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quinta-feira, 6 de maio de 2021

O erro do conceito perenialista de uma Tradição Primordial (Philip Sherrard)

O texto a seguir é um trecho do artigo "A Tradição Universal" de Philip Sherrard. O título do post "O erro do conceito perenialista de uma Tradição Primordial" foi dado pelo tradutor para o português.  

* * * 

O que, no entanto, é menos convincente na apresentação de Guénon sobre a Tradição é a ideia de que por trás das várias formas de tradição religiosa como existem no mundo se encontra, o que ele chama, de uma Tradição primordial e universal - puramente metafísica - da qual as várias tradições são, por assim dizer, apenas expressões locais e parciais. A ideia parece envolver uma espécie de argumento circular. Você só pode obter um verdadeiro conhecimento metafísico, afirma Guénon, por meio de iniciação a ele através de uma tradição particular na qual este conhecimento está consagrado ou incorporado. Você não pode, ou seja, enquanto estiver fora de todas as tradições, examiná-las como se fosse imparcialmente e chegar à conclusão de que esta ao invés de aquela consagra a Verdade em maior grau, porque a capacidade de reconhecer e realizar a Verdade pressupõe que você já se vinculou a uma tradição e foi iniciado através dela à Verdade.  Isto significa que sua ideia da Verdade, no sentido absoluto, depende do grau em que a Verdade, no sentido absoluto, está consagrada ou incorporada na tradição através da qual você recebeu seu conhecimento da mesma. 

Tendo recebido seu conhecimento da Verdade desta forma - e é, segundo Guénon, a única maneira de recebê-lo de forma autêntica - é certamente ilegítimo que você dê um passo adiante e diga que a tradição através da qual você reconheceu e realizou a Verdade consagra a Verdade de uma maneira mais completa do que a forma como ela está consagrada em outras tradições, de modo que esta tradição - sua tradição - representa a Tradição primordial e universal, a Tradição por excelência, ao passo que outras tradições são apenas adaptações feitas para atender às limitações das capacidades e temperamentos dos grupos particulares da humanidade aos quais são dirigidas. Fazer isto é, como eu disse, argumentar em círculo, que é um jogo que qualquer um pode jogar. 

No entanto, é isso que Guénon faz ao identificar a Tradição metafísica num sentido primordial e universal com a tradição do Vedanta, considerada na perspectiva da interpretação que lhe foi dada por Shankara, e ao utilizar os critérios fornecidos por esta tradição para julgar o status, com respeito à Verdade metafísica em sua forma mais pura, de outras tradições. 

Além disso, dizer que o Vedanta representa a Tradição primordial e é, portanto, a mais pura e perfeita das tradições, pois é a tradição original da humanidade em sentido puramente cronológico, é tão somente repetir o argumento circular em outra forma.  Aqui há duas coisas a serem ditas. A primeira é que esta afirmação sobre a prioridade cronológica da doutrina do Vedanta em si, suscita uma questão absolutamente vital. Porque embora você possa dizer que o Vedanta é a mais antiga tradição espiritual conhecida pela humanidade, você não pode evitar a questão de quem você escolhe para reconhecer como seu guia e mestre na questão da interpretação desta tradição. Guénon de fato escolheu Shankara (em vez de, digamos, Ramanuja); e o Vedanta na forma extrema não-dualista ou monista que lhe foi dada por Shankara data do século 8 d.C. ou algo próximo. 



E, além disso, você só pode dizer que o Vedanta consagra mais plenamente a tradição primordial porque é a tradição espiritual original da humanidade em um sentido puramente cronológico, se você já aceitou uma teoria do tempo segundo a qual o mais elevado estado de receptividade espiritual do homem e, portanto, sua forma mais pura e perfeita de conhecimento metafísico, coincide com o ciclo de abertura dos grandes ciclos cósmicos; e esta teoria do tempo, e da degeneração progressiva dos ciclos cósmicos, é evidentemente parte essencial da tradição hindu e é tomada dessa tradição. Se você tomar sua teoria do tempo, digamos, da tradição cristã, não há nada que apoie a ideia de que o estado original da humanidade, em termos cronológicos, é o estado mais perfeito. Uma certa condição de vácuo espiritual é necessária para localizar a forma mais perfeita e pura das coisas no passado remoto, assim como é necessária para localizá-la no futuro remoto, à maneira de Karl Marx ou Teilhard de Chardin.

Você pode ter uma idolatria com respeito ao passado, assim como pode ter uma idolatria com respeito ao futuro. Se a segunda leva a uma espécie de iconoclastia na qual se destrói todas as formas tradicionais herdadas, porque elas representam muitos obstáculos no caminho do progresso do homem para o futuro, a primeira pode levar a uma espécie de estagnação que prende de tal forma o espírito humano às rodas giratórias do hábito acumulado de séculos que se torna impossível para ele abraçar novas visões, não do futuro, mas das próprias realidades eternas sempre renovadas. Este é o negativo, o espírito mecânico da tradição e é, à sua maneira, tão materialista quanto os sonhos de um futuro utópico. É cegamente piedoso, mas não espiritual. Fecha a porta da profecia e, consequentemente, da faculdade que é a correlativa da profecia, a Imaginação. Não é por isso que a Ishopanishad diz: "A verdade é ao mesmo tempo finita e infinita; ela se move e ainda assim não se move; ela está no distante, mas também no próximo; ela está dentro de todos os objetos e fora deles"?

Também pode ser dito que a ideia de Guénon de realização metafísica dá um lugar de orgulho praticamente exclusivo à inteligência, e, como seria de esperar de um discípulo de Shankara, ele considera o conhecimento como o meio primário de libertação. Ele não atribui, por exemplo, ao amor nenhum lugar no processo de transformar o ser humano na semelhança de Deus. Na realidade, para Guénon, o amor não tem nenhum status metafísico. Como ele declarou em uma discussão em 1924, quando já havia atingido a maturidade plena, o amor é meramente algo "sentimental e, em consequência, secundário". Ou seja, por definição, o amor não pode para Guénon ser aquilo por meio do qual o homem pode alcançar a perfeição, ou aquilo sem o qual ele não pode alcançar a sabedoria - porque o amor está inseparavelmente ligado à sabedoria - ou aquilo no qual ele se eleva às alturas da verdadeira contemplação. Não consigo acreditar que isto caracterize o hinduísmo em geral, por mais que possa caracterizar certas formas de hinduísmo. 

De fato, por trás da apresentação de Guénon da doutrina metafísica, acho que se pode discernir um princípio muito distintivo em ação, que ele aplicou à formulação da doutrina metafísica com extremo rigor. Este princípio é evidente no status que ele concedeu com relação a tal formulação à razão humana e sua lógica. Colocado em seus termos mais simples, para ele, a metafísica, embora esteja acima da razão, não pode contradizer a razão. Isto quer dizer que, quando se trata da questão de representar a doutrina metafísica em termos acessíveis à inteligência humana, se você puder demonstrar em termos puramente lógicos e racionais que um certo princípio metafísico é e deve ser superior - mais abrangente, menos limitado e menos determinado do que outro, então este primeiro princípio, por esse motivo, deve ser mais elevado na ordem metafísica do que o segundo. Como pode ser demonstrado de maneira perfeitamente lógica e não-ambígua que o princípio metafísico que é totalmente não qualificado, impessoal e não admite qualquer particularização ou participação é e deve ser mais abrangente, menos limitado e menos determinado do que qualquer outro princípio do que é possível para a mente humana e sua lógica conceber, então, de acordo com esta concepção das coisas, esse princípio deve ser o Absoluto metafísico. 

Portanto, nesta perspectiva, qualquer tradição que não identifica o Absoluto metafísico com um princípio totalmente não qualificado, impessoal, etc., deve ser de uma ordem inferior, metafisicamente falando, do que uma tradição que identifica o Absoluto desta maneira. Isto, como eu disse, é bastante não-ambíguo, considerando a suposição que está por trás disto. O que é ambíguo é porque alguém deve aceitar em primeiro lugar o princípio da demonstração racional e lógica que leva a tal conclusão. A única resposta inteligível a esta pergunta é dizer que você a aceita porque ele é um axioma da tradição à qual você aderiu e, portanto, determina a maneira pela qual o conhecimento metafísico é formulado dentro dessa tradição. Mas isto é apenas mais um exemplo do mesmo argumento circular sobre o qual eu tenho falado. Porque, se você tivesse aderido a uma tradição na qual esta ideia particular da relação entre lógica e metafísica - a ideia, ou seja, que metafísica não pode contradizer a razão - não fosse assumida como axiomática, você estaria sob nenhuma compulsão para chegar à conclusão que ela impõe.

No entanto, se este conceito, de uma Tradição primordial na forma como Guénon a concebe, está tão coberto de pressupostos a priori que deve ser visto ou como um ato de fé ou como puramente arbitrário, isto não invalida sua ideia do que constitui as principais características da Tradição como tal. O que significa, por outro lado, é que a reivindicação de falar em nome da Tradição, quer se chame "universal" ou "metafísica" ou "primordial", deve ser tratada com considerável cuidado; e que correspondentemente a ideia de uma religião universal, ou a proposição de que "toda Verdade é uma só", por si só não resolve a questão de qual tradição consagra a mais total revelação da Verdade, nem estabelece a igual autoridade e autenticidade de todas as tradições. 

Não se deve esquecer que o significado que uma certa tradição tem para alguém, e o grau e firmeza do assentimento que esse alguém lhe dá, dependem não tanto de suas probabilidades demonstráveis, mas da força de sua adesão a ela, ou da fé nela, em primeiro lugar. Isto de forma alguma isenta da necessidade de aceitação e fé em uma tradição particular, que preenche as condições, como descrito por Guénon, que constituem uma tradição, se alguém quiser realizar as potencialidades espirituais que estão nas profundezas de cada um de nós; nem isenta alguém da necessidade de direcionar sua lealdade primária para a tradição de sua escolha e para aprofundar sua experiência dela.  No entanto, também impõe a obrigação de respeitar e honrar os sinais de sabedoria, santidade e graça onde e quando eles ocorrem, e qualquer que seja a tradição que os tenha alimentado. 

* * * 

Nota do blog - leituras recomendadas:

  • Para um comentário geral sobre a incompatibilidade do Perenialismo e o Cristianismo Ortodoxo veja: "Considerações ortodoxas sobre o perenialismo" http://avidaintelectual.blogspot.com/2010/04/consideracoes-ortodoxas-sobre-o.html
  • Para uma crítica feita pelo Philip Sherrard mais aprofundada da relação entre lógica e metafísica na obra de Guénon veja seu ensaio "A metafísica da lógica" (disponível em português em http://avidaintelectual.blogspot.com/2015/12/a-metafisica-da-logica.html )
  • Para uma crítica a tese da "Unidade Transcendente das Religiões" veja o artigo "The Problematic of the Unity of Religions" pelo teólogo Católico Romano Jean Borella (trecho disponível em português em http://wearetime.blogspot.com/2017/06/o-problema-da-unidade-das-religioes.html )
  • Para um comentário sobre René Guénon escrito pelo Pe. Serafim Rose em uma de suas cartas veja http://aenergeia.blogspot.com/2015/04/padre-serafim-rose-e-rene-guenon.html
  • Para uma crítica a metafísica perenialista a partir do trinitarismo Ortodoxo por Vincent Rossi veja: http://skemmata.blogspot.com/2021/06/metafisica-perenialista-e-trinitarismo.html
  • Para um comentário sobre a teosofia e o ocultismo escrito pelo Pe. Sergius Bulgakov veja http://skemmata.blogspot.com/2016/06/os-enganos-do-ocultismo-e-teosofia.html

quarta-feira, 31 de março de 2021

Neo-Eurasianismo de A. Dugin e a Fé dos Pais da Igreja

NEO-EURASIANISMO E A FÉ DOS PAIS 
por Eduard Zibnitsky

(publicado originalmente em https://pravoslavie.ru/39.html)

O ensino de Alexander Dugin, apesar da abundância de empréstimos terminológicos e conceituais e uma ampla gama de fontes e tradições envolvidas, é construído de forma bastante lógica como um conjunto integrado, cobrindo, em essência, todo o campo espiritual, geopolítico e social. Para analisar a doutrina de Dugin, o que naturalmente não pretendemos fazer devido à abundância de material a ser estudado, é necessário retirar toda a sua estética peculiar e todo o refinado sistema retórico de alusões e referências, os quais também são uma parte integrante de sua filosofia. Nesse caso, encontramos as categorias principais nas quais todo o seu pensamento está enraizado, e essas categorias estão inter-relacionadas. Portanto, as categorias básicas do sistema filosófico de Alexander Dugin são: 

* Eurásia-Atlântida, como incorporação dos vários princípios espirituais e culturais fundamentais. Elas também são chamados de civilizações da Terra e do Mar, às vezes são usadas imagens bíblicas do Behemoth e do Leviatã. A "Matriz mágica da tradição" e o individualismo atlante são o conteúdo desta oposição. 

