso. Jerônimo está notavelmente preocupado com a perspectiva de um marido ou esposa se divorciar de seu cônjuge por razões injustificadas ou por motivos espúrios. Se isso acontecer e depois se casarem, tanto a parte insuspeita quanto a parte mais culpada são culpadas de adultério. Portanto, Jerônimo questiona os motivos de qualquer pessoa que se divorcie e depois se case com outra. Ele insinua que a parte prejudicada de um primeiro casamento deveria ser tão emocionalmente lesada que eles não quereriam se casar novamente. Se não for este o caso, então pode muito bem ser que as acusações contra o cônjuge para dar motivos para o divórcio tenham sido falsas. Jerônimo proíbe ou, pelo menos, adverte contra o novo casamento por esses motivos. Embora eu compreenda que a posição de Jerônimo em sua 77ª carta é diferente, penso que é importante notar qualquer fluidez ou mudança em sua posição.

O anônimo Ambrosiastro (?366-384?):

O conselho do apóstolo é o seguinte: Se uma mulher deixou seu marido por causa do mau comportamento dele, ela deve permanecer sem se casar ou ser reconciliada com ele. Se ela não pode se controlar, porque não está disposta a lutar contra a carne, então deixe-a se reconciliar com seu marido. Uma mulher não deve se casar se deixou seu marido por causa de fornicação ou apostasia dele, ou porque, impulsionado pela luxúria, ele deseja ter relações sexuais com ela de forma ilícita. Isto ocorre porque a parte inferior não tem os mesmos direitos sob a lei que a parte mais forte tem. Mas se o marido se afasta da fé ou deseja ter relações sexuais pervertidas, a esposa não deve casar-se com outro nem voltar para ele. O marido não deve divorciar-se de sua esposa, embora se deva acrescentar a cláusula "exceto por fornicação". A razão pela qual Paulo não acrescenta, como faz no caso da mulher, "Mas se ela se afasta, ele deve permanecer como está" é porque é permitido ao homem se casar novamente se ele se divorciou de uma esposa pecadora. O marido não está restrito pela lei como uma mulher está, pois a cabeça de uma mulher é seu marido.

Ambrosiaster, Commentary on 1 Corinthians 7:11, Patrologia Latina 17: 0230A – 0230B 

Ambrosiaster, Commentary on 1 Corinthians 7: 11 Trad. por Gerald L. Bray, Commentaries on Romans and 1-2 Corinthians (InterVarsity Press, 2009): 150-151

Embora o flagrante sexismo de Ambrosiastro seja sem dúvida perturbador para nós hoje (e com razão), é claro que ele entendeu alguns motivos legítimos para o divórcio e o novo casamento. Qualquer afirmação de que ele pensa que os casamentos são indissolúveis contradiz sua sanção de novo casamento para homens divorciados.

Penitenciais latinos

Por fim, vamos abordar os penitenciais utilizados pelos confessores. Os dois primeiros exemplos vêm da seção conhecida como Os Extratos (Excerptiones), ou seja, as seguintes diretrizes de penitência são extraídas de vários cânones de vários concílios, assim como dos pais da igreja. De acordo com Mansi, estes foram compostos por volta do ano de 748, mas levem essa data com alguma cautela, uma vez que o sistema de datação de Mansi tem séculos de existência:
Si mulier discesserit a viro suo, despiciens eum, nolens revertere et reconciliari viro post quinque vel septem annos, cum consensus episcopi, ipse aliam accipiat uxorem, si continens esse non poterit, et poeniteat tres annos, vel etiam quamdiu vixerit, quia juxta sententiam Domini moechus comprobatur.

Se uma mulher se separa de seu marido, desprezando-o, não querendo voltar e reconciliar-se com o homem, [então] após cinco ou sete anos, com o consentimento do bispo, ele mesmo pode casar-se com outra esposa se não conseguir manter-se continente. E que ele se arrependa por três anos, ou mesmo por mais tempo em que viva, por causa da declaração do Senhor que estabelece [os critérios] para um adúltero.

Pseudo-Egobert, Penitentiale Egberti, 122, Mansi 12: 424 
Outro: 
Si cujus uxor in captivitatem ducta fuerit, et ea redimi non poterit, post annum septimum alteram accipiat: et si postea propria, id est prior mulier, de captivitate reversa fuerit, accipiat eam, posterioremque dimittat. Similiter autem et illa, sicut superius diximus, si viro talia contigerint, faciat.

Se a esposa de alguém for levada ao cativeiro, e ele não for capaz de resgatá-la, após sete anos ele poderá se casar com outra. E particularmente se depois, isto é, a primeira mulher, voltar do cativeiro, que ele a receba e despeça sua segunda esposa. E da mesma forma, como já dissemos acima, essa mulher pode fazê-lo se tais [eventos] tiverem acontecido com seu homem.

Pseudo-Egobert, Penitentiale Egberti, 123, Mansi 12: 424

Outro:
Si uxor viri cujusdam adulteretur, maritus eam potest deserere, et aliam ducere, si ea prima fuerit uxor; si autem secunda vel tertia fuerit, non potest aliam ducere: si uxor flagitia sua comittere velit intra quinque annos, alii viro nubere debet. Si mortuus maritus sit, uxor intra annum alium sumere potest. Quicumque maritus uxorem suam deseruerit, et ie injusto matrimonio (alii) adjungat, jejunet septem hyemes severum jejunium, vel quindecim leviora. Quicumque multa mala perpetraverit in homicidium, et occisionem hominis, et injustum concubitum cum bestiis, et cum mulieribus, eat ad monasterium, et semper jejunet usque ad finem vitae, si valde multa miserit.

Se a esposa do mesmo homem cometeu adultério, o marido pode se divorciar dela, e se casar com outra [somente] se ela [a adúltera] foi a primeira esposa. Mas se ela foi a segunda ou a terceira, ele não poderá se casar [novamente]. Se a esposa deseja se envolver em um ato vergonhoso durante o espaço de cinco anos, [então] ela deve se casar com outro homem. Se o marido estiver morto, a esposa poderá se casar no espaço de um ano. Todo marido que se divorciar de sua esposa e casar com outra em casamento injusto, que ele jejue por sete invernos de jejum severo, ou quinze invernos de forma leve. Quem perpetrar muitos males nos homicídios, no assassinato de um homem, nas relações sexuais injustas com animais e com mulheres, que ele vá para o mosteiro, e jejue sempre até o fim de sua vida, se ele verdadeiramente desistir dos muitos [males].

Pseudo-Egobert, Penitenciale Egberti, 19, Mansi 12: 436
Esta prescrição acima é particularmente notável porque sua posição sobre o novo casamento é muito próxima da prática Ortodoxa atual.

E o penitencial final:
Si maritus cum propria sua uxore coeat, lavet se antequam ad ecclesiam abeat; si mulier maritum suum a se rejiciat, et dein nolit resipiscere, et cum eo in quinque annis pacem inire, maritus cum consensus episcopi, aliam uxorem ducere potest. Si maritus uxoris in captivitatem ducatur, expectet cum sex annos, et ita vir uxori faciat, si ei captivitas accidat; si maritus aliam uxorem ducat, et captiva post quinque annos redeat, deserat posteriorem, et captivam sumat, quam antea eodem modo duxerat. Cum vir in adulterio conjunctus sit uxori suae familiae, post uxoris suae mortem, legitimo jure uxori illi conjungatur.

Se um marido copula com sua esposa, que ele se lave antes de ir para a igreja. Se a mulher rejeita seu marido de si mesma, e depois não deseja refletir, e ele passa cinco anos pacíficos com ela, o marido com o consentimento do bispo poderá se casar com outra. Se o marido da esposa for levado em cativeiro, que ela espere por seis anos, e assim o homem permanecerá casado com a esposa, se o homem capturado acontecer de voltar para ela. Se o marido casar com outra esposa, e a esposa capturada voltar após cinco anos, que ele abandone a última esposa, e retome a esposa [anteriormente] capturada, como ele era casado com ela antes. Quando se descobrir pela família de sua esposa que um homem cometeu adultério, após a morte de sua esposa, que ele se case legalmente com aquela [outra] mulher.

Pseudo-Egobert, Penitentiale Egberti, 26, Mansi 12: 438
Estas exegeses de dois Pais da Igreja latina, os cânones de seis Concílios da Igreja latina (sendo um deles em Roma e presidido por um papa), e várias declarações e prescrições feitas nos penitenciais servem para deixar claro que o Ocidente latino durante a maior parte do primeiro milênio estava longe de ter chegado a um consenso sobre a questão do divórcio e do novo casamento, bem como sobre a questão da indissolubilidade. Se alguém deseja saber o que eventualmente começa a acontecer com esta tradição a partir do século IX, sugiro vivamente a leitura do artigo McNamara e Wemple que listei acima. Tudo o que direi sobre o assunto é que Carlos Magno tem um grande impacto sobre o assunto.


* * * 

[Nota do tradutor: a seguir é um outro post considerado um adendo ao primeiro feito pelo autor] 

Divórcio e Novo Casamento no Ocidente Latino: Um adendo

Há muitos meses, fiz um post sobre a história do divórcio e do novo casamento no Ocidente latino durante o primeiro milênio. Neste post, apresentei dois Pais da Igreja, seis Concílios da Igreja e quatro prescrições penitenciais que permitem o divórcio e o novo casamento em uma variedade de circunstâncias. Recebi algum feedback de várias pessoas e quis dedicar algum tempo para esclarecer alguns pontos e para acrescentar mais evidências de permissões latinas para divórcio e novo casamento. Especificamente, gostaria de esclarecer a atual avaliação acadêmica do Cânon 36 do Sínodo de Roma (826), acrescentar tanto o Concílio de Elvira (c. 300) quanto o Concílio de Adge (506) como a favor do divórcio e do novo casamento, acrescentar mais cânones do Concílio de Compiègne (757), cânones do Penitencial de pseudo-Teodoro, além das sentenças de dois papas: Papa Inocêncio I e Papa Leão I. Em suma, estou apenas acrescentando MUITO mais provas na afirmação de que o divórcio e o novo casamento no Ocidente latino era comum na Igreja do primeiro milênio. Há uma infinidade de artigos Católicos por aí que afirmam o contrário e que a Igreja Ortodoxa se desviou da sagrada tradição sobre esta questão. Aqui eu espero refutar ambas noções.

Antes de começar, deixe-me apenas constatar que as seguintes fontes secundárias provaram ser inestimáveis para mim ao escrever este post. Eu recomendo enfaticamente que meus leitores as vejam:
Jo-Ann McNamara and Suzanne F. Wemple, “Marriage and Divorce in the Frankish Kingdom,” in Women in Medieval Society, editado por Susan Mosher Stuard (Philadelphia: University of Pennsylvania Press, 1976), 95-124. 

Rachel Stone, Morality and Masculinity in the Carolingian Empire (New York: Cambridge University Press, 2012), 268-274. 

Philip Lyndon Reynolds, Marriage in the Western Church: The Christianization of Marriage During the Patristic and Early Medieval Periods (New York: E. J. Brill, 1994), 173-226.
Nota: Eu usei mais do que as páginas listadas acima de Reynolds, mas as páginas listadas acima são as mais pertinentes.

