sexta-feira, 29 de maio de 2020

"Bizantinos", Cesaro-Papismo e Teocracia (Anastasios Philippides)


E os Bizantinos? 

Antes de passarmos a rastrear os elementos da "consciência nacional romana", precisamos esclarecer mais um equívoco que a bibliografia ocidental instituiu, a respeito do nome dos nossos antepassados medievais.

Como nos é dito, esta época é chamada de "bizantina", e nossos ancestrais são certos misteriosos "bizantinos" que vieram do nada e desapareceram magicamente, muito embora "nós" pareçamos ter nos preservado durante os 400 anos de escravidão.

Também tem sido dito pelas fontes que nunca existiu na história um povo que se chamasse "bizantino", ou sua nação "bizantina".  O termo foi cunhado, após a dissolução do chamado império "bizantino", em 1562, por Hieronymus Wolf, que começou a coletar fontes históricas em uma obra que intitulou "Corpus Historiae Byzantinae".

As razões para cunhar um novo nome foram puramente políticas.  De todas as maneiras possíveis, a lembrança dos romanos de seu passado tinha que ser apagada de sua consciência nacional. Acima de tudo, sua terra tinha que deixar de ser identificada com o Império Romano. A partir daí, tanto os europeus ocidentais como os neo-romanos seriam informados de que "existiu um certo império bizantino". Desta forma, os europeus ocidentais conseguiriam impor o que cobiçavam desde o século VIII, ou seja, serem reconhecidos como os verdadeiros herdeiros da civilização e do Estado Helénico-Romano.  A invenção da palavra "bizantinos" foi, em outras palavras, uma falsificação violenta da História que foi ditada pelos nossos adversários.  O fato dos neo-helenos terem aceitado o termo "bizantinos" e de estarmos sendo ensinados isso na escola, é indicativo da emulação cega e cheia de complexos que permeou Hellas [Grécia] pós-libertação. Essa falsificação da História, no entanto, criou um problema insolúvel para os historiadores ocidentais: quando começou a História "bizantina"?

De tempos em tempos, várias datas têm sido propostas, desde 284 d.C. (a ascensão de Diocleciano ao poder - proposta por E. Stein), até 717 d.C. (a ascensão de Leão III Isauro - proposta pela História Medieval de Cambridge).  No meio destas soluções foram consideradas 330 d.C. (a fundação de Constantinopla), 395 d.C. (a divisão do Império em oriental e ocidental, por Teodósio I), 476 d.C. (a dissolução "final" do Império Ocidental), ou 610 d.C. (a ascensão de Heráclio e a "helenização" do Estado).  Evidentemente, é enfatizado por todos os pesquisadores que toda divisão histórica é arbitrária, e que tais divisões são subjetivas e são usadas somente por razões educacionais.

 Tudo isso é correto, mas não explica porque devemos agonizantemente buscar um novo nome, quando poderíamos muito bem ter chamado o Império com seu próprio nome: "Império Romano" ou "Romania" (= terra dos romanos). Seu caráter pode ter sofrido uma mudança em determinado momento, talvez quando o cristianismo foi instituído, e assim poderíamos ter sido ensinados sobre o "Império Romano", que foi seguido pelo "Império Romano Cristão", mas não se deve inventar uma estranha neo-terminologia que carrega vibrações ideológicas muito específicas.  Usemos um exemplo, para percebermos a magnitude da falsificação histórica que está sendo imposta com o termo "bizantino".

Se, com o uso de uma máquina do tempo, pudéssemos nos situar na cidade de Tessalônica do ano 330 d.C. e abordar um transeunte aleatório como um "bizantino", você pode estar certo de que o transeunte se afastaria e procuraria uma pessoa mais educada para conversar. Porque ele mesmo saberia que era um cidadão romano, um membro do Império Romano, com todo o vigor da tradição romana por trás dele.  Se você lhe dissesse que de agora em diante, nossos livros o chamariam de um "bizantino" e não um romano, ele se revoltaria, e estaria certo nisso, pois nada havia ocorrido que o obrigasse a mudar sua nacionalidade.

Se tentássemos dizer a mesma coisa a um cidadão de Tessalônica no ano 530 d.C., receberíamos novamente a mesma resposta.  E se insistíssemos "mas como você pode ser um romano? Roma está nas mãos dos Godos há 54 anos, desde 476 d.C., e nossos livros nos dizem que o Império Romano deixou de existir", nosso cidadão surpreso responderia:  "Sim, talvez Roma tenha caído, mas o resto do Império permanece livre em grande parte; é governado pela Nova Roma (Constantinopla), que tem sido a co-capital do Império por 200 anos e que a qualquer dia, nossos irmãos escravizados serão livres mais uma vez."  E ele também estaria correto ao dizer isso, porque alguns anos mais tarde, os exércitos de Justiniano libertariam a Itália.

Este é um momento oportuno para observar que o termo "libertar" deve ser preferido, ao invés de "conquistado" ou "reconquistado" (reconquista), que atualmente são usados como se tratasse de um inimigo estranho dos italianos e dos desígnios imperialistas de um potentado ambicioso.  Os exércitos de Justiniano foram recebidos como libertadores pelos subjugados compatriotas romanos: quando Belissarius chegou a Carchedon, encontrou a cidade iluminada e sua população ortodoxa celebrando a derrota dos arianos vândalos.  Como relata o historiador Prokopios:  "...e os carchedonianos, tendo aberto bem os portões, cada um deles acendeu suas lâmpadas e toda a cidade brilhou fortemente com as chamas durante toda aquela noite, e os restantes dos Vândalos se sentaram como suplicantes nos templos." [43]

O mesmo tipo de recepção foi reservado em Roma, que na realidade tinha convidado Belissarius para vir.

De qualquer forma, é irracional acreditar que a ocupação de uma parte de um país possa obrigar as demais partes livres desse país a mudar seu nome.  Depois de uma hipotética ocupação da Trácia (norte da Grécia) pelos turcos, o resto de Hellas seria obrigado a deixar de ser chamado de Hellas e começar a ser chamado - por exemplo - de Pelasgia?  E no entanto, caímos precisamente em tal absurdo, ao rotular como "bizantino" o Império Romano do Oriente; aquela parte ainda livre do vasto Império Romano, após a queda de Roma.

Uma última tentativa de se dirigir a um cidadão em Tessalônica do ano 630 d.C., ou qualquer outra data anterior a 1430 d.C. (quando Tessalônica finalmente caiu para os turcos), da mesma forma que propusemos acima, teria resultado o mesmo. Ainda que nossos livros escolares ensinem persistentemente que o caráter do império "bizantino" mudou no início do século VII (por volta da época de Heráclio) e se transformou em um estado puramente helênico, nosso amigo continuaria intrigado.  Tanto ele quanto seus antepassados sempre falaram a língua helênica, assim como a maioria dos cidadãos do Império Romano Oriental, mas isso não significava que se sentissem menos romanos que seus compatriotas latinos nas partes ocidentais do Império. Além disso, o Império Romano sempre foi bilíngue. Por exemplo, já em 57 d.C., o apóstolo Paulo havia escrito na língua helênica sua conhecida Epístola aos cristãos de Roma, e treze dos primeiros dezesseis papas de Roma eram de língua helênica.  Nas igrejas de Roma, os serviços eram realizados na língua helênica, pelo menos até o final do terceiro século, possivelmente até mais tarde. [44] De qualquer forma, é um fato conhecido que "do final do século III a.C. até o século III d.C., todo romano educado era bilíngue". [45]

A única mudança observada no século VII foi que a língua helênica tornou-se gradualmente a língua oficial, no lugar do latim.  Isto aconteceu por razões puramente práticas, pois a parte do império que permaneceu livre era a de língua helênica.  Justiniano menciona claramente em um de seus "Neares" que essas leis foram escritas em helênico porque dessa forma, seriam melhor compreendidas pela população:  "Nós não compusemos a lei na língua dos antepassados - a latina - mas a comum e helênica, para que pudesse ser reconhecida por todos, graças à facilidade de interpretação". [46]   («ου τη πατρίω φωνή – λατινική – τον νόμον συνεγράψαμεν αλλά ταύτη δη τη κοινή και Ελλάδι, ώστε άπασιν αυτόν είναι γνώριμον δια το πρόχειρον της ερμηνείας»).

Além disso, como observa P. Charanis, esse evento - que hoje parece especialmente significativo - ocorreu de forma tão imperceptível, que mesmo os cidadãos do império provavelmente não se deram conta dele. [47] Certamente, o uso de uma ou outra língua não significou uma mudança na "consciência nacional" do Estado. Qualquer visão simplista que vincule a língua à consciência nacional talvez seja apropriada a épocas passadas, mas não ao século XX. Sabemos com certeza que não temos qualquer indicação a partir das fontes de que qualquer mudança na consciência nacional tenha ocorrido durante o século VII.

Quanto ao termo "bizantino", ele não entrou em amplo uso antes do século XIX. O renomado historiador britânico Gibbon escreveu seu famoso "Declínio e Queda do Império Romano" no final do século XVIII e finalizou sua obra em 1453, ano em que ele acreditava ter sido a queda do Império Romano.

Em nossa opinião, embora o termo não pareça servir a nenhum propósito, no entanto, ele obscurece a correta compreensão da História medieval.

Por exemplo, além de tudo o que mencionamos até agora sobre as dificuldades em rastrear o início do Império "Bizantino" e sua "Helenicidade", também surgem problemas quando se tenta analisar suas políticas externas. Assim, muitos historiadores afirmam que a ideologia imperialista Justiniana do século VI foi sucedida por uma ideologia defensiva a partir do século VII, centrada na preservação dos territórios.

Mas se deixarmos de lado o termo "bizantino" e lembrarmos que estamos falando das regiões livres do Império Romano, a política de Justiniano deixa de ser imperialista, na medida em que ele tinha apenas como objetivo libertar os romanos subjugados da Itália e da África.

Quanto mais nos aproximamos dos séculos VIII e IX, mais notamos que os problemas por causa do uso do termo "bizantino" parecem se multiplicar.  Como veremos nos capítulos 7 e 8, os ocidentais insistem que a Itália romana se revoltou contra a dominação "bizantina" na época, e preferiu se colocar sob a ocupação bárbara dos francos. Ao usar a palavra "bizantina", os historiadores ocidentais introduzem uma separação nacionalista entre os compatriotas romanos da Itália e do Oriente, e falam de um "expansionismo bizantino" no sul da Itália, quando todos os romanos do Ocidente estavam lutando para se livrar do jugo bárbaro dos Francos.

Um aspecto cômico aqui é que os mesmos historiadores eventualmente reconhecem as influências "bizantinas" na arte italiana durante esse período, e se esforçam para encontrar os canais através dos quais a arte "bizantina" influenciou o Ocidente. Em outras palavras, eles estão se esforçando para explicar como a arte romana apareceu na .... Itália romana.

Todos esses problemas supérfluos foram acumulados, apenas porque nossos adversários europeus ocidentais, em determinado momento, quiseram nos dar um nome que nos afastasse de nossa História.  Durante séculos, eles se esforçaram para atribuir a esse nome toda inferência negativa possível; por exemplo, a palavra "bizantinismo", que eles naturalizaram em todas as línguas européias e, mais tarde, a transferiram para Hellas.  E, em grande parte, conseguiram: os neo-helenenos hoje acreditam que "Bizâncio" destruiu a civilização helênica, por isso tentam se distanciar de tudo o que lembra "Bizâncio".

As coisas teriam sido bem diferentes, se simplesmente utilizássemos os nomes nacionais próprios. Isso teria exigido um esforço especial por parte dos ocidentais, se perguntados para explicar como foi possível que os próprios romanos tivessem destruído sua própria civilização helênico-romana.