* Esoterismo-Exoterismo. No primeiro caso, a tradição mística, a conexão com o mundo sobrenatural absoluto, mas apenas para os escolhidos; no segundo, a "adaptação" das verdades assim obtidas para todos, com nivelamento e a distorção inevitável delas. A intensidade mística do esoterismo é contrastada ao terreno, ao equilíbrio do exoterismo com sua organização "externa" desenvolvida. Porém, o exoterismo, segundo Dugin, não é um mal absoluto, pois tem origem espiritual. Mas a ação continuada do princípio "profano" leva à perda do sagrado para o completo declínio espiritual. 

* Tradição-Modernidade. A tradição (às vezes pré-moderna) é entendida como uma tradição qualquer, usualmente, verticalmente e hierarquicamente estruturada que possua um aspecto místico, certa qualidade espiritual e a modernidade europeia dos Novos Tempos, que ocasionou o desenvolvimento da ciência positivista racionalista, realizando consistentemente a secularização total, o nivelamento de todas as estruturas tradicionais. A modernidade traz a dessacralização, o domínio da razão pragmática sobre a intuição mística e o comércio [mercado] acima dos valores do Estado nacional. 

* Iniciação-Contra-iniciação. A iniciação é uma forma de transição do "escolhido" ao nível espiritual mais elevado por meio do ritual mágico de comunhão com o Absoluto. Este conceito foi mais desenvolvido por René Guénon, que escreveu sobre a mítica Hiperbórea como a cultura iniciática mais elevada, e acerca da civilização Védica como o repositório mais íntimo do conhecimento secreto antigo. A contra-iniciação é uma decadência espiritual associada com a civilização burguesa.






PROJETO "EURÁSIA" 

Em 1993, Dugin, junto com o Eduard Limonov, fundou o Partido Bolchevique Nacional, um projeto, concebido pelos fundadores do partido, destinado a combinar em um único corpo de ideias, o nacionalismo radical e o socialismo radical. O próprio nome do partido já esconde um paradoxo chocante. O bolchevismo não era inicialmente nacional, mas era dirigido precisamente contra o nacional, como retrógrado, reacionário para construir uma sociedade mundial em princípios completamente novos. O bolchevismo russo tornou-se nacional por causa do paradoxo e da contradição da própria vida, da prática histórica, quando a teoria pura interage com a realidade. Assim, o bolchevismo, tendo vencido na Rússia, não poderia deixar de se tornar russo, assim como o comunismo chinês difere do latino-americano ou do europeu, qualquer coisa — caindo em um ambiente estranho —, entra em interação com ele, em uma reação. Os nacional-bolcheviques clássicos (se nos referirmos principalmente aos "smenovekhovitas") eram nacionalistas russos, cuja teoria colidiu, em primeiro lugar, com a mais dura realidade da própria vitória dos comunistas, com que tiveram de lidar, e, em segundo lugar, com metamorfoses gradativamente naturais e progressivas do próprio bolchevismo russo, cuja profundidade e potência pareciam ter aumentado. O nacional-bolchevismo era o resultado esperado, condicionado pelas circunstâncias concretas da realidade política. Os nacional-bolcheviques não eram realmente bolcheviques-marxistas, mas permaneceram como parte da intelligentsia patriótica russa, a outra parte — embora permanecendo em posições de lealdade — viu na destruição do regime de Lenin-Stalin benefício para a Rússia, ainda que por meio, digamos, do apoio à Alemanha nazista. No entanto, a genealogia do Partido Bolchevique Nacional (chamados como nazibols) remonta à cooperação tática temporária entre os nazistas e a PCA (Partida Comunista da Alemanha) na década de 1920 na Alemanha. 

Lembro-me da afirmação de A. Losev: “tudo no mundo vive por contradição”. Nesse sentido, o projeto neo-eurasiano não só vive, mas também captura o espaço intelectual em um tempo acelerado. Limonov disse uma vez que estava igualmente orgulhoso dos marinheiros revolucionários e do reacionário Leontiev. A ecleticidade e paradoxalidade do nacional-bolchevismo neo-eurasiano foi desde o início reconhecido como o princípio básico do projeto, em que o amálgama ideológico de alta concentração forma uma espécie de vórtice, envolvendo com força monstruosa qualquer mente suficientemente receptiva, mas instável. Esse pluralismo também pode ser justificado de forma puramente pragmática, como a criação de algum tipo de "sopa primária" ideológica no qual deve nascer um novo sistema de valores, suficientemente dinâmico e moderno, capaz em todas as direções de criar uma alternativa real ao globalismo liberal do ocidente. Dugin acompanha de perto o desenvolvimento do pensamento sociopolítico e filosófico no Ocidente. Ele está muito interessado em qualquer oposição, seja de direita ou de esquerda, da crescente hegemonia político-cultural dos Estados Unidos. Seguindo o princípio do pluralismo, o enriquecimento mútuo elementar e a síntese, desde o início no projeto neo-eurasiano haviam sido incluídas diferentes tradições. Na base da nova ideologia antiglobalista, Dugin estabelece os eurasianos clássicos, a tradição dos velhos-crentes russos [Nota do Tradutor: No contexto da história da Igreja Ortodoxa Russa, os velhos-crentes são aqueles que se separaram da Igreja Russa Ortodoxa oficial no século XVII como um protesto contra as reformas litúrgicas introduzidas pelo Patriarca Nikon], a experiência da revolução e do nacional-socialismo na Rússia, os buscadores-de-Deus na Idade de Prata [N. do T.: Idade da Prata é um termo tradicionalmente aplicado pelos filólogos russos para a última década do século 19 e para primeiras décadas do século 20. Buscadores-de-Deus - Bogoiskatelstvo - foi um movimento filosófico e religioso entre a intelligentsia russa do final do século XIX - início do século XX. Representado por autores como - N. Berdyaev, S. Bulgakov, D. Merezhkovsky, V. Rozanov], bem como a trajetória antiliberal ocidental de Nietzsche, Julius Evola com seu "imperialismo pagão", Rene Guénon, Herman Wirth, que promove a antiga tradição germânica. O Judaísmo conservador e o Islã místico (sufismo) "continental" também são atraídos como aliados estratégicos. Claro, para criar uniformidade entre coisas diferentes, é necessário derivar algum tipo de princípio superior que subordine a si mesmo todos os elementos díspares do estrato "inferior". O que é considerado aqui como o princípio superior? 

O projeto eurasiano no nível de uma perspectiva estratégica global é baseado na ideia de uma união geopolítica Berlim-Teerã-Tóquio, a futura Eurásia é pensada como um "Império de complexidade decrescente" precedendo o Fim. Mas falando sobre a Eurásia, seja qual for o contexto e plano de nossa discussão, nós, é claro, entendemos que a Rússia deve desempenhar um papel especial aqui como uma verdadeira força espiritual e histórica, capaz de ser o centro e o único país eurasiático adequado. O messianismo russo permeia toda a história e cultura russa em suas maiores realizações: desde o Ancião Filoteu, passando pelos eslavófilos clássicos [N. do T.: movimento intelectual do século XIX] e Dostoiévski e, posteriormente até em Khlebnikov, Klyuev, Platonov, que viram na Rússia uma alternativa ao caminho sem saída do oeste. No entanto, seguindo o princípio do envolvimento mais amplo das forças de resistência à dominação mundial da civilização mercadológica sem-alma, Dugin entra em conflito com o eurasianismo clássico, que nunca perdeu contato com a fé dos Pais [da Igreja], porque a Rússia, que está inevitavelmente implícita como centro da Eurásia, é um país com uma auto-identidade espiritual claramente definida. Se a Rússia é inevitavelmente pensada como o centro da Eurásia, então o centro da Rússia, e especialmente, portanto, sua grandeza, está indubitavelmente em sua fé, que é apenas o cristianismo Ortodoxo. Dugin não vai contestar isso de forma alguma, ele se autodenomina como um cristão Ortodoxo, correligionário; mas no contexto de um novo projeto civilizacional, que se baseia em certo componente espiritual e metafísico, surge a questão relativa ao princípio superior, como mencionado acima, e a necessidade de professar a mesma fé dos Pais. Interesse por tradições diferentes, disposição para um diálogo respeitoso e capacidade de falar outros idiomas, tudo isso não pode de forma alguma ser imputado. Nosso interesse deve ser ​​apenas na lógica do próprio ensino de Dugin. 

TIPOS METAFÍSICOS 

Em uma de suas obras, "As Raízes Metafísicas das Ideologias Políticas", Dugin expõe com bastante clareza o seu conceito, num contexto que torna mais transparente o restante de suas obras estritamente temáticas, que por vezes operam com categorias e fontes muito obscuras. A premissa de seu raciocínio é, sem dúvida, uma afirmação correta de que, na base de todos os fenômenos da vida social — se deixarmos de lado o elemento das necessidades materiais humanas —, encontra-se uma visão consciente ou inconsciente do mundo místico-religioso, uma intuição puramente irracional, aquilo que Alexei Losev chama de mito em um contexto semelhante. De fato, conceitos da ciência política clássica como "direita e esquerda", "democracia e totalitarismo", "comunismo e fascismo", "progressismo e reacionarismo" não são capazes de — reduzindo tudo à ideologia, isto é, a construções racionais, exteriormente lógicas, a "emblemas" e "rótulos" — explicar muitos processos paradoxais na história. Também é verdade que a fundamentação teórica da posição social de alguém é secundária e frequentemente acidental. 

A obra identifica os três princípios aos quais, segundo Dugin, reduzem-se toda a variedade das intuições e experiências místico-religiosas e, consequentemente, os fenômenos da vida política. Ele cita as três posições: 

1. O Polo-Paraíso ou Direita Absoluta. Ela é revelada pelo próprio autor da seguinte forma: “A essência desta posição se resume à afirmação do Sujeito da natureza Divina, posicionado ao centro (no pólo, no meio), tendo um cosmos sacralizado completamente subordinado a ele (e, portanto celestial!), um cosmo-espelho, no qual nada se reflete exceto este próprio Sujeito, o sal da Terra e do Céu. Este Sujeito Divino não tem fora de si (nem acima de si, nem ao seu redor, nem abaixo de si) nenhum princípio metafísico superior com o qual seria necessário considerar espiritualmente e, portanto, é absolutamente livre e inseparável de Deus. Deus está dentro dele. (Para esta posição corresponde à máxima do Antigo Testamento confirmada por Cristo no Evangelho: "Eu disse: vocês são deuses.") Fora dele não há Deus. Então, no cosmos, na natureza, na terra há apenas o seu reflexo e, portanto, a natureza é aqui sinônimo de Paraíso, não é um obstáculo à sua Vontade, mas uma continuação de sua Vontade, uma objetificação de sua Vontade, seu ‘grande corpo’." 

Dugin acrescenta ainda que pessoas do tipo polar tomam posições radicais na história, visando devolver o cosmos a um estado paradisíaco, restaurando seu estado de "espelho", reflexão, continuação do Sujeito mencionado. A polaridade implica no caráter escatológico da cosmovisão, pois o homem não pode aceitar a imperfeição, a descentralização do mundo. A polaridade também pressupõe a possibilidade de iniciação, uma hierarquia de iniciação dos eleitos, e é necessariamente de natureza esotérica. 

2. "O segundo tipo de ideologia é a do "Criador-Criação", que também pode ser chamada de puramente conservadora. Ela corresponde ao lado exotérico, ou seja, a parte externa de um ensinamento religioso. A forma mais pura dessa ideologia pertence às organizações eclesiásticas de estilo católicas ou do tipo de Ummah islâmica (principalmente sunita). Geralmente, os conceitos de "teocracia" ou “clericalismo” são aplicados com mais precisão para eles. Também é possível definir este tipo como a cosmovisão do “Paraíso Perdido”. Ao contrário do princípio polo-paraíso, este tipo de cosmovisão coloca o sujeito não no centro do mundo (o pólo), mas em sua periferia; o próprio mundo é identificado aqui não com o paraíso, mas com a Criação, separando o sujeito do Criador. Naturalmente, este sujeito periférico, o indivíduo após a queda, após a expulsão do Paraíso, não é mais reconhecido como o Mestre, para quem o cosmos está completamente subordinado (como extensão de sua vontade). Ele se torna um exilado, separado do Criador pela Criação, que agora se torna uma categoria ambígua, seja porque, por um lado, esta Criação esconde o Criador (aspecto negativo), e por outro, ela carrega o selo do Criador, o que significa que indiretamente o revela (aspecto positivo). A partir deste postulado, começa o desenvolvimento do pensamento religioso, que de diversas maneiras pode ir desde o puro apofatismo (negação da possibilidade de conhecer o Criador através da Criação) até ao puro catafatismo (afirmando a possibilidade de conhecer o Criador na Criação até sua identificação pelos "panteístas")”. 