O Sínodo de Roma (826 d.C.) - Reconsiderado

Primeiramente, consideremos o Sínodo de Roma, 826 d.C., que diz o seguinte:
De his, qui adhibitam sibi uxorem reliquerunt et aliam sociaverunt. Nulli liceat, excepta causa fornicationis, adhibitam uxorem relinquere et deinde aliam copulare; alioquin transgressorem priori convenit sociari coniugio. Sin autem vir et uxor divertere pro sola religiosa inter se consenserint vita, nullatenus sine conscientia episocopi fiat, ut ab eo singulariter proviso constituantur loco. Nam uxore nolente aut altero eorum etiam pro tali re matrimonium non solvatur.

Forma minor: Nullus excepta causa fornicationis uxorem suam dimittat. Si vero vir et uxor pro religion dividi voluerint, cum consensus episcopi hic faciant. Nam si unus voluerit et alius noluerit, etiam pro tali re matrimonium non solvatur.

Quanto àqueles homens, que se divorciaram [de suas] esposas casadas e se casaram com outra. Que ninguém, exceto pelo motivo de fornicação, se divorcie de sua esposa casada e depois se case com outra. De outra forma, é adequado que o transgressor seja casado com o primeiro cônjuge. Entretanto, se um homem e uma esposa consentirem no divórcio entre si em favor de uma vida monástica, de modo algum será assim sem o conhecimento conjunto do bispo, para que possam ser colocados por ele em um único local preparado. Pois [se] devido a uma esposa ou a seu marido que não queira, que não seja dissolvido em favor do casamento.

Forma abreviada: Que ninguém se divorcie de sua esposa, exceto pelo motivo de fornicação. Em verdade, se um homem e uma esposa desejam separar-se para [buscar] uma vida religiosa, que o façam com o consentimento do bispo aqui. Pois se um deseja e outro não deseja, que o casamento não seja dissolvido.

Concilia Romanum, canon 36, MGH, Concilia aevi Karolini, 2.1: 582

Primeiro, houve várias pessoas que afirmaram que este cânon só permite o divórcio por motivo de fornicação. Tal interpretação simplesmente não é plausível. Todo trabalho acadêmico que consultei sobre este assunto argumenta que este cânon permite explicitamente o novo casamento após o divórcio em casos de adultério. As seguintes citações para isto são: 

Jo-Ann McNamara and Suzanne F. Wemple, “Marriage and Divorce in the Frankish Kingdom,” in Women in Medieval Society, editado por Susan Mosher Stuard (Philadelphia: University of Pennsylvania Press, 1976), 103.

Rachel Stone, Morality and Masculinity in the Carolingian Empire (New York: Cambridge University Press, 2012), 272.

Philip Lyndon Reynolds, Marriage in the Western Church: The Christianization of Marriage During the Patristic and Early Medieval Periods (New York: E. J. Brill, 1994), 187.

Em resumo, não há razão para entender este cânon como permitindo apenas o divórcio e não tanto o divórcio como o novo casamento. O verbo principal "licet" se aplica igualmente aos verbos infinitivos "divorciar" (relinquere) e "casar" (copulare). Para provar ainda mais meu argumento, vejamos um cânon da igreja que proíbe claramente o divórcio e o novo casamento (Concílio de Paris em 829 d.C.):

…ut Dominus ait, non sit uxor dimittenda, sed potius sustinenda, et quod hi, qui causa fornicationis dimissis uxoribus suis alias ducunt, Domini sententia adulteri esse notentur,… 

Como diz o Senhor, um homem não deve se divorciar [de sua] esposa, mas sim apóia-la. E também, aqueles que, tendo rejeitado sua esposa por causa da fornicação [e] se casam com outra, são considerados pela sentença do Senhor como sendo adúlteros.

Concilium Parisiense, canon 69, MGH, Concilium 2.2: 671.

Como você pode ver, neste cânon, fica claro através de uma prosa latina precisa que o novo casamento após o divórcio foi estritamente proibido. Portanto, argumentar que o Sínodo de Roma (826) realmente proíbe o novo casamento após o divórcio, não passa de um puro disparate. E mais uma vez, nenhum historiador acadêmico entendeu que este cânon significa isso de forma alguma.

Concílio de Elvira (c. 300 d.C.)

Alegar o Concílio de Elvira como permitindo o divórcio e o novo casamento pode parecer muito desconcertante para alguns. Afinal, ele é comumente usado na apologética Católica para afirmar a indissolubilidade do casamento. Para exemplos, veja este blog e outro. Encontrei pela primeira vez o argumento de que Elvira foi comedido no artigo de McNamara & Wemple (McNamara & Wemple, 97-98). Eu não achei que fosse comedido, então inicialmente não o coloquei na lista de minhas provas. No entanto, mais tarde encontrei um argumento mais interessante apresentado por Reynolds, que diz que Elvira aceitou o divórcio e o novo casamento, mas somente para homens que pudessem provar a infidelidade de sua esposa. Em resumo, ele só proíbe o divórcio e o novo casamento para as mulheres (Reynolds, 181). Para nós, modernos, este duplo padrão soa absolutamente ridículo (e com razão). Peço aos meus leitores que se lembrem de meu posto anterior, onde Ambrosiastro promove explicitamente este duplo padrão. Além disso, a maioria dos cânones que apresentei em meu post anterior assumia que somente homens poderiam iniciar o divórcio. No entanto, as provas de divórcio e novo casamento ainda são provas, independentemente de suas imperfeições sexistas. Agora vejamos a série de cânones:

VIII: Item feminae, quae nulla praecedente causa, relinquerint viros suos, & se copulaverint alteris, nec in fine accipiant communionem.

IX: Item femina fidelis, quae adulterum maritum reliquerit fidelem & alterum ducit, prohibeatur ne ducat; si duxerit, non prius accipiat communionem, nisi quem reliquerit, prius de saeculo exierit; nisi forte necessitas infirmitatis dare compulerit.

X: Si ea; quam catechumenus reliquit, duxerit maritum, potest ad fontem lavacri admitti. Hoc & circa feminas catechumenas erit observandum. Quod fuerit fidelis, quae ducitur, ab eo qui uxorem inculpatam reliquit, & cum scierit illum habere uxorem, quam sine causa reliquit; placuit, huic nec in finem dandam esse communionem.

8: Novamente, as mulheres que, sem motivo prévio, deixam o marido e se casam com outro, não receberão a comunhão até a morte.

9: Novamente, uma mulher crente, que se divorcie [de seu] marido adúltero e crente e se casa com outro, está proibida de se casar com ele. Se ela se casar, ela não poderá receber a comunhão como antes, a menos que ele de quem ela se divorciou tenha partido [deste] mundo; a não ser que, eventualmente, a necessidade por causa de doença constranja a isso.

10: Se ela, a quem um catecúmeno masculino renunciou, e se casou com um marido, ela pode ser admitida na fonte do batismo. E isto deve ser observado em relação aos catecúmenos femininos. Mas se uma mulher crente é casada por aquele que se divorciou de uma esposa inculpável, e ela sabe que ele tem uma esposa que se divorciou sem causa, então é adequado para ela que não lhe seja dada a comunhão até a morte.  

Concilium Eliberitanum, canons 8-10, Mansi 2: 7.

LXV: Si cujus clerici uxor fuerit moechata, & scierit eam maritus suus moechari, & non eam statim projecerit, nec in fine accipiat communionem: ne ab his, qui exemplum bonae conversationis esse debent, ab eis videantur scelerum magisteria procedere.

65: Se a esposa de um clérigo cometeu adultério, e ele sabe que sua esposa cometeu adultério, e ele não a rejeita imediatamente, ele não receberá a comunhão até a morte: para que, por estas coisas, aqueles homens que deveriam ser um exemplo de boa associação, não sejam vistos por alguns como participantes de um magistério ímpio.

Concilium Elberitanum, canon 65, Mansi 2: 16

LXIX: Si quis forte habens uxorem semel fuerit lapsus, placuit, eum quinquennium agere de ea re poenitentiam; & sic reconciliari; nisi necessitas infirmitatis coegerit ante tempus dare communionem. Hoc & circa feminas observandum. 

LXX: Si cum conscientia mariti uxor fuerit moechata, placuit, nec in fine dandam esse communionem; si vero eam reliquerit, post decem annos accipiat communionem.

69: Se houver algum homem que tenha uma esposa que uma vez [ele] tenha caído [em adultério], então é apropriado que ele faça uma penitência de cinco anos acerca disso e assim seja reconciliado; a menos que [claro] a necessidade de enfermidade obrigue alguém a lhe dar comunhão antes do tempo [da penitência acabar]. Isto também deve ser observado pelas mulheres.

70: Se com o conhecimento comum a esposa de um marido comete adultério, é adequado que ao marido não seja dada a comunhão até a morte. Mas se ele se divorciar dela, ele poderá receber a comunhão após dez anos.

Concilium Elberitanum, canons 69-70, Mansi 2: 17

Muito bem, então agora vamos analisar tudo isso. Primeiro, quero chamar a atenção para alguns detalhes marcantes presentes em muitos destes cânones em relação àqueles baseados no sexo. Os cânones 10 e 69 têm o acréscimo explícito de que seus prescritos se aplicam a homens e mulheres. Enquanto isso, os outros cânones não têm este qualificativo. Portanto, nenhum dos outros cânones deve ser considerado como se aplicando a ambos os sexos, a menos que eles digam explicitamente o contrário.

O cânon 8 penaliza apenas mulheres por deixarem seus maridos e casarem com outro sem causa prévia. O cânon 9 aprofunda sobre as mulheres afirmando que nenhuma mulher pode se divorciar de seu marido e se casar com outro mesmo em casos de adultério (por "marido crente" deve ser entendido como "marido cristão"). Se ela se casar, está impedida de comungar até a morte de seu primeiro marido ou se ela se aproximar de seu leito de morte. Note o fato de que este cânon NÃO prescreve que ela deixe seu segundo marido, deixando assim uma certa ambigüidade. 

O cânon 10 diz que se o catecúmeno cristão masculino deixa sua esposa não-cristã e se casa com outra mulher, ele não deve ser penalizado. De fato, ele ainda será recebido no batismo. Em seguida, declara explicitamente que esta parte do cânon se aplica igualmente tanto a homens quanto a mulheres (Hoc & circa feminas catechumenas erit observandum). Mas o cânon continua com uma outra estipulação que se aplica SOMENTE às mulheres. Continua dizendo que uma mulher cristã (que traduzi como "mulher crente"), e apenas uma mulher cristã, deve ser penalizada por se casar com um homem que rejeitou sua primeira esposa sem justa causa. A fé do homem, neste caso, não importa. Aqui é onde as coisas ficam interessantes. O cânon 8 especificou que nenhuma mulher pode deixar seus maridos sem causa prévia. O cânon 9, então, torna isto mais restritivo na medida em que uma mulher não pode nem mesmo se casar novamente, mesmo que seu marido cristão tenha cometido adultério. Mas mais uma vez, nada disso se aplica aos homens. Portanto, se um homem, independentemente de sua fé, rejeita sua primeira esposa com causa legítima, então a mulher cristã NÃO é culpada de adultério. Em resumo, os homens podem se divorciar e se casar novamente sob algumas circunstâncias, mas não as mulheres. Agora, alguns Católicos e Protestantes tentarão dizer que esta questão só se aplica porque o casamento entre um indivíduo não-batizado e um indivíduo cristão não é um casamento sacramental. Embora esta idéia possa muito bem estar por trás de parte do raciocínio destes cânones, ela ainda não explica a abertura que é deixada para os homens. Os homens ainda podem se divorciar e se casar novamente, mesmo que ele e sua primeira esposa tenham tido um casamento cristão.