Finalmente, o uso do termo "bizantino" ao invés de "neo-romano" (Romǽikos) no início do século XIX serviu apenas aos desígnios políticos dos europeus ocidentais. Com este método, sempre que qualquer neo-romanos ("gregos", para os estrangeiros) fossem libertados, eles não poderiam buscar o restabelecimento de seu império; teriam que simplesmente se contentar com os limites da antiga Graecia, na qual estavam confinados - como sabemos hoje - graças aos tratados que formaram o Reino Helênico em 1830...

Notas

[43] Veja Prokopios ΙΙΙ, 20, pág. 396. Também ref. Paparrigopoulos, volume 3, pág. 95, também Bury, vol 2, page 135.

[44] Veja Browning (1983), pág. 121.

[45] Veja Toynbee (1981), pág. 71.

[46] Capítulo Α da sétima “Neara” . Também veja Paparrigopoulos, volume 3, page 79.

[47] Veja Charanis (1963), page 103.

[...]

Cesaro-Papismo

Historicamente falando, a tese de que a Igreja estava subordinada ao imperador carece de qualquer tipo de base. O termo "Cesaro-Papismo" ou qualquer outra alternativa sinônima que possa ter é totalmente desconhecido nas fontes.  O exame das fontes que temos à nossa disposição dificilmente pode sustentar a teoria da subordinação. Como ressalta H. Gregoire, "o povo de Bizâncio nunca testemunhou o destronamento de três Patriarcas Ecumênicos por um só Imperador, como foi o caso de Henrique III, que destronou três Papas.  Nunca testemunhou nenhum bispo lutando no comando de seus próprios exércitos, ou quaisquer casos de simonia tão escandalosos como os que apareceram no Ocidente". "Ao contrário do que se repete frequentemente por ignorância, o fato é que os Papas eram os que tinham caído em servidão, enquanto os Patriarcas de Constantinopla eram os que eram independentes"[32].

Na prática, o imperador sempre teve interesse em assuntos eclesiásticos e era o único que tinha o direito de convocar um Concílio Ecumênico.  Além disso, ele cuidava da unidade do dogma, às vezes até impondo certas opiniões discutíveis.  No entanto, com o tempo, a Igreja aprendeu que a resistência contra o imperador em assuntos espirituais era legítima e eficaz. No século VII, tanto o Imperador como o Patriarca haviam se alinhado com a heresia do monoteletismo por várias décadas. Apenas um monge solitário se levantou corajosamente contra eles: Máximo, o Confessor.  Com o tempo, as opiniões de Máximo foram reconhecidas como ortodoxas e a Igreja continuou ao longo dessa tradição, sem que o Imperador pudesse impor sua opinião.

Desde então, o exemplo de Máximo (mas também de outros teólogos anteriores) tornou-se um guia para a Igreja. Durante a grave crise da iconoclastia, nem os decretos, nem as perseguições ou os exilados conseguiram derrotar a posição dos iconófilos. Um amplo movimento de resistência finalmente derrotou os esforços imperiais de cento e vinte anos. É realmente necessário um tipo especial de imaginação (ou preconceito) para se rotular um Estado como "Cesaro-Papista", no qual era impossível que a opinião religiosa do imperador fosse imposta à população.

Como observou Gregoire, depois do século IX a fé Ortodoxa havia se estabelecido, ou seja, havia triunfado sobre os imperadores. Não havia mais vestígios da política anterior, nem mesmo da iconoclastia. O último e mais poderoso indício da (não) existência do Cesaro-Papismo é encontrado no período entre os séculos XIII e XV.  Vários imperadores unionistas revelaram-se inteiramente impotentes em suas tentativas de unificar as igrejas, com todos os benefícios políticos que isso teria implicado.  Em geral, fica-se impressionado com o foco profundo e não político da população na fé durante esse período, em detrimento do benefício político que poderia ter sido obtido através de concessões religiosas ao Ocidente. [...]

Ao completar esta referência ao cesaro-papismo, podemos dizer (como Yannakopoulos salientou com tanta precisão) que na ideologia cristão-romana, as duas instituições coexistiram harmoniosamente.  Ao contrário do que se observava no Ocidente, nunca houve uma divisão acentuada entre a esfera política e a espiritual. [35] Os romanos acreditavam que o imperador tinha que ser um "Χριστομιμητής", e sabiam que o bem-estar do povo não podia ser realizado por um imperador que fosse contrário à fé deles.

Uma última pergunta ainda deve ser feita.  Por que os historiadores ocidentais começaram a aplicar o termo "cesaro-papismo" quando se referiam a "Bizâncio"?  Uma resposta lógica, que foi dada por Yannakopoulos, é que, a julgar pela sua própria experiência do poder político do Papa, e não vendo nada análogo no Patriarca Ortodoxo, eles imaginavam que o Patriarca estava sujeito ao Imperador. Foi isto que a sua própria história [dos ocidentais] mostrou: como o Papa estava constantemente envolvido em conflitos político-militares com regentes e imperadores, ele às vezes saía vitorioso e outras vezes era derrotado.  Não havia uma terceira alternativa. E como o Patriarca não tinha nenhum poder secular e militar, eles supuseram que ele havia sido derrotado permanentemente pelo imperador, que, consequentemente, havia transferido todos esses poderes para sua própria pessoa, tornando-se assim, simultaneamente, um César e um Papa.  Esta conclusão sem precedentes foi perpetuada, mesmo até aos nossos dias, tendo-se tornado uma das ferramentas do inesgotável arsenal ideológico do Ocidente contra o helenismo.

Notas

[32] Veja Gregoire (1986), p. 194.
[35] VejaYannakopoulos (1966), p. 93.

Teocracia

Por "teocracia", entendemos um sistema político no qual a religião domina todos os aspectos da vida pública. Exemplos de estados teocráticos são: o antigo reino de Israel (durante o tempo dos Juízes), o Estado Papal até hoje, e o Irã da década de 1980.  Em cada um desses casos, o mais alto representante religioso é simultaneamente o mais alto governante do Estado.

"Bizâncio" é frequentemente incluído entre os regimes teocráticos da História.  Para a maioria dos autores, isto é considerado evidente, e uma justificativa do termo não é considerada necessária por eles. No entanto, em nossa opinião, a questão do caráter teocrático do Estado "bizantino" é especialmente complexa.  Um exame mais abrangente do tema exigiria um estudo especial e se afastaria da estrutura do presente projeto.  Gostaríamos, no entanto, de ressaltar, de forma muito resumida, alguns dos aspectos deste problema, que poderiam constituir o ponto de partida de um estudo mais completo.

Para começar, não é de modo algum evidente que "Bizâncio" deva ser considerado um Estado teocrático. Embora o termo seja quase unanimemente aceitável, autores diferentes pretendem dizer coisas diferentes quando se referem a ele.  Por exemplo, Runciman deu o título de "Teocracia Bizantina" a um de seus tratados, que nada mais era do que uma perspectiva geral da História eclesiástica. [36].  Outros autores ocidentais usam o termo num sentido muito próximo do significado do papo-caesarismo; em outras palavras, afirmam que a Igreja impôs suas próprias opiniões sobre todas as importantes questões políticas e sociais do Império - que a Igreja essencialmente governava o Estado.

Para evitar a confusão que a falta de definição do termo "teocracia" causa à maioria dos autores, propomos quatro critérios, pelos quais a existência e o grau de teocracia em um Estado podem ser detectados:

1.      Quando a autoridade política e religiosa se encontram na mesma pessoa.
2.      Quando os cânones religiosos (regulamentos) são impostos à totalidade da legislação do Estado.
3.      Quando a administração pública é exercida por autoridades religiosas.
4.      Quando a educação é monitorada pela hierarquia religiosa.

Por mais estranho que possa parecer, "Bizâncio" não cumpre nenhum dos quatro critérios acima de um Estado teocrático.  Examinemo-los, em ordem:
1.  Que o "Papa" e o "César" eram duas pessoas distintas é obviamente um fato conhecido. Na seção anterior, tivemos a oportunidade de explicar que nenhum dos dois tinha poder absoluto sobre todas as facetas da vida pública.  Em outras palavras, nenhum "Khomeini" jamais governou desde o Trono Patriarcal, sobre todo o Estado. Além disso, nenhum bispo jamais liderou qualquer tipo de corpo militar numa batalha, como era a regra no Ocidente.

2. Na área da Justiça, "Bizâncio" deu continuidade à sua grande tradição romana. O eixo básico da legislação ao longo de sua história secular continuou sendo a Justiça Romana, da mesma forma que Justiniano a codificou.  Ao longo do tempo, foram-lhe acrescentadas modificações, impostas pela mudança das condições sociais, e pela influência do cristianismo. Assim, a síntese final foi uma adaptação muito mais humana da Justiça Romana.  De qualquer forma, tudo isso pertencia à esfera secular (não-eclesiástica) do Estado.  As escolas de direito e os tribunais nada tinham a ver com a Igreja, e os juízes certamente não eram bispos, como era o caso no Ocidente. (Os bispos podiam atuar como juízes em certos casos especiais, se isso fosse um pedido do acusado; no entanto, isso era mais uma concessão humana, que não alterava a essência do sistema de justiça que, fora isso, era secular.)

3.  Como resultado de sua ininterrupta continuidade cultural, "Bizâncio" sempre assegurou uma burocracia educada, que cuidava de todos os assuntos do Estado.  Contrariamente, no Ocidente (como veremos mais analiticamente no capítulo seguinte), a partir do século VI apresentou-se um enorme vazio na educação. Um resultado característico do declínio da alfabetização no Ocidente é que não havia mais homens educados, não-eclesiásticos, que pudessem lidar sequer com as necessidades administrativas mais elementares.  Assim, a partir do século VII, a Europa Ocidental teve que contar exclusivamente com o clero para suas funções diplomáticas, administrativas e educacionais.  Naquela época, na corte de Carlos Magno (final do século VIII), praticamente todos os eruditos conhecidos - com exceção de Einhard - eram clérigos (Alquin, Paulo o Diácono, Pedro o Diácono, Paulino, e.a.). Este foi um desenvolvimento com repercussões colossais na história ocidental; não apenas porque foi preservado por 100 anos e deixou sua marca no caráter do Ocidente, mas também porque deu origem a um espírito anticlericalista violento, que irrompeu durante os anos do Iluminismo e da Revolução Francesa.  Foi esta reação que eventualmente moldou a atual postura do ocidente europeu em relação ao cristianismo.  O europeu ocidental teria sido uma pessoa muito diferente, se não carregasse dentro de si todos aqueles séculos de opressão, por causa da monopolização da vida pública por parte da Igreja Latina.  Todas estas coisas são, naturalmente, totalmente estranhas aos romanos, dado que o caráter secular da administração romana foi a característica básica de "Bizâncio", ao longo de toda a sua existência. E é por isso que as mensagens anticlericalistas nunca foram bem sucedidas em nossa terra. [37]

4.  No que se refere à educação, podemos distinguir três tipos de escolas em "Bizâncio": escolas públicas, escolas privadas e seminários monásticos. Nesta última, somente as crianças que se dedicavam ao monasticismo tinham permissão para frequentar.  De fato, o Concílio Ecumênico de Calcedônia (451 d.C.) havia proibido estritamente aos leigos a frequentação dessas escolas e, tanto quanto podemos dizer, essa regra foi cumprida, sem exceção. [38]
Assim, a maioria dos nossos antecessores da Romania foram educados em escolas seculares, ao contrário do que acontecia no Ocidente durante o mesmo período.  Como sabemos, o completo colapso da civilização helênico-romana no Ocidente resultou, por muitos séculos, na elevação da Igreja a ser a portadora exclusiva da educação.  A única educação que se podia adquirir era aquela que só os mosteiros proporcionavam.  Em contraste com isso, a educação em "Bizâncio" se concentrava principalmente na tradição clássica.  Junto com a Bíblia Sagrada, Homero era também uma leitura obrigatória, que os alunos tinham que aprender de cor, e explicar palavra por palavra. [39]

