terça-feira, 31 de dezembro de 2019

Uma Proposta Razoável sobre o Inferno (Clark Carlton)

Vídeo com legendas: 


 Transcrição do áudio:
Fé e Filosofia: Reflexões sobre a Ortodoxia e a Cultura 
Clark Carlton é o autor da série The Faith (The Faith, The Way, The Truth, The Life), publicada pela Regina Orthodox Press. Os seus livros têm sido fundamentais para ajudar muitos a encontrar o caminho para a Ortodoxia. Neste podcast, Clark comentará semanalmente sobre questões de fé, filosofia e Ortodoxia.
"Venham, vamos refletir juntos", diz o Senhor. "Embora os seus pecados sejam vermelhos como escarlate, eles se tornarão brancos como a neve; embora sejam rubros como púrpura, como a lã se tornarão. Se vocês estiverem dispostos a obedecer, comerão os melhores frutos desta terra." (Isaías 1:18,19)

Olá, e bem-vindo mais uma vez ao Fé e Filosofia. O tema de hoje é: "Inferno: Uma Proposta Modesta." A minha proposta é que acabemos com o "Inferno". Com a palavra, quero dizer. Poucas palavras criam mais problemas de interpretação, ou mais mal-entendidos, do que o uso dessa palavra em nossas traduções das Escrituras, da Liturgia e dos escritos dos Padres.

Por exemplo, o que queremos dizer quando cantamos nas Vésperas no sábado à noite que Cristo "destruiu o Inferno com o esplendor da sua divindade", ou que Cristo "libertou todos os homens do Inferno"? Estamos nós apoiando a salvação universal? Várias pessoas podem muito bem chegar a essa conclusão. Ou então, consideremos o maravilhoso livro de Kyriacos Markides, Montanha do Silêncio; ele tem um capítulo intitulado "Inferno" no qual ele conta a história de um asceta no Monte Athos que, bastante literalmente, ora por seu pai espiritual para que ele saia do Inferno. Posso dizer-lhe que, como evangélico, esse capítulo teria sido suficiente para me fazer desprezar o resto do livro, por mais simpático que eu fosse com o resto dos ensinamentos do Pe. Máximo.

O problema aqui é que a palavra inglesa inferno é usada para traduzir uma variedade de palavras diferentes usadas nas Escrituras Gregas; palavras que não têm o mesmo significado em seus contextos originais. O resultado é que invariavelmente interpretamos textos bíblicos e patrísticos com ideias associadas à palavra inglesa inferno que nada têm a ver com o que o autor original estava tentando transmitir. Comecemos pelo Novo Testamento Grego e depois avancemos para as nossas traduções dos nossos dias.

No Novo Testamento, várias palavras diferentes são usadas para se referir à vida após a morte e ao estado da punição final. No entanto, os dois termos primários são Hades - que é o equivalente grego do Sheol hebraico - e Geena - que é simplesmente uma transliteração grega da palavra aramaica para um depósito de lixo ardente fora de Jerusalém. É geralmente aceito entre os estudiosos do Novo Testamento que estas duas palavras têm significados muito diferentes no Novo Testamento. Hades como o Sheol é simplesmente a morada dos mortos, onde habitam os justos e os injustos. O Judaísmo posterior subdividirá o Sheol no "seio de Abraão" e o Sheol propriamente dito - como ilustrado pela parábola do nosso Senhor sobre Lázaro e o homem rico (Lucas 16.18-31).

É ao Hades ou Sheol que nosso Senhor desceu para amarrar o homem forte e conduzir os justos de eras passadas à liberdade. Quando você ouve a palavra Inferno usada no Octoechos, no Triodion e no Pentecostarion, ela está quase sempre traduzindo a palavra grega Hades. Uma tradução melhor seria esta: "Quando desceste à morte ou à vida imortal, destruíste o Hades com o esplendor da tua divindade. E quando das profundezas ressuscitaste os mortos, todos os poderes do céu clamaram: "Ó Doador da Vida, Cristo nosso Deus, Glória a Ti".

Com exceção de um caso, que parece ser metafórico, a palavra Geena aparece apenas nos Evangelhos sinópticos. Ali, a palavra é usada exclusivamente para se referir ao estado de condenação final dos ímpios que ocorre após a ressurreição e o Juízo Final. Assim, a palavra inglesa Inferno é usada para traduzir dois termos muito diferentes que denotam duas realidades muito diferentes.

Agora é aqui que fica interessante. "Hell" [palavra inglês para inferno] ou o Hêle no inglês medieval é, na verdade, a tradução correta de Hades. "Hell" era a deusa do submundo na mitologia escandinava, assim como Hades era o deus do submundo para os gregos. Assim, tecnicamente falando, a Madre Maria e o Bispo Kallistos estavam corretos ao traduzir o Hades como o Inferno no Triodion Quaresma. O problema, porém, é que quando as pessoas modernas ouvem a palavra "inferno", elas não pensam na morte enquanto morada sombria de todos os mortos, mas na punição eterna. Eles imaginam fogo, enxofre e demônios correndo por aí com tridentes. Em outras palavras, as pessoas pensam no que nosso Senhor quis dizer quando ele usou a palavra Geena.

Agora a questão é: como é que a palavra no inglês medieval para Hades se tornou sinônimo do conceito da Geena?- um conceito, aliás, que parece ser único ao cristianismo. A resposta simples é que quando as Escrituras vieram a ser traduzidas para o vernáculo no ocidente medieval, a palavra latina para Hades, Infernus (ou às vezes Inferus) e a palavra aramaica transliterada Geena tornaram-se completamente confundidas, de modo que os termos Infernus e Geena foram usados de forma intercambiável. Inicialmente, autores latinos distinguiam Infernus e Geena tal como as traduções latinas da Bíblia haviam feito. Agostinho, por exemplo, foi muito cuidadoso no uso dessas palavras. E, no entanto, desde cedo, havia uma tendência de importar a noção de punição para o conceito de Infernus. Vemos isso já em Tertuliano, e Cipriano de Cartago na verdade usou a palavra Geena para se referir à morada dos mortos - mesmo antes do Juízo Final. Gregório o Grande falou do Homem Rico estando na Geena, embora a Vulgata, seguindo o grego original, use a palavra Infernus. Quando chegamos ao Venerável Beda, os termos são usados de forma intercambiável - qualquer sentido de que se referem a realidades diferentes já foi perdido.

Isso explica porque todas as traduções da Escritura anteriores ao século 20, desde as primeiras traduções do Saltério para o inglês medieval, até as traduções de Wycliffe, e, claro, a KJV e o Livro de Oração Comum, todas elas traduzem Hades e Geena usando uma única palavra: Inferno. Para os tradutores, Hades e Geena significavam a mesma coisa, então eles usaram a palavra mais óbvia em sua própria língua para traduzir os dois termos. O problema é que o conceito de Inferno como o estado de morte, ou, mais literalmente, a morada dos mortos, foi completamente perdido. E por causa disso, somos incapazes de interpretar corretamente o Novo Testamento, nossa hinodia litúrgica, ou os escritos dos Padres. Ficamos com uma polaridade muito forte: ou os mortos vão para o céu para estar com Cristo, ou se unem ao diabo no inferno para sofrer a justa punição por toda a eternidade. Nesta visão, Jesus vem para nos salvar - ou pelo menos a alguns de nós - da danação eterna e não da morte.

Mas onde é que a descida de Cristo ao Hades se encaixa neste quadro? Ou a Sua ressurreição? Qual é o propósito do Juízo Final, se os pecadores já estão sofrendo os tormentos da Geena? E como é que podemos justificar a oração pelos mortos quando os abençoados já estão desfrutando da perfeita bem-aventurança, e os demais estão irremediavelmente condenados? Bem, eu vou responder a essas perguntas na próxima semana. Entretanto, o sábado antes de Pentecostes é o sábado das almas - um dia especialmente dedicado à oração pelos mortos - e nas vésperas ajoelhadas de Pentecostes, pedimos a Deus, de joelhos, pela Sua misericórdia para com todos os mortos, de todas as épocas. Quero encorajá-los a ouvir atentamente essas orações. Ah, e a propósito, se a tradução usada pelo seu padre usa a palavra Inferno, considere Hades.

E agora que o nosso grande Deus e salvador Jesus Cristo, o Vencedor da morte, que ascendeu ao Pai elevando a nossa humanidade com Ele e a colocou à direita do Pai, através das intercessões de São Inocêncio do Alasca, e do abençoado ancião Sofrônio Sakharov, tenha piedade de todos nós e nos conceda uma rica entrada no Seu Reino.

Fonte: https://www.ancientfaith.com/podcasts/carlton/hell_a_modest_proposal


Nota do blog: a continuação dessa série pode ser lida aqui: Purgatório

quinta-feira, 26 de dezembro de 2019

Maria teve outros filhos?

Resumo: Os cristãos discordam sobre essa questão. Alguns cristãos (evangélicos) acreditam que sim, Maria teve outros filhos depois que Jesus nasceu. Outros (Católicos Romanos e Ortodoxos) acreditam que Maria teve apenas um filho (Jesus) e não teve de fato relações conjugais com José. Os primeiros protestantes (Lutero, Calvino) também acreditavam que Maria nunca teve outros filhos depois que Jesus nasceu. Este artigo discute por que os cristãos discordam sobre o que parece ser uma pergunta simples.

Parece uma pergunta simples e básica: "Maria teve outros filhos?" É quase a mesma pergunta que "Jesus teve irmãos e irmãs uterinos?"

Para muitos cristãos, a resposta é óbvia, porque há várias referências a pessoas chamadas "irmão(s)" e "irmãs" de Jesus, por exemplo em Marcos 6:3:
Não é este o carpinteiro, filho de Maria, e irmão de Tiago, e de José, e de Judas e de Simão? e não estão aqui conosco suas irmãs? E escandalizavam-se nele.
Este versículo parece resolver as coisas para muitos leitores da Bíblia: Jesus tinha irmãos e irmãs, o que significa que Maria teve outros filhos depois que Jesus nasceu. Alguns também apontam para Mateus 1:25:
E [José] não a conheceu até que deu à luz seu filho, o primogênito; e pôs-lhe por nome Jesus.
Isto parece tão claro, pelo menos na tradução inglesa, que muitos cristãos (principalmente evangélicos) se perguntam quem em seu perfeito juízo quereria contestar isto.