O cânone 70 reforça a interpretação acima. Afirma que se um homem sabe que sua esposa cometeu adultério e continua a tolerar isso, ele deve ser impedido de comungar até o final de sua vida. Se, no entanto, ele tolerar isto apenas por um pouco de tempo e depois se divorciar dela, ele deve ser impedido de comungar por apenas dez anos. As exigências são muito mais severas para os padres casados no Cânon 65. Se a esposa de um padre comete adultério mesmo uma vez, então o padre é obrigado a se divorciar imediatamente dela. Ele não pode, em nenhuma circunstância, tentar resolver as coisas com ela, pois deve evitar até mesmo a mera aparência de escândalo. Enquanto isso, para o resto da população, se o adultério de um cônjuge não ocorrer regularmente, mas apenas uma vez, então, de acordo com o cânon 69, a parte culpada está autorizada a tentar resolver as coisas com seu cônjuge a quem prejudicou. A parte culpada também é impedida de comungar durante cinco anos. No entanto, deve-se observar que nem a parte culpada nem a parte lesada têm a obrigação de tentar resolver as coisas, já que não é exigido, mas apenas agradável ou adequado (placuit) que eles assim o façam. O lesado pode iniciar um divórcio. Entretanto, como já estipulado, se a parte lesada for o marido, então ele pode se casar novamente, uma vez que tem uma causa prévia.

Em resumo, o que tenho demonstrado até agora sobre o Concílio de Elvira (c. 300 d.C.) é que ele não afirma em nenhum sentido a indissolubilidade do casamento, sacramental ou não. Ao invés disso, apenas restringe as circunstâncias nas quais o divórcio e o novo casamento ocorrem. As mulheres só podem se casar novamente se seu primeiro marido estiver morto ou se ele não era cristão quando ela se divorciou dele com a condição adicional de que seu segundo marido não seja divorciado, que rejeitou sua primeira esposa por motivos ilegítimos. Enquanto isso, um homem cristão poderia se divorciar de uma mulher cristã e depois se casar com outra mulher cristã, desde que tivesse motivos anteriores para se divorciar de sua primeira esposa. Seja como for, este concílio é sexista, mas também estipula que um casamento sacramental não é indissolúvel.

Concílio de Agde (506 d.C.)

O Concílio de Agde foi um concílio visigótico que ocorreu no sul da França em 10 de setembro de 506 d.C. e foi supervisionado por São Cesário de Arles, um Padre da Igreja. O Concílio estipulou o seguinte:

XXV: Hi vero saeculares, qui coniugale consortium culpa graviore dimittunt vel etiam dimiserunt et nullas causas discidii probabiliter proponentes, propterea sua matrimonia dimittunt, ut aut illicita aut aliena praesumant, si antequam apud episcopos comprovinciales discidii causas dixerint et prius uxores quam iudicio damnenter abiecerint, a communion ecclesiae et sancto populi coetu, pro eo quod fidem et coniugia maculant, excludantur.

25: Mas esses leigos, que terminam seu casamento por causa de uma falta grave ou mesmo se já se divorciaram e não oferecem nenhuma causa provável de discórdia para que possam presumir entrar em um casamento ilícito ou outro casamento, que eles sejam excluídos da comunhão da igreja e da santa companhia do povo porque contaminam a fé e o casamento; [mas somente] se eles se divorciaram de suas ex-mulheres antes de terem dado sua causa de discórdia em um tribunal com os bispos provinciais.

Concilium Agathense, canon 25, Mansi 8: 329

Concilium Agathense, canon 25, CCSL 148: 204

Este cânone aqui é relativamente direto. Se um homem deseja divorciar-se de sua esposa por causa de alguma falta grave não especificada, então ele deve levar o caso a um tribunal eclesiástico e apresentar seu caso. Se ele não seguir este procedimento, então ele será excomungado. Está implícito que o homem tem permissão para se casar novamente se ele for capaz de provar seu caso. Além disso, como Reynolds assinala, o cânone proíbe o divórcio se o iniciado o fizer para contratar um novo casamento (Reynolds, 184-185). Ou seja, o motivo do divórcio foi impuro e não por causa de uma falta verdadeiramente grave.

Concílio de Compiègne (757 d.C.) - Revisto 

Em meu post anterior, ofereci como prova o Cânon 11 deste concílio que estipulava que se a esposa de um homem comete adultério com seu cunhado, então o marido é livre para divorciar-se dela e se casar com outra.  A adúltera e o cunhado, no entanto, não podem se casar. Agora gostaria de apresentar mais cânones deste concílio, especificamente os cânones 16 e 19.

XVI: Si quis vir dimiserit uxorem suam et dederit comiatum pro religionis causa infra monasterium Deo servire aut foras monasterium dederit licentiam velare, sicut diximus propter Deum, vir illius accipiat mulierem legittimam. Similiter et mulier faciat. Georgius consensit.

16: Se algum homem se divorciou de sua esposa e deu permissão a ela para servir a Deus em um mosteiro por causa da religião ou deu permissão a ela para usar o véu fora do mosteiro, [então] tal como dissemos segundo Deus, esse homem pode receber [outra] esposa legal. E da mesma forma, que seja assim para uma mulher [nas circunstâncias reversas]. George concordou [com esta estipulação].

Capitularia regum francorum, canon 16, MGH 1: 38

XIX: Si quis leprosus mulierem habeat sanam, si vult ei donare comiatum ut accipiat virum, ipsa femina, si vult, accipiat. Similiter et vir.

19: Se algum leproso tiver uma esposa saudável, [e] se ele desejar dar-lhe permissão para que ela se case com [outro] homem, essa mulher, se ela desejar, poderá se casar com [outro homem]. E do mesmo modo, [que assim seja] para um homem [nas circunstâncias reversas].

Capitularia regum francorum, canon 19, MGH 1: 39
Estes cânones são bastante impressionantes. Em nenhum destes casos, nenhuma das partes no casamento cometeu algum erro. Em ambos os cânones, o casal pode dissolver o casamento por mútuo acordo. A natureza igualitária destes cânones é rara no Ocidente latino, ao contrário do Oriente grego, onde era mais comum (Reynolds, 176). Mas aqui o divórcio e o novo casamento só é permitido para o caso da doença extrema da lepra ou para a entrada em um mosteiro. No caso do cânon 19, deve ser entendido que as pessoas medievais pensavam que a lepra era altamente contagiosa (o que não é) e [entendido] que eles não tinham meios de tratamento adequados. O cânon enfatiza a saúde do cônjuge não afetado. Em resumo, o princípio subjacente ao cânon era a preocupação de que o cônjuge saudável também adoecesse com a lepra. Como forma de evitar isso, eles concederam ao casal a opção de encerrar o casamento e ao cônjuge saudável de se casar com outro, se ambas as partes concordassem. O que está também implícito é que se ambas as partes são leprosos, então não podem se divorciar e se casar novamente. No caso do Cânon 16, presume-se que o cônjuge que entra no mosteiro queira realmente entrar no mosteiro. Em suma, um membro do casamento não pode forçar seu cônjuge a entrar no mosteiro e então presumir entrar em outro casamento. Devem ser um claro desejo religioso (pro religionis causa). Também é razoável supor que os participantes do concílio consideraram a atividade sexual uma parte muito importante não apenas para a consumação do casamento, mas durante todo o casamento. Esta suposição é reforçada pelo fato de que o divórcio e o novo casamento são permitidos se o cônjuge meramente faz um voto de castidade (assume o véu), mas não entra em um mosteiro.

Penitencial de pseudo-Teodoro de Cantuária (820/2 - 847 d.C.)

Em primeiro lugar, a autoria e a datação deste penitencial passou por um debate significativo ao longo dos últimos 150 anos. O consenso acadêmico é agora que este penitencial não é obra de Teodoro de Cantuária (também conhecido como Teodoro de Tarso), embora ele faça uso do penitencial propriamente dito de Teodoro. Além disso, ele não é de origem anglo-saxônica. Ao invés disso, este penitencial é certamente de origem franca, datando de 820/2 a 847 d.C. Para os argumentos detalhados sobre esta questão, veja a introdução à seguinte edição crítica moderna do texto:

pseudo-Theodore, Paenitentiale pseudo-Theodori, editado por Carine van Rhijn, CCSL 156B (Turnhout, Belgium: Brepols, 2009)

Agora, vejamos alguns dos cânones do pseudo-Teodoro. Eu listei primeiro os números dos capítulos e cânones da edição CCSL e entre parênteses eu forneci os números dos cânones da edição de Wasserschleben, que está disponível no Google Books:
XIII.7 (6): Qui dimiserit uxorem propriam alienamque in coniugio duxerit, non tamen uxorem alterius sed vacantem quempiam vel virginem, vii annos peniteat.

XIII.13 (12): Si quis legitimam uxorem habens dimiserit et aliam duxerit, vii annos peniteat. Illa vero quam duxit non est illius, ideo non manducet, neque bibat, neque omnino in sermone sit cum illa quam male accepit, neque cum parentibus illius. Ipsi tamen, si consenserint, sint excommunicati. Illa vero excommunicatio talis fiat, ut neque manducent neque bibant cum aliis christianis, neque in sacra oblatione participes existant et a mensa Domini separentur quousque fructum penitentie dignum per confessionem et lacrimas ostendant.

XIII.19 (18): Mulier si adulterata est et vir eius non vult habitare cum ea, dimittere eam potest iuxta sententiam Domini, et aliam ducere. Illa vero, si vult in monasterio intrare, quartam partem suae hereditatis obtineat. Si non vult, nihil habeat.

XIII.24 (23): Si mulier discesserit a vira suo, dispiciens eum, nolens revertere et reconciliari viro, post v annos cum consensu episcopi aliam accipiat uxorem si continens esse non poterit et iii annos peniteat quia iuxta sententiam Domini moechus comprobatur.

XIII.25 (24): Si cuius uxor in captivitatem per vim ducta fuerit et eam redimi non potuerit, post annum potest alteram accipere. Item si in captivitate ducta fuerit et sperans quod debet revertere vir eius, v annos expectet. Similiter autem et mulier si viro talia contingerint. Si igitur vir interim alteram duxit uxorem et prior iterum mulier de captivitate reversa fuerit, eam accipiat posterioremque dimittat. Similiter autem et illa, sicut superius diximus, si viro talia contingerint, faciat.

13.7 (6): Aquele que dispensar sua esposa e casar com outra numa união, [ou seja] não a esposa de outro, mas qualquer solteira, que faça penitência por sete anos.

13.13 (12): Se qualquer homem vivo que tenha uma esposa legal se divorciar dela e casar com outra, que ele faça penitência por sete anos. Mas aquela [primeira] mulher com quem ele se casou não é mais sua, portanto, que ela não coma, não beba, nem esteja em nenhum lugar dentro de uma distância de fala com aquela [segunda] mulher com quem ele se casou erroneamente nem com os familiares dele. Mas esses familiares, se consentirem [em estar com a ex-mulher], que sejam excomungados. Mas essa excomunhão será tão grande, que eles não comerão nem beberão com nenhum outros cristãos, nem serão participantes da santa oblação e serão separados da mesa do Senhor até que mostrem frutos dignos com penitência através da confissão e das lágrimas.