Psellos orgulha-se de ter aprendido de cor toda a Ilíada quando ainda era muito jovem. [40] . Anna Comnena cita versos homéricos sessenta e seis vezes em suas "Alexias", muitas vezes sem sentir a necessidade de acrescentar o esclarecimento "palavras homéricas......". Para se ter uma idéia do abismo cultural que separava os romanos e o Ocidente, basta lembrar ao leitor que o Ocidente conheceu Homero pela primeira vez no século XIV, quando, a pedido de Petrarca e Boccacio (um romano do sul da Itália), Pilatos traduziu a Ilíada e a Odisséia para o latim. [42]

O caráter secular da educação durante a história milenar do império também é destacado pelo fato de a Universidade de Constantinopla ter sido uma instituição do Estado que nunca esteve sob a jurisdição da Igreja.  De acordo com seu Ato fundador (sob Teodósio II, em 425 d.C.), seus professores eram pagos pelo Estado e eram, inclusive, isentos de impostos. [43]. É característico que o programa da universidade não incluía a aula de teologia, já que o objetivo da educação do Estado era educar o pessoal e oficiais do Estado. [44]

Como mencionamos no início desta seção, a questão da teocracia em "Bizâncio" é imensa e não pode ser esgotada aqui. Das poucas coisas que foram esboçadas acima, no entanto, deve ter ficado óbvio que a composição do Império Romano Cristão era bastante diferente daquela que é apresentada por várias opiniões populares e simplistas.  Correndo o risco de nos tornarmos cansativos, diremos mais uma vez que, infelizmente, muitas vezes caímos no erro de relacionar a era obscurantista, teocrática, medieval ocidental com a era correspondente de "Bizâncio".  Como já vimos, porém, suas diferenças eram enormes e essenciais.  Analfabetismo, falta de liberdade, uma opressão religiosa que culminou na "Santa Inquisição", bispos com poder militar que conduziam forças constituídas por monges para batalha... todas essas coisas são totalmente desconhecidas em nossa terra e em nossa civilização. 

Em parte, isso também explica a resistência persistente dos romanos às tentativas de ocidentalização forçada, que podemos observar desde 1204 d.C. até os dias de hoje. No capítulo seguinte, teremos a oportunidade de examinar outros aspectos do abismo cultural entre os romanos e os ocidentais durante os tempos medievais - um período que é frequentemente referido como "Idade das Trevas" para toda a Europa.  Como veremos, se, com o termo "Europa", estamos nos referindo apenas à sua parte ocidental, então, a caracterização "Idade das Trevas" é absolutamente correta.  Se incluirmos o Império Romano - "Bizâncio" - então nós mesmos nos tornamos vítimas de um imperialismo cultural obscurantista do Ocidente.

Notas

[36] Veja Runciman (1982).
[37] É digno de nota que as duas tendências anticlericais que surgiram em Hellas eram simples "translações" de tendências ocidentais, que nada tinham a ver com a realidade helênica. Uma das tendências foi o iluminismo liberal, a forma como foi expresso, por exemplo, pelo autor anônimo do "Ελληνικής Νομαρχίας". (Província Helênica) e a outra tendência foi o marxismo. A primeira estava tão afastada da realidade helênica, que começou a falar de "ordens" de sacerdotes e arquimandritas, instituição totalmente estranha em nossa terra (mas muito difundida no Ocidente...). O principal pesquisador (e defensor entusiasta) do Iluminismo Neo-Helênico, K. Th. Demaras, aceita que "não se deve excluir a possibilidade de que este seja um autor privado de uma educação escolar helênica" (ver K. Th. Demaras, 1977, p. 48). Por outro lado, o marxismo com suas formas ideológicas inflexíveis que se apoiam exclusivamente na experiência ocidental, tentou superar as contínuas "dificuldades" que encontrou durante sua interpretação da sociedade helênica, apelando para a "confusão ideológica da classe dominante helênica" ou para a "compreensão incorreta da classe trabalhadora". É claro que isso exigiria um estudo muito mais abrangente que examinaria a omissão total da peculiaridade helênica por essas duas tendências.

[38] Veja Buckler, p. 309.

[39] Ibid, p. 295.

[40] Veja Runciman (1979), p. 250.

[41] Ibid, p. 250.

[42] Veja Yannakopoulos (1966), p. 54.

[43] Veja Buckler (1986), p. 310.

[44] Veja Lemerle (1983), p. 89-90.

Os trechos acima foram retirados do livro 'ΡΩΜΗΟΣΥΝΗ ή ΒΑΡΒΑΡΟΤΗΤΑ' [Romanidade ou Barbárie] do Anastasios Philippides. Traduzido do inglês.

quarta-feira, 27 de maio de 2020

"Sinais do Céu": Um entendimento cristão Ortodoxo sobre os objetos voadores não identificados (OVNIs)

"Sinais do Céu": 
Um entendimento cristão Ortodoxo sobre os objetos voadores não identificados (OVNIs)
Pe. Serafim Rose

As décadas pós Segunda Guerra Mundial que testemunharam o espantoso aumento das seitas religiosas orientais e sua influência no Ocidente também viram o início e a difusão de um fenômeno paralelo que, embora à primeira vista pareça totalmente independente da religião, em um exame mais atento revela-se tanto como um sinal da era "pós-cristã" e da "nova consciência religiosa" como as seitas orientais. Este fenômeno é o dos "objetos voadores não identificados" que supostamente têm sido vistos em quase todas as partes do mundo desde que o primeiro "disco voador" foi visto, em 1947.

A credulidade humana e a superstição - que não se fazem menos presentes hoje do que em qualquer outra época da história da humanidade - fizeram com que esse fenômeno se associasse em algum grau à "margem lunática" do mundo das seitas; mas também houve um interesse suficientemente sério e responsável por ele que produziu várias investigações governamentais e uma série de livros de cientistas conceituados. Essas investigações não chegaram a nenhum resultado positivo na identificação dos objetos como realidade física. No entanto, as mais novas hipóteses elaboradas por vários pesquisadores científicos para explicar os fenômenos parecem estar mais próximas de uma explicação satisfatória do que outras teorias que foram propostas no passado; mas, ao mesmo tempo, essas mais novas hipóteses nos levam ao "limite da realidade" (como é chamado um dos novos livros científicos sobre eles), às fronteiras da realidade psíquica e espiritual, para as quais esses pesquisadores não estão equipados para lidar. A riqueza do conhecimento bíblico e patrístico precisamente desta mesma realidade coloca o observador cristão Ortodoxo em uma posição vantajosa singular para avaliar estas novas hipóteses e os fenômenos "OVNIs" em geral.

O observador cristão Ortodoxo, entretanto, está menos interessado nos fenômenos em si do que na mentalidade associada a eles: como as pessoas estão comumente interpretando os OVNIs, e por quê? Entre os primeiros a abordar a questão dos OVNIs desta forma, em um estudo sério, esteve o renomado psicólogo suíço C. G. Jung. Em seu livro de 1959, Discos Voadores: Um Mito Moderno das Coisas Vistas nos Céus, ele abordou os fenômenos como algo essencialmente psicológico e religioso em sentido; e embora ele mesmo não tenha tentado identificá-los como "realidade objetiva", ele mesmo assim compreendeu a área do conhecimento humano à qual eles realmente pertencem. Os investigadores de hoje, embora partindo do lado "objetivo" e não do lado psicológico da questão, também perceberam a necessidade de apresentar hipóteses "psíquicas" para explicar os fenômenos.

Ao abordarmos o lado religioso e psicológico dos fenômenos OVNIs, é importante que compreendamos, antes de tudo, o pano de fundo em termos do qual os "discos voadores" têm sido geralmente interpretados (por aqueles que acreditam em sua existência) desde o momento de sua primeira aparição na década de 40. O que os homens estavam preparados para ver no céu? A resposta a esta pergunta pode ser encontrada em um breve exame da literatura da popular de "ficção científica".


1. O espírito da ficção científica

Os historiadores da ficção científica costumam traçar as origens desta forma literária no início do século XIX. Alguns preferem ver seu início nos contos de Edgar Allen Poe, que combinava um realismo persuasivo em estilo com uma temática sempre tingida com o "misterioso" e o oculto. Outros vêem o primeiro escritor de ficção científica na contemporânea inglesa de Poe, Mary Wollstonecraft Shelley (esposa do famoso poeta); seu Frankenstein, ou o Prometeu Moderno, combina ciência fantástica com ocultismo de uma forma característica de muitas histórias de ficção científica desde então.

A típica história de ficção científica, porém, chegaria com o fim do século XIX e início do século XX, desde Júlio Verne e H. G. Wells até nossos dias. Vindo de uma literatura em grande parte de segunda categoria no periódico americano "pulps" das décadas de 1930 e 40, a ficção científica amadureceu e tornou-se uma respeitável forma literária internacional nas últimas décadas. Além disso, uma série de filmes extremamente populares tem mostrado o quanto o espírito da ficção científica tem cativado a imaginação popular. Os filmes de ficção científica mais baratos e sensacionalistas dos anos 50 deram lugar, na última década, a filmes "ideia" em moda, como 2001: Uma Odisséia no Espaço, Star Wars e Contatos Imediatos de Terceiro Grau, sem mencionar uma das séries mais populares e duradouras da televisão americana, "Star Trek".

O espírito da ficção científica é derivado de uma filosofia ou ideologia implícita mais comumente subentendida do que expressa em tantas palavras, que é compartilhada por praticamente todos aqueles que criam em formas de ficção científica. Esta filosofia pode ser resumida nos seguintes pontos principais:

1. A religião, no sentido tradicional, encontra-se ausente, ou então está presente de forma muito incidental ou artificial. A forma literária em si é obviamente um produto da era "pós-cristã" (já evidente nas histórias de Poe e Shelley). O universo da ficção-científica é totalmente secular, embora muitas vezes com tons "místicos", de um tipo ocultista ou oriental. "Deus", se é que é mencionado, é um poder vago e impessoal, não um ser pessoal (por exemplo, a "Força" de Star Wars, uma energia cósmica que tem tanto o seu lado mau quanto o bom). O fascínio crescente do homem contemporâneo por temas de ficção científica é um reflexo direto da perda dos valores religiosos tradicionais.