Deve-se acrescentar que Dugin aponta a irreconciliabilidade destas duas posições, acrescentando que o conteúdo essencial da história é uma luta entre elas, na qual cada um dos lados no campo político às vezes faz uma aliança estratégica com o terceiro princípio: 

3. Esquerda Absoluta, "Matéria Mágica". Essa posição em sua forma pura foi realizada no materialismo dos Novos Tempos [N. do T.: período da história situado entre o séc. XVI e início do séc. XX], que negou deliberadamente qualquer princípio espiritual e reduziu a natureza humana à fisiologia. Nesta posição, o homem é pensado como parte do cosmos. A teoria da evolução é a expressão mais precisa da cosmovisão da Esquerda Absoluta. Qualquer sociedade de consumo e desintegração da matéria está associada à "Matéria Mágica", onde o corpóreo prevalece sobre o espiritual, como na sociedade moderna industrial do Ocidente e também no socialismo norte-coreano do tipo Juche. Dugin também considera Teilhard de Chardin e Nikolai Fedorov como portadores da ideologia da "Matéria Mágica". 

Deve-se observar que Dugin associa a posição polar com gnose, mesmo no sentido histórico específico deste termo, no sentido de movimentos heréticos dentro do cristianismo, e o exoterismo com a fé, pois o exotérico separado do Absoluto faz um esforço de romper para chegar até o Criador. O esoterista, por outro lado, já está no estado de "Deus em mim" e não precisa de fé; portanto, é um portador de conhecimento diretamente recebido. 

Dugin em seu livro "Metafísica da Boa Nova", bem como em outras obras, correlaciona a posição polar esotérica no Cristianismo com a Ortodoxia, e a posição exotérica com o Catolicismo Romano. 

Entretanto, é óbvio que a oposição entre a Gnose e a fé (se elas se opõem), a ideia de um Paraíso perdido, o apofatismo como uma característica fundamental da teologia, todos esses sinais nos obrigam — falando do Centro Absoluto — a entender a ortodoxia cristã ortodoxo, ou seja, o Cristianismo Ortodoxo como foi proclamada nos escritos dos Santos Pais e nos decretos dos concílios. Mas aqui, talvez, alguma digressão seja necessária. 

Os gnósticos estavam extasiados, praticando a contemplação emocional-sensorial, procurando preencher aquela lacuna entre Criador e criação sobre a qual Dugin escreve, e que, de acordo com os ensinamentos dos Pais, existe por causa do estado decaído do homem. Os Pais ensinaram que o homem é derrotado em seu próprio ser, em suas próprias faculdades do sentido e mente. Portanto, consideraram como uma qualidade necessária do asceta a capacidade de perceber criticamente os fenômenos da vida espiritual. Foi a ausência do pessimismo dos Santos Pais em relação ao homem que permitiu aos gnósticos cultivar em si mesmos, sem a devida sobriedade, uma agitação emocional e um arrebatamento de seu intelecto e imaginação sensual. Tudo isso combinado com a identificação da matéria com o mal, uma característica do paganismo helênico. Orígenes, em suas homilias sobre o "Cântico dos Cânticos", escreveu que existe um amor terreno e um amor celestial: o primeiro do diabo, o segundo de Deus. Esta ideia foi posteriormente desenvolvida com radicalismo extremo nos movimentos gnósticos, o que acabou levando à negação do casamento. 

A Igreja tem lutado constantemente contra o desejo de denegrir o lado físico do casamento, e tem defendido a pureza do leito conjugal contra os hereges. Isto se repetiu de século em século, com alguma regularidade em diferentes partes do mundo cristão, e foi repetido que a ideia da natureza "diabólica" da matéria e, portanto, do sagrado matrimônio, levou à prática de rituais de orgia, de devassidão ("deleite" para os sectários russos). A "experiência erótica radical"(!!), à qual Dugin faz referência em um de seus artigos sobre a Idade da Prata (em "O tom marrom-avermelhado da Idade da Prata", 1997), no contexto de sua aproximação com o radicalismo místico é visto de forma bastante natural. 

O interesse por sectários, por formas extremas de escapismo escatológico, é uma característica típica de Dugin. Não é por acaso que ele nota o mesmo interesse em Lenin, que, segundo Dugin, se dirigiu a Bonch-Bruyevich para ler os manuscritos sectários. Este interesse pelos "saltadores" data da época em que Dugin e Limonov ainda eram co-fundadores do Partido Nacional Bolchevique (NBP). Limonov zombou: por que um nacional-bolchevique deveria necessariamente ler um livro (o partido tinha uma lista de livros obrigatórios) sobre a influência do sectarismo na literatura russa? Quando, por sugestão de Dugin, os membros do partido começaram a costurar longas camisas pretas "para se parecerem com os velhos-crentes", Limonov deu de ombros: para que um revolucionário precisa de tudo isso? Para Dugin, porém, isto não foi acidental: Dugin pensava na revolução como uma forma de ativismo místico-religioso, uma projeção social da teologia gnóstica. É desnecessário dizer que somente o fermento orgíaco gnóstico, a religiosidade sensível-histérica, é capaz de inspirar uma revolução, ou seja, a mesma prática orgíaca, projetada para o domínio político. A propósito, a revolução também foi uma tentativa de destruir a instituição familiar. 

A questão do casamento e da castidade sempre esteve associada à defesa da dignidade da criação de Deus, enquanto os gnósticos, em nome de um espírito abstrato, blasfemaram da criação, identificando a natureza, a matéria com o mal, em que a Igreja viu nisso um retorno ao dualismo pagão, incapaz de compreender que "o Verbo se fez carne" e que "todas as coisas são puras". Dugin, é claro, dominou bastante a dialética da economia a partir dos livros, mas, simpatizando com os gnósticos, admite que o "radicalismo polar" e aversão à matéria os levaram à ideia de um "criador maligno", o Demiurgo, o que significa a rejeição do Deus bíblico de Israel. 

Também é necessário dizer que a fé (se for oposta ao conhecimento) é um caminho direto e radical para Deus. A fé, é claro, requer esforço, mas somente através desse esforço o homem supera sua limitação (estado do Exilado). É por isso que é um podvig [N. do T.: feito ascético], além disso, foi a fé que o Senhor imputou a Abraão como justiça. A gnose, se entendida como algo que é o oposto da fé, não é capaz de avançar, porque é mediada no caminho para o Criador e sem a ajuda da fé leva a um beco sem saída. Na Ortodoxia, uma síntese de fé e conhecimento é concretizada (Losev a chama de gnose), porém, a fé é geralmente percebida como um esforço da vontade, como um avanço que precede o conhecimento de Deus. Para adorar o Salvador em seu nascimento vieram primeiro os pastores (o caminho da fé), seguindo o chamado direto do Anjo, e depois os Magos (o caminho do conhecimento), cujo caminho era longo, conduzidos pelo deserto, e não foi o Anjo anunciando a boa nova, mas o cálculo e o estudo dos livros que os induziram a seguir a estrela de Belém. Uma fé que começa do zero, como uma folha em branco, um esforço que atravessa a criação até o invisível é o começo das virtudes. Se Dugin opõe este tipo de fé à gnose do "Sujeito Absoluto", significa que ele define a Ortodoxia como o "Centro Absoluto" ou ele interpreta a própria Ortodoxia de uma forma contrária à própria Igreja. (A referência ao palamismo não conta aqui: a possibilidade de deificação é possível somente por meio da fé correta. E não é possível conciliar a contemplação dos gnósticos e a prática extática dos sectários com o hesicasmo, pela semelhança dos epítetos utilizados. Satanás, como sabemos, veste-se com roupas de luz). 

É impossível combinar a fé de Abraão com a gnose dos intelectuais helênicos do passado, os quais deram início ao surgimento das heresias gnósticas. Abraão não teve nenhuma "iniciação", nem nenhuma "soma de conhecimento sagrado". Ele era uma folha em branco, uma membrana sensível, capaz de reconhecer o sopro do Espírito de Deus, por isso, ele conversou sem esforço com Deus, enquanto Jacó lutou com Ele. 

Os gnósticos estavam todos em contemplação de imagens poéticas inspiradas por variações sobre o tema da cosmogonia pagã dualista, tudo em um mundo de especulação escatológica e fantasia, tentando constantemente sintetizar o cristianismo e a sabedoria pagã. A Ortodoxia expressou sua essência na declaração de um dos antigos ascetas: "A leitura de tais ensinamentos sobre Deus secará suas lágrimas."

As inclinações gnósticas de Dugin não podem deixar de levantar a questão de sua falta de fé, bem como sua oposição óbvia à tradição da Igreja e à estrutura canônica, a qual ele define como "exoterismo". E, claro, desde o início, é uma falta de tato imperdoável, se não pior, tratar de assuntos sagrados em termos inadequados. Nisso, se apenas Dugin é responsável pelo que escreveu, poderíamos parar, mas talvez possamos ir mais longe. 

SUJEITO POLAR 

Agora, voltemos ao primeiro tipo metafísico deduzido por Dugin. É bastante óbvio que o próprio Dugin se identifica plenamente com a posição polar, que pressupõe o Sujeito da natureza Divina. Que tipo de sujeito é esse? Seu relacionamento com Deus é muito ambíguo. “Não há Deus fora dele”, como escreve Dugin, mas claramente este não é o próprio Deus. Quando o Senhor se dirigiu a Moisés, chamou a si mesmo: “Eu sou o Deus de Abraão, Isaque, Jacó, o Deus que criou o céu e a terra”. Aqui não há ambiguidade. Portanto, Deus é uma pessoa. Ele é livre. Ele é a Vontade Suprema e tudo o que existe é relativo a Ele. Ele é o primordial. Ele permanece em Si Mesmo, comandando o mundo, embora rejeitando a coerção. 

A personalidade, por outro lado, é sempre igual e auto-idêntica. A frase de Dugin acerca do Sujeito "não há Deus fora Dele" significa que ou Deus não é superior ao Sujeito, porque Deus como pessoa, permanecendo em Si mesmo, tem pelo menos autonomia, ou seja, não sendo sendo referido ao Sujeito, ele deve permanecer em Sua essência fora do Sujeito. Como o Sujeito não lhe oferece tal possibilidade segue-se que, segundo Dugin, o Sujeito é superior a Deus, ou que o Sujeito abarca todo o Deus, ou seja, ou é superior a Deus ou personifica Deus. Isto significa que Deus não é uma pessoa, mas uma massa passiva que precisa ser personificada e moldada, ou uma ideia abstrata concretizada no Sujeito. 

O Deus bíblico é vivo e real, Ele é uma pessoa e não precisa de nenhuma personificação, Ele comanda os trovões e é capaz de incinerar qualquer pessoa com o sopro de Sua boca. Tal era o Deus conhecido por Abraão, Isaac, Jacó, os profetas e apóstolos. 

Deus, manifestando-se no mundo visível e sensorial, age livremente, exercendo sem restrições a Sua vontade. No entanto, a posição polar de Dugin sugere que o próprio sujeito polar ("não há nada acima dele") determina a posição de Deus em relação a si mesmo, "Deus está dentro dele", "Não há Deus fora dele". Porque de outra forma a vontade de Deus seria primária, o que significa que haveria algo acima do Sujeito, a vontade de Deus, colocando-o (digamos) em uma posição “dentro de Deus”. Mas o Sujeito pretende ser precisamente o Centro Absoluto, o pólo do mundo, e não o Exilado, esperando que Deus o atraia para Si ou para dentro de Si Mesmo. Assim, Deus no conceito de Dugin é passivo e representa uma espécie de condicionalidade, uma abstração, não uma pessoa, mas uma qualidade, um acréscimo ao Sujeito.