13.19 (18): Uma mulher, se ela for uma adúltera e seu marido não desejar viver com ela, ele poderá divorciar-se dela, de acordo com a prescrição do Senhor, e casar-se com outra. Essa mulher, entretanto, se desejar entrar em um mosteiro, que ela retenha um quarto de seu dote. Se ela não desejar [fazer isso], que ela não tenha nada disso.

13.24 (23): Se uma mulher se divorciou de seu marido, desprezando-o, não querendo retornar e reconciliar-se com o marido, após cinco anos com o consentimento do bispo, ele poderá se casar com outra esposa se ele não conseguir ser continente. E que ele faça três anos de penitência porque, de acordo com a prescrição do Senhor, ele é considerado como um adúltero.

13.25 (24): Se a esposa de um homem foi levada em cativeiro pela força e ele foi incapaz de resgatá-la, após um ano ele poderá se casar com outra. Novamente, se uma mulher é levada em cativeiro e seu marido espera que ela volte, então ele deve esperar por cinco anos. E do mesmo modo para uma mulher, caso tenham capturado seu marido. Portanto, se um homem se casou com outra esposa e a primeira esposa retornou do cativeiro, que ele receba ela e se divorcie da segunda. E do mesmo modo, como já dissemos acima, no caso de seu marido ser capturado e ele retornar, que ela faça o mesmo.

“Poenitentiale pseudo-Theodori,” in Die Bussordnungen der abendländischen Kirche, editado por F. W. H. Wasserschleben (Halle, Germany: Graeger, 1851), 581-583 (canons 6, 12, 18, 23-24) 

Paenitentiale pseudo-Theodori, Chapter 13 De adulterio, CCSL 156B, 26-29 (canons 7, 13, 19, 24-25)

O cânon 7 (estou usando aqui os números CCSL) diz que um homem que se divorcia de sua esposa e se casa com outra deve fazer penitência por sete anos. Dado que a penitência não é para a vida toda até que ele se divorcie da segunda esposa ou é encurtada se ele se divorciar da segunda esposa, é claro que o novo casamento é permitido. É surpreendente, entretanto, que não sejam delineadas circunstâncias que restrinjam os motivos para o divórcio. Enquanto isso, o cânon 13 repete esta injunção sobre o homem, mas então diz respeito ao comportamento da primeira esposa. Ela é explicitamente proibida de estar perto da segunda esposa ou de seus ex-sogros. Se os sogros permitirem que sua amada ex-nora permaneça com eles, esses familiares são excomungados. O cânon 13 parece ter a intenção de tornar a vida do segundo casamento o menos embaraçosa possível, forçando a ex-mulher a ficar completamente fora de cena. Em outras palavras, embora o homem seja reprovado pelo divórcio e pelo novo casamento, seu segundo casamento é visto como completamente legítimo e merecedor da proteção da igreja e da comunidade. 

O cânon 19 é bastante direto ao permitir o divórcio e o novo casamento do marido, caso sua esposa tenha cometido adultério. Também estabelece estipulações para a divisão do dote dela. Se ela optar por fazer penitência entrando em um mosteiro, então ela poderá ficar com um quarto de seu dote, presumivelmente para ela dar a seu mosteiro quando ela entrar nele. Mas se ela optar por não fazer esta penitência e, em vez disso, não fazer penitência ou a penitência de sete anos descrita no cânon 18 (17), que eu não traduzi aqui, então ela não deve ficar com nenhum de seu dote. A perda de um dote para uma mulher medieval após um divórcio era uma sentença incrivelmente dura.

O cânone 24 se assemelha muito ao cânone 122 do penitencial de pseudo-Egbert, que eu apresentei em meu post anterior, mas restringe a penitência a apenas três anos. A ambigüidade da penitência para toda a vida, descrita em pseudo-Egbert, é removida. No entanto, a condenação do marido por idealmente não se manter solteiro permanece. Da mesma forma, o cânon 25 é semelhante ao cânon 123 no pseudo-Egbert anteriormente discutido. Entretanto, os períodos de espera diferem drasticamente. No pseudo-Teodoro, se o marido é claramente incapaz de resgatar sua esposa, então ele só tem que esperar um único ano antes de se casar novamente. Se, no entanto, ele espera, presumivelmente através de providências prévias, que ela possa retornar, então ele deve esperar pelo menos cinco anos. Se ela não tiver retornado após cinco anos, então ele poderá se casar novamente. O Pseudo-Egbert não fornece esta nuance. Diz antes que, independentemente do marido esperar ter sua esposa de volta depois de tentar fazer isso, ele deve esperar sete anos antes de se casar novamente. No entanto, ambos os penitenciais concordam que estas estipulações se aplicam tanto a homens quanto a mulheres igualmente. Portanto, uma mulher pode voltar a se casar se ela for incapaz de resgatar seu marido capturado. Além disso, se o cônjuge capturado de alguma forma retornar após o outro já ter se casado novamente, a parte que se casou novamente deve se divorciar de seu segundo cônjuge e retornar ao outro. Não parece que os desejos de nenhuma das partes sejam importantes em tais circunstâncias. Eles devem retornar ao primeiro casamento, independentemente disso.

Papa Inocêncio I: O caso de Fortunius & Ursa (410 d.C.)

O seguinte contexto histórico para este caso é detalhado no trabalho de Reynolds, mas a Migne também apresenta algumas notas na Patrologia Latina (Reynolds, 131-134). Este caso particular foi apresentado ao Papa Inocêncio I em 410 d.C., trazido a ele por uma mulher chamada Ursa. Conhecemos este caso através de uma carta de Inocêncio dirigida a um oficial civil romano com o nome de Probus. As circunstâncias da Ursa foram que ela foi capturada pelos visigodos que saquearam Roma em 410. Eventualmente, no entanto, ela foi capaz de retornar a Roma e a seu marido. No entanto, seu marido, Fortunius, já havia casado novamente com outra mulher de nome Restituta (Reynolds, 132). Segundo a lei romana secular, se alguém fosse capturado por um inimigo estrangeiro e levado para território fora do controle romano, então sua cidadania era suspensa e seus bens podiam ser assumidos por outro. Além disso, seu casamento era automaticamente dissolvido (Reynolds, 131). Ou seja, mesmo que quisessem esperar pelo retorno de seu cônjuge, sob a lei romana, o casamento já tinha sido terminado automaticamente. Abaixo está a carta de Inocêncio, que contém os detalhes deste caso:

Epistola XXXVI. Si maritus cujus uxor in captivitatem fuerat abducta, alteram acceperit, revertente prima, secunda mulier debet excludi.

Innocentius Probo

[Col.0602B] Conturbatio procellae barbaricae facultati legum intulit casum. Nam bene constituto matrimonio inter Fortunium et Ursam captivitatis incursus fecerat naevum, nisi sancta religionis statuta providerent. Cum enim in captivitate praedicta Ursa mulier teneretur; aliud conjugium cum Restituta Fortunius memoratus inisse cognoscitur (34, q. 1 et 2, c. 2; Ivo p. 8, c. 245). Sed favore Domini reversa Ursa nos adiit, et nullo diffitente, uxorem se memorati perdocuit. Quare, domine fili merito illustris, statuimus, fide catholica suffragante, illud esse conjugium, quod erat primitus gratia divina fundatum; [Col.0603A] conventumque secundae mulieris, priore superstite, nec divortio ejecta, nullo pacto posse esse legitimum.

Carta 36. Se um marido cuja esposa foi levada em cativeiro e se casou com outra mulher deve, tendo a primeira retornado, divorciar-se da segunda esposa.

Inocêncio a Probus

A confusão dos bárbaros violentos trouxe um caso legal ao meu poder. Pois o ataque deles causou um mal ao bom casamento entre Fortanius e a Ursa cativa, a menos que eles tenham providenciado um estatuto sagrado de religião. De fato, a mulher Ursa foi levada para o cativeiro acima mencionado, é sabido que Fortunius entrou em outro casamento com a Restituta. Mas com o favor do Senhor, a Ursa que retornou veio diante de nós, e sem negação, proclamou convincentemente que ela era a esposa dos tempos passados. Assim, jovem ilustre senhor de mérito, nós determinamos, tendo favorecido a fé universal, que o [primeiro] casamento se mantenha, porque foi fundado anteriormente com a graça divina, e que a aliança com a segunda mulher, enquanto a primeira viver ou não estiver divorciada, não pode ser legítima por qualquer acordo.

Papa Inocêncio a Probus, Epistula 36, Patrologia Latina 20: 602A – 603A

Há muito o que analisar por aqui. Já que é justo, um estudioso anterior chamado G. H. Joyce disse que este caso era um caso legal, não um caso eclesiástico, significando assim que Inocêncio operava como um juiz legal secular e estava vinculado pela lei secular. Este argumento pode ser visto em Christian Marriage: An Historical and Doctrinal Study impresso em 1933. Reynolds, no entanto, refuta esta posição insistindo que o caso foi apresentado perante um tribunal eclesiástico. A razão disto é porque o Imperador Honório havia decidido em 399 d.C. que os bispos só podiam ouvir casos religiosos e que os casos civis deveriam ser julgados perante os tribunais civis. Além disso, sob o direito civil, Ursa certamente teria perdido seu caso contra Fortunius, porque a lei romana dissolveu automaticamente seu casamento uma vez que ela foi capturada e levada para território estrangeiro (Reynolds, 133). Este argumento é ainda reforçado pelo fato de Inocêncio mencionar os estatutos religiosos (sancta religionis statuta) e o favorecimento da fé universal (fide catholica suffragante) (Reynolds, 133). Estes estatutos não teriam valor neste caso, se fosse um estatuto jurídico secular. Em resumo, este foi certamente um caso religioso decidido pelo Papa Inocêncio I.

Agora, é digno de nota que o Papa Inocêncio apresenta o interessante apontamento de algumas exceções em casos de divórcio e novo casamento. Se a primeira esposa tivesse falecido, é claro que Fortunius poderia voltar a se casar. Além disso, se Fortunius tivesse se divorciado de sua esposa em um tribunal eclesiástico, então ele poderia se casar novamente. Em resumo, Inocêncio aqui está dizendo que ele permite o divórcio e o recasamento. A questão rapidamente se levanta quanto às circunstâncias em que Inocêncio teria concedido um divórcio eclesiástico. A este ponto, voltarei mais tarde.

Alguns leitores se oporão a esta interpretação com base na Carta de Inocêncio ao Bispo Victricius de Rouen em 408 DC. Nela, ele proíbe uma mulher adúltera de se casar novamente enquanto seu marido ainda vive. O site Catholic Answers tem esta citação orgulhosamente publicada em seu site sobre a questão do casamento. Entretanto, deve-se notar que esta mulher é claramente a parte culpada no casamento. Além disso, a carta não diz nada sobre proibir esse marido de se casar novamente. No entanto, Inocêncio proíbe o novo casamento após o divórcio, mesmo em casos de adultério, para ambas as partes na Carta 6, Capítulo 6 (PL 20: 0500B - 0501A) datada de 405 d.C. Assim, ou Inocêncio mudou sua posição cinco anos depois no caso da Ursa, ou ele sempre foi extraordinariamente rigoroso em conceder permissão para o divórcio eclesiástico. Reynolds especula que as circunstâncias extraordinárias podem ter sido relacionadas aos muitos anos de cativeiro (Reynolds, 134). Mais uma vez, não podemos conhecer as especificidades. O que é certo, entretanto, é que o Papa Inocêncio acreditava que o divórcio e o novo casamento eram possíveis, mas com base em que fundamentos permanece incerto.