2. O centro do universo da ficção-científica (no lugar do Deus ausente) é o homem - não geralmente o homem como ele é agora, mas o homem como ele se "tornará" no futuro, de acordo com a mitologia moderna da evolução. Embora os heróis das histórias de ficção-científica sejam geralmente humanos reconhecíveis, o interesse da história muitas vezes se centra em seus contatos com vários tipos de "super-homens" de raças "altamente evoluídas" do futuro (ou às vezes, do passado), ou de galáxias distantes. A idéia da possibilidade de vida inteligente "altamente evoluída" em outros planetas tornou-se de tal forma parte da mentalidade contemporânea que mesmo as respeitáveis especulações científicas (e semi-científicas) a supõem como algo normal. Assim, uma série de livros populares (Erich von Daniken, Carruagens dos Deuses?, Deuses do Espaço Exterior) encontra supostas evidências da presença de seres "extraterrestres" ou "deuses" na história antiga, supostamente responsáveis pelo súbito aparecimento da inteligência no homem, algo difícil de explicar pela teoria evolucionária habitual. Cientistas sérios da União Soviética especulam que a destruição de Sodoma e Gomorra ocorreu devido a uma explosão nuclear, que seres "extraterrestres" visitaram a Terra séculos atrás, que Jesus Cristo pode tem sido um "cosmonauta" e que hoje "nós podemos estamos no limiar de uma 'segunda vinda' de seres inteligentes do espaço exterior". [15] Cientistas igualmente sérios no Ocidente pensam que a existência de "inteligências extraterrestres" é suficientemente provável a ponto de, há pelo menos 18 anos, tentarem estabelecer contato com elas por meio de radiotelescópios, e atualmente há pelo menos seis buscas sendo realizadas por astrônomos ao redor do mundo por sinais de rádio inteligentes vindos do espaço. Os "teólogos" Protestantes e Católicos Romanos contemporâneos - que se acostumaram a seguir para onde quer que a "ciência" pareça conduzir - especulam por sua vez no novo campo da "exoteologia" (a "teologia do espaço exterior") sobre qual a natureza que as raças "extraterrestres" poderiam ter (veja revista Time, 24 de abril, 1978). Não se pode negar que o mito por trás da ficção científica tem um fascínio poderoso, mesmo entre muitos homens instruídos de nossos dias.

Os seres "evoluídos" do futuro na literatura de ficção científica são invariavelmente considerados como tendo "superado" as limitações da humanidade atual, em particular as limitações da "personalidade". Assim como o "Deus" da ficção científica, o "homem" também se tornou estranhamente impessoal. Em O Fim da Infância de Arthur C. Clarke, a nova raça humana tem a aparência de crianças, mas faces desprovidas de personalidade; elas estão prestes a serem guiadas para transformações "evolucionárias" ainda mais elevadas, no caminho de se tornarem absorvidas na "Supermente" impessoal. Em geral, a literatura de ficção científica - em oposição direta ao cristianismo, mas exatamente de acordo com algumas escolas do pensamento oriental - considera o "avanço evolutivo" e a "espiritualidade" em termos de aumento da impessoalidade.

3. O mundo e a humanidade do futuro são vistos pela ficção científica ostensivamente em termos de "projeções" das descobertas científicas atuais; na realidade, porém, essas "projeções" correspondem de maneira notável à realidade ordinária da experiência ocultista e manifestamente demoníaca ao longo dos séculos. Entre as características das criaturas "altamente evoluídas" do futuro estão: comunicação por telepatia mental, capacidade de voar, materializar e desmaterializar, transformar as aparências das coisas ou criar cenas ilusórias e criaturas pelo "pensamento puro", viajar a velocidades muito além de qualquer tecnologia moderna, tomar posse dos corpos dos homens da Terra; e a exposição de uma filosofia "espiritual" que está "além de todas as religiões" e que mantém a promessa de um estado onde as "inteligências avançadas" não mais serão dependentes da matéria. Todas estas são as práticas e reivindicações padrão dos feiticeiros e demônios. Uma história recente da ficção científica observa que "um aspecto persistente da visão da ficção científica é o desejo de transcender a experiência normal... através da apresentação de personagens e eventos que transgridem as condições do espaço e do tempo tal como as conhecemos". [16] Os roteiros de "Star Trek" e outras histórias de ficção científica, com seus dispositivos "científicos" futuristas, são lidos em partes como trechos da vida dos antigos santos Ortodoxos, onde as ações dos feiticeiros são descritas em uma época em que a feitiçaria ainda era uma grande parte da vida pagã. A ficção científica em geral não costuma ser muito científica, e também não é muito "futurista"; quando muito, é um regresso às origens "místicas" da ciência moderna - a ciência anterior aos séculos XVII e XVIII do "Iluminismo", que era muito mais próxima do ocultismo. A mesma história da ficção científica observa que "as raízes da ficção científica, como as próprias raízes da ciência, estão na magia e na mitologia" (Scholes e Rabkin, p. 183). As pesquisas e experimentos atuais da "parapsicologia" mostram também uma futura conexão da "ciência" com o ocultismo - um desenvolvimento com o qual a literatura de ficção-científica está em plena harmonia.

A ficção científica na União Soviética (onde é tão popular quanto no Ocidente, embora seu desenvolvimento tenha sido um pouco diferente) tem exatamente os mesmos temas que a ficção científica ocidental. Em geral, os temas "metafísicos" da ficção científica soviética (que funcionam sob o olhar vigilante de censores "materialistas") vêm da influência de escritores ocidentais ou da influência direta hindu, como no caso do escritor Ivan Efremov. O leitor da ficção científica soviética, segundo um crítico, "emerge com uma vaga capacidade de distinguir as demarcações fundamentais entre Ciência e Magia, entre cientista e feiticeiro, entre futuro e fantasia". Ficção científica tanto do Oriente quanto do Ocidente, diz o mesmo escritor, como outros aspectos da cultura contemporânea, "todos confirmam o fato de que o estágio superior do humanismo é o ocultismo". [17]

4. Quase que por sua própria natureza "futurista", a ficção científica tende a ser utópica; poucos romances ou histórias descrevem de fato uma sociedade futura perfeita, mas a maioria deles lida com a "evolução" da sociedade atual para algo superior, ou o encontro com uma civilização avançada em outro planeta, com a esperança ou a capacidade de superar os problemas de hoje e as limitações da humanidade em geral. Na ficção científica de Efremov e outras soviéticas, o próprio comunismo torna-se "cósmico" e "começa a adquirir qualidades não-materialistas", e "a civilização pós-industrial será semelhante à hindu" (Grebens, pp. 109-110). Os "seres avançados" do espaço exterior são muitas vezes dotados de qualidades do tipo "salvíficas", e as aterrissagens de naves espaciais na Terra muitas vezes anunciam eventos "apocalípticos" - geralmente a chegada de seres benevolentes para guiar os homens em seu "avanço evolucionário".

Em suma, a própria literatura de ficção científica do século XX é um sinal claro da perda dos valores cristãos e da interpretação cristã do mundo; tornou-se um poderoso veículo de difusão de uma filosofia não-cristã da vida e da história, em grande parte sob influência ocultista e oriental aberta ou dissimulada; e, num momento crucial de crise e transição da civilização humana, tem sido uma força primordial para criar a esperança e a expectativa real de "visitantes do espaço exterior" que resolverão os problemas da humanidade e conduzirão o homem a uma nova era "cósmica" de sua história. Embora pareça científica e não-religiosa, a literatura de ficção científica é, na realidade, um dos principais propagadores (em uma forma secular) da "nova consciência religiosa" que está assolando a humanidade à medida que o cristianismo se retrai.

Tudo isso é um pano de fundo necessário para abordar as manifestações propriamente ditas dos "Objetos Voadores Não Identificados", que estranhamente correspondem às expectativas pseudo-religiosas que têm sido despertadas no homem "pós-cristão".

Nota do blog: O capítulo "'Sinais do Céu': Um entendimento cristão Ortodoxo sobre os objetos voadores não identificados (OVNIs)" faz parte do livro "Ortodoxia e a Religião do Futuro" do Pe. Serafim (Rose). Tendo sido publicado em publicado em português pela Editora São Savas, optamos por remover do blog o restante do texto em questão. O livro pode ser adquirido através do site da Editora:

https://editorasaosavas.lojaintegrada.com.br/ortodoxia-e-a-religiao-do-futuro-pe-serafim-rose

 

quinta-feira, 21 de maio de 2020

Os Cânones dos Concílios Ecumênicos Refutam o Papado pós-Cisma


O propósito de reunir os Santos Cânones da Igreja desta maneira não é criar uma coleção de afirmações para citar de forma completamente fora do contexto de suas histórias e significado. Abordar questões importantes citando cegamente os cânones não é tão diferente do que fazer o mesmo com versículos bíblicos ou citações dos Padres da Igreja. Em ambos casos não é proveitoso. Entretanto, ao reunir esses cânones pode-se mostrar que a Igreja primitiva tinha uma certa mentalidade, ou phronema, em relação à organização da hierarquia (eclesiologia) e ao papel do clero. Se supusermos que a mentalidade latina pós-cisma em relação ao papel do Papa é verdadeira, então deveríamos esperar que os cânones da Igreja teriam sido escritos de uma forma particular - uma que enfatiza o papel e as prerrogativas do Bispo de Roma, de forma semelhante à Igreja pós-Vaticana I. Um ensinamento tão importante teria sido ensinado de forma extremamente clara, para evitar confundir os fiéis. Deveríamos esperar, quando certas restrições fossem impostas aos Bispos da Igreja, que fossem listadas exceções em relação ao Papa. Deveríamos esperar ver a Igreja sendo instruída a buscar os ensinamentos do Papa quando surgissem questões teológicas. Deveríamos ver sendo afirmado que o Papa exerceu autoridade na proteção dos ensinamentos dos Santos Apóstolos através de sua suposta graça especial, e que a comunhão com ele é obrigatória para a salvação (Unam Sanctam). Embora esperaríamos ver estas coisas claramente nos ensinamentos dos Padres, elas estão completamente inexistentes. O que encontramos nos cânones são inúmeras restrições impostas a todos os Bispos da Igreja, sem nenhuma exceção concedida ao Papa. Encontramos exortações a seguir a fé católica e universal como transmitida através dos Cânones, sem qualquer menção a qualquer proteção especial ou autoridade do Papa. E o mais importante, não vemos privilégios ou prerrogativas claramente definidas concedidas ao Papa - infalibilidade e supremacia estão completamente inexistentes.


Segundo Concílio Ecumênico: NICÉIA (325 dC)
Cânon 4: É muito desejável que um bispo seja apontado por todos os bispos da província. Mas se isso for difícil por alguma necessidade urgente ou pela duração da viagem, que pelo menos três se reúnam e realizem a ordenação, mas somente depois que os bispos ausentes tenham participado na votação e dado seu consentimento por escrito. Mas, em cada província, o direito de confirmar os procedimentos pertence ao bispo metropolitano. 
Comentário: os bispos devem ser eleitos por outros bispos da região, e o Papa não se envolve. Isto é contrário à prática contemporânea da Igreja Católica Romana, que exige que o Papa seja o responsável pela eleição dos Bispos.
Cânon 6: Serão mantidos os antigos costumes do Egito, Líbia e Pentapolis, segundo os quais o bispo de Alexandria tem autoridade [jurisdição] sobre todos esses lugares, já que um costume semelhante existe em relação ao bispo de Roma. Da mesma forma, em Antioquia e nas outras províncias as prerrogativas das igrejas devem ser preservadas. Em geral o seguinte princípio é evidente: se alguém é constituído bispo sem o consentimento do metropolita, este grande sínodo determina que tal pessoa não será bispo. Se, porém, dois ou três por motivo de rivalidade pessoal discordarem do voto comum de todos, contanto que seja razoável e de acordo com o cânon da igreja, prevalecerá o voto da maioria.
Comentário: Um Bispo tem jurisdição sobre o seu território. A definição de territórios é um costume da Igreja que tem sido mantido. O metropolita da região deve consentir a ordenação de um bispo em sua jurisdição. Não há participação de Roma.
Segundo  Concílio Ecumênico: CONSTANTINOPLA (381 dC)
Cânone 2: Que os bispos não estendam o seu poder sobre as igrejas fora dos limites de sua diocese, nem tragam confusão às igrejas; mas que o Bispo de Alexandria, de acordo com os cânones, administre somente os assuntos do Egito; e que os bispos do Oriente administrem somente o Oriente, sendo preservados os privilégios da Igreja de Antioquia, que são mencionados nos cânones de Nicéia; e que os bispos da diocese da Ásia administrem somente os assuntos da Ásia; e que os bispos pônticos administrem somente os assuntos de Ponto; e que os bispos trácios administrem somente os assuntos de Trácia. E que os bispos não ultrapassem os limites de suas dioceses para a ordenação ou quaisquer outras ministrações eclesiásticas, a menos que sejam convidados. E, observando o referido cânon relativo às dioceses, é evidente que o sínodo de cada província administrará os assuntos daquela província em particular, como foi decretado em Nicéia. E as Igrejas de Deus nas nações pagãs devem ser governadas de acordo com o costume que tem prevalecido desde os tempos dos Padres.  
Comentário: Os bispos devem permanecer dentro de suas próprias jurisdições, para que não haja confusão entre os leigos. O cânone reafirma as diferentes regiões e sua hierarquia. Nenhuma menção especial de Roma como sendo isenta, o que é contrário ao Vaticano I.
Cânon 3: O Bispo de Constantinopla, porém, terá a prerrogativa de honra a seguir ao Bispo de Roma; porque Constantinopla é a Nova Roma. 
Comentário: Constantinopla é a Nova Roma. Relaciona-se com o Cânon 28 de Calcedônia. "Prerrogativa de honra", não de autoridade.