No entanto, os cristãos Ortodoxos e Católicos Romanos discordam fortemente. Eles apontam para muitos versículos que sustentam o ponto de vista oposto, e insistem que a palavra grega "adelphos / adelphhoi / adelphe" não pode significar "meio-irmão uterino", como alguns cristãos insistem. De fato, eles podem apontar (com razão) que a palavra grega "adelphos / adelphoi / adelphe" nunca significa "meio-irmão uterino" no Antigo Testamento, e que é preciso olhar para todos os dados bíblicos (sobre José, Tiago, etc), bem como o testemunho da Igreja Primitiva para identificar corretamente quem realmente eram essas pessoas.

No final, há 3 pontos de vista sobre a questão:

- A visão helvidiana (de que Maria teve outros filhos depois de Jesus, com José) é defendida pela maioria dos protestantes e evangélicos

- A visão hieronimiana (que recebe o nome de São Jerônimo), de que os "adelfois" eram primos de Jesus, é defendida pela maioria dos Católicos Romanos.

- A visão epifaniana (que recebeu o nome de São Epifânio), de que estes "adelfois" eram meio-irmãos (adotivos) de Jesus (nascidos de José antes de ser noivo de Maria) é a visão da Igreja Ortodoxa.

Nota: Para um estudo detalhado, veja a discussão recente sobre a questão no livro "Aiparthenos | Ever-Virgin? Understanding the Orthodox Catholic Doctrine of the Perpetual Virginity of Mary, the Mother of Jesus, and the Identity of James and the Brothers and Sisters of the Lord"

Neste livro, 15 argumentos pouco conhecidos são apresentados a favor da visão tradicional (mais antiga) de que Maria tinha apenas um filho: Jesus (e também que José era um homem mais velho e viúvo) [1]. Aqui está a lista de argumentos a favor da visão epifaniana tradicional de forma resumida:

1. Somente Jesus é chamado filho de Maria (de fato, o filho de Maria); ninguém mais.
2. A primeira vez que o Novo Testamento usa a palavra adelphoi ("irmãos") significa na verdade tios e parentes próximos, não irmãos no sentido pleno da palavra inglês [e português] irmãos.
3. A visão Ortodoxa é a visão ensinada por todos os escritores cristãos dos primeiros 4 séculos que escreveram sobre (exceto por Tertuliano que deixou a Igreja).
4. Não há casos de adelphoi significando meio-irmãos do lado da mãe em todo o Antigo Testamento (Septuaginta), apenas como irmãos plenos ou meio-irmãos com o mesmo pai.
5. A entrega de Maria a João por Jesus na cruz implica que não havia outros filhos para cuidar da mãe.
6. A perfuração da alma de Maria indica a maior tristeza expressa no Antigo Testamento, que é a perda de um filho único.
7. A diferença de idade entre Jesus e o seu adelphos Tiago vai no sentido de Tiago ser mais velho do que mais jovem do que Jesus.
8. O "primogênito" aplicado a Jesus é uma referência ao seu status como aquele que abre a madre na Lei de Moisés [Êxodo 13:2], não à existência de outros irmãos futuros.
9. "Até que ela deu à luz" em Mateus 1:25 tem a ver com a aplicação cuidadosa da profecia de Isaías 7:14 por Mateus, não com a possível futura mudança (pelo menos 40 dias depois) do relacionamento casto entre Maria e José.
10. O fato de que José estava obviamente morto no momento em que Jesus foi batizado sustenta a antiga tradição de que ele era um homem mais velho (pelo menos na casa dos 50 anos) no momento em que ele tomou Maria como esposa.
11. A exclamação de Maria "como acontecerá isso" [Lucas 1:34] só faz sentido no contexto de uma jovem mulher que fez um voto (Números 30-31) de virgindade.
12. A profecia de Zacarias 12 anuncia um pranto [luto] por um filho único ["E prantearão sobre ele, como quem pranteia pelo filho unigênito; e chorarão amargamente por ele" Zacarias 12:10]. 
13. O milagre singular da ressurreição do filho único da viúva de Naim faz mais sentido se Maria fosse também uma viúva com um filho único (Jesus). 
14. A tipologia [simbolismo] de Maria como Arca da Nova Aliança em Lucas 1 também implica que nenhum homem jamais seria autorizado a tocá-la.
15. A tipologia de Maria como a Nova Eva tão fortemente ensinada pelos escritores do segundo século Justino e Irineu também implica que Maria (ao contrário de Eva) manteve sua virgindade. 
16. A discussão de São Paulo sobre os noivos que permanecem castos faz sentido se Maria e José fossem o modelo deste tipo de relacionamento, tendo em mente que a Bíblia só a chamou de noiva, mesmo depois do seu casamento com José.
17. O grande estudioso Richard Bauchkham (protestante), especialista na identidade do "irmão do Senhor", sustenta a visão epifaniana tradicional e observa que Jesus ser chamado "filho de Maria" em Marcos é o que se chama de nome metronímico, que na bíblia distingue um filho nascido de uma mulher particular, em contraste com outras crianças nascidas (ou adotadas) pelo mesmo pai, mas de uma mulher diferente.

Fonte: https://www.eurekafirstchurch.com/did-mary-have-other-children/




Ícone "A fuga para o Egito": Nos três ícones acima, além de Maria, Cristo e José, é retratado Tiago, o Irmão do Senhor (o irmão mais velho de Jesus, filho do viúvo José, de seu casamento anterior). 

***

[1]  O título de “Noivo” é dado pela relação que [São José] tinha com a Virgem Maria, que era expressão da relação que tinha com Deus. Para compreender a relação que ele tinha com a Virgem, devemos estudar quem era José pouco antes de conhece-la e onde ela estava quando foi entregue a ele.

Maria vivia de alguma forma dedicada ao Templo, provavelmente prestando serviços de tecelagem como outras jovens faziam. Tornando-se moça por volta dos 14 anos, pelos costumes da época, tinha que ser entregue em casamento para alguém.

Dizem os primeiros historiadores da Igreja que Maria fizera um voto de permanecer virgem a vida toda, o que gerava um problema pois, tendo atingido a adolescência, tinha que ser desposada. Ao mesmo tempo, os sacerdotes do Templo se admiravam com a devoção sincera da mocinha e não queriam passar por cima do seu voto, o que seria inevitável se ela se casasse. Naquele tempo ainda não existia a instituição das freiras, que era a clara inclinação da jovem Maria.

A solução encontrada pela sua santa família foi precisamente entregá-la em noivado sem consumação do matrimônio a um viúvo idoso, igualmente religioso e que compreendesse a situação, que se comprometeria a cuidar dela pelo pouco que restasse de sua vida, de modo que ela pudesse ser fiel a seu voto e ao mesmo tempo atendesse às prerrogativas sociais de uma época sem mosteiros e que exigiam que ela se casasse.

Segundo os registros, José era um homem de idade extremamente avançada, ao contrário do jovem que filmes e certas imagens sugerem. De fato, a tradição de mostrar José como um idoso nas imagens era comum ao Ocidente e o Oriente até o século 17, quando na Espanha começam a aparecer imagens de um José mais jovem. Até ali, em toda a Cristandade, a Sagrada Família era a família de Nossa Senhora, constituída por Santa Ana, São Joaquim e sua santa filha, a Virgem Maria. Eles eram o exemplo de família devota e piedosa, cuja educação correta conduz os filhos à santidade. Já Santa Maria era vista à luz de sua condição especial de Virgindade Devota e Miraculosa Mãe, e São José como devotado a Maria e a Deus.[...] [São José] era viúvo de um casamento de aproximadamente 40 anos, com uma mulher chamada Salomé, que era prima de João Batista apesar da diferença de idades, e que dera a José sete filhos: Tiago, Judá, Simão e José eram os filhos e Salomé, Ester e uma terceira cujo nome é incerto, eram as filhas. Tiago é o que seria mais tarde chamado Irmão do Senhor e seria o primeiro bispo de Jerusalém e autor da Liturgia de S. Tiago. Esta Salomé, filha de José, seria mais tarde a mãe de um outro Tiago, nomeado provavelmente em homenagem ao tio, e que era irmão de São João Teólogo, autor do quarto evangelho e portanto sobrinho de Jesus.

Fonte: http://vidaortodoxa.blogspot.com/2015/12/a-vida-do-justo-sao-jose-o-noivo.html


Ícone da Natividade:  O Justo José é retratado longe de Jesus e da Theotokos, no canto inferior esquerdo. Isto porque ele não estava envolvido no milagre da Encarnação do Filho de Deus, mas era o protetor de Maria e de Jesus. O velho homem que lhe fala representa o diabo trazendo novas dúvidas a José. [...] Na pessoa de José, o ícone revela não só o seu drama pessoal, mas o drama de toda a humanidade, a dificuldade de aceitar aquilo que está para além da razão, a Encarnação de Deus. Fonte:  https://orthodoxwiki.org/Nativity_icon