Papa Leão I: Sobre o retorno dos cônjuges cativos (458 d.C.)

Quase quatro décadas depois, o Papa Leão I, como Inocêncio, enfrentou o desafio terrível dos invasores bárbaros - desta vez os hunos sob o comando de Átila. Por volta de 452 d.C., os hunos tinham invadido o norte da Itália e levado muitos cativos. As mulheres que restaram, cujos maridos haviam sido levados em cativeiro, acabaram se casando novamente. No entanto, muitos dos homens puderam voltar alguns anos mais tarde. O bispo Nicetas de Aquileia não tem certeza do que fazer nestes casos difíceis. Portanto, ele pede a Leão sua opinião sobre o assunto. A seguir está uma parte da resposta de Leão em um rescrito (Reynolds, 134-135). É importante observar que rescritos não eram julgamentos vinculativos. Nicetas não estava sob nenhuma obrigação de ouvir os conselhos de Leão.

Epistola CLIX. Ad Nicetam episcopum Aquileiensem

Caput I. De feminis quae occasione captivitatis virorum suorum, aliis nupserunt.

Cum ergo per bellicam cladem et per gravissimos hostilitatis incursus, ita quaedam dicatis divisa esse conjugia, ut abductis in [Col.1136B] captivitatem viris feminae eorum remanserint destitutae, quae cum viros proprios aut interemptos putarent, aut numquam a dominatione crederent liberandos, ad aliorum conjugium, solitudine cogente, transierint. Cumque nunc statu rerum, auxiliante Domino, in meliora converso, nonnulli eorum qui putabantur periisse, remeaverint, merito charitas tua videtur ambigere quid de mulieribus, quae aliis junctae sunt viris, a nobis debeat ordinari. Sed quia novimus scriptum, quod a Deo jungitur mulier viro(Prov. XIX, 14), et iterum praeceptum agnovimus ut quod Deus junxit homo non separet(Matth. XIX, 6), necesse est ut legitimarum foedera nuptiarum redintegranda credamus, et remotis malis quae hostilitas intulit, unicuique hoc quod legitime habuit reformetur, [Col.1136C] omnique studio procurandum est ut recipiat unusquisque quod proprium est.

Caput II. An culpabilis sit qui locum captivi mariti assumpsit.

Nec tamen culpabilis judicetur, et tamquam alieni juris pervasor habeatur, qui personam ejus mariti, qui jam non esse existimabatur, assumpsit. [Col.1137A] Sic enim multa quae ad eos qui in captivitatem ducti sunt pertinebant in jus alienum transire potuerunt, et tamen plenum justitiae est ut eisdem reversis propria reformentur. Quod si in mancipiis vel in agris, aut etiam in domibus ac possessionibus rite servatur, quanto magis in conjugiorum redintegratione faciendum est, ut quod bellica necessitate turbatum est pacis remedio reformetur?

Caput III. Restituendam esse uxorem primo marito.

Et ideo, si viri post longam captivitatem reversi ita in dilectione suarum conjugum perseverent, ut eas cupiant in suum redire consortium, omittendum est et inculpabile judicandum quod necessitas intulit, et restituendum quod fides poscit.

Carta 159. Ao Bispo Nicetas de Aquileia.

Capítulo 1. A respeito das mulheres que, por ocasião da captura de seus maridos, se casaram com outro homem.

Portanto, quando por causa da destruição da guerra e do surgimento das hostilidades mais graves, que, como você diz, alguns casamentos são dissolvidos, de modo que as mulheres, cujos maridos foram levados em cativeiro, permanecem destituídas e pensam que quando seus maridos foram mortos ou acreditam que nunca serão libertados da dominação, então, por serem levadas à solidão, entram em outro casamento. Agora, sempre que o estado das coisas, com a ajuda do Senhor, muda para melhor, e alguns deles, que se pensava terem perecido, retornaram, sua caridade é vista com merecida ambigüidade em relação às mulheres que estão unidas a outro homem.  Que [este caso] seja decidido por nós. Porque conhecemos as escrituras, que [dizem] que "uma mulher é unida a um homem por Deus" (Provérbios 19:14), e também porque conhecemos a prescrição como "não separe o homem o que Deus uniu" (Mateus 19:6), [então] é necessário que acreditemos que a união do casamento legítimo deve ser reintegrada, e uma vez que o inimigo maligno que atacou se retirou, o que havia sido legalmente será reformado, e com todo desejo deve ser buscado para que todos recebam o que é seu.

Capítulo 2. Se há culpabilidade para aquele que assumiu que o [primeiro] marido foi capturado.

No entanto, o homem que tomou o lugar do marido dela, considerando que este último não existia, não deve ser julgado como culpado ou como o invasor dos direitos de outrem. Pois desta forma muitas coisas que pertenciam àqueles que foram levados em cativeiro podem ter passado para os direitos dos outros. Mas é completamente justo que, quando retornarem, seus bens lhes sejam restituídos. Agora, se isto é corretamente observado em matéria de escravos ou de terra, ou mesmo de lares e de posses, como mais isto deve ser feito quando se trata do restabelecimento de um casamento, de modo que o que as adversidades da guerra perturbaram seja restaurado através do remédio da paz.

Capítulo 3. Se a esposa deve ser restaurada a seu primeiro marido.

E, portanto, se os homens que retornaram após um longo período de cativeiro perseveram tanto no amor de suas esposas que desejam que elas voltem à sua companhia, então o que a desgraça provocou deve ser posto de lado e o que a fidelidade exige deve ser restaurado.

Nota: Os Capítulos 2 e 3 são traduções encontradas em Reynolds, Marriage in the Western Church, 135-137.

Papa Leão I ao Bispo Nicetas de Aquileia, Epístola 159, Patrologia Latina 54: 1136A - 1137A

Aqui o Papa Leão aconselha que se o primeiro marido retornar do cativeiro E desejar reunir-se com sua esposa, que desde então se casou com outro homem, que a esposa deixe seu segundo marido e retorne para seu primeiro marido. Além disso, nenhuma das partes é considerada culpada por esta situação. De fato, o segundo marido é explicitamente dispensado desta questão. Também é digno de nota que se o marido retornar E NÃO deseja reivindicar sua esposa, então a esposa NÃO está sob nenhuma obrigação de deixar seu segundo marido. Uma última coisa que vale a pena ressaltar aqui é que Leão acreditava que o segundo casamento da mulher estava correto com base em duas qualificações no caso da captura e escravização de seu primeiro marido. Estas duas qualificações eram ou ela acreditava que seu primeiro marido estava morto ou ela acreditava que, embora ele ainda estivesse vivo, ele nunca seria capaz de voltar. Portanto, é muito claro que o Papa Leão I não considerava o casamento indissolúvel, como muitos Católicos e Protestantes fazem hoje.

Conclusão

Este adendo revelou-se muito mais longo do que o post original que eu fiz em setembro. No entanto, acho que é suficiente para mostrar que a tradição do divórcio e do novo casamento no Ocidente latino era forte e vibrante durante o primeiro milênio. O Concílio de Roma (826) certamente permitiu tanto o divórcio quanto o novo casamento sob a orientação do Papa Eugênio II. Além disso, o Concílio de Elvira (c. 300) permitiu o novo casamento somente para os maridos. As mulheres, entretanto, enfrentavam um duplo padrão sexista, o que não era incomum para permissões de novo casamento no Ocidente latino.  A igualdade no divórcio e no novo casamento era muito mais comum no Oriente grego. Esta igualdade é melhor demonstrada no Ocidente latino no penitencial de pseudo-Teodoro e nos cânones adicionais do Concílio de Compiègne (757). Eu também apresentei evidências de mais dois papas, Inocêncio I e Leão I (um Padre da Igreja), permitindo explicitamente o divórcio e o novo casamento. Também mostrei que São Cesário de Arles, outro Padre da Igreja, supervisionou um concílio que determinou que o divórcio e o novo casamento seriam permissíveis. Para resumir a totalidade desses dois últimos posts sobre a tradição do Ocidente latino: quatro Padres da Igreja, três Papas, oito Concílios e dois penitenciais, todos sancionaram o divórcio e o novo casamento em uma variedade de circunstâncias. O divórcio e o novo casamento no Ocidente latino era certamente uma parte da tradição sagrada.

Original: https://shamelessorthodoxy.com/2017/05/09/divorce-remarriage-in-the-latin-west-an-addendum/

* * * 

Nota do tradutor: para uma lista de citações de Padres da Igreja sobre a questão do divórcio e novo casamento recomendo o seguinte artigo: https://ubipetrusibiecclesia.com/2020/01/05/church-fathers-and-patristic-era-writers-on-the-topic-of-divorce-and-remarriage-a-florilegium/ 

O texto a seguir é uma tradução apenas da introdução do texto mencionado (que deixa claro que não havia consenso sobre a questão entre os Padres da Igreja). 
As opiniões dos Padres e escritores da Igreja daquela época careciam de uniformidade a respeito do novo casamento após o divórcio, especificamente nos casos em que a esposa era culpada de imoralidade sexual. O termo usado em Mateus 19 é "porneia" e significa "imoralidade sexual". Os escritores patrísticos tratam-no como uma ação e não como um estado (portanto, não pode significar "ilícito" ou "inválido", embora alguns autores, como São Basílio o Grande, São Leão e alguns outros tratem o tema dos casamentos ilícitos separadamente e não usam o termo "porneia" para o descrever). "Porneia" é usado consistentemente para traduzir o hebraico "zanah" ("imoralidade sexual") e ambos os termos poderiam conter dentro deles o duplo significado de "idolatria" ou "apostasia" (veja o Livro de Apocalipse 17:2,4 especificamente).

Os Padres podem ser divididos em vários grupos principais com várias outras subdivisões:

1) Novo casamento nunca: Santo Atenágoras de Atenas.

2) Divórcio não permitido: São Teodoreto de Ciro, Papa São Leão Magno, Papa São Gregório Magno.

3) Divórcio permitido e novo casamento não permitido:

O divórcio permitido em caso de esposa adúltera, mas não é permitido o novo casamento (não é feita menção a um novo casamento pós-morte do cônjuge): Hermas, Constituições Apostólicas, 11º Concílio de Cartago, Papa São Inocêncio, Concílio Inglês de 673, Concílio parisiense de 829.

O divórcio é permitido em caso de esposa adúltera e o novo casamento só é permitido para o marido após a morte da esposa adúltera: Clemente de Alexandria, São Jerônimo, Santo Ambrósio de Milão, São João Crisóstomo, Santo Agostinho (primeira opinião, depois mudou de idéia, depois voltou à primeira opinião), Concílio de Fruili (791), São Bento o Levita, Concílio de Nantes.

A esposa não pode se casar novamente enquanto o marido ainda estiver vivo: Orígenes de Alexandria, Concílio de Elvira, Papa São Inocêncio (inclui também uma esposa adúltera), São Bento o Levita, Concílio de Nantes.

Divórcio (ou pelo menos separação) exigido do marido se a esposa for adúltera: Hermas, Constituições Apostólicas.