Terceiro Concílio Ecumênico: ÉFESO (431 dC)
Cânone 6: Do mesmo modo, se alguém, de alguma forma, tentar alterar o que foi decidido em cada caso pelo santo Sínodo de Éfeso, o santo Sínodo decreta que, se forem bispos ou clérigos, sejam completamente destituídos de seu ofício; e, se forem leigos, sejam excomungados. 
Comentário: O Santo Sínodo, aceito pela Igreja como ecumênico, tem autoridade sobre todos os fiéis. Bispo de Roma não está isento dos que podem ser excomungados.
Cânone 7Quando estas coisas foram lidas, o santo Sínodo decretou que é ilegal a qualquer homem apresentar, ou escrever, ou compor uma Fé diferente como sendo rival àquela estabelecida pelos santos Padres reunidos com o Espírito Santo em Nicéia. Mas aqueles que ousarem compor uma fé diferente, ou apresentá-la ou oferecê-la àqueles que desejam converter-se ao conhecimento da verdade, seja do paganismo ou do judaísmo, ou de qualquer heresia, serão depostos, se forem bispos ou clérigos; bispos [depostos] do episcopado e clérigos [depostos] do clero; e, se forem leigos, serão anatematizados. 
Comentário: A adição do Filioque à Profissão de Fé viola diretamente este Cânone.
Cânone 8: Nosso irmão bispo Rheginus, o amado de Deus, e seus irmãos bispos amados de Deus, Zeno e Evagrius, da Província de Chipre, nos relataram uma inovação que foi introduzida contrária às constituições eclesiásticas e aos Cânones dos Santos Apóstolos, e que atinge as liberdades de todos. Portanto, uma vez que os ferimentos que afetam a todos requerem maior atenção, pois causam maiores danos, e particularmente quando são transgressões de um costume antigo; e uma vez que aqueles excelentes homens, que fizeram uma petição ao Sínodo, nos disseram por escrito e de forma oral que o Bispo de Antioquia realizou desta forma ordenações em Chipre; portanto, os Governantes das santas igrejas cipriotas desfrutarão, sem disputas ou ferimentos, segundo os Cânones dos bem-aventurados Padres e o costume antigo, o direito de realizar por si mesmos a ordenação de seus excelentes Bispos. A mesma regra será observada nas outras dioceses e províncias em toda a parte, de modo que nenhum Bispo amado por Deus assumirá o controle de nenhuma província que não tenha estado, desde o início, sob as suas próprias mãos ou sob as dos seus predecessores. Mas se alguém tiver tomado e submetido por força [uma província], ele deverá renunciar a ela; para que os Cânones dos Padres não sejam transgredidos; ou as vaidades da honra mundana sejam introduzidas sob o pretexto do ofício sagrado; caso contrário, perderemos, imperceptivelmente, pouco a pouco, a liberdade que Nosso Senhor Jesus Cristo, o Libertador de todos os homens, nos deu pelo seu próprio Sangue. Portanto, este santo e ecumênico Sínodo decretou que, em cada província, os direitos que até agora lhe pertenciam, desde o início, lhe serão preservados, segundo o costume antigo prevalecente, inalterados e sem prejuízos: todo Metropolita tem permissão para levar, para sua própria segurança, uma cópia destes atos. E, se alguém apresentar uma regra contrária ao que agora estabelecemos, este santo e ecumênico Sínodo decreta por unanimidade que ela não terá efeito.
Comentário: "Contrária às constituições eclesiásticas e aos Cânones dos Santos Apóstolos", "transgressões de um costume antigo", "cânones dos bem-aventurados Padres e o costume antigo", não há qualquer menção a Roma no que diz respeito à autoridade. Este cânone reafirma a importância da sucessão dos bispos e da autoridade deles sobre suas próprias jurisdições, e condena explicitamente as jurisdições que tomam o controle de outras. Nenhuma exceção especial em relação a Roma ter autoridade sobre todas as jurisdições.

Quarto Concílio Ecumênico: CALCEDÔNIA (451 dC)
Cânone 1: Julgamos como correto que os cânones dos Santos Padres estabelecidos em cada sínodo até o momento, permaneçam em vigor.
Comentário: Os cânones dos Santos Padres permanecem em vigor, não as declarações do Papa.
Cânone 5: Quanto aos bispos ou clérigos que se deslocam de cidade em cidade, decreta-se que os cânones decretados pelos Santos Padres ainda conservarão seu vigor.
Comentário: Mais uma reafirmação dos limites jurisdicionais sem uma exceção em relação a Roma.
Cânone 9: Se algum clérigo tiver alguma questão contra outro clérigo, ele não abandonará o seu bispo e correrá aos tribunais seculares; mas que ele abra primeiro a questão perante o seu próprio bispo, ou que a questão seja submetida a qualquer pessoa que cada uma das partes possa, com o consentimento do bispo, escolher. E, se alguém violar estes decretos, que ele seja sujeito a penalidades canônicas. E se um clérigo tiver uma queixa contra o seu próprio ou qualquer outro bispo, que seja decidida pelo sínodo da província. E se um bispo ou clérigo tiver alguma divergência com o metropolita da província, que recorra ao Exarca da Diocese, ou ao trono da Cidade Imperial de Constantinopla, e que ali seja julgado.
Comentário: As questões relativas à apelação situam-se dentro das jurisdições locais, ascendendo a hierarquia até chegar ao trono de Constantinopla. Nenhuma menção feita quanto a Roma.
Cânone 10: Não será lícito que um clérigo esteja ao mesmo tempo inscrito nas listas do clero das igrejas de duas cidades diferente, isto é, na igreja em que foi inicialmente ordenado, e em outra, a qual pediu para ser transferido como um ato de vanglória por ela ser de maior importância. E aqueles que assim o fizerem serão retornados à sua própria igreja em que foram ordenados originalmente, e apenas ali ministrarão. Se alguém for transferido de uma igreja para outra, que ele não interfira de nenhuma forma nos assuntos da igreja anterior, nem nas capelas de mártires, nem nos abrigos e asilos pertencentes a ela. E se, depois do decreto deste grande e ecumênico Sínodo, alguém ousar fazer alguma destas coisas agora proibidas, o Sínodo decreta que ele será rebaixado de seu posto.
Comentário: Mais imposição dos limites jurisdicionais. Nenhuma menção a uma exceção especial em relação a Roma.
Cânone 12: Chegou ao nosso conhecimento que certas pessoas, contrariamente às leis da Igreja, tendo recorrido a poderes seculares, dividiram, por meio de rescritos imperiais, uma Província em duas, de modo que há, consequentemente, dois metropolitas em uma Província; portanto, o santo Sínodo decretou que nenhum bispo ouse agir dessa forma a partir de agora. Aquele que assim proceder, será destituído do seu posto. Quaisquer que sejam as cidades que já tenham sido honradas com o nome de metrópole por decreto imperial, e o bispo que administra sua igreja, devem desfrutar da honra apenas, enquanto os direitos apropriados são preservados para a verdadeira metrópole.
Comentário: Nenhum bispo está autorizado a estabelecer dois metropolitas em uma província, qualquer bispo que o faça perde o seu posto. Não há exceção para o Papa.
Cânone 19: Chegou aos nossos ouvidos que nas províncias não se realizam os Sínodos Canônicos de Bispos, e que por este motivo muitos assuntos eclesiásticos que necessitam de reforma são negligenciados; portanto, de acordo com os cânones dos santos Padres, o santo Sínodo decreta que os bispos de cada província se reúnam duas vezes no ano, onde o bispo da Metrópole indicar, e então resolverão qualquer assunto que tenha surgido. E os bispos, que não comparecerem, mas permanecerem em suas próprias cidades, ainda que estejam de boa saúde e livres de qualquer cuidado inevitável e necessário, receberão uma admoestação fraterna.
Comentário: Os bispos de cada Metrópole estão no comando de seus próprios assuntos. Este teria sido um grande momento para mencionar os apelos a Roma.
Cânone 25: Como alguns dos metropolitas, como já ouvimos, negligenciam os rebanhos a eles confiados e adiam as ordenações dos bispos, o Santo Sínodo decidiu que as ordenações dos bispos deverão ocorrer dentro de três meses, a menos que uma necessidade inevitável exija que esse período seja prolongado. E se não fizer isso, ele estará sujeito a penalidades eclesiásticas, e a arrecadação da igreja viúva será mantida seguramente pelo administrador da mesma igreja.
Comentário: A eleição dos bispos compete aos metropolitas, não ao bispo de Roma. Uma violação direta do ensino da Igreja Católica Romana contemporânea. Ademais, nenhuma exceção para Roma em relação a penalidades eclesiásticas.
Cânone 28: Seguindo em tudo as decisões dos santos Padres, e reconhecendo o cânone, que acaba de ser lido, dos Cento e Cinquenta Bispos amados de Deus (que se reuniram na cidade imperial de Constantinopla, que é Nova Roma, no tempo do Imperador Teodósio de alegre memória), também promulgamos e decretamos as mesmas coisas a respeito das prerrogativas da santíssima Igreja de Constantinopla, que é Nova Roma. Pois os Padres apropriadamente concederam prerrogativas a sé da antiga Roma, porque era a cidade imperial. E os Cento e Cinquenta Bispos mais religiosos, agindo pela mesma consideração, concederam prerrogativas iguais a santíssima sé da Nova Roma, julgando de forma justa que a cidade que é honrada com o governo imperial e o senado e desfruta de prerrogativas iguais às da antiga Roma imperial, também deve, em questões eclesiásticas, ser exaltada como ela é, sendo a segunda a seguir a ela; de modo que, somente os metropolitas das dioceses do Ponto, Ásia e Trácia devem ser ordenados pela santa sé da Igreja de Constantinopla, e também os bispos das mencionadas dioceses em terras bárbaras; cada metropolita das dioceses mencionadas, juntamente com os bispos de sua província, deve ordenar os bispos diocesanos, conforme estabelecido pelos cânones divinos. Mas, com foi dito acima, os Metropolitas dessas dioceses devem ser ordenados como foi dito, pelo Arcebispo de Constantinopla, após eleições por consenso terem ocorrido de acordo com os costumes e terem sido relatadas a ele.
Comentário: A antiga Roma tinha prerrogativas "porque era a cidade imperial", não por causa da sucessão de Pedro. Obviamente pelo fato de Antioquia também ser sucessora de Pedro. Essas "prerrogativas iguais" também foram concedidas a Constantinopla, porque é a nova cidade imperial. Não há nenhuma menção a Pedro, ou qualquer graça divina dada à igreja em Roma. Ao arcebispo de Constantinopla foi concedida uma autoridade especial para ordenar bispos em certas dioceses fora da sua própria diocese. Este seria o lugar perfeito para mencionar que, apesar das prerrogativas adicionais concedidas a Constantinopla, Roma ainda é a cabeça suprema sobre a Igreja.