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Nota do tradutor:  Em relação ao "ícone" da Sagrada Família, fruto da influência ocidental, o Arcebispo Crisóstomo escreve:
Cristo Menino é corretamente retratado, não sozinho com São José, mas sozinho com a sua Mãe, sublinhando assim o dogma de que Ele é "um Filho sem um pai, que foi gerado do Pai sem uma mãe antes dos tempos". [3] Em última análise, se fossemos associar São José à paternidade, seria tecnicamente com pais que são viúvos celibatários! 
De fato, para proteger o fiel de uma compreensão imprópria do seu papel paternal e da sua relação com a Theotokos, a iconografia tradicional Ortodoxa minimiza a figura de São José (sem, evidentemente, denegrir a sua pessoa). Por exemplo, no Ícone da Natividade de Cristo, como comenta o Professor Constantino Cavarnos, "ele não é mostrado na parte central da composição, como a Theotokos e o Menino, mas longe, num canto, para enfatizar o relato bíblico e o ensinamento da Igreja de que Cristo nasceu de uma Virgem". [4]  Leonid Ouspensky e Vladimir Lossky, em seu trabalho fundamental sobre teoria iconográfica, fazem uma observação semelhante: "Outro detalhe enfatiza que na Natividade de Cristo 'a ordem da natureza é vencida' - este é José. Ele não faz parte do grupo central do Menino e Sua Mãe; ele não é o pai e está explicitamente separado deste grupo". De igual modo, em ícones com temas semelhantes, como a Apresentação do Senhor ou a Fuga para o Egito, a iconologia Ortodoxa não entende São José como a cabeça de uma espécie de "Sagrada Família"; pelo contrário, ele é visto como o guardião da Theotokos e do seu Divino Filho ordenado pela Providência. A sua humilde aceitação e o cumprimento virtuoso deste papel são precisamente os pontos centrais da sua veneração pela Igreja ortodoxa. 
Esta simples e Ortodoxa caracterização de São José reflete o espírito dos Padres Orientais, que são lacônicos em suas referências a ele. E embora os Padres Ocidentais, em contraste, evidenciam uma maior preocupação com a sua pessoa, a principal preocupação deles é, no entanto, a mesma que a dos Padres Orientais: isto é, a defesa da Virgindade Perpétua da Mãe de Deus. Assim, Santo Agostinho de Hipona, por exemplo, embora observando que "José... poderia ser chamado pai de Cristo, por ser, em certo sentido, o esposo da mãe de Cristo...", [6] qualifica esta admissão insistindo que, em sua relação conjugal, "não havia conexão corporal". [7] Em outro lugar, ele desenvolve sobre este ponto: "E por causa desta fidelidade conjugal [isto é, o celibato mútuo deles] ambos são merecidamente chamados 'pais' de Cristo (não só ela como Sua mãe, mas ele como Seu pai, como sendo esposo dela), ambos tendo sido tais em mente e propósito, embora não na carne. Mas enquanto um era Seu pai apenas em propósito, e o outro Sua mãe também na carne, ambos foram, apesar de tudo, apenas os pais de Sua humildade, não de Sua sublimidade; de Sua fraqueza [II Coríntios 13: 4], não de Sua divindade. " [8] É nesse sentido, então, que devemos entender a afirmação bíblica: "E [Ele] era-lhes sujeito", [9] a respeito do relacionamento de Cristo com São José e Sua mãe.[...] 
3. Dogmatikon, Tone 3.
4. Constantine Cavarnos, Guide to Byzantine Iconography, Vol. I (Boston: Holy Transfiguration Monastery, 1993), p. 134.
5. Leonid Ouspensky and Vladimir Lossky, The Meaning of Icons, trans. G.E.H. Palmer and E. Kadloubovsky (Crestwood, NY: St. Vladimir’s Seminary Press, 1982), p. 160.
6. St. Augustin, "Reply to Faustus the Manichaean," trans. the Rev. Richard Stothert, rev. Albert H. Newman, in The Writings Against the Manichaeans and Against the Donatists,Vol. IV of A Select Library of the Nicene and Post-Nicene Fathers, 1st Ser., ed. Philip Schaff (Grand Rapids, MI: Wm. B. Eerdmans Publishing Co., 1979), p. 159.
7. Ibid., p. 315.
8. Idem, "On Marriage and Concupiscence," trad. Peter Holmes and the Rev. Robert Ernest Wallis, rev. Benjamin B. Warfield, in Anti-Pelagian Writings, Vol. V of A Select Library of the Nicene and Post-Nicene Fathers, 1st Ser., ed. Philip Schaff (Grand Rapids, MI: Wm. B. Eerdmans Publishing Co., 1978), p. 268.
9. São Lucas 2:51.
Fontehttp://orthodoxinfo.com/phronema/icon_innovate.aspx






sábado, 7 de dezembro de 2019

Sobre os títulos do Bispo de Roma: Papa, Vigário de Cristo e outros

Os títulos "Papa", "Servus servorum Dei" e "Pontifex Maximus", entre outros, não eram inicialmente exclusivos dos Bispos de Roma, e no uso destes títulos podemos ver a história da ascensão da influência papal.

E. Denny tem a seguinte nota, "Sobre o título 'Papa'":
Nos primeiros séculos, o título "Papa" era dado aos Bispos sem restrições, e de modo algum era considerado como pertencendo exclusivamente ao Bispo de Roma. Mesmo no Ocidente, onde o Bispo Romano obtinha uma posição tão proeminente, os Bispos simples eram chamados de Papas, certamente até a segunda metade do século VI. Por exemplo, Fortunato de Poitiers dirige uma Epístola a Félix, Bispo de Nantes, Domino Sancto et Apostolica sede dignissimo domno et Patri Felici Papæ,[1] e a partir de um relato dado por Gregório de Tours de uma certa disputa com referência à nomeação para a Sé de Xaintes parece que tanto Bordéus como Tours eram chamadas "Sedes Apostolica" e seus Bispos "Papæ" no mesmo século [2]. Clovis, em 508 d.C., dirigiu-se aos bispos gálicos como "Papæ "[3]. Alguns anos antes, Sidônio Apollinaris chamou os bispos franceses, "Dominus Papa" [4] . Santo Agostinho era frequentemente chamado "Papa" pelos seus correspondentes. [5] São Jerônimo era um dos que assim se dirigiam a ele, e ele também assim chama Chromatius, Bispo de Aquileia, Teófilo, Bispo de Antioquia, e outros.[6] 
Para os Bispos de Alexandria este título parece ter pertencido antes de ser usado por outros Prelados. Não só Santo Atanásio [7] e Ário chamam Alexandre, que se encontrava nessa Sé, Papa, mas mesmo antes Dionísio o Grande fala do seu predecessor Heraclas como "o abençoado Papa Heraclas".[8] No Oriente, parece ter sido de fato considerado como o título especial do ocupante da Sé de São Marcos, e ainda é por eles mantido até hoje, [9] sendo o seu nome atual "Papa e Patriarca da grande cidade de Alexandria e Juiz OEcuménico".[10] 
Entre os Bispos ocidentais dos primeiros séculos a quem o título foi dado havia São Cipriano, que é chamado pelos Presbíteros de Roma nos discursos das suas Epístolas "Papa Cipriano,"[11] e nas próprias cartas de "abençoado Papa,"[12] e "mais abençoado e glorioso Papa".[13] Os Confessores também o chamaram assim também por escrito a ele.[14] Esta evidência é notável, e a sua data, sendo tão próxima da morte de Heraclas, que foi, como acabou de ser dito, assim chamado, parece mostrar que o título, que não era então aplicado aos Bispos de Roma (a primeira instância em que é assim usado é a de São Marcelino, bem no final do mesmo século, 296 - 304 d.C.), era o título comum dos Bispos de Alexandria e Cartago.O Arcebispo Benson pensa até mesmo que há um exemplo de um Bispo desta última Sé que era assim chamado antes do caso de Heraclas, Bispo da Sé de Alexandria. Ele considera que Tertuliano, em sua De Pudicitia, c. 13, chama ao Bispo de Cartago 'Benedictus Papa',[15] 'que é a própria palavra usada para Cipriano na Ep. viii. I.’ O Arcebispo considera que Tertuliano dirigiu sua De Pudicitia a um Bispo de Cartago, e que foi 'a muito condenada presunção de autoridade do Episcopus Episcopum por um antecessor que fez com que Cipriano no Concílio ficasse tão ansioso por negar a aparência disso'.[16] O título pareceria, portanto, ser de origem africana, pelo menos no que diz respeito ao Ocidente. 
Gregório VII. foi o primeiro a proibir formalmente o uso deste título ao dirigir-se a qualquer outro dignitário da Igreja, no Concílio de Roma, 1073 d.C., 'que o nome do Papa esteja sozinho em todo o mundo cristão'.17 O fato de ter feito isto, e a consequente restrição do uso do título aos Bispos Romanos, é um exemplo da forma como esses Bispos arrogaram para si mesmos títulos que antes eram direito de qualquer membro do Episcopado. 
[Notas]
1. P.L. lxxxviii. 119.
2. S. Greg., Episc. Turonensis, Historia Francorum, lib. iv. xxvi.; P.L. lxxi. 290.
3. Mansi, viii. 346.
4. Sidonius Apollinaris, Epp. i., ii., iii., v., vi., vii., etc.; P.L. lviii. 551 et seq.
5. S. August., Epp. lxviii., lxxxi., cxix., ccxvi.; P.L. lxxxiii. 237, 275, 449, 975.
6. S. Hieron., Epp. lxxxi., lxxxv., lxxxviii.; P.L. xxii. 735, 754, 758.
7. Theodoret, Hist. Eccl., i. 8; P.G. lxxxii. 1041.
8. Eusebius, Hist. Eccl., vii. 7; P.G. xx. 643.
9. Neale, History of the Eastern Church, General Introduction, vol. i. p. 113.
10. Orthdod. Confess. Eccl. Orient., p. 10. Lond., 1895.
11. S. Cyprian, Epp. xxx., xxxi.; Hartel, 549, 557.
12. Ep. viii., ibid., 485.
13. Ep. ad Cyprianum Papam, Presbyterorum … Romæ consistentium, Ep. xxx. 8, ibid., 556.
14. Ep. Universorum Confessorum Cypriano Papati inter Epp. S. Cypriani, Ep. xxiii., ibid., 536.
15. Vide infra, n. 1234.
16. Archbishop Benson, op. cit., p. 31.
17. Smith and Cheetham, Dict. of Christian Antiq., sub. v. ‘Papa,’ vol. ii. 1664. 
(Edward Denny, Papalism, Notes, Note 22, n. 312., 1195. – 1198., pp. 624 – 626)