4) Divórcio e novo casamento são permitidos.

Para o marido enquanto a mulher adúltera estiver viva: São Basílio, São Epifânio de Salamis, Santo Agostinho (no início disse o contrário, mas mudou de idéia e depois voltou à primeira opinião), Tertuliano, Ambrosiastro, São Teodoro de Cantuária, Concílio de Trullo, Concílio de Vannes 465, Concílio de Roma em 826.

Para marido ou mulher inocente no caso de um cônjuge adúltero ou outra ofensa: Epifânio de Salamis, "Exceções" de Egbert, Patriarca Alexis de Constantinopla (aborda apenas o caso da mulher).

Para o cônjuge adúltero após um período de penitência: São Teodoro de Cantuária.

Porqueo casamento pode ser dissolvido por adultério (insinuando que o novo casamento pode ocorrer porque o primeiro já não existe): São Cirilo de Alexandria, Santo Astério de Amasea, São Teodoro de Cantuária, Lactantius, São Hilário de Poitiers.

Depois do cônjuge fazer os votos monásticos: São Teodoro de Cantuária, Concílio de Compiègne.

Para marido permitido enquanto a primeira esposa ainda está viva, devido à saúde da primeira esposa: Papa Gregório II.

Para o marido, se a mulher tentar matá-lo: Concílio de Verberie.

Para o marido, se estiver preso numa terra estrangeira em definitivo: Concílio de Verberie.

 5) Novo casamento condenado, mas sem especificação, se isso continua válido após a morte de um cônjuge:

Justino Mártir, São Cipriano de Cartago, Novaciano (implicado pelo cânon 8 de Nicéia).

6) Divórcio permitido devido a uma esposa adúltera, mas sem menção de novo casamento para o marido inocente:

Teófilo de Antioquia, 12º Concílio de Toledo.

7) É permitido o divórcio e o novo casamento, mas não se faz menção se é dentro ou após a morte do cônjuge adúltero:

Gregório o Teólogo, Concílio de Laodicéia (sem menção ao divórcio, apenas ao novo casamento).

terça-feira, 22 de setembro de 2020

Uma Crítica à Declaração de Balamand (Pe. John Romanides)

I. Introdução

1) Representantes de nove Igrejas Ortodoxas assinaram um acordo com representantes do Vaticano contido num documento intitulado, "Uniatismo, método de união do passado, e a busca presente da plena comunhão". Foi produzido pelos membros do Diálogo Ortodoxo-Vaticano na sua VII Sessão Plenária de 17-24 de Junho de 1993 em Balamand, Líbano.

2) Seis Igrejas Ortodoxas não enviaram representantes. Algumas boicotaram esta reunião em protesto contra as responsabilidades anti-Ortodoxas e anti-Muçulmanas do Vaticano pela guerra na Bósnia, e outras ações anti-Ortodoxas em partes da Europa Oriental e do Oriente Médio. Algumas Igrejas Ortodoxas passaram a perceber o "padrão" ou "táctica" secular do Vaticano de "guerra e diálogo simultâneos" que tinha transformado nos anos 60 em "ataques simultâneos de Amor e diálogo em público" e " atividades desleais em privado".

3) O exemplo clássico desta tática antiga foi o diálogo entre os franco-latinos e os Ortodoxos romanos em Bari, Itália, em 1098. Os franco-latinos tinham acabado de completar a expulsão dos Ortodoxos Romanos do Papado em 1009/12-1046. Isto foi seguido pela captura da Inglaterra por Guilherme o Conquistador em 1066 e por sua nomeação do lombardo Lanfranc como primeiro Arcebispo franco-latino de Cantuária com as bênçãos do Papa Lombardo Alexandre II em 1070. Lanfranc e seus bispos franco-latinos conseguiram sua sucessão apostólica dispensando em massa todos os seus antecessores celtas e saxões(1). Eles os condenaram como hereges e cismáticos e os condenaram à prisão perpétua, onde foram torturados e mortos à fome(2). O sucessor de Lanfranc em 1093 foi o lombardo Anselmo de Cantuária, que foi o expoente máximo das posições franco-latinas na reunião de diálogo em 1098 em Bari, acima mencionada.

4) Não podendo mais usar este tipo de poder militar medieval, que ainda estava usando abertamente até a Revolução Francesa, o Vaticano aprendeu em meados deste século a atacar em público por meio de "amor e diálogo" e "atividades desleais na realidade". Assim, a sinceridade do "amor" e do "diálogo" públicos do Vaticano, impostos pela difusão moderna da democracia, precisa de muito mais fundamentação para se tornar convincente. Até mesmo os muçulmanos bósnios aprenderam isso por trágica experiência após a sessão de oração deles com o próprio Papa.

II. O chamado Cisma (3)

5) Por trás deste acordo estão especialistas latinos familiarizados com as modernas pesquisas sobre a natureza militar, política e social do cisma com os romanos orientais que os francos e seus aliados provocaram deliberadamente. A doutrina desempenhou o papel da principal arma franco-latina contra os romanos orientais que haviam provocado revoltas entre os romanos ocidentais contra a opressão teutônica (4). É claro que os latinos de Balamand não tinham necessidade de abordar este tipo de pesquisa.

6) Ignorando o acima exposto, os Ortodoxos em Balamand acomodaram os latinos, unindo-se a eles no contexto da propaganda franco-latina medieval sobre o cisma com um conteúdo mais ou menos Ortodoxo, uma combinação que vinha dominando as escolas Ortodoxas há muito tempo.

7) Este acordo evita assim as implicações do fato de que, desde o século VII, os franco-latinos geralmente receberam sua sucessão apostólica exterminando seus predecessores romanos ocidentais, celtas e saxões, tendo reduzido os romanos ocidentais a servos e villeins do feudalismo franco. Isto aconteceu não somente na Gália, mas também no norte da Itália, Alemanha, Inglaterra, sul da Itália, Espanha e Portugal.

8) O nascimento da civilização franca é descrito em uma carta de São Bonifácio ao Papa Zacarias (natione Graecus(5)) em 741. Os francos tinham livrado a Igreja em Francia de todos os bispos romanos em 661 e se fizeram seus bispos e administradores clericais. Eles tinham dividido a propriedade da Igreja em feudos que tinham sido distribuídos como benefícios de acordo com o posto dentro da pirâmide de vassalagem militar. Estes bispos francos não tinham arcebispo e não se encontravam em Sínodo há oitenta anos. Tinham se reunido como oficiais do exército com seus companheiros senhores de guerra. Eles são, nas palavras de São Bonifácio, "leigos vorazes, clero adúltero e bêbados, que lutam no exército totalmente armados e que com suas próprias mãos matam tanto cristãos quanto pagãos". (6)

9) Já em 794 e 809 os Francos tinham condenado os romanos de Oriente como "hereges" e "gregos", nos concílios de Frankfurt e Aachen, ou seja, cerca de 260 anos antes do chamado cisma de 1054. Os Francos tinham começado a chamar os romanos orientais pelos nomes de "gregos" e "hereges", para que os romanos ocidentais escravizados pudessem gradualmente esquecer os seus companheiros romanos no Oriente.

10) Os francos então também dividiram os Pais Romanos de língua grega e de língua latina nos chamados Pais Latinos e Gregos e se apegaram aos chamados Pais Latinos. Criaram assim a ilusão de que a sua tradição franco-latina é parte de uma tradição ininterrupta e contínua com os Pais Romanos de língua latina. Porque os romanos ocidentais escravizados se tinham tornado os servos e villeins do feudalismo franco-latino, eles deixaram de produzir líderes e Pais da Igreja e praticamente todos excepto alguns santos registrados.

11) Durante 1009-1046 os franco-latinos completaram a sua expulsão dos romanos Ortodoxos da Igreja da Velha Roma e finalmente substituíram-nos por eles próprios, inventando assim o Papado de hoje.

12) Os francos do século VIII começaram a sua caça à heresia anti-romana acerca das questões dos Ícones e do Filioque, quando eles eram bárbaros analfabetos. Os então papas romanos protestaram. Mas ainda não condenaram os francos. Eles imaginavam que acabariam por prevalecer sobre os francos, como se faz com crianças teimosas. Pouco suspeitaram os romanos da Velha e Nova Roma que os francos estavam deliberadamente a provocar o cisma entre eles e os romanos livres como parte da sua estratégia defensiva permanente contra o Império Romano Oriental e os seus próprios planos de domínio mundial.

13) Os papas romanos não tiveram outra escolha senão tolerar a tirania dos francos no interesse de aliviar os seus companheiros escravos romanos ocidentais e de garantir a sua própria liberdade e a dos cidadãos romanos dos Estados papais.

14) Mas o Papa Romano João VIII participou no 8º Concílio Ecuménico de 879 na Nova Roma, que condenou as heresias dos francos acerca dos ícones e do Filioque, sem contudo nomear os hereges por medo de represálias. (7)

15) Com o aparecimento das Decretais Pseudo-isidorianas por volta de 850, os Papas Romanos começaram a sentir-se suficientemente fortes para exigirem agressivamente que a liderança frenética aceitasse padrões de comportamento civilizados. Mas estes esforços finalmente saíram pela culatra. Os franco-latinos reagiram energicamente à popularidade destas Decretais expulsando os romanos da sua liderança política e eclesiástica em Roma e nos Estados papais. Os franco-latinos começaram o seu ataque final à liberdade e romanidade do papado em 973-1003 e completaram a subjugação do papado romano e da liberdade dos Estados papais entre 1009 e 1046.(8) Depois disso, os papas são todos membros da nobreza franco-latina que usam o nome papa romano e papado romano para que os romanos ocidentais possam continuar a acreditar que ainda tinham um papa romano.

16) De tudo o que foi dito, deve ficar claro que a fixação da data do cisma em 1054, dentro da distinção fabricada entre "Oriente Grego" e "Ocidente Latino", não é correta. O cisma foi entre os franco-latinos e os romanos ocidentais e orientais. 1054 foi apenas uma das manifestações posteriores de um cisma que já existia desde o momento em que os Francos decidiram em 794 provocar o cisma com os chamados "gregos" por razões políticas. A Igreja da Velha Roma lutou heroicamente para permanecer unida à Nova Roma até 1009.

17) A partir de 809 os francos nunca se desviaram da sua posição de que os romanos de Oriente, ou seja, os seus gregos, são hereges. Até 1009, a Igreja da Velha Roma resistiu vigorosamente a esta política intencional dos francos, que foi finalmente imposta pela força.

18) Que esta tradição continuou até meados do século XX era muito evidente durante a juventude deste escritor. Nos livros latinos de Apologética os Ortodoxos eram veementemente descritos como hereges e sem santos. Evidentemente isto deveu-se à controvérsia Filioque que eclodiu seriamente antes do Oitavo Concílio Ecuménico de 879. Assim, supostamente os Ortodoxos não tiveram Pais da Igreja depois de S. João de Damasco (circa 675-749) e de S. Teodoro de Studium (759-826). (9)

19) Mas os franco-latinos e o seu papado continuaram as suas conquistas acompanhadas pelo extermínio e/ou expulsão dos bispos e abades Ortodoxos e a redução dos fiéis ao status de servos e villeins, apropriando-se completamente das suas propriedades. Isto os conquistadores muçulmanos, nem árabes nem turcos, nunca o fizeram.