Agora deixemos Dugin definir o "Sujeito Divino Absoluto" quem é ou o que é, e onde você pode aprender acerca dele. Em particular, "na tradição hermética do Ocidente medieval, o símbolo central era o 'Rei alquímico', 'Enxofre Vermelho', e na tradição hindu há toda uma escola de prática de iniciação e realização espiritual chamada 'raja ioga', 'ioga real'. Além disso, é o termo 'Rei', 'Monarca', 'Csar' que é o mais comum na maioria das escolas esotéricas, tanto entre os místicos cristãos ('Rei Celestial') quanto por muçulmanos (especialmente entre os xiitas), lamaístas, judeus gnósticos (cabalistas), etc." O autor nos leva mais longe, até o presente: "... na Alemanha nos anos 10-20, os esoteristas das organizações secretas herméticas com especificidade racial, herdeiros dos Templários e Gibelinos (portadores da ideologia do polo-paraíso na Idade Média) participaram ativamente da formação do nacional-socialismo". 

O princípio polar-monárquico é assim realizado no conceito xiita do Imã Oculto (é uma linha contínua da monarquia sagrada) e no Führerprinzip nazista. Ele encontra algo semelhante entre os Rosacruzes. 

Note que Dugin insiste na unidade essencial dos ensinamentos por ele citados, os quais carregam, em sua opinião, a mesma ideia: ele fala de várias "escolas esotéricas", isto é, os portadores de "conhecimentos secretos". O que é comum aqui (o que Dugin chama de "polaridade") é, pode-se dizer, uma tensão mística particular, o pathos de transformar o mundo de acordo com o modelo sagrado e receber (seguindo Guénon) certas energias de natureza supra-humana e sobrenaturais por meio de iniciação. Portanto, a fé e a divindade em si não são importantes nestas tradições; o essencial é passar por esta ou aquela iniciação em sua totalidade e suas manifestações mais elevadas que possuem o conhecimento sagrado. O ditado de Nietzsche vem à mente involuntariamente: "o super-homem pode permitir-se ter crenças". Isto é, o mais importante é ser sobre-humano, enquanto a própria fé e os dogmas não são importantes.

Desnecessário dizer que as simples conclusões em relação à atitude do Sujeito Polar com Deus, agora que sabemos pelas palavras do próprio Dúgin o que e a quem ele se refere por sujeito polar, nos levam à definição de Deus não como uma pessoa, que na história age como uma pessoa, com sua própria face; mas como uma massa passiva transcendental e sem face, que se manifesta de diversas formas, sob diferentes máscaras. O que é primordial aqui, o concreto, ativo, mais real, e apenas um manifesto, é o Sujeito, que, por magia (iniciação, mistério), subordina Deus a si mesmo através de sua própria vontade. Chega-se à conclusão de que os ensinamentos de Dugin não são mais do que magia pagã. 

Um Deus pessoal com quem se pode falar (Moisés, Abraão), fazer uma aliança, lutar (Jacó), fugir Dele (Jonas), ficar indignado (Antão, o Grande) um Deus assim, ou seja, um Deus cristão, não pode existir aqui.

MODERNO PRÉ-MODERNO 

Assim, Dugin identifica todas as doutrinas, crenças ("escolas esotéricas") mencionadas de acordo com o princípio de um esquema comum, ou melhor, de acordo com o princípio de uma tipologia mental comum dos participantes das tradições (pathos escatológico, extremismo místico, prática extática). 

Identificar religiões completamente diferentes, ou construir correspondências entre elas em certos elementos é, a propósito, um traço característico da Modernidade, em relação à qual Dugin parece estar em forte oposição. É necessário romper radicalmente com a Idade Média, com a Revelação, para abordar essas coisas tão misteriosas sem tremor interior com as quais Dugin simplesmente faz malabarismos. É impressionante sua capacidade de encontrar "correspondências" em diferentes religiões, o que também exige a superação de uma determinada barreira. Para começar a trabalhar na síntese das religiões, é necessário fazer algo semelhante ao que Descartes fez em sua filosofia - colocar o "eu" operacional no centro do universo, dividir qualquer experiência religiosa em elementos abstratos (qualidades, funções) e corajosamente começar a manipulá-los. Ou você precisa ser o pagão mais ingênuo e imediato, como o Zyrian em Leskov, para quem "Nicola ao lado, e o sol ao lado, e a lua ao lado!". 

E assim, como Dugin ensina seguindo Guénon, o conhecimento sagrado secreto aparece em diversas formas históricas. Se concordamos com esta proposição, então tomamos o próprio conteúdo como a forma, e a forma, tipologia cultural e psicológica, e a construção esquemática (e tudo isso é completamente condicional) como o conteúdo. Assim, ele define os cismáticos russos que não aceitaram as reformas de Nikon como "seção polar", juntamente com os xiitas, alquimistas e nacional-socialistas. Então, ao que parece, você pode ler Avvakum e não entender nada. [N. do T.: Avvakum Petrov (1620/21 - 1682) foi um russo que liderou a oposição às reformas do Patriarca Nikon da Igreja Ortodoxa Russa. Considerado o principal líder dos primeiros velhos-crentes] Para os velhos-crentes russos, o conteúdo principal de sua fé não era a polaridade, mas Cristo, a Igreja de Cristo. Avvakum e outros líderes do movimento dos velhos-crentes defendiam a preservação de todo o antigo sistema eclesiástico, a tradição sagrada, tal a maneira como eles entendiam essa preservação. A fé deles era a fé dos sete concílios ecumênicos e dos Santos Padres que Dugin chamou de "Centro Absoluto". Sim, a estrada dos velhos-crentes leva à fuga, aos bespopovtsy [N. do T.: velhos-crentes que rejeitam o sacerdócio], às florestas. Na realidade, quanto mais adiante os velhos crentes foram, sob a força da aplicação e pensamento não-ortodoxo, a ainda ortodoxa escatologia e cânones se afastaram da verdadeira eclesialidade, mais próximos estavam ao ideal de Dugin. E, claro, sempre que Avvakum visse algo espiritualmente próximo a qualquer forma de Islã, ele o rejeitaria com a mesma paixão que intitulou a Igreja Católica de "a prostituta de Roma". Avvakum acreditava em Cristo, e na fé, como o amor, significa a insubstituibilidade do Único Tu. Para Dugin, o relacionamento mais íntimo, não abstrato-intelectual, mas o relacionamento pessoal do homem com a Divindade, com Cristo, pessoalmente com o Deus de Abraão é apenas uma forma historicamente condicionada, enquanto o absoluto é um esquema perfeito, onde o sujeito está no centro e o objeto ("espaço sacralizado") está nos lados, e nenhum intermediário. E o Sujeito, como já aprendemos, pode ser tanto o Imã Oculto (monarca sagrado dos xiitas) e o Fuhrer do povo alemão e o Enxofre Vermelho. Duvido que um xiita aceitasse facilmente a substituição do imã Ali que ele reverencia com qualquer analogia do hinduísmo. Se assim for, ele não é um seguidor de Abraão. 

E se você possui uma tradição, então você não reduzirá sua tradição a um esquema, pois ela é concreta e absoluta para você. Na Índia, há belas estátuas de divindades hindus com seus genitais arrancados. Isto foi feito por pessoas de tradição muçulmana. Eu dou este exemplo sem nenhum sarcasmo. Esta é a reação normal de um muçulmano à impureza de um ídolo. Os budistas consideram Krishna como o rei dos demônios. Para unir o Islã e o Hinduísmo e outras tradições no conceito de "pré-modernidade" é preciso tomar uma posição modernista. Ninguém, exceto os racionalistas e panteístas, considera possível fazer analogias entre sua religião e uma religião completamente diferente de acordo com o princípio da polaridade, a posição absoluta do sujeito reinante, ou seja, de acordo com o princípio do esquema geral. Porque o principal para eles não é a centralidade, mas quem está no centro. E para Dugin, o que importa é a centralidade ("polaridade") em si mesma, extraída de tradições concretas, ou seja, o esquema. Abstraindo-se da compreensão íntima, pessoal e concreta do divino, Dugin reduz tudo a um esquema. Para um cristão, a centralidade de Cristo é uma qualidade de Cristo, enquanto para Dugin, Cristo é uma das qualidades ou manifestações da centralidade, uma versão possível da centralidade. Para raciocinar desta forma, é preciso percorrer e aceitar a escola da modernidade para se constituir como juiz de todas as religiões, sem aceitar nenhuma; isto é precisamente característico da filosofia Iluminista (Lessing e outros). Dugin, ao que parece, é a continuação desta tradição metodológica. 

A modernidade surgiu com a queda do escolasticismo, em geral com a crise do barlaamismo [N. do T.: referência a Barlãao, monge italiano que se opôs ao hesicasmo], quando tentaram substituir a ausência de uma experiência viva e plena de fé pela gnose racional. René Guénon também foi um produto da modernidade. Para Guénon, sua conversão ao Islã não foi a mesma que a de Maomé, quando em uma visão um anjo começou a estrangulá-lo com um pergaminho. Guénon não vem de uma experiência pessoal, não de um encontro pessoal, é um ato racionalmente pensado derivado de sua filosofia puramente europeia. Essa ação intelectual, quase de vanguarda, foi dirigida não contra o Divino, mas contra a Europa profana de sua época. O Islã pode ter sido muito atraente para Guénon por seu charme estético, mas, em geral, a fuga para o exótico Oriente é uma característica clássica do romantismo europeu. O fato de Guénon não ter se tornado muçulmano prova que ele continuou seus vários estudos em diversas tradições, incluindo o hinduísmo. Toda a sua cosmogonia e escatologia são baseadas no cinclos do hinduísmo. Ele permaneceu um filósofo racionalista europeu em oposição à modernidade, ou seja, um pós-moderno e não um pré-moderno. 

E, se uma pessoa professa o Alcorão, ou o Tao, ou o Zen, ou o Talmud, ou quando se refere a Lenin e a Marx, isso é compreensível, significa que é muçulmano, ou judeu, ou budista, ou socialista. Mas quando ele cita palavras de todas as fontes, é óbvio que ele coloca acima de tudo apenas seu próprio intelecto, ao qual ele atribui a possibilidade de finalmente sintetizar e explicar o significado e a posição de todas as escrituras e ensinamentos, alinhar Jesus, e Maomé, e Avakum, e Lênin, e Nietzsche. Nós ortodoxos temos o Evangelho no trono, Dugin tem o Evangelho e o Nomocano na prateleira, juntamente com o Corão, os Vedas, Nietzsche, Guénon, e teólogos judeus.

IGREJA E TRADIÇÃO 

Parece que tudo deveria estar claro a respeito de Dugin. Ele é um gnóstico, um pagão, um pós-modernista. Entretanto, ele aparece no Concílio da Igreja Ortodoxa Russa da Hierarquia Belokrinitsa (Moscou, 1998) [N. do. T.: velhos-crentes] e faz um discurso que começa assim: "Reverendos bispos, veneráveis padres e irmãos"! Ele se dirige a uma alta assembleia religiosa falando sobre a necessidade de enfrentar o perigo espiritual e político que vem do Ocidente, de se voltar para a fé dos Pais: "E diante desta nova e terrível ameaça, a ameaça da perda final por nosso povo, nossa sociedade, nosso Estado, nossa Fé dos laços com o grande passado, com a missão que Deus confiou a nossos antepassados e a nós, seus descendentes diretos por sangue e Fé, os cristãos velho-ortodoxos, os bons e corajosos guardiões das antigas alianças, não podem ficar de lado. O inimigo que deturpou nossos ritos, que enviou invasores impuros como Paisius Ligarides ou Arsenius, o grego, que trouxe ao trono do perverso Pedro ..." e assim por diante, e ainda mais: “o inimigo da raça humana ... toma cada vez mais novas fronteiras. Mas os portões da Igreja de Cristo continuam invencíveis, incapazes de quebrar e confundir o ‘pequeno rebanho’. E enquanto houver alguma oportunidade de professar a verdade e a salvação da Velha-Fé Ortodoxa, devemos fazê-lo", e muitas outras belas palavras. E como tudo isso pode estar vinculado ao princípio integrador do neo-eurasianismo (princípio polar universal), com René Guénon, o gnosticismo, e as escolas esotéricas? 

Em seu livro, Metafísica da Boa Nova, Dugin também insere a Ortodoxia no esquema de uma linha contínua de iniciação, que René Guénon deriva da Hiperbórea e que é realizada em várias formas históricas. Assim, com uma impressionante falta de tato, Dugin começa a se intrometer no campo dos sacramentos e escreve suas explicações em termos de certa mitologia universal: “Entre os sacramentos ortodoxos, o ritual iniciático dos ‘Mistérios Menores’ corresponde ao rito do batismo... O batismo tem todos os atributos da iniciação. Ao realizar o rito, o sacerdote proclama liturgicamente que neste momento sacramental a pessoa batizada ‘é sepultada e crucificado com Cristo’, ou seja, passa por aquela morte iniciática, que é a primeira fase dos ‘Mistérios Menores’. Isto corresponde à tripla imersão do convertido na fonte. Este é o ‘batismo com água’ ou a passagem de um ser no nascimento e morte em três mundos do Universo criado - em dois mundos das ‘Águas Baixas’ e no mundo das ‘Águas Superiores’”. 