Citamos a totalidade do artigo da Enciclopédia Católica sobre o título "Servus Servorum Dei", ou "Servo dos Servos de Deus": 
Um título dado pelos Papas a si próprios em documentos de nota. Gregório Magno foi o primeiro a usá-lo extensivamente, e foi imitado pelos seus sucessores, embora não invariavelmente até ao século IX. João o Diácono afirma (P. L., LXXV, 87) que Gregório assumiu este título como uma lição de humildade para João o Jejuador. Antes da controvérsia com João (595), dirigindo-se a São Leandro em abril de 591, Gregório empregou esta frase, e mesmo já em 587, segundo Ewald ("Neues Archiv für ältere deutsche Geschichtskunde", III, 545, a. 1878), enquanto ainda era diácono. 
Uma bula de 570 começa: "Joannes (III) Episcopus, servus servorum Dei. Bispos movidos pela humildade, por exemplo, São Bonifácio [Jaffe, "Monum. Mogun" em "Biblioth". Rer. Germ.", III (Berlim, 1866), 157, 177 etc.], e os arcebispos de Benevento; ou por orgulho, por exemplo, os arcebispos de Ravenna até 1122 [Muratori, "Antiq. Ital", V (Milão, 1741), 177; "Dissertazioni", II, disser. 36]; e mesmo governantes civis, e.g. Afonso II, Rei de Espanha (b. 830), e Imperador Henrique III (b. 1017), aplicaram o termo a si mesmos. Desde o século XII é usado exclusivamente pelo papa.  
(Andrew B. Meehan, Servus Servorum Dei, The Catholic Encyclopedia, Vol. XII., p. 737, Nova Iorque, NY: Robert Appleton Company, 1912.)
A Enciclopédia Católica escreve sobre os títulos do Papa: 
O título Papa, no passado usado com muito mais liberdade (ver abaixo, secção V), é atualmente usado exclusivamente para designar o Bispo de Roma, que, em virtude da sua posição de sucessor de São Pedro, é o pastor líder de toda a Igreja, o Vigário de Cristo na terra. ...  
V. Primazia da honra: títulos e insígnias. - Alguns títulos e insígnias distintivas de honra são atribuídos apenas ao Papa; estes constituem aquilo a que se chama o seu primado de honra. Estas prerrogativas não são, como o são os seus direitos jurisdicionais, ligadas jure divino ao seu ofício. Elas cresceram no curso da história e são consagradas pelo uso de séculos;  no entanto, elas não são incapazes de modificação.

(1) Títulos. - Os títulos mais notáveis são Papa, Summus Pontifex, Pontifex Maximus, Servus servorum Dei. O título Papa foi, como já foi dito, usado com muito mais liberdade no passado. No Oriente, foi sempre usado para designar simples sacerdotes. Na Igreja Ocidental, porém, parece, desde o início, ter sido restringido aos Bispos (Tertuliano, "De Pud." xiii). Foi aparentemente no século IV que começou a tornar-se um título distintivo do Pontífice Romano. O Papa Siricius (d. 398) parece usá-lo assim (Ep. vi em P.L., XIII, 1164), e Ennodius de Pavia (d. 473) emprega-o ainda mais claramente neste sentido numa carta ao Papa Simmaco (P.L., LXIII, 69). No entanto, até o sétimo século, São Gall (d. 640) dirige-se a Desidério de Cahors como papa (P.L., 152 LXXXVII, 265). Gregório VII por fim prescreveu que o título deve ser limitado aos sucessores de Pedro. Os termos Pontifex Maximus, Summus Pontifex, foram sem dúvida usados originalmente com referência ao sumo sacerdote judeu, cujo lugar considerava-se que os bispos cristãos ocupavam, cada um na sua própria diocese (I Clem., xl). Quanto ao título Pontifex Maximus, especialmente na sua aplicação ao Papa, havia ainda uma reminiscência da dignidade atribuída a esse título na Roma pagã. Tertuliano, como já foi dito, usa a frase do Papa Calisto. Embora as suas palavras sejam irônicas, provavelmente indicam que os Católicos já a aplicavam ao Papa. Mas também aqui os termos eram menos limitados em seu uso. O termo Pontifex summus foi usado em relação ao bispo de alguma sé importante em relação aos de menor importância. Hilário de Arles (d. 449) é assim chamado por Eucherius de Lyons (P.L., L, 773), e Lanfranc é chamado "primas et pontifex summus" pelo seu biógrafo, Milo Crispin (P.L., CL, 10). O Papa Nicolau I é chamado "summus pontifex et universalis papa" pelo seu legado Arsenius (Hardouin "Conc.", V, 280), e exemplos subsequentes são comuns. Depois do século XI, parece ser usado apenas pelos papas. A frase Servus servorum Dei torna-se então tão completamente um título papal que em uma bula onde a frase estivesse faltando seria considerada não autêntica. No entanto, esta designação também já foi aplicada a outros. Agostinho ("Ep. ccxvii a. d. Vitalem" em P.L XXXIII, 978) intitula-se "servus Christi et per Ipsum servus servorum Ipsius". Desidério de Cahors fez uso dela (Thomassin, "Eclesiæ nov. et vet. disc.", pt. I, I. I., c. iv, n. 4): assim também São Bonifácio (740), o apóstolo da Alemanha (P.L., LXXIX, 700). O primeiro dos papas a adotá-la foi aparentemente Gregório I; ele parece ter feito isso em contraste com a reivindicação feita pelo Patriarca de Constantinopla ao título de bispo universal (P.L., LXXV, 87). A limitação do termo apenas ao papa começou no século IX.  
(George H. Joyce, Pope, The Catholic Encyclopedia, Vol. XII., pp. 260 – 270, New York, NY: Robert Appleton Company, 1912.)
A Enciclopédia Católica tem o seguinte artigo sobre "Dei gratia; Dei et Apostolicæ Sedis gratia" ou "Pela graça de Deus; Pela graça de Deus e da Sé Apostólica": 
[A] Fórmula acrescentada aos títulos de dignitários eclesiásticos. A primeira (Dei gratiâ Episcopus) é usada nessa forma ou em certos equivalentes desde o século V. Entre as assinaturas dos Concílios de Éfeso (431) e Calcedônia (451) encontram-se nomes aos quais se acrescentam: Dei gratia, per gratiam Dei, Dei miseratione Episcopus (Mansi, Sacr. Conc. Coll., IV, 1213; VII, 137, 139, 429 sq.). Embora posteriormente tenha sido empregada ocasionalmente, só se tornou predominante no século XI. A segunda forma (Dei et Apostolicæ Sedis gratiâ Episcopus) é a atual desde o século XI, mas entrou em uso geral pelos arcebispos e bispos apenas desde os séculos XII e XIII. A primeira fórmula expressa a origem divina do ofício episcopal; a segunda mostra a união dos bispos e submissão deles à Sé de Roma. Governantes temporais desde o rei Pepino, o Breve, no século VIII, também fizeram uso da primeira fórmula; a partir do século XV, foi empregada para significar soberania completa e independente, em contraste com a soberania conferida pela escolha do povo. Por esse motivo, os bispos de algumas partes do sul da Alemanha (Baden, Baviera, Würtemberg) não podem usá-la, mas devem dizer: Dei Miseratione et Apostolicæ Sedis gratia. 
(Francis J. Schaefer, Dei gratia; Dei et Apostolicæ Sedis gratia, The Catholic Encyclopedia, Vol. IV., p. 679, New York, NY: Robert Appleton Company, 1912.)

 Do livro Errors of the Latins (autor anônimo)

 * * * 

Vigário de Cristo

O título "Vigário de Cristo" era, tradicionalmente, pelo menos no Ocidente, aplicado a todos os bispos, antes do século 11 a 12.  No entanto, no Catolicismo Romano, eles acabaram interpretando incorretamente o título como se fosse aplicado apenas ao Papa, o que é, de fato, anti-histórico e uma interpretação falsa dos documentos patrísticos.

O fato de que o termo "Vigário de Cristo" era utilizado para referir-se a qualquer bispo era geralmente bem conhecido por muitos estudiosos sérios, como o clérigo Católico Romano, António Pereira de Figueiredo, e outros que, ainda que presos em um sistema heterodoxo, tinham o bom senso de perceber que era uma aplicação muito errônea para apenas um homem:
...os Santos Padres e Concílios emitiram a mesma opinião a respeito do Episcopado quando deram aos Bispos o amplo e magnífico título de Vigários de CRISTO: como por exemplo, são chamados pelos Padres do Sínodo de Meaux, em 845, "Todos nós somos Vigários de CRISTO, embora indignos"; e novamente os do Sínodo de Chiersi em 848, "Reverenciem os Pastores das Igrejas como Padres e Vigários de Cristo", para não citar o Papa S. Bento XVI. Gregório VII, e os dois Bispos de Chartres, S. Fulbert e S. Ivo, com muitos outros mencionados por Launoy em seu 2º livro, Ep. 2, N. 21, 22, 23 e 24. Tudo isso serve para mostrar a irracionalidade de Bellarmine, que se esforça para apropriar ao Romano Pontífice este título de Vigário de CRISTO, porque ele foi assim denominado no 2º Concílio Geral de Lyon, na França. Pois antes de Bingham, Baluze tinha notado, e antes de Baluze, Rigault, que mesmo no tempo de S. Cipriano, os Bispos eram chamados e reconhecidos como Vigários de CRISTO.  "Observe que mesmo no tempo de Cipriano, os Bispos eram chamados Vigários de CRISTO", diz Rigault, na Ep. 55 de Cipriano a Cornélio (que é o 59º na edição de Fell.) Mas como Baronius afirma que essa passagem em Cipriano deve ser entendida como do Papa, Bingham traz outra da Ep. 63 para Caecilius, onde Cipriano fala assim: "O Sacerdote que imita aquilo que CRISTO fez realmente cumpre o ofício de CRISTO." Ele cita as Constituições Apostólicas (que todos concordam que tenham sido conhecidas no século IV), Livro ii. cap. 26. "O Bispo é, depois de DEUS, deus sobre a terra: que o Bispo te presida como participante da dignidade de Deus", cita também o autor do livro intitulado "Quaestiones Veteris et Novi Testamenti", que está incluído nas obras de Santo Agostinho, cap.26. 127: "O Bispo de Deus deve ser mais puro que os outros homens, porque é Seu Vigário". Além disso, cita S. Basílio, cap. 22, das Constituições Monásticas: "O Bispo nada mais é do que aquele que representa a pessoa de CRISTO", de modo que o título de Vigário de CRISTO, que Belarmino entenderá como característica do Papa, aparece com estes exemplos como o título comum atribuído na Igreja a todos os Bispos indiferentemente, e isto mais ainda nos tempos mais puros. (Tentativa theologica. Episcopal Rights and Ultramontane Usurpations, pag. 41-43, António Pereira de Figueiredo)
Os Ortodoxos, com o passar dos séculos, diminuíram o uso do título "Vigário de Cristo", pois este passou a ser associado a um sistema teológico que, entre outras coisas, vê o Papa como vigário de Cristo por excelência, concedendo-lhe supremacia autocrática e também infalibilidade doutrinária, que são inaceitáveis. 

quinta-feira, 5 de dezembro de 2019

Conversas na Sérvia: Padre Daniel Sysoyev e Yuri Maximov [Parte 2/2]



[PARTE 1] - [PARTE 2]

Abre, Senhor, os meus lábios, e a minha boca entoará o teu louvor. Salmos 51:15

Stanoje Stankovic: A primeira pergunta: O que pensam das missões no mundo, isto é, na África, na Rússia, na Sérvia e nos Balcãs?