Concílio Quinissexto (in Trullo) (692 dC)
Cânone 1:  A melhor ordem de todas é a que faz cada palavra e ato começarem e terminarem em Deus. Assim, para que a piedade seja claramente estabelecida por nós e para que a Igreja da qual Cristo é o fundamento seja continuamente engrandecida e avançada, e para que seja exaltada acima dos cedros do Líbano; agora, portanto, nós, pela graça divina, no início dos nossos decretos, definimos que a fé estabelecida pelos Apóstolos escolhidos por Deus, que eles mesmos viram e foram ministros da Palavra, deve ser preservada sem qualquer inovação, sem alterações e inviolável. Além disso, a fé dos trezentos e dezoito santos e bem-aventurados Padres reunidos em Niceia sob Constantino nosso Imperador, contra o ímpio Ário e contra a adoração que ele ensinou de um deus pagão, ou melhor, de uma multidão de deuses diferentes;  eles que, pelo reconhecimento unânime dos fiéis, nos revelaram e clarificaram a consubstancialidade das Três Pessoas da Natureza Divina, não permitindo que essa questão imporante ficasse escondida debaixo do alqueire da ignorância, mas ensinando abertamente os fiéis a adorarem com uma só adoração o Pai, o Filho e o Espírito Santo, destruindo e desfazendo em pedaços o falso ensinamento sobre os graus desiguais da Divindade, e demolindo e derrubando os jogos infantis feitos de areia pelos hereges contra a ortodoxia. Igualmente confirmamos aquela fé que foi estabelecida pelos cento e cinquenta Padres que, no tempo de Teodósio, o Ancião, nosso Imperador, se reuniram nesta cidade imperial, aceitando suas decisões em relação ao Espírito Santo na afirmação de sua divindade, e expulsando o profano Macedônio (juntamente com os antigos inimigos da fé) como aquele que  ousou venerar o Senhor como servo, e que quis dividir - como um ladrão - a unidade inseparável para que o mistério de nossa esperança não seja perfeito. E, junto com este odioso e detestável adversário da verdade, condenamos Apolinário, sacerdote da mesma iniquidade, que impiedosamente proclamou que o Senhor assumiu um corpo sem alma, introduzindo assim a idéia de que nossa salvação foi realizada para nós de forma imperfeita. Além disso, o que foi dito pelos duzentos Padres portadores de Deus na cidade de Éfeso, nos dias de Teodósio, nosso Imperador, filho de Arcádio; essas doutrinas nós consentimos como a força inquebrantável da piedade, ensinando que Cristo, o Filho encarnado de Deus, é um só; e declarando que aquela que o deu à luz sem semente humana foi a imaculada Sempre Virgem, glorificando-a literalmente e em toda a verdade como a Mãe de Deus. Condenamos como estranha ao esquema divino a absurda divisão de Nestório, que ensina que o único Cristo consiste de um homem separadamente e da divindade separadamente e renova a impiedade judaica. Além disso, confirmamos a fé que foi expressa de acordo com a ortodoxia  na Metrópole de Calcedônia pelos seiscentos e trinta Padres aprovados por Deus no tempo de Marciano, que foi nosso Imperador, [a fé] que proclamou até os confins da terra com grande e poderosa voz que o único Cristo, o filho de Deus, é de duas naturezas, e é glorificado nestas duas naturezas, e que expulsou dos recintos sagrados da Igreja como uma pestilência a ser evitada, o vaidoso Eutiques, que havia declarado que o grande mistério da encarnação (οἰκονωμίας) ocorreu apenas na aparência. E junto com ele também Nestório e Dióscoro, dos quais o primeiro foi o defensor e campeão da divisão, o segundo da confusão [das duas naturezas no único Cristo], ambos vindos de direções opostas e que caíram no mesmo abismo de perdição e ateísmo. Também reconhecemos como inspiradas pelo Espírito as piedosas vozes dos cento e sessenta e cinco Padres portadores de Deus que se reuniram nesta cidade imperial no tempo do nosso Imperador Justiniano de bem-aventurada memória, e as ensinamos aos nossos descendentes; pois esses anatematizaram sinodicamente e execraram Teodoro de Mopsuéstia (o mestre de Nestório), e Orígenes, e Dídimo, e Evágrio, os quais reintroduziram mitos gregos falsos, e voltaram a honrar nos delírios e devaneios de suas mentes os periódicos renascimentos e transformações de certos corpos e almas e impiedosamente insultaram a ressurreição dos mortos. Além disso [condenaram] o que foi escrito por Teodoreto contra a fé correta e contra os Doze Capítulos do bem-aventurado Cirilo, e aquela carta que se diz ter sido escrita por Ibas. Também concordamos em guardar inalterada a fé do Santo Sexto Sínodo, que se reuniu recentemente nesta cidade imperial no tempo de Constantino, nosso Imperador, de bem-aventurada memória, cuja fé recebeu confirmação ainda maior pelo fato de que o piedoso Imperador ratificou com seu próprio selo o que foi escrito para a segurança das gerações futuras. Este concílio ensinou que devemos professar abertamente nossa fé de que na encarnação de Jesus Cristo, nosso verdadeiro Deus, há duas vontades ou volições naturais e duas operações naturais; e condenou por uma sentença justa aqueles que adulteraram a verdadeira doutrina e que ensinaram ao povo que no único Senhor Jesus Cristo só há uma vontade e uma operação; a saber: Teodoro de Faran, Ciro de Alexandria, Honório de Roma, Sérgio, Pirro, Paulo e Pedro, que foram bispos desta cidade preservada por Deus; Macário, que foi bispo de Antioquia; Estêvão, que foi seu discípulo, e o insano Polícronio, privando-os desde então da comunhão do corpo de Cristo nosso Deus. E, para afirmar de uma vez por todas, decretamos que a fé deve ser mantida firme e inalterada até o fim do mundo, assim como os escritos divinamente transmitidos e os ensinamentos de todos aqueles que embelezaram e adornaram a Igreja de Deus e foram luzes no mundo, tendo abraçado a palavra da vida. E nós rejeitamos e anatematizamos aqueles que eles rejeitaram e anatematizaram, como inimigos da verdade, que se levantaram cheios de vã arrogância contra Deus, e que se esforçaram para elevar a mentira às alturas. Mas, se alguém não observar e aceitar os piedosos decretos acima mencionados, e não ensinar e pregar de acordo com eles, mas tentar opor-se a eles, que ele seja anátema, segundo o decreto já promulgado pelos santos e bem-aventurados Padres aprovados, e que seja expulso e afastado da comunidade cristã por ser estranho a ela.. Pois nossos decretos não acrescentam nada às coisas previamente definidas, nem retiram qualquer coisa, nem temos tal poder.
Comentário: Os hereges foram derrotados pelo "reconhecimento unânime dos fiéis" que foi "revelado" à Igreja, e foram "anátematizados sinodicamente". Todos os Padres eram portadores de Deus, que concordaram com os ensinamentos. A cidade de Constantinopla é chamada de "preservada por Deus". A Igreja afirma que a fé, os escritos e os ensinamentos da Igreja devem ser mantidos firmes e inalterados até o fim do mundo. A igreja inteira "rejeita e anatematiza aqueles que eles rejeitaram e anatematizaram". Não há cânone na igreja que tenha tido mais oportunidade de professar a posição ultramontanista atualmente defendida por Roma do que este, no entanto essa posição está completamente ausente. Interessantemente, o Papa havia declarado Nestório um herege antes que o Concílio foi convocado para julgar seu ensino, entretanto isso não é mencionado.
Cânone 2: Também pareceu bom a este santo Concílio, que os oitenta e cinco cânones, recebidos e ratificados pelos santos e bem-aventurados Padres que nos precederam, e que também nos foram transmitidos em nome dos santos e gloriosos Apóstolos, permaneçam a partir deste momento firmes e inabaláveis para a cura das nossas almas e a cura das paixões. [...] Mas nós colocamos o nosso selo também sobre todos os outros santos cânones estabelecidos pelos nossos santos e bem-aventurados Padres, isto é, pelos 318 santos Padres portadores de Deus reunidos em Niceia, e os de Ancyra, mais os de Neocæsarea e também os de Gangra, e além disso, os de Antioquia, na Síria: os de Laodicéia, na Frígia: e também os 150 que se reuniram nesta cidade real protegida pelo céu: e os 200 que se reuniram pela primeira vez na metrópole de Éfeso, e os 630 Padres santos e bem-aventurados de Calcedônia. Da mesma forma os de Sardica, e os de Cartago: também aqueles que se reuniram também nesta cidade imperial protegida pelo céu sob o bispo Néctario e Teófilo Arcebispo de Alexandria. Igualmente os Cânones de Dionísio, outrora Arcebispo da grande cidade de Alexandria; e de Pedro, Arcebispo de Alexandria e Mártir; de Gregório, o Taumaturgo, Bispo de Neocæsarea; de Atanásio, Arcebispo de Alexandria; de Basílio, Arcebispo de Cæsarea na Capadócia; de Gregório, bispo de Nissa; de Gregório Teólogo; de Anfilóquio de Icônio; de Timóteo, arcebispo de Alexandria; de Teófilo, arcebispo da mesma grande cidade de Alexandria; de Cirilo, arcebispo da mesma Alexandria; de Genádio, patriarca desta cidade imperial protegida pelo céu. Além disso, o Cânone, definido por Cipriano, Arcebispo do país dos Africanos e Mártir, e pelo Sínodo sob seu governo, que foi mantido apenas no país dos referidos Bispos, de acordo com o costume transmitido a eles. E que a ninguém seja permitido transgredir ou desrespeitar os cânones acima mencionados, ou receber outros além deles, que foram compostos sob falsa inscrição por certas pessoas que se atreveram a distorcer a verdade. Mas, se alguém for condenado por inovar, ou por tentar anular, algum dos cânones acima mencionados, ele estará sujeito a receber a pena que esse cânone impõe, para que possa ser curado através daquilo mesmo que ele ofendeu.
Comentário: Reafirma os ensinamentos dos Padres como um todo como sendo dogmáticos. Um grande número de sínodos e Padres da Igreja são listados como sendo aceitos pelo Sínodo como autoridades na Igreja. Entretanto, não há menção sobre Roma ser o fundamento de quaisquer ensinamentos, ou ter autoridade sobre a Igreja, ou como sendo a razão pela qual estes cânones e Santos Mestres são aceitos. Não há exceção para o Papa quanto a ser punido por transgredir.
Cânone 6: Considerando que os Cânones Apostólicos determinam que daqueles que foram promovidos ao clero sem serem casados, somente os Leitores e Coristas podem se casar (Cânone Apostólico 26), nós também, observando esta regra, decretamos que daqui em diante não é lícito a qualquer subdiácono, diácono ou presbítero, após sua ordenação, unir-se em matrimônio; mas, se ele ousar proceder assim, que ele seja deposto. Se alguém que entra no clero deseja unir-se a uma esposa de acordo com a lei do matrimônio, que o faça antes de ser ordenado hipodiácono, ou diácono, ou presbítero.
Comentário: Explicitamente permitir que os homens se casem antes da ordenação.
Cânone 8: Com o desejo de observar em tudo o que foi estabelecido por nossos Santos Padres, renovamos o cânone que ordena que os sínodos dos bispos de cada província sejam realizados cada ano onde o bispo da metrópole considerar melhor. Mas como, por causa das incursões dos bárbaros e de algumas outras causas incidentais, os que presidem as igrejas não podem realizar sínodos duas vezes por ano, parece justo que, uma vez por ano - para resolver as questões eclesiásticas que normalmente surgem - um sínodo dos referidos bispos deve ser realizado em cada província, entre a santa festa da Páscoa e outubro, como já foi dito acima, no lugar que o Metropolita considerar mais adequado. E que os bispos que não comparecerem, e permanecerem em suas próprias cidades, estando em boa saúde, e livres de todas as ocupações inevitáveis e necessários, sejam fraternalmente reprovados.
Comentário: Caráter sinodal [conciliar] da Igreja. Nenhuma menção sobre buscar Roma para responder questões eclesiásticas.
Cânone 13: Como sabemos que na Igreja de Roma considera-se uma regra que aqueles que são considerados dignos de serem elevados ao diaconato ou presbitério devem prometer não mais coabitar com suas esposas, nós, em conformidade com a antiga regra de estrita observância e disciplina apostólica, queremos que os casamentos lícitos dos homens que estão nas ordens sagradas permaneçam firmes, sem que, a partir de agora, se dissolva a união com suas esposas e sem privá-los de suas relações mútuas em um tempo oportuno. Portanto, se alguém tiver sido considerado digno de ser ordenado subdiácono, diácono ou presbítero, ele não está de modo algum proibido de ser admitido em tal posição, mesmo que viva com uma esposa legítima. Nem lhe será exigido, no momento de sua ordenação, que prometa abster-se de relações lícitas com sua esposa; caso contrário, estaríamos insultando o casamento instituído por Deus e abençoado por sua presença, como diz o Evangelho: "O que Deus uniu, ninguém o separe" e o Apóstolo diz: "Venerado seja entre todos o matrimônio e o leito sem mácula"; e ainda: "Estás ligado à mulher? Não busques separar-te." Mas sabemos, como aqueles que se reuniram em Cartago (preocupados com a pureza de vida do clero) disseram, que os subdiáconos, que lidam com os Mistérios Sagrados, e os diáconos, e os presbíteros devem se abster de suas esposas no tempo oportuno. Desta forma, o que nos foi transmitido através dos Apóstolos e preservado pelo costume antigo, nós também mantemos, sabendo que há um tempo para todas as coisas e especialmente para o jejum e a oração. Pois aqueles que servem no altar divino devem ser absolutamente continentes quando lidam com as coisas santas, para que possam obter de Deus o que pedem com sinceridade. Se alguém, portanto, ao contrário dos Cânones Apostólicos, ousar privar qualquer um dos que estão nas ordens sagradas, presbítero ou diácono, ou subdiácono, da coabitação e relação com sua legítima esposa, que ele seja deposto. Do mesmo modo, se qualquer presbítero ou diácono, sob pretexto de piedade, tiver rejeitado sua esposa, que ele seja excluído da comunhão; e se ele perseverar nisso, que ele seja deposto.
Comentário: É ilícito impedir que um homem seja ordenado caso ele seja casado. Também é ilícito forçar um homem a deixar a sua esposa para que seja ordenado. Ou se ele tiver deixado sua esposa por este motivo, isto também é ilícito. Diretamente mostra os Católicos Romanos como ensinando algo contrário aos cânones e concílios da Igreja. Mostra que há uma autoridade superior ao Papa na Igreja.
Cânone 19: Aqueles que presidem as igrejas das igrejas devem ensinar todos os dias a todo o clero e ao povo palavras de piedade, especialmente aos domingos, escolhendo das Sagradas Escrituras reflexões e pensamentos da verdade, sem transgredir os limites estabelecidos e os ensinamentos dos Padres portadores de Deus. E se surgir alguma controvérsia em relação a uma passagem da Escritura, não a interpretem senão da forma como a explicaram as luzes e os doutores da igreja em seus escritos, e que se glorifiquem nesses, em vez de comporem coisas a partir de suas próprias cabeças, para que, por falta de conhecimento, não se desviem do que é correto. Porque, através da doutrina dos mencionados Padres, as pessoas que chegam ao conhecimento do que é bom e desejável, bem como do que é inútil e a ser rejeitado, remodelarão sua vida para melhor, e não se deixarão levar pela ignorância, mas aplicando as suas mentes à doutrina, tomarão cuidado para que nenhum mal lhes suceda e trabalharão sua salvação com temor de uma punição iminente. 
Comentário: Os sacerdotes devem ensinar segundo a tradição do ensinamento universal dos Padres, nenhuma menção a Roma como sendo aqueles que expõem o ensinamento. Fala-se especificamente sobre controvérsia, mas não se menciona que se deve buscar o esclarecimento de Roma.
Cânone 20: Não será lícito a um bispo ensinar publicamente em qualquer cidade que não lhe pertença. Se algum deles tiver sido observado fazendo isso, que ele seja deposto de seu episcopado e sirva como sacerdote.
Comentário: Os Bispos não estão autorizados a ensinar em uma outra cidade [que não pertença à sua diocese], nenhuma exceção é concedida a Roma. Nenhuma menção ao ensino universal de Roma.
Cânone 21: Aqueles que se tornaram culpados de crimes contra os cânones, e por isso sujeitos a deposição completa e perpétua, são reduzidos à condição de leigo. Se, porém, eles voluntariamente se arrependem renunciando ao pecado em razão do qual foram privados da graça, e se afastaram completamente dele,  que retomem a tonsura clerical. Mas, se não estiverem dispostos a submeter-se a esse cânone, eles devem usar seus cabelos como leigos, pois preferiram voltar ao mundo do que à vida celestial.
Comentário: Nenhuma exceção é feita para a punição do Bispo de Roma, o que seria apropriado aqui.
Cânone 25: Além disso, renovamos o cânon que ordena as paróquias rurais (ἀγροικικὰς) e as que se encontram nas províncias (ἐγχωρίους) devem permanecer sujeitas aos bispos que as possuem efetivamente; sobretudo se durante trinta anos as tiverem administrado sem oposição. Mas, se dentro de trinta anos houve ou houver alguma controvérsia sobre as mesmas, é lícito aos que se julgam lesados encaminharem o caso para o sínodo provincial.
Comentário: Os casos de controvérsias devem ser encaminhadas para o sínodo provincial, não para Roma.
Cânone 32: [...] E os santos Padres que se reuniram em Cartago disseram expressamente as seguintes palavras: "Que nos Mistérios sagrados nada além do corpo e sangue do Senhor seja oferecido, como o próprio Senhor estabeleceu, que é pão e vinho misturado com água." Portanto, se algum bispo ou presbítero não agir segundo a ordenança nos foi transmitida pelos Apóstolos, e não oferecer o sacrifício com vinho misturado com água, que ele seja deposto, por proclamar imperfeitamente o mistério e inovar sobre as coisas que nos foram transmitidas.
Comentário: Embora este cânone seja sobre a mistura de água com vinho para a Eucaristia, ele reforça o ensinamento de que a igreja deve servir o Sacramento conforme a maneira transmitida pelos Padres: Pão misturado com vinho e água.
Cânone 36: Renovando as determinações dos 150 Padres reunidos na cidade protegida por Deus e imperial, e dos 630 que se reuniram em Calcedônia; decretamos que a Sé de Constantinopla desfrutará das mesmas prerrogativas que a Sé da antiga Roma, e terá nos assuntos eclesiásticos a mesma grandeza desta, sendo segunda depois dela. Depois de Constantinopla deve ser considerada a Sé de Alexandria, depois a de Antioquia, e depois a Sé de Jerusalém.
Comentário: Constantinopla tem privilégios iguais aos de Roma. Nenhuma menção a qualquer exceção especial concedida a Roma em termos de supremacia ou infalibilidade.
Cânone 55: Como chegou ao nosso conhecimento que na cidade de Roma, no santo jejum da Quaresma eles jejuam nos sábados, contrariando a observância eclesiástica que é tradicional, pareceu bom ao santo sínodo que também na Igreja dos Romanos o cânone [Cânone Apostólico 64] seja rigorosamente observado, que diz: "Se for encontrado algum clérigo que jejue num domingo ou sábado (exceto em uma única ocasião)  que seja deposto e, se for leigo, que seja excomungado."
Comentário: O concílio condena uma prática que se desenvolveu na igreja romana que era contra os cânones apostólicos, mostrando que os concílios têm autoridade sobre qualquer bispo. 
Cânone 82: Em algumas pinturas dos veneráveis ícones, é representado um cordeiro ao qual o Precursor aponta com seu dedo, que é considerado como um tipo (typos) de graça, indicando antecipadamente através da Lei, nosso verdadeiro Cordeiro, Cristo nosso Deus. Aceitando, portanto, os antigos tipos (typos) e sombras como símbolos da verdade, e padrões transmitidos à Igreja, preferimos honrar a Graça e a Verdade, recebendo-as como o cumprimento da Lei. A fim de que o que é perfeito possa ser representado aos olhos de todos, pelo menos na expressão colorida, decretamos que a partir de agora, ao invés do antigo cordeiro, a figura de Cristo nosso Deus, de acordo com sua forma humana, seja representada nas imagens, o Cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo, para que possamos compreender por meio dela, a profundidade da humildade de Deus, e nos lembremos de Sua vida na carne, Sua paixão e morte salvífica, bem como a salvação que veio ao mundo.
Comentário: Agnus Dei é canonicamente proibido. Não é permitido que Cristo seja retratado como um cordeiro. 
Cânone 90: Recebemos de nossos divinos Padres a lei canônica que, em honra à ressurreição de Cristo, não devemos ajoelhar-nos nos domingos. Para que não ignoremos a plenitude dessa observância, deixamos claro aos fiéis que, depois que os sacerdotes forem ao Altar para as Vésperas nos sábados (segundo o costume vigente), ninguém se ajoelhará em oração até a noite do domingo seguinte, quando, após a entrada do lychnicon, novamente com os joelhos dobrados, oferecemos nossas orações ao Senhor. Pois consideramos a noite após o sábado como a precursora da Ressurreição de nosso Senhor e começamos a partir desse momento a cantar nos hinos espirituais a Deus, conduzindo nossa festa das trevas para a luz, e assim, durante uma noite e um dia inteiro, celebramos a Ressurreição. 
 Comentário: Ajoelhar-se não é permitido no domingo por causa da Ressurreição de Cristo.