Se na primeira frase Dugin não vê blasfêmia, então não há nada a ser falado. Esta última é completamente uma invenção. Trindade na Igreja significa devoção à Santíssima Trindade. Não é possível aprofundar mais o significado de trindade, a trindade simbolicamente, e Dugin tenta fazer isso se referindo à cosmologia pagã. Em geral, equiparar o sacramento do Batismo a algum tipo de "mistério" pode ser qualificado como blasfêmia na boca de um cristão. Ver, seguindo os críticos mais vulgares do cristianismo, uma analogia com os sacramentos em ritos pagãos selvagens está bem dentro do espírito da modernidade. Toda tribo na Oceania ou na África tem iniciações. Obviamente a cultura negra não é a "tradição frísia (ariana)" que Dugin promove seguindo Hermann Wirth, mas o batismo não é uma tradição ariana, nem é uma tradição semítica. Foi instituído pelo Filho Único de Deus. Cristo Jesus nasceu e morreu uma vez sob Pôncio Pilatos, e foi batizado uma única vez, santificando a natureza das águas para o batismo dos fiéis. Um Cristo, uma Igreja, um batismo. Não pode haver paralelos, correspondências e analogias em ascendente e descendente. O mundo não tem outro Salvador, não há outro banho de vida. O pensamento de Dugin com as suas analogias, "correspondências", paralelos no contexto da ciclologia guenoniana não é apenas não cristão, não é apenas anticristão, mas também é psicologicamente difícil em extremo retornar ao Evangelho para aqueles que estão acostumados a pensar à maneira de Dugin. Neste contexto, pode-se recordar o julgamento do eurasianismo clássico, do príncipe Nikolai Trubetskoy sobre a Índia: “... do ponto de vista cristão, a Índia é o baluarte mais forte de Satanás". Explicando seu pensamento ele escreve que em virtude do ensinamento assimilado sobre avatares (encarnações) de Vishnu "... o conceito de que o Filho de Deus veio em carne é imediatamente introduzido por qualquer hindu em uma série de "outras" encarnações do "deus" Vishnu [gostaríamos de acrescentar de nós mesmos: em uma série de outras "entidades polares” E.Z.]..., ou no ciclo natural de transmigração das almas, e, assim, a encarnação do Filho de Deus deixa imediatamente de ser aquele ato irrepetível, único, de significado cósmico, que é para o cristão." 

É surpreendente a imprudência de Dugin, sem qualquer reverência ao sagrado, apesar de toda sua etiqueta verbal e das fórmulas piedosas cuidadosamente escolhidas. No livro, "Metafísica da Boa Nova", ele se compromete a explicar toda a doutrina ortodoxa, invadindo áreas tão misteriosas, onde os Santos Pais só entrariam se fossem forçados a fazê-lo. No livro "Mistérios da Eurásia", Dugin interpreta a Ortodoxia em termos de esoterismo, utilizando o aparato de Guénon. Um cristão buscaria uma explicação de seus ensinamentos, de sua fé, de um latino convertido ao maometanismo, que escreve nas categorias do hinduísmo? E como a Avvakum trataria Guénon? E em "Mistérios da Eurásia" afirma-se que o xiismo e a Ortodoxia são esoterismo, e o sunismo e o Catolicismo Romano são exoterismo. Como podemos ver, os pares dualistas que citamos (como Esoterismo / Exoterismo, etc.) são a mais alta camada da realidade para Dugin, ele simplesmente nos hipnotiza com eles, tudo deve de alguma forma estar associado a este esquema dualista, encontrar um lugar nele. Para ele, o Evangelho na história é apenas um fragmento, que está inserido em uma cadeia iniciática, cujo início está em algum lugar em Hiperbórea. E em outras obras ele não tem vergonha de explicar o significado do tantrismo (prática mágica do ritual sexual no hinduísmo) aos "profanos", para que eles não pensem em distorcê-lo, entendê-lo "profanamente", não como é descrito por Julius Evola.

É interessante fazer a pergunta: como surgiu um livro tão venenoso como "A metafísica da Boa Nova"? É muito simples. É impossível contornar o tema da Ortodoxia. Dugin não negaria a Ortodoxia, porque simplesmente não pode, por razões internas. Sua piedade pela fé dos Pais, devemos presumir, é sincera. Mas é necessário avaliá-la através do prisma de Guénon, o professor que "nos mostrou o caminho em Kali Yuga", como ele pomposamente o descreve: "Guénon, então, nos dá as chaves mais importantes para esse tesouro, a respeito do qual os próprios representantes autorizados da Tradição, mesmo aqueles que seguem estritamente suas letras, geralmente desconhecem". Em outras palavras, Guénon vai agora nos explicar o que Santo Inácio Brianchaninov e São João de Kronstadt não entenderam na Ortodoxia! Além disso: "É especialmente importante para nós descobrir este segredo, tesouro do Espírito vivo, da Presença viva no seio dessas duas religiões que são dominantes em nosso Estado, a Igreja Cristã e a Ummah Islâmica". Não há mais nada a comentar aqui: a ideia é tão antiga quanto o mundo, e a resposta cristã a ela também pode ser encontrada na antiguidade. São Teodósio (século XII) escreveu em seu Testamento: "Quem enaltece a fé alheia é como blasfemar a sua própria fé. Se alguém enaltece a sua e a de outro, ele tem dupla crença e está muito próximo da heresia". É o que Teodósio escreveu sobre o latinismo, e o que falar do maometanismo! E o mesmo Teodósio: "Se o oponente te diz: a tua fé e a nossa são de Deus; então tu, filho, responde assim: Krivover (Crente torto)! Ou você acha que Deus também tem duas crenças?"

Finalmente, chegamos ao "Edinoverie" de Dugin. Seguindo nossas palavras citadas, ele segue: “O cristianismo Ortodoxo, que, ao contrário do Catolicismo, nunca perdeu sua dimensão interior completamente, será a escolha lógica na esfera da Religião para os seguidores russos de Guénon(!). E deve ser especialmente salientado que muitas vezes em suas obras Guénon enfatizou a necessidade (!) de pertencer a uma tradição viva e autêntica, sem a qual não é possível nem a realização esotérica nem a iniciação autêntica.” 

Constata-se que o eurasiano vem à Igreja Ortodoxa seguindo as instruções de Guénon, implementando o "projeto tradicionalista" nas "condições locais"! E preste atenção à frase: "escolha lógica na esfera da religião". Consideremos os Evangelhos e os Atos dos Apóstolos: ali a conversão a Cristo nunca foi uma "escolha lógica"! Foi sempre um Encontro. 

E, finalmente, para definitivamente rejeitar essas inclinações neo-eurasianas perigosas, é necessário entender que, do ponto de vista do Cristianismo, a tradição em si não é um valor absoluto. E o cristianismo não é uma tradição, é um encontro com o Deus vivo, com Cristo pessoalmente. O próprio Salvador diz: Eu sou o caminho, a verdade e a vida. No entanto, Dugin não se oporá, mas apenas assentirá com a cabeça e dirá: "Os gnósticos judeus têm um conceito semelhante a este...", ou: "os xiitas iranianos têm um conceito semelhante". É assim que segue: "E Nicola ao lado, e o sol ao lado..."

Se você se familiarizar com o conteúdo do site do movimento "Arctogaia", que é liderado por Dugin, e clicar nos links, então a primeira e nada enganosa impressão é que você está em algum tipo de templo pagão: máscaras, cetros, suásticas, pentagramas, estátuas bizarras e horríveis, homem-bestas empalhados. Há uma cópia virtual do mausoléu de Lenin, um modelo do "Nautilus" de Júlio-Verne (interpretado como um símbolo fálico), mapas alquímicos, frascos com homúnculos, esquemas cabalísticos. Pessoas com cabeça de pássaro, ou mesmo sem cabeça. Os textos são bastante consistentes. Tudo isso ao mesmo tempo se assemelha a uma loja maçônica, a um kunstkamera* e um teatro de anatomia. E o mestre de tudo isso atua nos Concílios da Igreja!

* [N. do T: Museu na Rússia criado por Pedro o Grande. Possui uma coleção única de antiguidades que revela a história e a vida de muitas nações. Mas este museu é conhecido por muitos por sua coleção "especial" de raridades e anomalias anatômicas.

A partir dos escritos sobre a vida dos santos, nós sabemos que efeito uma palavra do Evangelho ouvida por acaso pode ter sobre uma pessoa, que efeito transformador colossal ela pode produzir, quando para uma pessoa nada mais existe a não ser Cristo. Dugin encontra outro uso para a palavra do Evangelho. Se alguém lê Dugin acriticamente, uma pessoa que é fascinada por ele — ao contrário do ateu, judeu, muçulmano, que ainda não descobriu o Evangelho —, já está imune à sua palavra: tudo o que existe de mais íntimo e misterioso, que é incompreensível até para os Anjos, Dugin espalha como pérolas preciosas na lama.

A situação atual na Rússia requer precisão espiritual absoluta, caso contrário, o edifício, não mais um estado, mas um único povo, o sujeito da história, entrará em colapso. Usando a comparação de Chesterton, podemos dizer que a torre da ideia nacional deve ficar apenas em um ângulos reto, não se desviando nem mesmo uma fração de grau. O movimento patriótico, tão heterogêneo, já reconquistou a própria ideia russa, o direito à sua existência, agora é a hora de construir. É possível tratar Dugin simplesmente como um escritor talentoso e interessante com um olhar profundo, fluente em uma variedade de assuntos, um analista, um especialista. Mas existe uma concepção assim: "território canônico". Além do aspecto geográfico, pode significar também aspecto histórico. Toda a história da Rússia, suas tradições sagradas são território canônico da Igreja Ortodoxa Russa. Não se trata de uma questão de poder e privilégios administrativos, mas de um pertencimento essencial. Se Dugin diz palavras-chave como Santa Rússia, Terceira Roma, Soberana e Restringente (Katechon), então, pronunciando estas palavras como uma senha militar, ele entra em terreno da Igreja Russa, seu território canônico. Levantando bandeiras, nas quais estão escritos os nomes, que só para os ortodoxos têm um significado sagrado, pelo menos, supra-histórico, é como se ele estivesse dizendo, e ele realmente está dizendo: “Eu sou o dono!” 

Este artigo não faria sentido se Dugin não tivesse se comprometido a "pastorear o povo", apelando para sua memória histórica e sagrada, para a fé dos Pais. Se ele se limitasse à geopolítica e à análise histórica, um estudo científico das tradições, então nossas acusações também seriam irrelevantes, mas Dugin invade o campo das noções místicas e muito audaciosamente, como um Mestre, atribui "retidão" e "injustiça" no passado e indica os caminhos "certos" no futuro. É por isso que, antes de "pastorear" a Santa Rússia, o próprio Dugin deve submeter-se ao julgamento pela fé dos Pais.

Eduard Zibnitsky

21 de dezembro de 2001



Tradução: Anton Sannikov


* * * 

Nota do blog: como complemento, acrescento abaixo um texto que revela as opiniões de A. Dugin em relação aos Velhos-Crentes e a Igreja Ortodoxa Russa. 
[Fonte: https://alyulka.livejournal.com/119427.html]

Em uma entrevista recente, o diácono Andrei Kuraev disse a respeito de Dugin: "Este é um inimigo mais perigoso do que qualquer Blavatsky (porque é mais inteligente e mais instruído). Assim como a Blavatsky, esta é uma tentativa de digerir a Ortodoxia no Kabbalismo." Conhecendo a avaliação de Kuraev sobre o significado da vida e do trabalho de Blavatsky, deve-se admitir que o que foi dito pelo Pe. André é um forte elogio a qualquer inimigo da Igreja de Cristo. E Dugin é, sem dúvida, um inimigo consciente da Igreja, inteligente, ativo e traiçoeiro. Isto deve ser demonstrado através dos textos de Dugin, mas no presente trabalho, isto é inadequado devido à sua extrema abundância. Uma revisão séria dos ensinamentos de Dugin exigiria muito tempo e muito espaço. Felizmente, uma análise parcial já foi feita [44], portanto, espero que com a ajuda de Deus os resultados do estudo correspondente logo se tornem de domínio público. No final do artigo, preparei uma surpresa especial para o leitor, que teve a força e a tenacidade de lê-lo até o fim.