Padre Daniel: Penso que o Senhor criou uma situação tal que quase todo o mundo está aberto para missões Ortodoxas atualmente. De fato, esse não era o caso há 20 anos atrás. E em relação à globalização - este é um ato de Deus para que o Evangelho chegue até os confins do mundo, para que a pregação não distorcida dos Santos Apóstolos chegue a todos os povos da terra. Se nós, cristãos, não usarmos essa chance, então o Senhor exigirá uma resposta de nós pelo fato de que nós não convertemos as pessoas à luz da Ortodoxia. Com relação às missões, elas estão começando a ser revividas. Sabemos que existem missões ativas na Igreja Russa e na Igreja Grega; a Igreja Ortodoxa de Alexandria prega ativamente. Yuri Valeryevich pode falar sobre isso em mais detalhes, e eu falarei sobre a Rússia.

Na Rússia há dois tipos de missões: missões internas dirigidas a Ortodoxos nominais, mais corretamente chamadas de catecismo, e missões dirigidas a pessoas fora da Igreja. Infelizmente, as missões externas são menos ativas, mas também estão começando a se intensificar agora mesmo. Yuri Valeryevich e eu, tendo estudado a experiência de vários missionários, chegamos à conclusão de que era necessário criar um movimento missionário e fizemos isso na criação do movimento missionário do Santo Profeta Daniel, onde um programa baseado na experiência geral da Igreja Ortodoxa Russa, em certo sentido, existe. Temos cursos, ao longo de um ano, de formação de missionários Ortodoxos que formam pessoas para pregar nas ruas, entre seitas, entre as de outras religiões, assim como entre os Ortodoxos nominais.

Como é que isto é feito? As pessoas são convidadas a falar de Deus; aqueles que há muito tempo não vão à igreja, e aqueles que nunca estiveram lá são convidados; as pessoas são convidadas à confissão e à comunhão; aos não batizados é oferecido o batismo. Ao mesmo tempo, nossos missionários distribuem folhetos especiais nos quais se explica por que se deve fazer o sinal da cruz, ir à confissão, comungar e o endereço de uma igreja é dado - isso é muito importante, para que haja um lugar para enviá-los.

Além disso, há o segundo estágio: o catecismo. Existem alguns sistemas de catecismo em uso. Na minha igreja há um sistema de cinco palestras: sobre Deus, sobre a criação do mundo, sobre Cristo, sobre os Santos Mistérios e sobre a Lei de Deus. Cada palestra tem duas horas e meia de duração, e durante essas conversas a pessoa é preparada para o batismo ou reconciliação com a Igreja, se for sectária. Elas também lerão os quatro Evangelhos e Atos e depois s unirão solenemente à Igreja. Nós geralmente temos batismos em uma liturgia batismal.

Então, depois do batismo, há o segundo passo: as pessoas entram na vida da Igreja, estudando a Sagrada Escritura. Para isso temos aulas permanentes sobre o estudo da bíblia. Toda semana, em nossa igreja e em algumas outras igrejas em Moscou, nós estudamos a santa Palavra de Deus em detalhes. Isto é muito importante porque, para muitos Protestantes, uma das razões pelas quais eles não estão na Igreja Ortodoxa é que a Sagrada Escritura não é estudada. Eu acho que nós, tendo uma interpretação dos Santos Padres tão rica da bíblia, devemos usá-la.

Também são muito úteis as missões nos hospitais. Por exemplo, em Moscou quase todos os hospitais estão sob os cuidados de um sacerdote que é ajudado pelas "irmãs necessárias", ou seja, aquelas pessoas que ajudam a preparar uma pessoa para a sua primeira confissão. Esta é verdadeiramente uma grande obra que deve ser avivada. Há o mesmo tipo de experiência em algumas outras dioceses. Quanto à Igreja russa como um todo, há regiões onde as missões são ativas, onde elas são muito bem sucedidas, mas há regiões onde, por outro lado, os sacerdotes têm medo de pregar por causa do fato de que, por exemplo, o Islã é muito ativo. Portanto, existem diferentes situações em diferentes regiões. É, naturalmente, muito importante que não só os sacerdotes participem nas missões, mas também os leigos. A experiência da Igreja Ortodoxa russa mostra que as missões leigas são uma das mais bem sucedidas. Para isso, claro, os leigos devem estar preparados e agir sob a supervisão de sacerdotes, mas eles mesmos pregam.

É muito significativo que já exista um programa preparado para os leigos estudarem o Santo Evangelho, segundo o qual são organizados "círculos evangélicos", onde os leigos começam a estudar o Evangelho sobre a fundação dos Santos Padres. Tais círculos já estão ativos. Houve algumas experiências sem sucesso nesse campo, mas agora há uma experiência bem sucedida. Eu vi um grupo de leigos perto de Ulianovsk, no qual tudo é estudado sobre a fundação dos Santos Padres e funciona bem, ajudando espiritualmente os jovens, embora não apenas os jovens. Falamos muitas vezes de missões entre os jovens, mas não devemos esquecer que as missões devem estar entre todos as camadas da nossa sociedade. O Evangelho deve ser pregado para todos: para os adultos, para os idosos, para as crianças.

E, a propósito, minha experiência pessoal de pregação no Quirguistão mostrou que um dos melhores programas é quando você convida Protestantes ou ocultistas e a fé deles não é criticada, mas você apenas fala sobre o Cristianismo Ortodoxo como ele é, como os Santos Padres ensinaram, como o próprio Senhor ensinou através dos Santos Apóstolos. Então as pessoas começam a mudar porque a santa Palavra de Deus em si muda uma pessoa. Isso é muito importante. Quanto às missões na Igreja Russa... elas são bem organizadas. Relativamente bem. Nós gostaríamos que fosse muito melhor, mas pelo menos algo está sendo feito, algum tipo de missão. Em Moscou e geralmente no centro da Rússia, em muitos distritos, o trabalho missionário é bem organizado. No entanto, desnecessário será dizer que poderia ser melhorado. As missões estão bem organizadas na diocese de Kemerovo e na Sibéria, onde o Pe. Igor Kropochev e outros sacerdotes do departamento missionário estão ativamente envolvidos em missões entre os povos locais, em particular entre os Shortsi. Há regiões, como a Ásia Central, onde as missões são quase totalmente inexistentes. No entanto, há pessoas ativas no Cazaquistão e tenho esperança de que em breve o Cazaquistão seja completamente coberto por missões Ortodoxas. No que diz respeito ao Extremo Oriente, o Patriarca Kirill dedicou-lhe uma atenção muito especial e, por conseguinte, em várias dioceses, em particular nas dioceses de Sakhalin, Khabarovsk, Primorye e Kamchatka, há atividade missionária, e na diocese de Chukotka está começando. As missões em Yakutia são muito ativas. Os tamanhos são muito grandes lá. Yakutia é como toda a Europa em tamanho e há muito poucos sacerdotes.

Quanto ao território da Igreja russa além das fronteiras do CIS, as missões são muito difíceis na China, claro. Padre Dionisii Poznyaev e alguns outros sacerdotes fazem tudo o que podem mas, infelizmente, devido à lei chinesa, mas mais ainda devido à falta de missionários leigos, que poderiam pregar aos chineses, as missões são muito difíceis lá. Apesar do trabalho que está sendo feito, um grande número de traduções para o chinês estão sendo feitas, as pessoas estão fazendo o que, na realidade, pode ser feito no momento. No Japão, sob a nova primazia de Vladyka Daniel, as missões estão se intensificando, graças ao seu entusiasmo. Na Ucrânia, as coisas estão muito piores. Ali, devido ao cisma e à abundância de Uniatas, as missões Ortodoxas praticamente pararam e os Protestantes têm enorme sucesso. Por exemplo, o prefeito de Kiev é um Pentecostal. E na Crimeia a influência do Islã está aumentando. Infelizmente, devido a cismas, muitas pessoas na Ucrânia se afastaram da Igreja. Atualmente, fala-se da necessidade de intensificar as missões, mas, infelizmente, verifica-se que, muitas vezes, as missões surgem como uma espécie de nacionalismo, em vez de se lembrar que somos, de fato, cristãos, o que é superior a qualquer outra nacionalidade. Com efeito, as missões ligadas ao nacionalismo não funcionam; a experiência tem demonstrado isso.

Sim, é possível interpretar o patriotismo de um ponto de vista Ortodoxo, e houve tais tentativas, por exemplo, São Nicolau da Sérvia disse que um verdadeiro sérvio é aquele que imita os santos sérvios na maneira em que eles agradaram a Cristo. Podemos dizê-lo desta forma e tais palavras serão significativas para os sérvios, mas não para os croatas, húngaros, albaneses, etc. Para nós, por exemplo, um dos problemas da pregação da Ortodoxia aos tártaros é o fato de eles pensarem frequentemente que, ao aceitarem a Ortodoxia, devem renunciar ser tártaros, mas isso não é verdade. O verdadeiro cristão compreende que não muda de etnia, mas que se torna superior a essa etnia e aquilo que é de melhor na sua etnia ele leva consigo, e que, ao ser batizado, se torna particularmente cristão e não um russo, sérvio ou grego. Isto é muito importante de compreender.