20) Mas mesmo até ao início deste século XX o Vaticano ainda estava a fazer o seu trabalho. Em 1923, a Itália tomou posse das ilhas Dodecanesas (As Doze) da Turquia. Os bispos Ortodoxos foram substituídos pelos bispos Toscanos-Francos e Lombardos, que desde 1870 se faziam passar por italianos. O Vaticano esperava que os fiéis Ortodoxos aceitassem o clero ordenado por estes bispos do Vaticano ou então que ficassem sem sacramentos. A situação mudou quando a Grécia tomou posse destas ilhas. Os bispos Ortodoxos exilados regressaram sob a supervisão do Patriarcado Ortodoxo de Constantinopla.

21) Mas então o Vaticano fez uma mudança repentina e produziu o reconhecimento unilateral dos sacramentos Ortodoxos pelo Vaticano II. A questão mantém-se: essa transformação de Guerra para Amor é real? Ou será ainda o amor do lobo agora vestido com roupas de ovelha para apanhar as suas presas tradicionais? A invasão do Vaticano aos países Ortodoxos com tantos clérigos à caça de presas parece falar por si.

22) O que o Vaticano está doutrinariamente a fazer dependerá do que fará com todos os seus Concílios Ecumênicos. Pelo menos em relação à primazia e infalibilidade do Papa, o Vaticano II continua a sustentar que se trata de uma questão de revelação divina e não de lei canônica.

O Papa Leão IX e o Patriarca de Constantinopla Miguel I Cerulário. 

III. Eclesiologia

23) Nem desde o século VII até 1054, nem desde então, os bispos e papas franco-latinos tiveram o mínimo conhecimento ou interesse na cura da personalidade humana através da purificação e iluminação do coração e da glorificação (theosis). Eles ainda têm uma compreensão mágica da sucessão apostólica que muitos Ortodoxos também têm aceitado desde as chamadas reformas de Pedro o Grande.

24) O acordo de Balamand também se baseia numa interpretação da oração de Nosso Senhor em João 17 que não faz parte da tradição patrística. Cristo ora aqui para que os Seus discípulos e os discípulos deles possam nesta vida tornar-se um na visão da Sua glória (que Ele tem do Pai por natureza) quando se tornarem membros do Seu Corpo, a Igreja, que seria formada no Pentecostes e cujos membros seriam os iluminados e glorificados nesta vida. Os profetas do Antigo Testamento viram na sua própria glorificação o Senhor da Glória pré-incarnado. Do mesmo modo, os discípulos tinham visto a glória incriada de Cristo que Ele tem do Pai por natureza até e antes do Pentecostes, mas não como membros do Seu Corpo. A glorificação pentecostal (theosis) fez parte da Igreja do Antigo e do Novo Testamento, tornando-se o Corpo de Cristo. Assim, esta forma final de glorificação constitui o núcleo da história do Corpo de Cristo, que é o verdadeiro núcleo da história da Igreja. A oração de Cristo em João 17 é para o cumprimento das Suas profecias, ensinamentos e promessas do Antigo e do Novo Testamento, especialmente aqueles registados no Evangelho de João e especialmente em 16: 13. Esta glorificação final é o que se repete na vida de cada um dos santos na história e que não pode ser acrescentada nem melhorada, especialmente porque esta experiência transcende palavras e conceitos, mesmo os da Bíblia. É assim que os Pais entendem esta oração.

25) Esta oração não é para a união dos membros do Corpo de Cristo com aqueles que não estão nos estados de purificação, iluminação e glorificação (theosis). Claro que esta oração implica a entrada nestes estados de cura por não-membros do Corpo de Cristo, mas não é certamente uma oração pela união das igrejas. Que João 17 possa ser aplicado às Igrejas que não têm a menor compreensão da glorificação (theosis) e como chegar a esta cura nesta vida é, no mínimo, muito interessante.

26) Este acordo aproveita-se daqueles Ortodoxos ingênuos que têm insistido que são uma Igreja "Irmã" de uma Igreja "Irmã" do Vaticano, como se a glorificação (theosis) pudesse ter uma irmã que não fosse ela própria. Os Ortodoxos em Balamand caíram na sua própria armadilha, uma vez que isto pressupõe a validade dos sacramentos latinos. Este é de fato um fenômeno estranho, pois os latinos nunca acreditaram que a glorificação nesta vida seja o fundamento da sucessão apostólica e dos mistérios (sacramentos) do e dentro do Corpo de Cristo. Ainda hoje, os latinos e os Protestantes traduzem 1 Cor. 12:26 como "honrados" em vez de "glorificados".

27) Mas o Vaticano II também tinha montado a sua armadilha de reconhecer unilateralmente os mistérios Ortodoxos (sacramentos) nos quais os Ortodoxos de Balamand caíram de acordo com o plano.

28) Mais importante do que a validade dos mistérios é a questão de quem participa neles. A glorificação é a vontade de Deus para todos, tanto nesta vida como na vida seguinte. Mas a glória de Deus em Cristo é a vida eterna para aqueles que estão devidamente curados e preparados. Mas esta mesma glória incriada de Cristo é fogo eterno para aqueles que se recusam a ser curados. Um grupo é glorificado e o outro torna-se para sempre feliz no seu egoísmo como o "deus actus purus" em que acreditam. Em outras palavras, todos serão salvos. Alguns serão salvos pela sua participação na glorificação e em toda a Verdade. Os restantes serão salvos pelo conhecimento de toda a verdade que para eles será a visão da glória incriada de Cristo como fogo eterno e escuridão exterior. Este é o estado de felicidade actus purus pela qual lutaram por todas as suas vidas. Por outras palavras, os mistérios podem ser válidos e não ser participados ao mesmo tempo. Assim, por mais importantes que sejam os mistérios válidos, a participação nestes mistérios levando à purificação e iluminação do coração, e a glorificação nesta vida - a realidade central dos mistérios - é também essencial. Isto aplica-se igualmente aos não-Ortodoxos e Ortodoxos.

29) Ao que parece, os Ortodoxos podem desejar e esperar legítima e apropriadamente por amor que os mistérios latinos e Protestantes sejam de fato válidos e eficazes, mas deixando a questão nas mãos de Deus. Mas declará-los válidos, 1) quando os latinos não aceitam a glorificação (theosis) nesta vida como o núcleo central da tradição e sucessão apostólica e 2) quando acreditam que a felicidade é o fim último de alguém, é de fato estranho. Não é necessário ter mistérios válidos para se tornar eternamente feliz.

30) Os ensinamentos oficiais franco-latinos sobre os mistérios têm sido historicamente não só não-Ortodoxos, mas também anti-Ortodoxos. Sobre isto a maioria dos Protestantes concorda em princípio com os Ortodoxos, ou seja, que a graça salvífica comunicada é incriada. A heresia latina que a graça comunicada é criada ainda não foi rejeitada pelo Vaticano.

IV. A razão de ser do Uniatismo deixa de existir

31) Os representantes do Vaticano propuseram esta posição intitulada e os Ortodoxos em Balamand aceitaram-na. No entanto, os Ortodoxos de Balamand eram supostamente especialistas que sabiam que esta proposta era feita no contexto tanto do dogma latino sobre o Papa como oficialmente também no contexto de todos os Concílios Ecumênicos do Vaticano. Mas uma posição Ortodoxa sobre esta questão não é evidente a partir deste acordo. Assim, cria-se a impressão de que os Ortodoxos, pelo menos implicitamente, aceitaram o dogma latino sobre o Papa e o de todos os Concílios Ecumênicos do Vaticano.

32) Na época do Vaticano II, o New York Times tinha anunciado na sua página de título que o cisma entre os Ortodoxos e o Vaticano tinha supostamente terminado. Isto deveu-se ao fato de os latinos terem entendido o levantamento dos anátemas de 1054 como um levantamento da excomunhão. Constantinopla levantou, conforme parece, apenas os anátemas. Para os latinos isto estava em consonância com o Vaticano II sobre a validade dos mistérios Ortodoxos. Isto tornou possível aos latinos comungar nas Igrejas Ortodoxas e, segundo os latinos, vice versa. Os Ortodoxos tiveram dificuldades recusando a comunhão aos latinos e o Vaticano suspendeu temporariamente a prática.

33) Este acordo de Balamand foi aceito pelos representantes de nove das 14 Igrejas Ortodoxas, mas ainda não por seus Sínodos nem por um Concílio Pan-Ortodoxo. Neste meio tempo, o Vaticano pode mais uma vez encorajar os latinos e os uniatas a comungar nas Igrejas Ortodoxas, enquanto encoraja os Ortodoxos a fazer o mesmo. O próprio fato de os Ortodoxos em Balamand terem estendido o pleno reconhecimento aos mistérios latinos significa que poderia ser facilmente criada a impressão de que apenas o fanatismo poderia ser a razão para recusar a intercomunhão e a con-celebração.

34) Também é possível que em algum momento o Papa desista de nomear um sucessor para pelo menos um de seus atuais Arcebispos uniatas ou mesmo Patriarcas e coloque seus fiéis uniatas locais sob a liderança espiritual do Arcebispo ou Patriarca Ortodoxo local como um teste experimental.

35) Desde pelo menos 1975, o CMI [Conselho Mundial de Igrejas] tem cultivado com cuidado e muito sucesso a imagem dos Ortodoxos como não tendo amor cristão por recusar a comunhão com os outros. Uma possível recusa dos Ortodoxos em aceitar uniatas sob um de seus Arcebispos ou Patriarcas pode tornar-se parte de uma prática similar de imaginar os Ortodoxos como de fato fanáticos, especialmente porque neste caso eles estariam recusando a comunhão e con-celebração com o clero cujos mistérios eles reconhecem plenamente.

36) Agora que o acordo de Balamand se tornou um candidato a se tornar uma continuação do Vaticano II e, neste caso, o Uniatismo não terá mais nenhuma razão para existir, os Ortodoxos serão confrontados com as conseqüências de sua contínua recusa de comunhão com os latinos e uniatas.

37) O que é mais interessante é o fato de que, segundo o acordo de Balamand, os mistérios são válidos quer se aceite 7 ou 22 Concílios Ecuménicos e os seus ensinamentos e práticas. A impressão será certamente criada de que só a falta de amor poderá ser a razão pela qual os Ortodoxos poderão continuar a recusar a intercomunhão e a con-celebração com o Vaticano.

V. A Questão

38) Parece que os Ortodoxos em Balamand estão tentando introduzir uma inovação em relação aos mistérios bíblicos. Até agora, as Igrejas Ortodoxas geralmente aceitavam em seus membros indivíduos ou Igrejas por meio de exatidão (akribeia) ou economia (oikonomia).

(a) Por Exatidão a pessoa é aceita por batismo, crisma e profissão da Fé Ortodoxa acompanhada pela rejeição de erros anteriores.

(b) Por Economia a pessoa é aceita por crisma e profissão da Fé Ortodoxa e pela rejeição de erros anteriores.

39) Nenhum destes dois meios de entrada na Igreja é em si mesmo um julgamento sobre a validade ou não-validade dos sacramentos da Igreja de origem, já que não há mistérios fora do Corpo de Cristo. Ou a pessoa é membro do Corpo de Cristo por seu batismo do Espírito, ou seja, iluminação e/ou glorificação em Cristo ou a pessoa ainda está no estado de purificação por seu batismo pela água para o perdão dos pecados e no processo de tornar-se membro do Corpo de Cristo e templo do Espírito Santo. Pode-se ser um crente em Cristo sem pertencer a nenhuma destas categorias. Isto se aplica também aos Ortodoxos nominais. Cabe a cada Sínodo dos bispos Ortodoxos decidir o status de cada grupo daqueles que buscam a comunhão dentro do Corpo de Cristo.