[...] Vejamos que A.G. Dugin pensa na Igreja da qual ele é membro. Vejamos qual é, aos seus olhos, a definição e o significado do Edinoverie [Nota do tradutor: Edinoverie é um acordo entre certas comunidades de Velhos-Crentes russos e a Igreja Ortodoxa Russa oficial, em que as comunidades são tratadas como parte do sistema normativo da Igreja Ortodoxa, mantendo ao mesmo tempo seus próprios ritos tradicionais] a que ele pertence. Aqui estão os textos do site Arktogea.ru, no qual Dugin compartilha seus pensamentos:

Edinoverie não é um fato eclesiológico, é um processo eurasiático dentro da estrutura da Ortodoxia Russa. Edinoverie é o vetor do movimento ... do modernismo à Tradição, do Raskol [N. do T.: Raskol foi o cisma da Igreja Ortodoxa Russa em uma Igreja Oficial e os Velhos-Crentes, no século XVII] para os Velhos-Crentes. O movimento não é seu objetivo final. Mas a constelação das seitas dos Velhos-Crentes também não é um objetivo. Para nós, a fé é um centro radical. É um conteúdo politicamente incorreto em uma forma politicamente correta (relativamente) ... Com o Edinoverie, tudo é complicado. Ele foi estabelecido sob certas condições para atingir certo objetivo. Então, tudo mudou muitas vezes. Hoje o Edinoverie é um processo de retorno geral dos Ortodoxos russos pós-soviéticos às raízes de sua fé paterna. Edinoverie não é uma seita, não é uma Igreja separada, não é um departamento tático do Patriarcado de Moscou. 

Naturalmente, nenhuma renúncia à heresia de Nikon [N. do. T.: Patriarca Nikon foi aquele que introduziu reformas litúrgicas na Igreja Russa] ocorre quando um padre é estabelecido ... O Edinoverie não é um dado adquirido, mas uma tarefa. O ramo mais correto é a linha do padre Irinarch (Mikhailovskaya Sloboda) perto de Moscou ... Edinoverie é muito mais de direita [politicamente] e reacionário; mais de direita do que a maioria dos niconianos de direita. Infinitamente mais de direita. 

Ao mesmo tempo, há uma grande vantagem no Edinoverie: nada impede que ele seja universal e penetre no ambiente do Patriarcado de Moscou, onde Nikonianos convictos [N. do. T.: Nikonainos são aqueles que seguiram o Patriarca Nikon após o cisma russo dos velhos-crentes] são uma minoria insignificante (Radonezh and Co), e a maioria ou são curiosos esquerdistas ou pessoas que ingenuamente (erroneamente) acreditam que a Igreja Ortodoxa Russa como ela é, é uma continuação da verdadeira raiz da Ortodoxia Russa. 

Em vez de negá-lo de fora (do consenso das seitas da Velha-Fé em sua forma final), você pode explicar às pessoas, de forma suave e construtiva, como ele realmente é. Se onde você mora não há Edinoverie, forme uma comunidade ou tente criá-la por outros meios. De acordo com as disposições da reunião pré-conciliar de 1917, se a maioria dos paroquianos exigir servir da maneira antiga, isto é completamente legítimo e sua vontade deve ser satisfeita [45].
Aqui, embora de forma sutil e nebulosa, a coisa mais importante é dita. Edinoverie para Dugin é um "processo eurasiático" que tem uma espécie de "objetivo", para o qual é necessário "penetrar no ambiente do Patriarcado de Moscou". Os simpatizantes recebem a instrução correspondente - criar uma célula, uma comunidade. É um vocabulário cismático: "Nikonianos", "Shchepotniki"[N. do. T.: Palavra de insulto utilizada pelos velhos-crentes em relação aos crentes Ortodoxos que seguem a Igreja 'nikoniana'. Literalmente significa "aqueles que fazem sinal da cruz com três dedos"], "heresia nikoniana". Acreditar que "a Igreja Ortodoxa Russa comocomo ela é, é uma continuação da verdadeira raiz da Ortodoxia Russa" é ingênuo e erróneo? É necessário aproveitar a oportunidade, ou seja, formar uma comunidade Edinoverie. Para quê? É claro que não foi com o propósito de salvar a alma e não para fortalecer a Igreja Russa, mesmo que apenas como uma "entidade corporativa" [46]. Mas a "constelação das seitas dos Antigos Crentes" não é o que é necessário. O objetivo é outra coisa, algo sem nome. Entretanto, se não está no Patriarcado e não está na "Velha-Ortodoxia", então, normalmente está fora da Ortodoxia e de seus substitutos cismáticos!

Tudo isso é de domínio público. E isto é do ano 2000.

E aqui está o texto programático de Dugin "Velhos-Crentes e Edinoverie" do portal Eurasia, uma reimpressão da publicação Jornal Eurasiano No. 10 de 2003. No primeiro parágrafo, lemos:
O tópico do Edinoverie é muito importante, apesar da atitude muito complicada em relação a ele da parte dos próprios Velhos Crentes, que tradicionalmente consideram isto [Edinoverie] um estratagema do Patriarcado de Moscou contra eles. Na realidade, a história do Edinoverie é, ao contrário, uma linha estratégica para inserir a Velha-Fé (Ortodoxia genuína) na árvore da Igreja sinodal [47].
Isso é o que realmente é! E aqui está o "processo" mencionado:
Na realidade, Edinoverie é um processo - um processo de revolução conservadora em toda a Igreja ... Estou convencido de que somente no Edinoverie como neste processo existem perspectivas para a cura da Igreja Ortodoxa Russa, a oportunidade de retornar ao sólido terreno inabalável o qual qual nossa Igreja tem sido encontrada desde o final do século XVII.
Aqui não só aprendemos que a Igreja Russa do Patriarcado de Moscou, segundo Dugin, não está sobre a pedra da fé Ortodoxa, mas completamente fora do terreno sólido por centenas de anos, mas também recebemos informações adicionais sobre os objetivos de Dugin e daqueles que ele representa. Isto não é nem mais nem menos, mas uma revolução interna da igreja. Conservadora, ou seja, esta é a própria "tentação que vem da direita", sobre a qual o padre Andrei Kuraev escreveu. Não surpreendentemente, Alexander Gelievich apoiou essencialmente [48] a "Conversão" do bispo Diomede [49].

E mais: 
Aquele na Igreja Ortodoxa Russa que se posiciona firmemente contra as posições dos Velhos-Crentes, mais cedo ou mais tarde ele encontrará sua essência cismática, anti-nacional, sectária... As autoridades oficiais da Igreja devem se arrepender sinceramente perante os Velhos-Crentes, devem obter o perdão.
E não são os cismáticos ou sectários, mas o Patriarca Nikon que se revela um sectário e quase o primeiro comunista [50]: "ele não apenas reduziu a sacralidade, ele contribuiu para a violação dos equilíbrios da Santa Rússia. De certa forma, ele estava perto dos flagelos - Nova Jerusalém, etc. É muito montanista, muito Munzeriano".

"Edinoverie é, na realidade, a Velha-Fé. Reconhecendo a retidão histórica e espiritual de Avvakum e seus seguidores, Edinoverie professa uma eclesiologia um tanto diferente." [51] 

E mais uma vez - este é um texto aberto e acessível ... A apologia direta dos cismáticos junto com a humilhação da Igreja, da qual o próprio Dugin é membro e da qual ele jura fidelidade mais de uma vez! Estes artigos não são refutados por Dugin em uma única palavra. Pelo contrário, suas antigas obras são atualizadas [52]. Textos de diferentes anos mostram que a atitude de Dugin em relação à Igreja não muda. Em uma entrevista de 2006 [53] - é tudo a mesma coisa, nas mesmas palavras.
Edinoverie se tornou aquele nicho espiritual que me integrou completamente na Velha-Fé ... Edinoverie é um processo que leva dos Novos Crentes à Velha Fé. Edinoverie hoje mudou sua função. Antes era chamada para levar as pessoas para longe dos Velhos-Crentes, mas agora não é assim ... Os Velhos-Crentes são o sal do povo russo ... A Rússia não renascerá sem a Igreja, e a Igreja não renascerá sem os Velhos-Crentes.

sexta-feira, 1 de setembro de 2017

Experiências "Fora do Corpo" na Literatura Ocultista (Pe. Seraphim Rose) - Parte 1/2


Experiências "fora do corpo" na Literatura Ocultista
1. O Livro Tibetano dos Mortos 
2. Os escritos de Emanuel Swedenborg 
3. O "Plano Astral" da Teosofia
4. "Projeção Astral" 
5. "Viagem Astral" 
6. Conclusão sobre o Reino "Fora do Vorpo" 
Uma Nota sobre Reencarnação 

       A fim de explicar as experiências "pós-morte" os pesquisadores contemporâneos quase invariavelmente se voltam para aquela forma de literatura que afirma ser baseada na experiência do reino "fora do corpo": a literatura oculta ao longo dos séculos, desde o livro dos mortos egípcio e o tibetano até os mestres e experimentadores oculistas de nossos dias. Quase nenhum desses pesquisadores, por outro lado, prestam qualquer atenção séria ao ensinamento cristão sobre a vida após a morte, ou às fontes escriturísticas e patrísticas sobre as quais se baseia. Por que isso?

      A razão é muito simples: o ensinamento cristão provém da revelação de Deus ao homem sobre o destino da alma após a morte, e enfatiza principalmente o estado último da alma no céu ou no inferno. Embora exista também uma abundante literatura cristã descrevendo o que acontece com a alma após a morte, baseada em experiências de primeira mão pós-morte ou fora do corpo (como apresentado no capítulo anterior nos "telônios aéreos"), esta literatura ocupa definitivamente um lugar secundário quando comparado ao ensinamento cristão primário do estado final da alma. A literatura baseada na experiência cristã é muito útil para elucidar e tornar mais vívidos os pontos básicos da doutrina cristã.

       Na literatura ocultista, no entanto, exatamente o oposto ocorre: a ênfase principal é sobre a experiência da alma no reino "fora do corpo", ao passo que o estado último da alma é geralmente deixado impreciso ou aberto a opiniões pessoais e suposições, supostamente baseadas nessas experiências. Os pesquisadores de hoje são mais facilmente atraídos pelas experiências de escritores ocultistas (que parecem ser capazes de pelo menos algum grau de "investigação científica") do que para o ensinamento do cristianismo, que exige um compromisso de crença, fé e uma vida espiritual de acordo com ele.


       Neste capítulo, tentaremos apontar algumas das armadilhas dessa abordagem, que não é de modo algum "objetiva", como parece a algumas pessoas, e oferecer uma avaliação das experiências ocultas "fora do corpo" do ponto de vista do Cristianismo Ortodoxo. Para que possamos fazer isso, temos de considerar algumas das obras ocultistas que os pesquisadores de hoje estão usando para elucidar as experiências "pós-morte".




1. O Livro Tibetano dos Mortos

       O livro tibetano dos mortos é um livro budista do século VIII que provavelmente transmite as tradições pré-budistas de um período muito antigo. Seu título tibetano é "Libertação Através da Escuta no plano Pós-Morte", e é descrito pelo editor inglês como "um manual místico de orientação no outro mundo de muitas ilusões e reinos" (p.2). É lido próximo ao corpo do recém-falecido para benefício da alma, porque, como diz o próprio texto, "durante os momentos de morte ocorrem várias ilusões enganosas" (p.115). Essas, o editor escreve, "não são visões da realidade, mas nada mais do que... os (próprios) impulsos intelectuais que assumiram uma forma personificada" (p.31). 


       Nos últimos estágios dos 49 dias de experiência pós-morte descritos no livro, há visões de deidades "pacíficas" e "furiosas" - todas as quais, de acordo com a doutrina budista, consideradas ilusórias. (Discutiremos adiante, ao examinar o natureza desse reino, por que essas visões são, de fato, em grande parte, ilusões). O fim de todo esse processo é a descida final da alma em uma "reencarnação" (também discutido abaixo), que os ensinos budistas consideram como um mal a ser evitado pelo treinamento budista. O Dr. C.G Jung, em seu Comentário Psicológico sobre o livro, acha essas visões muito semelhantes às descrições do mundo pós-morte na literatura espírita do ocidente moderno - ambas "dão uma impressão repugnante da absoluta inanidade e banalidade das comunicações do 'mundo espiritual'".