Outra coisa que dificulta as missões neste momento é que temos uma resposta tardia aos desafios. Muitos novos ataques ao cristianismo têm surgido agora: O Código Da Vinci, o Evangelho de Judas e muitas mentiras dirigidas contra Cristo. Estas são mentiras que estão espalhadas em todo mundo, incluindo, como sei, na Sérvia.

Podemos, refutando-as, utilizar obras apologéticas Ortodoxas publicadas no Ocidente e mesmo obras não-Ortodoxas; o mais importante, evidentemente, é sermos capazes de responder a estes ataques e de o fazer rapidamente. É muito importante não adiar. Por exemplo, quando o Código Da Vinci for divulgado, tem de haver já uma resposta pronta. E é importante não responder apenas imprimindo um livro e colocando-o à venda. É preciso fazer um barulho informativo, para o qual devemos usar a internet, incluindo blogs e redes sociais. Uma resposta Ortodoxa deve ser apresentada como um evento informativo. Para a consciência moderna, que é totalmente englobada pela informação, é muito importante fazer booms informativos. Não se pode dizer que isso são missões, mas é algo que leva a missões. Para as pessoas seculares agora, é muito importante sermos capazes de interessá-las, atrair sua atenção, e então seguir para um estudo regular, profundo e sem pressa da Ortodoxia. Esta é a minha opinião sobre o que está acontecendo.

Yuri Maximov: Ao que disse Pe. Daniel, gostaria de acrescentar que, na verdade, mesmo quando escrevemos uma resposta a esses ataques, mesmo que seja uma boa resposta, temos um problema em como chegar ao leitor comum. Digamos que mil pessoas assistiram ao filme do Código Da Vinci e nossa resposta ao filme foi lida por uma pessoa dessas mil. São duas coisas incomparáveis. Novecentas e noventa e nove pessoas ficaram apenas com o filme; não ouviram a nossa resposta. Precisamos trabalhar muito para que nossa voz seja ouvida.

Stanoje Stankovic: Na Rússia existem canais de televisão e estações de rádio Ortodoxas. Na Sérvia há um ou dois programas de rádio e muitas vezes eles têm coisas que não têm conexão com a Ortodoxia.

Yuri Maximov: Sim, temos os mesmos problemas. Não estou a dizer que o que estamos a discutir agora é fácil de fazer. Não é fácil, mas tem de ser feito; temos de refletir muito e tentar encontrar uma solução. O Senhor nos ajudará. Quanto às missões como um todo, sabe, algumas pessoas pensam que as missões são como uma espécie de hobby. Alguém coleta selos, alguém cultiva flores raras e alguém está engajado em missões - eles se expressam dessa maneira. Mas isso não está certo. As missões são uma virtude, um cumprimento do mandamento de Cristo. O Senhor disse: Portanto ide, fazei discípulos de todas as nações, batizando-os em nome do Pai, e do Filho, e do Espírito Santo (Mateus 28:19).  Este é um mandamento que devemos cumprir e que, infelizmente, os Ortodoxos não querem cumprir. E o que acontece quando não queremos cumprir os mandamentos? Bem, nada de bom. Até o início do século passado, a grande maioria dos Ortodoxos não queria ir a lugar algum e pregar; e o que aconteceu no século XX? Tal sofrimento abateu-se sobre todas as Igrejas Ortodoxas locais, russas, sérvias, gregas, romenas, búlgaras, georgianas e árabes, sem exceção, que as pessoas tiveram que fugir de suas casas para terras estrangeiras e lá construir igrejas, traduzir literatura Ortodoxa para as línguas locais, etc. Desta forma, o século XX tornou-se um século de difusão da Ortodoxia em todo o planeta. Aqueles Ortodoxos que não queriam ir para outras terras a fim de pregar foram expulsos pelo próprio Senhor. Ele os espalhou por todo o mundo. E, gostem ou não, eles foram forçados a fazer algo para que o povo local viesse e se tornasse Ortodoxo. Os contrários as missões deveriam pensar sobre isso e qual desgraça eles trazem a si mesmos, assim como aos seus filhos, com sua dura e firme resistência para cumprir a vontade de Deus.

Dos lábios de tais pessoas você ouve falar como se fosse impossível converter outra pessoa à Ortodoxia; por exemplo, é impossível que um muçulmano se torne Ortodoxo. Mas se você lhes perguntar: "Mas você já tentou fazer isso?" Eles admitem que não fizeram. Aqueles que dizem que é impossível nunca tentaram. Eles dizem isso, na verdade, para nem mesmo tentar. 

Stanoje Stankovic: O que é mais importante nas missões? Alguns dizem que precisamos ir pregar em estádios ou discotecas enquanto outros dizem que a oração é mais importante, lembrando as palavras de São Serafim de Sarov, "adquire o espírito de paz e milhares ao teu redor serão salvos". Então, o que precisamos para que as missões sejam bem sucedidas? Talvez uma pessoa deva primeiro se tornar um bom cristão e então a sua própria vida será um testemunho? Eu li em algum lugar que estas são duas abordagens diferentes para missões, então qual delas é mais bem sucedida?

Yuri Maximov: Parece-me que tal divisão ocorre, em grande medida, nas mentes daquelas pessoas que praticamente não estão envolvidas em missões, mas apenas refletem teoricamente sobre ela. Apenas teoricamente se pode pensar que primeiro me tornarei um bom cristão e depois vou falar com os outros. Para se tornar um bom cristão é preciso cumprir os mandamentos de Cristo e um deles é ir e ensinar. Então, como você pode se tornar um bom crente se você não é um missionário? Se você cumpriu todos os mandamentos exceto um, como você pode dizer que você se tornou um bom crente, se você desprezou um mandamento de Cristo? O Senhor deu a você mandamentos não para que você os escreva, pendure na parede e esqueça, mas para que você viva de acordo com eles. Uma pessoa que ama a Deus está envolvida em missões. Certamente os apóstolos não eram cristãos imperfeitos? Certamente eles adquiriram o espírito de paz?

Agora, em relação a sua primeira pergunta sobre o que é mais importante para as missões. Para um missionário, a oração e a esperança são importantes apenas em Deus, não em tuas próprias forças, não em ti mesmo, não em teus amigos, não em teus patrocinadores, mas apenas em Deus. A oração a Deus e o amor a Cristo e à pessoa a quem você está pregando são importantes para um missionário, assim como a determinação de se negar a si mesmo. O que nos impede de ir e pregar ao nosso amigo? Não temos que ir à discoteca ou ao estádio; por exemplo, temos um vizinho ou um colega de trabalho. Acontece que vivemos ao lado de nossos vizinhos sabendo que eles são Católicos ou Protestantes, nós os conhecemos há dez anos, os cumprimentamos, os cumprimentamos nos dias de festas, mas nunca perguntamos a eles: "Meu amigo, por que você não é Ortodoxo? Queres que te fale da Ortodoxia?" Não dizemos isso. Porquê? Talvez porque queremos adquirir o espírito de paz em nós mesmos? Mas não, é porque temos medo de confiar em Deus e pensar: "E se eu lhe disser: 'Queres saber algo sobre a Ortodoxia?' e ele se ofender e disser: 'Não, não quero saber; não vou falar contigo." Isto é o que está dentro de muitos que são contrários as missões: falta de fé e medo.

Essas são pessoas que não pensam em Deus. Uma pessoa que confia em Deus dedica tudo a Ele. Ela diz: "Ainda que as pessoas me pisem, ainda que me apedrejem, eu glorificarei e pregarei o Nome de Cristo. Assim eram os apóstolos; eles não eram o tipo de pessoas que têm medo de missões, pessoas que justificam seu medo com objeções contra missões - tais pessoas temerosas não têm a alegria do Espírito Santo em seus corações. Isto ocorre porque, quando você tem dons do Espírito Santo, você transborda de tanta alegria e você quer compartilhá-la. É aquela vela que, como disse o Senhor, ninguém a cobre com um vaso, mas que segura ao ar livre para que acenda para todos. Quer-se dizer: "Meu amigo, olhe para a felicidade que tenho. Deixa-me contar-te". Isto é o que inspira os missionários. Mas se uma pessoa não quer compartilhar isso, o que pode ser dito sobre seu estado espiritual?

Cristo nos deu a salvação; não vem de nós - nós a recebemos como um dom. Sem Ele nós morreríamos. Deus nos deu este dom não apenas para nós, mas para aqueles que estão perto de nós, para que possamos ir a outras pessoas que estão perecendo e compartilhá-lo com aqueles que querem a salvação. E quando nós compartilhamos essa salvação com eles nós mostramos amor para eles e nos tornamos como Deus que é amor. Onde está o nosso amor se por dez anos nós estivermos saudando nosso próximo e sorrindo, mas não dissemos a ele uma palavra sobre Deus? Nós entramos em nossa casa, e pensamos que já que os ícones estão nas paredes e temos livros Ortodoxos, somos Ortodoxos, mas isso não é Ortodoxia.

E o próprio São Serafim de Sarov pregava aos cismáticos Velho-Crentes quando se aproximavam dele, dizendo: "Peço-vos e suplico-vos: ide à Igreja greco-russa, ela está em toda a glória e poder de Deus! É como um navio, com muitas cordoalhas, velas e um grande leme, e é dirigida pelo Espírito Santo". Ele os chamou para a Igreja Ortodoxa. E convenceu uma mulher que lhe veio dos Velho-Crentes para que ela e todos seus próximos entrassem para a Igreja. O que é isto, senão missões?