 Sétimo Concílio Ecumênico: NICÉIA (787 dC)
Cânone 1: Para aqueles que receberam a dignidade sacerdotal, servem de testemunho e de guia as regras e os decretos estabelecidos que com alegria recebemos e louvamos juntamente com Davi, inspirado por Deus, proclamando ao nosso Senhor e a Deus: "Regozijo-me em seguir os teus testemunhos como o que se regozija com grandes riquezas", "Ordenaste os teus testemunhos com justiça" e "A justiça dos teus testemunhos é eterna; dá-me inteligência, e viverei." E se a voz do profeta nos manda guardar para sempre os testemunhos de Deus e viver neles, então é evidente que eles permanecem inabaláveis e inalterados. Pois até Moisés, que viu a Deus, assim o diz: "nada lhe acrescentarás nem diminuirás". E o divino Apóstolo Pedro, regozijando-se neles, proclama: "as coisas que até os anjos anseiam observar." (Paulo nos diz): "Mas, ainda que nós mesmos ou um anjo do céu vos anuncie outro evangelho além do que já vos tenho anunciado, seja anátema." Vendo que estas coisas são dignas de confiança e nos foram testemunhadas, regozijamo-nos nelas como quem encontrou grande espólio, e aceitamos os cânones divinos com deleite, mantendo firmes todos os preceitos dos mesmos, completos e sem alterações, quer tenham sido estabelecidos pelas santas trombetas do Espírito, quer pelos renomados Apóstolos, quer pelos Seis Concílios Ecumênicos, quer pelos Concílios reunidos localmente para promulgar os decretos dos mencionados Concílios Ecumênicos, quer pelos nossos santos Padres. Pois todos estes, sendo iluminados pelo mesmo Espírito, definiram as coisas que eram pertinentes. Assim, pois, aqueles que eles puseram sob anátema, também nós anatematizamos; aqueles que eles depuseram, também nós depomos; aqueles que eles excomungaram, também nós excomungamos; e aqueles que eles submeteram à punição, também nós os sujeitamos à mesma pena. Pois o Divino Apóstolo Paulo, que foi arrebatado ao terceiro céu e ouviu as palavras inexprimíveis, exclama:"Sejam vossos costumes sem avareza, contentando-vos com o que tendes."
Comentário: A fé é plena e eternamente imutável. A plenitude da fé foi dada aos Apóstolos. A Fé não se desenvolve ou evolui.
Cânone 3: Que toda eleição de um bispo, presbítero ou diácono, realizada por príncipes, seja nula, segundo o cânon que diz: Se algum bispo que fizer uso dos poderes seculares obtiver por seus meios jurisdição sobre qualquer igreja, ele deverá ser deposto, e também excomungado, juntamente com todos os que permanecerem em comunhão com ele. Pois aquele que for elevado ao episcopado deve ser escolhido pelos bispos, como foi decretado pelos santos Padres de Nicéia no cânone que diz: É mais apropriado que um bispo seja ordenado por todos os bispos da província; mas se isso for difícil de realizar, seja por necessidade urgente, seja por causa da duração da viagem, tendo-se reunido pelo menos três bispos e dado os seus votos, e os que estão ausentes tendo manifestado o seu consentimento por cartas, a ordenação ocorrerá. A confirmação do que assim se fizer, será dada em cada província pelo metropolita da mesma.
Comentário: Os bispos devem ser escolhidos pelos bispos.  
Cânone 10: Como alguns clérigos, interpretando erroneamente as constituições canônicas, deixam sua própria diocese para ir para outras dioceses, especialmente a esta cidade real protegida por Deus, e se acomodam nas residências de príncipes, celebrando liturgias em seus oratórios; portanto, não é permitido receber tais pessoas em qualquer casa ou igreja sem a licença de seu próprio Bispo e também do Bispo de Constantinopla. E se algum clérigo assim proceder sem tal licença, e assim continuar, que ele seja deposto. Quanto àqueles que fizeram isso com o consentimento dos referidos Bispos, não lhes é lícito assumir obrigações mundanas e seculares, uma vez que isso é proibido pelos cânones sagrados. E se alguém for encontrado no exercício do ofício daqueles que se chamam Meizoteroi; que abandone o cargo, ou seja deposto do sacerdócio. É melhor que vá ensinar as crianças e os servos, lendo-lhes as Sagradas Escrituras, pois foi para isso que ele recebeu o sacerdócio.
Comentário: Outro cânone que explica que os bispos devem permanecer em suas próprias jurisdições na ausência de uma bênção. O cânon afirma que a permissão deve ser dada pelo bispo de Constantinopla para servir em outra área, não pelo bispo de Roma, o que mostra que a autoridade do bispo romano é limitada ao Ocidente.
Cânone 11: Como temos a obrigação de observar todos os cânones divinos, devemos por todos os meios manter em sua integridade aquele que diz que deve haver um ecônomo em cada igreja. Se o Metropolita nomeia em sua Igreja um ecônomo, ele faz bem; mas se não o faz, é permitido ao Bispo de Constantinopla, por sua própria autoridade, escolher um ecônomo para a Igreja do Metropolita. Uma autoridade semelhante pertence aos metropolitas, se os Bispos que a eles estão sujeitos não quiserem indicar os ecônomos em suas igrejas. A mesma regra também deve ser observada em relação aos mosteiros.
Comentário: As prerrogativas que o bispo de Roma tem foram historicamente as do Patriarca de Constantinopla - Comentário da coleção de Schaff: Entre os oficiais da Igreja Constantinopolitana, Codinus nomeia primeiramente o Grande Œconomus, "que" - ele diz - "detém em seu próprio poder todas as capacidades da Igreja, e todos os seus rendimentos; e é o dispensador neste assunto tanto para o Patriarca como para a Igreja". 
Cânones Apostólicos
Cânone 11: Que um bispo seja ordenado por dois ou três bispos. 
 Comentário: O ensinamento latino contemporâneo é que o Papa deve ordenar todos os bispos.
Cânone 5: Que um bispo, presbítero ou diácono, não se separe de sua esposa sob o pretexto de religião; mas, se ele se separar, que seja excomungado; e, se ele persistir, que seja deposto.
Comentário: É ilícito que um homem se separe de sua esposa por motivos religiosos. Não é explicitamente o que Roma está praticando, mas o celibato obrigatório, segundo o cânone, não é exigido para Bispos, Sacerdotes ou Diáconos.
Cânone 14:  Um bispo não pode deixar sua própria e passar para outra, embora possa ser pressionado por muitos a assim proceder, a menos que haja alguma causa justificada que o obrigue a isso, pelo fato de poder contribuir com algum benefício maior para esses outros paroquianos em razão de sua palavra de piedade; mas isso não deve ser resolvido por ele mesmo, mas pelo julgamento de muitos bispos,  e por uma grande súplica.
Comentário: Os Bispos não podem sair para outras jurisdições sem uma bênção apropriada. Não há exceção para o Papa.
Cânone 15: Se algum presbítero, ou diácono, ou qualquer outro da lista do clero, deixa sua própria paróquia, e entra em outra, e, tendo abandonado totalmente a sua, continua naquela outra paróquia sem a permissão de seu próprio bispo, nós ordenamos que ele não mais realize o serviço divino; especialmente no caso em que seu bispo, tendo-o chamado para retornar, e ele não obedecer e persistir em sua conduta desordenada. No entanto, que ele comungue ali como leigo.
Comentário: o mesmo que o cânone 14
Cânone 33: Nenhum bispo, presbítero ou diácono estrangeiro seja recebido sem cartas de recomendação; e, quando as cartas forem apresentadas, que as pessoas sejam examinadas; e, se forem pregadores piedosos, que sejam recebidas. caso contrário, que lhes dêem o necessário, mas que não os recebam na comunhão, pois muitas coisas são feitas de surpresa.   