       Em dois aspectos há semelhanças notáveis entre o livro tibetano dos mortos e as experiências de hoje, e isso explica o interesse do Dr. Moody e de outros pesquisadores neste livro. Em primeiro lugar, a experiência "fora do corpo" descrita nos primeiros momentos da morte é essencialmente a mesma descrita nas experiências contemporâneas (assim como na literatura Ortodoxa): a alma do falecido aparece como um "corpo ilusório brilhante" que é visível para outros seres da mesma natureza, mas não para os homens na carne; a princípio não sabe se está vivo ou morto; observa as pessoas ao redor do corpo, ouve os gemidos dos lamentos, e tem todas as faculdades sensoriais; tem movimento desimpedido e pode atravessar objetos sólidos (pp. 98-100, 156-160). Em segundo lugar, há uma "nítida luz primária vista no momento da morte", que os pesquisadores contemporâneos identificam com o "ser de luz" descrito por muitas pessoas hoje em dia. 


       Não há razão para duvidar de que o que está descrito no livro tibetano dos mortos se baseia em algum tipo de experiência "fora do corpo"; mas veremos abaixo que o verdadeiro estado pós-morte é apenas uma dessas experiências e que devemos ter cuidado ao aceitar qualquer experiência "fora do corpo" como uma revelação do que realmente ocorre com a alma após a morte. As experiências de médiuns ocidentais também podem ser genuínas; mas certamente não transmitem mensagens reais dos mortos, como pretendem. 

       Há uma certa semelhança entre o livro tibetano dos mortos e o mais antigo livro egípcio dos mortos. Este último descreve a alma após a morte passando por muitas transformações e encontrando muitos "deuses". No entanto não existe uma tradição viva de interpretação deste livro e, sem isso, o leitor moderno apenas pode supor o significado de alguns de seu simbolismo. De acordo com este livro, o falecido sucessivamente toma forma de uma andorinha, de um falcão de ouro, de uma serpente com pernas e pés, de um crocodilo, de uma garça, de uma flor de lótus, etc., e encontra estranhos "deuses" e seres de outro-mundo (os "Quatro Sábios Macacos", a deusa do hipopótamo, vários deuses com cabeças de cachorros, chacais, macacos, pássaros, etc.). 


       As experiências elaboradas e confusas do reino "pós-morte" descritas neste livro contrastam bastante com a claridade e simplicidade das experiências cristãs. Embora também se baseie, como parece, em algum tipo de experiências "fora do corpo" reais , este livro é tão cheio de visões ilusórias como o tibetano dos mortos e certamente não pode ser tomado como uma descrição real do estado da alma pós-morte.

2. Os Escritos de Emanuel Swedenborg


       Outro dos textos ocultistas que os pesquisadores contemporâneos estão investigando que oferece uma maior esperança de ser compreendido, pois é dos nossos tempos modernos, é completamente ocidental em sua mentalidade, e pretende ser Cristão. Os escritos do visionário sueco Emanuel Swedenborg (1688-1722) descrevem as visões de um outro mundo que começaram a aparecer em sua meia-idade. Antes que suas visões começassem, ele era um típico intelectual do século XVIII da Europa, fluente em muitas línguas, um escolar, cientista e inventor, um homem ativo na vida pública, supervisor de indústrias suecas de mineração e membro da Casa dos Nobres - em suma, um "homem universal" nos primeiros anos da ciência, enquanto ainda era possível um único homem dominar quase todo conhecimento de seu tempo. Ele escreveu cerca de 150 trabalhos científicos, alguns dos quais (como seu tratado anatômico de  4 volumes, O Cérebro) estavam bem a frente de seu tempo. 



       Então, no 56º ano de sua vida, ele voltou sua atenção para o mundo invisível e, nos últimos 25 anos de sua vida, produziu um número imenso de obras religiosas descrevendo o céu, o inferno, os anjos e os espíritos - tudo baseado em suas experiências pessoais.
Emanuel Swedenborg

       Suas descrições dos reinos invisíveis são desconcertantemente similares a terra: em geral, no entanto, estão de acordo com a maioria da literatura ocultista. Quando uma pessoa morre, de acordo com o relato de Swedenborg, entra-se no "mundo dos espíritos", que está meio caminho do céu e do inferno. Este mundo, embora seja espiritual e não material, é tão semelhante a realidade material que não se sabe a princípio que morreu (461); ela possui um mesmo tipo de "corpo" e faculdades sensíveis como possuía em seu corpo terreno. No momento da morte há uma visão de luz - brilhante e indistinta- e há uma "revisão" de sua vida e de suas ações boas e más. Ela encontra seus amigos e conhecidos deste mundo (494), e por algum tempo continua uma existência muito semelhante à que tinha na terra, exceto que tudo é muito mais "interior"; atrai-se para aquelas coisas e pessoas pelas quais nutre amor, e a realidade é determinada pelo pensamento - assim que se pensa em um ente querido, tal ente torna-se presente, como se chamado (494). Uma vez que se acostuma a estar neste mundo espiritual, é ensinado por seus amigos sobre céu e inferno, e é levado para várias cidades, jardins e parques (495).

    Neste "mundo dos espíritos" intermediário, aquele que faleceu "prepara-se" para o céu em um processo de educação que leva de alguns dias a um ano (498). Mas o "Céu", como descrito por Swedenborg, não é muito diferente do "mundo dos espíritos", e ambos são muito semelhantes à terra (171). Há pátios e salões como na terra, parques e jardins, casas e quartos para "anjos", com muitas mudanças de roupa entre eles. Há governos e tribunais - todos, naturalmente, mais "espirituais" do que na terra. Existem igrejas e serviços religiosos, com clérigos que dão sermões e que ficam confusos se alguém na congregação discorda deles. Há casamentos, escolas, criação e educação de crianças, vida pública - em suma, quase tudo o que pode ser encontrado na Terra que pode se tornar "espiritual". O próprio Swedenborg falou com muitos dos "anjos" no céu (todos esses, ele acreditava, eram apenas as almas dos mortos), bem como com os estranhos habitantes de Mercúrio, Júpiter e outros planetas; ele discutiu com Martinho Lutero no "céu" e o converteu para sua crença, mas não conseguiu convencer Calvino contra a crença na predestinação. "Inferno" é descrito como um lugar semelhante à terra, onde os habitantes são caracterizados por egoísmo e má ações.

     Pode-se facilmente entender por que Swedenborg foi considerado pela maioria de seus contemporâneos como um louco, e por que até recentemente suas visões raramente foram levadas a sério. Entretanto, sempre houve alguns que reconheceram que, apesar de todas as estranhezas de suas visões, ele esteve em contato real com a realidade invisível: seu contemporâneo mais jovem, o filósofo alemão lmmanuel Kant, um dos principais fundadores da filosofia moderna, levou-o muito a sério e acreditou nos vários exemplos da "clarividência" de Swedenborg, conhecidos em toda a Europa; e o filósofo americano Emerson, em seu longo ensaio sobre Swedenborg, Homens Representativos, chamou-o de "um dos gigantes da literatura, que não pode ser medido por universidade inteiras de escolares ordinários". Hoje, é claro, a revitalização do interesse pelo ocultismo trouxe-o à tona como um "místico" e "vidente" não vinculado ao cristianismo doutrinário; e, em particular, os pesquisadores de experiências "pós-morte" encontram paralelos notáveis ​​entre suas descobertas e suas descrição dos primeiros momentos após a morte.



     Há poucas dúvidas de que Swedenborg esteve em contato real com espíritos invisíveis e que ele recebeu "revelações" deles. Uma análise de como ele recebeu estas "revelações" nos mostrará qual é o verdadeiro reino em que esses espíritos habitam.


       A história dos contatos de Swedenborg com os espíritos invisíveis - que ele registrou em grande detalhe em suas volumosas obras Diário dos Sonhos e Diário Espiritual (2300 páginas) - revela precisamente as características de contatos com os demônios do ar, como descrito por Bispo Inácio. Desde a infância Swedenborg praticou uma forma de meditação, envolvendo relaxamento e concentração intensa; com o tempo, passou a ver uma chama esplêndida durante sua meditação, que aceitou com confiança e interpretou como um sinal de "aprovação" de suas idéias. Isto o preparou para a abertura da comunicação com o reino dos espíritos. Mais tarde, ele começou a ter sonhos com Cristo e de ser recebido em uma sociedade de "imortais", e gradualmente tornou-se consciente da presença de "espíritos" em torno dele. Finalmente, os espíritos começaram a aparecer para ele em estado de vigília. A primeira dessas últimas experiências ocorreu quando estava viajando em Londres: uma noite, depois de comer demais, ele de repente viu uma escuridão e répteis rastejando no chão, e então um homem sentado no canto da sala, que disse apenas "não coma muito" e desapareceu na escuridão. Embora estivesse assustado com esta aparição, confiava nela como sendo algo "bom" porque dava conselhos "morais". Então, como ele próprio relatou, "durante a mesma noite o mesmo homem revelou-se a mim novamente, mas eu não estava assustado agora. Ele então disse que era o Senhor Deus, o Criador do Mundo e Redentor, e que me escolhera para explicar aos homens o sentido espiritual da Escritura e que ele mesmo me explicaria o que eu deveria escrever sobre este assunto; naquela mesma noite foi aberto para mim, de modo que fiquei completamente convencido da sua realidade, o mundos dos espíritos, o céu e o inferno... Posteriormente, o Senhor abriu diariamente, muitas vezes, os meus olhos corporais, de modo que no meio do dia eu podia ver o outro mundo, e em estado de perfeita vigília conversar com anjos e espíritos."

       É bastante claro a partir desta descrição que Swedenborg começou um o contato com o reino aéreo de espíritos caídos e que todas as suas revelações posteriores vieram desta fonte. O "céu" e o "inferno" que ele viu eram também partes deste reino aéreo, e as "revelações" que ele registrou são uma descrição das ilusões desse reino que os espíritos caídos muitas vezes produzem para os crédulos, com seus próprios objetivos em vista. Um olhar sobre uma outra literatura ocultista nos mostrará mais das características deste reino.


 3. O "Plano Astral" da Teosofia

     A teosofia dos séculos XIX e XX, que é uma mistura das idéias ocultistas do oriente e do ocidente, ensina em detalhes sobre este reino aéreo, considerando-o composto por vários "planos astrais". ("Astral" vindo de "das estrelas" é um termo fantasioso para se referir ao nível da realidade "além do terreno".) De acordo com um resumo do ensinamento, "os planos (astrais) compreendem as habitações de todas as entidades sobrenaturais, o local dos deuses e os demônios, o vazio onde residem as formas-pensamento, a região habitada pelos espíritos do ar, outros elementos e os vários céus e infernos com seus anfitriões angélicos e demoníacos... Com a ajuda de procedimentos rituais, pessoas treinadas acreditam que podem "ascender nos planos", e experimentar essas regiões em plena consciência."


       De acordo com este ensinamento, entra-se no "plano astral" (ou "planos", dependendo se este reino é visto como um todo ou em suas "camadas") na morte e, como no ensino de Swedenborg, não há uma mudança repentina em seu estado e nenhum julgamento; continua-se a viver como antes, apenas fora do corpo, e começa-se a "atravessar todos os sub-planos do plano astral, em seu caminho para o mundo-do-céu". Cada sub-plano é cada vez mais refinado e "interior" e a progressão através deles, longe de envolver temor e a incerteza como fazem os "telônios aéreos" cristãos, é um momento de prazer e alegria: "A alegria da vida no plano astral é tão grande que a vida física em comparação parece não ser vida.... Nove em cada dez não gostam de voltar para o corpo. "(Powell, p.94).


     Teosofia, invenção da médium russa Helena Blavatsky, foi fundada no final do século XIX, numa tentativa de dar uma explicação sistemática dos contatos mediúnicos com os "mortos" que se multiplicavam no mundo ocidental desde o grande surto de fenômenos espíritas na América em 1848. Até hoje seu ensino sobre o "plano astral" (embora muitas vezes não chamado por esse nome) é o padrão usado por médiuns e outros amadores no ocultismo para explicar suas experiências no mundo dos espíritos. Embora os livros teosóficos sobre o "plano astral" estejam preenchidos com a mesma "inanidade repugnante e banalidade" que o Dr. Jung utiliza para caracterizar toda a literatura espírita, ainda assim, atrás desta banalidade há uma filosofia subjacente básica da realidade do outro mundo que encontra simpatia nos investigadores contemporâneos. A visão de mundo humanista atual está mais favoravelmente disposta para um outro mundo que é agradável ao invés de doloroso, que permite um "crescimento" ou "evolução" tranquila em vez da finalidade do juízo, que permite "outra chance" de preparar-se para uma realidade superior em vez de determinar o destino eterno de alguém pelo comportamento na vida terrena. O ensinamento da teosofia dá exatamente essas características exigidas pela "alma moderna" e afirma que baseia-se na experiência. 