40) Em relação à cura da purificação, iluminação e glorificação, não há diferença entre os latinos e a maioria dos Protestantes já que, ou se, eles não estão envolvidos nesta cura que nada tem a ver com o misticismo*. Isto se aplica também aos Ortodoxos nominais. A razão para o aumento do número destes últimos (especialmente desde Pedro, o Grande) é que os professores das faculdades Ortodoxas deixaram de estar cientes, e muitos ainda não estão cientes, desta tradição de cura Bíblico-Patrística e estão, portanto, propensos a copiar de obras não-patrísticas ou não-Ortodoxas para escrever seus manuais de ensino. O resultado tem sido o aparecimento de grandes grupos do clero que não vêem mais nenhuma diferença importante entre o entendimento latino e Ortodoxo dos Mistérios dentro do Corpo de Cristo.

41) A questão básica diante de nós é clara: o dogma 1) é uma proteção contra especulações de médicos charlatões e 2) um guia para a cura da purificação e da iluminação do coração e da glorificação (theosis), ou não?

42) "Que cada um se examine a si mesmo, e assim coma desse pão e beba desse cálice. Aquele que o come e o bebe sem distinguir o corpo do Senhor, come e bebe a sua própria condenação. Esta é a razão por que entre vós há muitos adoentados e fracos, e muitos mortos." (1 Cor. 11:28-30).  Em outras palavras, alguém examina a si mesmo para ver se ele é membro do Corpo de Cristo por estar no estado de iluminação, ou seja, com pelo menos tipos de línguas. Caso contrário, participa-se do pão e do cálice "indignamente" (1 Cor. 11:27). Em tal caso, ainda se está "fraco" ou "doente" e até espiritualmente "morto" (1º Cor. 11:30), ou seja, não participando na ressurreição da pessoa interior e, portanto, ainda não comungando na Eucaristia para a vida em Cristo, mas sim para o julgamento. Não se deve usar os encontros eucarísticos como ocasiões para simplesmente alimentar-se. Isto se faz em casa. "Porque, se nós nos julgássemos a nós mesmos, não seríamos julgados. Mas, quando somos julgados, somos instruídos pelo Senhor, para não sermos condenados com o mundo." (1 Cor. 11:31-32). Nos estados de iluminação e glorificação, a pessoa é instruída em seu espírito pelo próprio Cristo. Esta é a cura que Paulo explica em detalhes em 1 Cor. 12-15:11. (10)

VI. Formulações de dogmas que não devem ser confundidas com o mistério de Deus

43) Foi somente para manter os fiéis dentro desta tradição de cura em Cristo que as heresias foram condenadas pelas formulações dogmáticas dos Concílios Ecumênicos e Locais. Essas formulações nada têm a ver com a analogia fidei e analogia entis agostiniana e franco-latina, ou seja, com especulações teológicas e filosóficas baseadas em uma suposta similaridade entre o criado e o incriado. A crença em tal similaridade foi a característica básica das heresias e que se tornou comum entre alguns Ortodoxos também. A única finalidade das formulações dogmáticas é servir como guias para a cura do espírito humano em e pelo próprio Cristo.

44) As doutrinas franco-latinas sobre os sacramentos e a graça criada são baseadas na cristologia de Agostinho e sua busca da felicidade neo-platônica. Ele rejeitou inconscientemente a identificação [presente no Primeiro e Segundo Concílios Ecumênicos] de Cristo com o Anjo de Deus do Antigo Testamento, Aquele que é, o Deus de Abraão, Isaac e Jacó que apareceu a Moisés na sarça ardente e o Senhor da Glória, o Senhor Sabbaoth, o Pantocrator e o Anjo do Grande Conselho que apareceu aos profetas do Antigo Testamento. Agostinho se deixou enganar ao acreditar que esta identificação era apenas o ensinamento dos arianos hereges. Ele não sabia que este era também o ensinamento dos Pais do Primeiro e Segundo Concílios Ecumênicos. Enquanto os Arianos e Eunomianos acreditavam que este Senhor e Anjo da Glória foi criado por Deus, os Pais Ortodoxos sabiam, por sua própria glorificação em Cristo e pela Bíblia, que Ele é o Filho incriado de Deus e consubstancial a Seu Pai. À sua ignorância desta identificação de Cristo com o Senhor da Glória do Antigo Testamento, Agostinho também acrescentou sua busca pessoal pela felicidade neo-platônica, que nada tem a ver com a glorificação dos apóstolos e profetas por Deus.

45) Agostinho é o pai do estranho ensinamento dos franco-latinos por meio do qual Deus traz à existência criaturas para serem vistas e ouvidas pelos profetas e pelos apóstolos e que Ele passa à não-existência após cada revelação específica. (11) Assim, o Anjo de Deus do Antigo Testamento acima mencionado e o fogo na sarça ardente, a coluna de fogo e nuvem, o pássaro no batismo de Cristo, a glória e o domínio de Deus em ambos os Testamentos, e até mesmo as línguas de fogo no Pentecostes, supostamente foram todos trazidos à existência e depois passados para não-existência. Em outras palavras, os símbolos lingüísticos usados pelos escritores da Bíblia para indicar glorificações/revelações e a ação da graça de Deus são transformados em criaturas temporárias que passam para dentro e para não-existência. De fato, para os franco-latinos esta é supostamente a forma mais inferior de revelação que é superada pelas revelações de Deus feitas diretamente ao intelecto.

46) Este foi o ensinamento de Barlaão, o Calabrês, que veio do Ocidente tendo se tornado Ortodoxo sem conhecer a fé da Igreja sobre estas questões. Após discutir com monges Ortodoxos e defender estas posições franco-latinas, seus ensinamentos foram condenados pelo Nono Concílio Ecumênico (12) de Constantinopla em 1341. Ficou conhecido um pouco mais tarde que seus ensinamentos eram as novidades de Agostinho, seguidos por toda a Igreja Franco-Latina. Foi evidentemente por esta razão, e não somente por seu Filioque, que Agostinho foi colocado à margem da autoridade patrística. Em contraste, a Igreja celebra o dia da festa de São Gregório Palamas no segundo domingo da Quaresma como um segundo domingo da Ortodoxia pelo papel fundamental que desempenhou contra as heresias franco-latinas de Barlaão e a fim de proteger os fiéis em seu caminho para a graça incriada por sua purificação, iluminação e glorificação em Cristo. Deus se dá a conhecer a Seus santos glorificando-os. Assim, eles se tornam deuses pela graça e vêem Deus em seu Logos feito carne e pelo Espírito Santo.


Publicado em Theologia, o periódico da Igreja da Grécia, Vol. VI 1993, Edição nº. 4, páginas 570-580.
http://orthodoxinfo.com/ecumenism/frjr_balamand.aspx

Notas

*O autor gentilmente me enviou este adendo esclarecedor em resposta a uma pergunta que eu tinha a respeito de seu uso do termo "misticismo". Esta observação não estava no texto original: 
"Por misticismo entende-se a tentativa de ultrapassar ou transcender o aspecto material da realidade, contemplando os arquétipos imateriais em um intelecto divino, como se Deus fosse como um arquiteto que executa Seus planos mentais. A forma neo-platônica desta tradição entrou na tradição franco-latina por meio de Agostinho. Isto se tornou o fundamento do monaquismo agostiniano que substituiu o monaquismo Ortodoxo como representado pelos Santos Patrício, João Cassiano e Bento, baseado na purificação e iluminação do coração e glorificação que não era apenas para os monges, mas também para todos os leigos.

"Deste ponto de vista, não há diferença real entre Protestantes e latinos, pois nenhum deles conhece a tradição de purificação e iluminação do coração e glorificação ou theosis. A verdadeira diferença entre estes filhos de Agostinho é que Lutero rejeitou o misticismo agostiniano e o monaquismo que dele deriva. Desta posição, temos a distinção latina entre a vida contemplativa e a vida ativa. Os Protestantes escolhem a vida ativa e no geral deixaram a vida de contemplação para os latinos.

"Porque são filhos de Agostinho, tanto os latinos como os Protestantes foram excluídos da glorificação e com eles as vítimas Ortodoxas de Pedro, o Grande.

"Todos os latinos que conheço têm apresentado o misticismo como parte integrante dos chamados Pais Gregos uma vez que os leram por meio de suas lentes agostinianas. Por causa disso, o capítulo grego de São Dionísio o Areopagita sobre 'Mystike Theologia' é traduzido erroneamente como 'Teologia Mística' ao invés de 'Teologia Secreta'. Ele chama este capítulo de 'Teologia Secreta' porque a glória incriada de Deus na glorificação do homem não pode ser descrita em palavras nem compreendida com conceitos. É a partir da glorificação dos santos que sabemos que não há semelhança entre o criado e o incriado e que "é impossível expressar Deus e ainda mais impossível conceber Deus". (São Gregório, o Teólogo). Também Vladimir Losky, com o título de seu Livro A Teologia Mística da Igreja do Oriente, acrescentou um pouco à confusão".
1. Para fontes documentadas dos detalhes do assassinato dos bispos e abades celtas e saxões e sua substituição por nobres dos reinos francos de Francia, ou seja Gallia, Germania e Itália veja Auguste Thierry, "Histoire de la Conqute de l'Angleterre par les Normands", Paris 1843, vol. 2. pp. 147 (1071-1072), 215-219 (1075-1076), 284, 313-314, 318 (1087-1094); vol. 3, pp. 35 (1110-1138), 214-215 (1203).

2. Ibid., vol. 2, pp.55, 66 (1068), 111, 145, 184 (1070-1072),215 (1075-1076), 240-242 (1082), 313-316 (1088-1089); vol. 3, pp. 35, 44, 47 (1110-1140); veja também J. S. Romanides, "Church Synods and Civilization", em Theologia, Athens, vol. 63, número 3, 1992,p. 427-428.

3. Além do trabalho mencionado na nota 1, veja J. S. Romanides, "Franks, Romans, Feudalism and Doctrine, an interplay between theology and society", Holy Cross Orthodox Press, Brookline, Massachusetts 1982.

4. Ibid., pp. 11-14.

5. Isto é, um nativo da província romana Magna Graecia, no sul da Itália.

6. Migne P L, 89, 744; Mansi 12, 313-314.

7. J. S. Romanides, "Franks, Romans, Feudalism and Doctrine", pp. 19-20.

8. Ibid., pp. 20-38.

9. Veja, por exemplo, vol. 2, pp. 314-349, de F. Cayr, A. A. Manual de Patrologia e História da Teologia, (versão em inglês), Tournai vol 1, 1935, vol 2, 1940. A partir da p. 351 do vol. 2 e em diante, somos informados sobre os Sucessores Escolásticos dos Pais e depois sobre os Grandes Sucessores dos Pais e finalmente, a partir da página 661, somos informados sobre a "Decadência Geral do Escolasticismo".

10. Veja o estudo referido na nota 1.

11. Veja, por exemplo, seus De Trinitate Livros II e III.

12. De acordo com o Direito Romano.