O Padre Daniel contou-me outro grande exemplo não há muito tempo. São Simeão, o Estilita, era um grande missionário: não ia a lugar algum e vivia no seu pilar, mas agradou tanto a Deus que o Senhor o glorificou e muitos pagãos se aproximavam dele e diziam: "Ora para que Deus nos cure". E incomodavam-no muito com as suas súplicas. Ele procurou sossego e solidão, mas aconteceu que os clamores das pessoas o cercaram. Então ele disse: "Certo, venha e eu orarei por ti, mas quando Deus te curar, serás batizado". Eles concordaram e os batizados foram tantos que a Igreja enviou um bispo que vivia próximo do pilar e ele batizava pessoas. O Padre Daniel acabou de chegar de uma viagem durante a qual ele viu aquele pilar e os restos da igreja.

Padre Daniel: Na época de São Simeão havia uma grande igreja próxima ao seu pilar e dentro dela havia uma fonte especial para adultos e crianças; era como uma "esteira rolante" de batismo.

Yuri Maximov: Daqui se depreende que mesmo um grande eremita tinha uma verdadeira mentalidade missionária e estava disposto a rejeitar aquilo que desejava para cumprir o mandamento de Deus. Os exemplos de tais santos mostram que a divisão acima mencionada entre vida espiritual e missões é falsa. Se nós realmente cumprirmos o mandamento de Deus, então este não será o caso. Ambas estão interconectadas. Missões Ortodoxas são impossíveis sem uma vida espiritual séria, e não haverá verdadeira vida espiritual sem a pregação do Evangelho.

Padre Daniel: Gostaria de acrescentar outra razão pela qual as pessoas muitas vezes não querem se envolver em missões. A questão é que a bíblia faz uma distinção clara: há uma esfera de luz e uma esfera de trevas, há um lugar para os eleitos de Deus, a Igreja de Deus - a região dos salvos, como diz o cânon - e um lugar onde o diabo age, onde há pessoas sob o poder do príncipe das trevas, que depois da morte inevitavelmente acabam no inferno. Em nossa consciência essa fronteira está desfocada. Existem tais pessoas que dizem: "Fora da Igreja não há salvação", que também dizem: "Mas fora da Igreja há boas pessoas". E essa, na maior parte das vezes, é a razão pela qual elas não evangelizam. Elas pensam que uma pessoa pode ser salva por suas próprias obras, mas isso é impossível, é a heresia de Pelágio. Se alguém pode ser salvo sem a Igreja, então Cristo morreu em vão. E esse sentimento de uma possibilidade de salvação sem Cristo acaba com as missões. Porque eu não posso ficar quieto e calado sobre Cristo se eu sei que meu vizinho não-Ortodoxo está garantido de ir para o inferno e que as pessoas fora da Igreja estão perecendo. As pessoas que estão deslizando para o inferno sabem disso por si mesmas; ninguém lhes disse isso, elas mesmas sentem isso: elas têm depressão e paixões consumidoras, suas consciências lhes alfinetam, estão atormentadas com a vida, estão insatisfeitas, e elas definham em falsas esperanças e têm verdadeira tristeza. Essas pessoas buscam uma fuga e nós lhes dizemos: "Não se preocupem, sejam boas pessoas e tudo ficará bem". Isso é mentira. Ou seja, esta mentira, a falta de um sentido da escolha de um cristão, dá origem à relutância para o trabalho missionário. Nós somos os escolhidos. Deus nos escolheu, mas não para nos mostrarmos, nos orgulharmos e dizer que somos tão bons, mas para levar a luz de Deus e exclamar: "Junte-se a nós no barco". Vocês sabem que há uma imagem anti-ecumênica bem conhecida: Cristo navega num navio que está a ser atacado de todos os lados; isto é verdade, mas o navio deve salvar todos aqueles que estão a nadar na água. Mas nem sequer queremos lançar redes. Além disso, há casos em que as pessoas que querem ser salvas são empurradas para longe do navio. Isto é, claro, contrário ao Evangelho.

Penso que, se olharmos para o Evangelho e recordarmos as Bem-aventuranças, veremos que muitas delas requerem missões.

Bem-aventurados os misericordiosos, porque alcançarão misericórdia (Mateus 5,7). O que é a misericórdia superior? Não dar dinheiro, mas dar a vida eterna. Um mendigo gastará o dinheiro depois de alguns dias, mas a vida eterna será sua para sempre.

Bem-aventurados os pacificadores, porque serão chamados filhos de Deus (Mateus 5:9). O que pode ser maior do que quando alguém reconcilia uma pessoa e Deus? As pessoas lutam contra Deus e você, missionário, cumpre o serviço de Cristo, você é enviado pelo próprio Senhor Cristo e receberá Sua recompensa, como um filho de Deus, diz o Senhor. Não é assim? Mas as pessoas dizem: "Como eu posso ser um missionário? Eles me perseguirão." Claro que sim, porque está escrito: Bem-aventurados sois vós, quando vos injuriarem e perseguirem e, mentindo, disserem todo o mal contra vós por minha causa.
Exultai e alegrai-vos, porque é grande o vosso galardão nos céus (Mateus 5:11,12). A recompensa é enorme no céu. Mas as pessoas se esqueceram da recompensa celestial, esqueceram que nós vivemos aqui para receber uma recompensa lá. Estamos muito apegados à terra. Você lê a imprensa Ortodoxa e sobre o que eles falam? Eles falam sobre política, sobre como tornar as coisas confortáveis aqui, sobre como criar bons relacionamentos. Mas, me perdoe, com certeza estaremos partindo daqui. Talvez partamos hoje. Estamos todos nas mãos de Deus. A morte não está sobre as montanhas, mas sobre o ombro, como dizemos na Rússia. As pessoas se esqueceram disso e não querem pensar no fato de que precisam se preparar para a eternidade.

Além disso, algumas pessoas dizem: "Preparar-se para a eternidade é egoísmo". Mas o que disse Cristo? Ele não disse: "Não guarde nenhum tesouro". Ele disse para guardar tesouros no céu, onde não há ladrões, ferrugem ou traças. Porque onde estiver o teu tesouro, estará o teu coração. Mas os homens se esqueceram disso; eles guardam tesouros na terra, vivem para a terra e usam Deus como uma força secundária. Como escreveu Pushkin no conto do peixe dourado: o peixe estava à disposição. Da mesma forma as pessoas tentam usar Deus. Naturalmente, tal pessoa não pregará se pensar em Deus como uma ferramenta para si mesma. Tudo isso é falso e eu suspeito que essa pessoa na realidade não é cristã.

Mas o verdadeiro cristianismo é ter piedade das pessoas que perecem. Temer ser punido pelo Senhor por enterrar seu talento e desejar receber uma grande recompensa no céu - eis o que deve mover um missionário. Devemos andar com Deus como o Senhor disse sobre Enoque, Enoque andou com Deus e... Deus para si o tomou (Gênesis 5:24). Esse andar com Deus é a raiz das missões. Nesse caso, você pode ver que tanto a oração como as missões são, geralmente, a mesma coisa. Quando saio a pregar, beijo a minha cruz sacerdotal e peitoral e digo: Abre, Senhor, os meus lábios, e a minha boca entoará o teu louvor (Sl. 50:17). Sei que, assim que confio em mim mesmo, as missões fracassam, mas, logo que confio em Deus, elas retomam. Porque eu sou servo de Cristo, e qualquer pessoa pode tornar-se servo de Cristo. Qualquer um pode receber uma recompensa e mais do que isso. O concílio da Igreja Ortodoxa Russa adotou um conceito missionário, e nele estão algumas palavras muito importantes. Diz que as missões da Igreja são uma continuação da missão que Cristo nos enviou. Cristo é o primeiro Apóstolo, e a Palavra de Cristo continua em nós. Em nós, o próprio Filho de Deus prega. Nós somos movidos pelo próprio Espírito Santo. Além disso, você sabe que Deus Pai está realizando uma grande obra de busca? Como o Senhor diz, porque o Pai procura a tais que assim o adorem (João 4:23). Ele procura aquelas pessoas na terra que estão prontas para adorá-Lo. E você sabe por quem Ele os procura? Através de missionários. Ele envia missionários para encontrar essas pessoas. Imagine o que Deus Pai nos dirá se recusarmos? Claro que o Senhor enviará outros. Ele é compassivo, Ele enviará outros, mas o que teremos para responder? O Senhor dirá: "Uma pessoa estava perecendo aqui e você passou. Você se recusou a cumprir a Minha Palavra." Como estaremos diante dEle então? Nós diremos: "Sim, Senhor, mas nós oramos tão bem a Ti". O Senhor dirá: "O que significa 'nós oramos'? Uma pessoa pereceu. Por que você desobedeceu à minha Palavra direta? Ele te pediu pão e tu lhe deste uma pedra; tu lhe deste as costas".  Rejeição de missões é também desconsiderar o Juízo de Deus - desconsiderar o fato de que nós responderemos por cada uma de nossas ações. É desconsiderar o fato de que mesmo na lei secular há um entendimento de "omissão criminal", a falta de prestar ajuda aos que perecem. Isso também se relaciona com a lei espiritual. A falta de prestar ajuda espiritual - isso não é um crime?

E posso dizer-te por experiência própria que quando você prega, você está no limite. O Senhor te lembra que você está caminhando diante dEle e se você quer cair no pecado, você imediatamente é atingido na cabeça - o Senhor não permite que você caia. Mas mesmo que você tenha caído, o Senhor te levantará e não te deixará ficar preso no pecado porque, verdadeiramente, Ele te lembrará através da Sua Palavra que você fala.

O que um missionário precisa fazer antes de tudo? O Senhor nos ordenou, ser-me-eis testemunhas, tanto em Jerusalém como em toda a Judéia e Samaria, e até aos confins da terra (Atos 1:8). Portanto, é nosso dever sermos testemunhas de Cristo, o que significa pregar exclusivamente o Santo Evangelho - não pregar a russidade, serbidade, americanidade, ou qualquer outra coisa senão pregar apenas sobre o Senhor Jesus Cristo e Ele crucificado. Falando dessa maneira você estará julgando a si mesmo. Imagine só, você diz "não fornique" e ainda assim você mesmo fornica. Os problemas começam. Você prega para não amaldiçoar, mas você amaldiçoa a si mesmo. O mesmo problema. A Palavra de Deus começa a julgar você quando você prega. São Gregório de Nissa disse muito bem que: "Se queres ungir alguém com crisma perfumado, derrama o crisma sobre as tuas próprias mãos e depois sobre ele. Quem você unge primeiro? Unges-te a ti mesmo".