      A fim de dar uma resposta cristã ortodoxa a este ensinamento, devemos examinar mais de perto as experiências específicas que são ocorrem no "plano astral." Mas onde vamos examinar? A comunicação dos médiuns são notoriamente não confiáveis e incertas. O contato feito com o "mundo espiritual" através dos médiuns é muito sombrio e indireto para constituir prova convincente da natureza desse mundo. As experiências "pós-morte" de hoje, por outro lado, são muito breves e inconclusivas para serem tomadas como evidência da natureza real do outro mundo.



       Mas existe uma espécie de experiência no "plano astral" que pode ser estudada com mais detalhes: na linguagem teosófica é chamada "projeção astral" ou "projeção do corpo astral". É possível, através do desenvolvimento de certas técnicas mediúnicas, não apenas entrar em contato com espíritos desencarnados, como fazem os médiuns comuns (quando suas sessões são genuínas), mas realmente entrar em seu reino e "viajar" em seu meio. Pode-se muito bem ser cético ao ouvir tais experiências em tempos antigos, mas acontece que essa experiência se tornou relativamente comum - e não apenas entre os ocultistas - em nossos tempos, e já há uma extensa literatura de experiência de primeira mão neste reino.



4. “Projeção Astral"



       É bem conhecido ao cristão ortodoxo que o homem pode, de fato, ser elevado além das limitações de sua natureza corporal e viajar até reinos invisíveis. A natureza exata dessa viagem não nos interessa aqui. O próprio apóstolo Paulo não sabia se estava "no corpo ou fora do corpo" quando foi elevado até o terceiro céu (II Cor. 12: 2), e não há necessidade de especular sobre como o corpo pode tornar-se suficientemente refinado para entrar no céu (se sua experiência realmente foi "no corpo"), ou que tipo de "corpo sutil" a alma pode ser revestida durante uma experiência "fora do corpo"  - se, de fato, essas coisas possam ser conhecidas nesta vida. Nos é suficiente saber que a alma (em qualquer tipo de "corpo") pode realmente ser elevada pela graça de Deus e contemplar o paraíso, bem como o reino aéreo dos espíritos abaixo do céu.


       Muitas vezes, na literatura ortodoxa, tais experiências são descritas como "fora do corpo", assim como a experiência de Santo Antônio dos "telônios aéreos" enquanto estava em oração, descritas acima. O bispo Inácio Brianchaninov menciona dois ascetas no século XIX, cujas almas também deixaram seus corpos enquanto estavam em oração - o ancião Basilisk da Sibéria, cujo discípulo era o famoso Zosima, e ancião-schema Inácio (Isaiah), amigo pessoal do Bispo Inácio (Bispo Inácio, Obras Completas, vol. III, p. 75). A mais impressionante experiência "fora do corpo" nas vidas dos santos ortodoxos é provavelmente a de Santo André o Tolo-por-Cristo de Constantinopla (século X), que, embora seu corpo evidentemente estivesse na neve nas ruas da cidade, foi elevado em espírito para contemplar o paraíso e o terceiro céu, uma parte da qual ele descreveu ao seu discípulo que registrou sua experiência (Vidas dos Santos, 2 de outubro).

      Essas experiências ocorrem somente pela graça de Deus e completamente à parte da vontade ou desejo dos homens. Mas "projeção astral" é uma experiência "fora do corpo" que pode ser buscada e iniciada por meio de certas técnicas. Esta experiência é uma forma especial daquilo que Bispo Inácio descreve como a "abertura dos sentidos" e é claro que - uma vez que o contato com espíritos é proibido aos homens, exceto pela ação direta de Deus - o reino que pode ser alcançado por este meio não é o céu, mas apenas o reino aéreo abaixo do céu, o reino habitado pelos espíritos caídos.

   Os textos teosóficos que descrevem esta experiência em detalhes estão tão cheios de opiniões e interpretações ocultas que são em grande parte inúteis para dar uma idéia das experiências reais desse reino. No século XX, no entanto, houve outro tipo de literatura que tratou dessa experiência: paralelo ao surgimento de pesquisas e experiências no campo da "parapsicologia" alguns indivíduos descobriram, por acidente ou por experiência, que eram capazes de ter a experiência de "projeção astral" e eles escreveram livros descrevendo suas experiências em linguagem não-ocultista e alguns pesquisadores compilaram e estudaram relatos de experiências "fora do corpo", escrevendo numa linguagem científica ao invés de uma linguagem ocultista. Aqui examinaremos vários desses livros.

       O lado "terreno" das experiências "fora do corpo" é bem descrito em um livro do diretor do Instituto de Pesquisas Psico-físicas de Oxford, Inglaterra. Em resposta a um apelo feito em setembro de 1966, na imprensa britânica e no rádio, o Instituto recebeu cerca de 400 respostas de pessoas que alegaram ter tido experiências pessoais fora do corpo. Tal resposta indica que essas experiências não são raras em nossos dias e que aqueles que as tiveram estão muito mais dispostos do que em anos anteriores a discuti-las sem medo de serem considerados "loucos". O Dr. Moody e outros pesquisadores descobriram as mesmas coisas em relação às experiências "pós-morte". Essas 400 pessoas receberam dois questionários para preencher, e o livro foi o resultado de uma comparação e análise das respostas desses questionários.

    As experiências descritas neste livro foram quase todas involuntárias, desencadeadas por várias condições físicas: estresse, fadiga, doença, acidente, anestesia, sono. Quase todas ocorreram na proximidade do corpo (não em um reino "espiritual"), e as observações feitas são muito semelhantes às feitas por pessoas que tiveram experiências "pós-morte": veem o próprio corpo de "a partir de fora", possuem todas as faculdades sensíveis (mesmo se em corpo fosse surdo ou cego), são incapazes de tocar ou interagir com o ambiente, "flutuam" no ar com uma sensação de extrema tranquilidade e bem-estar; a mente torna-se mais clara do que o normal. Algumas pessoas descreveram encontro com parentes falecidos ou viagens para paisagens que não pareciam fazer parte da realidade comum.

       Um investigador de experiências "fora do corpo", o geólogo inglês Robert Crookall, reuniu uma enorme quantidade de exemplos, tanto de ocultistas como médiuns, por um lado, e de pessoas comuns, por outro. Ele resume a experiência da seguinte maneira: "Um corpo-réplica, ou 'duplo' 'nasceu' do corpo físico e assumiu uma posição acima dele. Com o 'duplo' separado do corpo, houve  um 'apagão' na consciência (assim como a mudança de engrenagens em um carro causa uma ruptura momentânea na transmissão de potência)... Muitas vezes, houve uma revisão panorâmica da vida passada, e o corpo físico abandonado é comumente visto a partir do 'duplo' liberto... Ao contrário do que seria de esperar, ninguém descreveu sobre dor ou o medo causado por deixar o corpo - tudo parecia perfeitamente natural... A consciência, que operava através do 'duplo' separado, era mais extensa do que na vida comum... Às vezes, havia telepatia, clarividência e presciência. Os amigos "mortos" eram vistos frequentemente. Muitos dos depoentes expressaram grande relutância para voltar a entrar no corpo e, assim, retornar à vida terrena ... Este padrão geral de eventos em experiências fora do corpo, até então não reconhecidas, não pode ser explicado adequadamente pela hipótese de que todas essas experiências eram sonhos e que todos os duplos descritos eram meras alucinações. É possível, por outro lado, ser prontamente explicado pela hipótese de que essas eram experiências genuínas e que os 'duplos' eram corpos objetivos (embora ultrafísicos)".

       Esta descrição é praticamente idêntica, ponto a ponto, com o "modelo" do Dr. Moody de experiências pós-morte (Life After Life, p. 23-24). Essa identidade é tão precisa que só pode ser uma e a mesma experiência que está sendo descrita. Se assim for, é finalmente possível definir a experiência que o Dr. Moody e outros investigadores descreveram, e que causou tanto interesse e discussão no mundo ocidental por vários anos. Não é exatamente uma experiência "pós-morte"; é antes a experiência "fora do corpo", que é apenas a antecâmara para outras experiências muito mais extensas, seja da própria morte ou do que às vezes se chama "viagem astral" (que veremos mais adiante). Embora o estado "fora do corpo" possa ser chamado de "primeiro momento" da morte - se a morte realmente segue - é um erro grosseiro concluir com isso qualquer coisa sobre o estado "pós-morte", a menos que seja os fatos simples da sobrevivência e da consciência da alma após a morte, que quase ninguém que realmente acredita na imortalidade da alma nega de qualquer maneira. Além disso, pelo fato do estado "fora do corpo" não estar necessariamente vinculado à morte, devemos ser extremamente discernentes ao filtrar as evidências fornecidas por experiências extensas neste reino; em particular, devemos perguntar se as visões do "céu" (ou "inferno") que alguns estão experimentando hoje têm algo a ver com a verdadeira compreensão cristã do céu e do inferno, ou se são apenas algumas interpretações meramente naturais (ou demoníacas) do reino "fora do corpo".

       O Dr. Crookall - que tem sido o investigador mais minucioso neste campo até agora, aplicando a mesma cautela e preocupação por detalhes que caracteriza seus livros anteriores sobre as plantas fósseis da Grã-Bretanha - reuniu muito material sobre experiências do "paraíso" e "hades". Ele as considera como experiências naturais e virtualmente universais no estado "fora do corpo", e as distingue da seguinte maneira: "Aqueles que deixaram seus corpos naturalmente tendiam a vislumbrar condições brilhantes e tranquilas ("paraíso"), uma espécie de terra gloriosa; enquanto (aqueles que foram) expulsos à força... tendiam a se encontrar em condições relativamente obscuras, confinadas, como sonhos que correspondem ao "hades" dos antigos. No primeiro encontrou muitos ajudantes (incluindo os amigos e parentes "mortos" já mencionados); o último, às vezes, encontrou desencarnados que o impedia" (p. 14-15). As pessoas que possuíam o que o Dr. Crookall chama de "constituição corporal mediúnica" passam invariavelmente em primeiro lugar por uma região negra e nebulosa do "hades" e então por uma região de luz radiante que parece o paraíso. Este "paraíso" é descrito de forma variada (tanto por médiuns como não-médiuns) como "o cenário mais bonito já visto", "uma cena de beleza espantosa - um vasto jardim como um parque e a luz de lá é uma luz que nunca foi vista no mar ou na terra", "paisagem encantadora" com "pessoas vestidas de branco" (p. 117), "a luz torna-se intensa", "toda a terra estava brilhante" (p.127) .

       Para explicar essas experiências, Dr. Crookall admite a existência de uma "terra total" que compreende, no nível mais baixo, a terra física que conhecemos no cotidiano, cercada por uma esfera não-física interpenetrante com faixas de "hades" e "paraíso" nos limites inferior e superior (p. 87). Isto é, aproximadamente, uma descrição do que na linguagem ortodoxa é conhecido como o reino aéreo dos espíritos caídos do sub-céu, ou o "plano astral" da teosofia; as descrições ortodoxas desse reino, no entanto, não fazem distinções "geográficas" entre "superior" e "inferior" e enfatizam os enganos demoníacos que são parte integrante desse reino. O Dr. Crookall, pesquisador secular, nada sabe sobre esse aspecto do reino aéreo, mas ele testemunha, do ponto de vista "científico", um fato extremamente importante para a compreensão das experiências "pós-morte" e "fora do corpo": o "paraíso" e "inferno" visto por pessoas nestas experiências são apenas partes (ou aparências) do reino aéreo dos espíritos e não tem nada a ver com o verdadeiro céu e o inferno da doutrina cristã, que representam as eternas moradias das almas humanas (e de seus corpos ressuscitados), bem como dos espíritos imateriais. As pessoas no estado "fora do corpo" não são livres para "vagar" no verdadeiro céu e no inferno, que são abertos às almas apenas pela vontade expressa de Deus. Se alguns "cristãos" na "morte" vêem quase imediatamente uma "cidade celestial" com "portões perolados" e "anjos", é apenas uma indicação de que o que se vê no reino aéreo depende, em certa medida, das próprias experiências e expectativas do passado; mesmo os hindus moribundos vêem seus templos e seus "deuses". As verdadeiras experiências cristãs do céu e do inferno (como veremos no próximo capítulo) são de dimensões completamente diferentes.