Comentário: o mesmo que os cânones 14 e 15.
Cânone 34: Os bispos de cada nação devem reconhecer aquele que é o primeiro entre eles e considerá-lo como seu líder [cabeça], e não fazer nada de importante sem o consentimento dele; mas cada um deve fazer apenas as coisas que dizem respeito à sua própria paróquia [diocese], e às regiões que lhe pertencem. Mas que ele (que é o primeiro) não faça nada sem o consentimento de todos; porque assim haverá unanimidade, e Deus será glorificado através do Senhor no Espírito Santo [Em alguns manuscritos há: através do Senhor Jesus Cristo / o Pai através do Senhor pelo Espírito Santo / o Pai, o Filho e o Espírito Santo]

Comentário: Os Católicos Romanos gostariam que este Cânone referisse ao Papa, mas ele não afirma isso claramente, apesar de quão importante teria sido fazê-lo. Eles necessitam enxergá-lo através do dogma do Vaticano I porque não está claramente definido como tal. Além disso, este cânone é contrário ao Filioque, pois diz: Do Pai, através do Filho, e no/ pelo Espírito Santo. Este é o entendimento Ortodoxo da processão do Espírito Santo. [NT: Os ortodoxos rejeitam qualquer tipo de primazia que coloque o Papa isolado da estrutura conciliar da Igreja. Nesse cânone, a primazia e a conciliaridade são consideradas interdependentes. ]
Cânone 35:  Que um bispo não ouse ordenar além de seus próprios limites, em cidades e lugares não sujeitos a ele. Mas se ele for culpado de ter feito isso sem o consentimento o consentimento das pessoas que têm autoridade sobre tais cidades e territórios, que ele seja deposto, e também aqueles que ele ordenou. 

Comentário: Os Bispos devem ordenar dentro da sua própria jurisdição, não há exceção em relação ao Papa. O cânone não ensina que o Papa é responsável pela ordenação dos Bispos e não há exceção em relação a punição para o Papa.
Cânone 39: Que os presbíteros ou diáconos nada façam sem a aprovação do bispo,  pois é a ele que está confiado o povo do Senhor, e ele que será exigido que preste contas das almas deles.
Comentário: Os sacerdotes e diáconos estão sujeitos à autoridade de seu Bispo individual, nenhuma menção à autoridade universal do Papa, o que é contrário ao Vaticano I.
Cânone 45: Se um bispo, sacerdote ou diácono se juntar à oração com hereges, que ele seja excomungado; mas, se permitir que exerçam qualquer função clerical, que ele seja deposto.

Comentário: Qualquer clero que ore com hereges deve ser excomungado. Não há exceção para o Papa. Vários papas oraram com hereges e não-crentes. Segundo o Direito Canônico Latino, um ato de apostasia [que inclui esta ofensa] constitui uma excomunhão latae sententiae que não requer uma sentença sinodal ou hierárquica especial. Isso significaria que no momento em que o Papa começasse a orar com os hereges, ele seria imediatamente excomungado de facto.
Cânone 64: Se algum clérigo ou leigo entrar numa sinagoga de judeus ou hereges para orar, que o primeiro seja deposto e que o segundo seja excomungado.
Comentário: O mesmo que o cânone 45.
Cânone 74: Se algum bispo tiver sido acusado de algo por homens dignos de fé, ele deve ser convocado pelos bispos; e se ele aparecer, e confessar, ou for condenado, uma punição adequada deve ser aplicada a ele. Mas se, quando for convocado, não comparecer, que ele seja convocado uma segunda vez, enviando-lhe dois bispos, para esse fim. [Alguns manuscritos acrescentam: Se mesmo assim ele não comparecer, que seja convocado uma terceira vez,  enviando-lhe dois bispos novamente para ele]. Mas se, mesmo assim, ele desconsiderar a convocação e não comparecer, que o sínodo pronuncie contra ele uma sentença que lhe pareça certa, a fim de que ele não pareça tirar proveito evitando o julgamento.
Comentário:  Se algum bispo for acusado, ele pode ser julgado e sentenciado. Não há exceção para Roma. Roma não aplica a sentença.
Cânone 81: Afirmamos que um bispo ou presbítero não deve ocupar-se com os assuntos públicos, mas dedicar-se aos assuntos eclesiásticos. Que seja persuadido a assim proceder, ou, caso contrário, que seja deposto, pois nenhum homem pode servir a dois senhores, de acordo com a declaração do Senhor.
Comentário: Isto é contrário à prática da igreja latina na Idade Média no Sacro Império Romano. Após a coroação de Carlos Magno, o Papa de Roma envolveu-se profundamente na política e nos assuntos públicos da Europa.




A compilação de cânones (junto com os comentários) acima foi feita por Seraphim.