E assim, o Evangelho para um missionário é um livro vivo. Não é um texto para extrair citações para artigos teológicos. É particularmente o livro vivo sobre o qual você sempre precisa falar e pelo qual você deve viver. Um grande erro dos missionários é tentar diluir o Evangelho. Há uma passagem na Segunda Epístola do Apóstolo Paulo aos coríntios que diz o seguinte em eslavo: "nós não somos, como muitos, que corrompem [korchemstvovati] a palavra de Deus" [2 Cor 2:17]. Korchemstvo é vem da palavra korchma, isto é, uma taberna. O que os maus vendedores fazem em uma taberna? Eles pegam o vinho e adicionam água, mas para que não seja perceptível eles adicionam corantes. O vinho em si mesmo é benéfico e bom para a saúde, mas quando diluído em água perde o seu benefício, e o veneno adicionado pode até prejudicar. Os missionários incorretos fazem o mesmo. Eles dizem: "Bem, as pessoas de hoje não entenderão a Palavra direta de Deus". Há poucos dias atrás, foi-me dito: "Pe. Daniel, em vão o senhor prega com tanta franqueza; não lhes interessa ouvir sobre Cristo". E, portanto, vamos acrescentar um pouco de nós mesmos. Vamos diluir a Palavra de Deus e torná-la mais contemporânea, mais compreensível e mais tolerante. Parece-me que, no entanto, as pessoas estão muito mais interessadas em saber sobre Cristo. A política não é interessante. E os esportes não são interessantes. Mas Cristo é interessante.

Yuri Maximov: Gostaria de acrescentar algo. É muito importante compreender o que Pe. Daniel está falando. Algumas pessoas, falando de missões teoricamente, pensam que a Ortodoxia tem que ser mudada para ter sucesso nas missões. Isto é falso. Particularmente a pregação patrística e evangélica da Ortodoxia - e não a Ortodoxia modernista, distorcida, mas sim a Ortodoxia tradicional, saudável - que recebemos dos próprios apóstolos através dos Santos Padres, é exatamente ela que pode afetar as pessoas. Mas a "Ortodoxia" modernista não pode atrair ninguém e os missionários modernistas, como regra, não são bem sucedidos. Isso porque o modernismo diz, em geral, "acredite como quiser e viva da maneira que quiser; é mais importante ser uma boa pessoa, então tudo estará bem". Mas essa pregação só pode atrair aqueles que precisam de algo confortável e não aqueles que precisam da verdade. Se uma pessoa que precisa da verdade ouvir a pregação da pseudo-Ortodoxia modernista, ela dirá: "Mas eu ainda posso ser uma boa pessoa sem isso. Por que eu deveria me tornar Ortodoxo?" Os modernistas não podem essencialmente responder a essa pergunta porque suas missões fracassam. E eles pensam que as missões em geral fracassam e que as pessoas não estão realmente interessadas em conhecer a verdade sobre Deus. Mas isso não é verdade. As pessoas não estão interessadas em ouvir eles falarem porque não há poder ou verdade em suas palavras. Mas a Palavra do Evangelho, a palavra dos Santos Padres que é a verdadeira teologia é interessante de ouvir até mesmo para as pessoas simples sem uma formação teológica.

São Teófano o Recluso disse o seguinte sobre este fenômeno: "Os doze Apóstolos saíram e converteram uma tal multidão de pessoas, por quê? Como puderam fazer isso? Porque eles não proclamaram sua própria filosofia, mas a Verdade de Deus. E em cada pessoa há uma consciência que distingue a verdade da falsidade". E assim, quando dizemos ao outro as nossas fantasias, ele simplesmente escuta enquanto nada responde dentro dele. Ele pensa: "Sim, ele pensou em algo interessante. Bem, eu já ouvi e já chega". Mas quando lhe falamos a Palavra de Deus, a sua consciência interior nele responde. Testemunha a ele por dentro, "o que eles te dizem é a verdade". Neste ponto abrem-se dois caminhos para aquele que ouve o Evangelho e sente em si a ação da consciência. O primeiro caminho é escolhido por aqueles que dizem: "Eu seguirei a Verdade".  O que significa seguir a Verdade? Significa rejeitar tudo dentro de si mesmo que contradiga a Verdade. Eles dizem: "Deus é importante para mim, e tudo o que é pecaminoso não tem importância. Expulsarei de mim toda a escuridão - tudo o que me impedir de me aproximar de Deus e O seguirei". O segundo caminho é escolhido por pessoas que dizem dentro de si mesmas: "Não, permanecerei com meus pecados, com minhas opiniões e com minha filosofia". E então sua consciência começa a queimá-los como fogo. Portanto, ninguém se relaciona indiferentemente com as pessoas Ortodoxas: elas são amadas ou odiadas - especialmente porque tal ação ocorre na consciência. Vemos que na vida dos apóstolos muitas pessoas se voltaram para eles porque a verdade dentro deles ecoava as palavras dos apóstolos. Mas os próprios apóstolos sofreram nas mãos daqueles que os odiavam.

Stanoje Stankovic: Mas há pessoas que são indiferentes à fé. Li do Ancião Paisios do Monte Athos que as pessoas indiferentes são as piores de todas. Pode-se falar-lhes de Deus e elas responderão que não lhes interessa.

Padre Daniel: Se alguém diz que Deus não é interessante para eles, ele está fazendo sua escolha. Deus não é interessante para ele significa que ele rejeita Deus. É uma revolta contra Deus. A partir daí, a pessoa indiferente vai te odiar. Essa será uma escolha para o mal.

O trabalho de um missionário é ser testemunha. Não é seu trabalho forçar alguém a aceitar ou não a Ortodoxia. Não podemos converter todos. Nunca poderemos fazer isso. O próprio Senhor não converteu todos. Isto porque o dom do livre arbítrio, que o Senhor deu à Sua criação, pressupõe a possibilidade de uma rejeição completa. E, portanto, claro, não devemos esperar aquilo que Deus não prometeu. Deus não prometeu que converteríamos todos. Deus prometeu que iríamos testemunhar a todos. Acho que, infelizmente, estamos esperando demais. Nós ainda não pregamos o Evangelho ao mundo inteiro. Atualmente existe essa possibilidade. Todos os dias repetimos "Venha a nós o Teu Reino", mas a nossa inação, aliás, atrasa a vinda de Cristo. Se as missões tivessem sido completadas então o Senhor teria voltado, certo? Como é dito, E este evangelho do reino será pregado em todo o mundo, em testemunho a todas as nações, e então virá o fim. [Mat. 24:14]

Stanoje Stankovic: Algumas pessoas se referem a Santo Inácio (Brianchaninov) onde ele diz que a apostasia é permitida por Deus e não devemos tentar pará-la com nossas débeis mãos. Como se relacionam as palavras de Santo Inácio com o trabalho missionário?

Yuri Maximov: Isto é em referência às pessoas que já fizeram a sua escolha e quando a escolha delas é feita você não é capaz de fazer nada com elas. Se uma pessoa não quer ouvir falar de Deus agora mesmo e você continuar a insistir, ela não se tornará Ortodoxa, mas simplesmente passará a odiar você. E você não será capaz de mudar isso. Mas se uma pessoa quiser saber a verdade, você será capaz de mudar bastante. Sabe, há uma parábola sobre um homem que andava pela praia depois de uma tempestade. Após a tempestade, muitas estrelas do mar ficaram jogadas na areia. A areia estava cheia dessas estrelas do mar. O homem viu um garotinho pegando uma estrela-do-mar e jogando-a de volta no mar. Ele perguntou ao garoto: "Por que você está fazendo isso?" O garoto respondeu: "Se você não as pegar e jogá-las no mar, elas vão secar e morrer". O homem opôs-se: "Olha quantas estrelas do mar existem, não podes mudar nada, não vais conseguir jogá-las todas de volta ao mar". Então o garoto apanhou outra estrela-do-mar, olhou para ela, jogou-a no mar e disse: "Talvez não possa mudar nada para todas elas, mas para essa eu mudei muito."

Padre Daniel: Eu acrescentaria o seguinte. Isto é muito importante para que os missionários entendam. Gastamos muita energia para parar a apostasia, mas não gastamos tanto para salvar as pessoas. De fato, tentar parar a apostasia é impossível. A apostasia - a revolta do homem contra Deus - é imparável. Esta é a verdade. Lembre-se que os cristãos antigos não lutavam contra o pecado ou a licenciosidade dos pagãos. Os cristãos antigos não lutavam nem mesmo contra os gladiadores, eles estavam salvando os pagãos. Eles os reuniam e diziam a eles que não deviam adorar ídolos, mas que deviam adorar o Único Deus Verdadeiro. E quando os pagãos se tornaram cristãos, eles abandonaram a fornicação, os jogos gladiatórios, etc. E então, quando os crentes se multiplicaram, só depois disso é que a devassidão e os jogos gladiatórios se tornaram ilegais. E viramos tudo de cabeça para baixo. Lutamos com aquilo que é impossível de superar, ao mesmo tempo em que ignoramos aqueles que poderíamos salvar. Isto é um erro. E Santo Inácio tem toda a razão quando diz que não precisamos de nos ocupar com isso. Não é necessário lutar contra aquilo que é impossível mudar. Mas podemos salvar as pessoas que desejam a salvação. Este é um momento muito importante. Há tanta energia gasta na Rússia na batalha com os deploráveis NCIs [número de contribuinte individual] e passaportes; se toda essa energia fosse gasta na pregação da Ortodoxia aos muçulmanos, então a Rússia seria bem diferente, entende?

Yuri Maximov: Gostaria de acrescentar algo que os nossos leitores sérvios talvez não saibam. Santo Inácio (Brianchaninov) foi um bispo diocesano no Cáucaso, onde viviam muitos muçulmanos, e ele trabalhava em missões. Tinha, como todas as grandes dioceses da Igreja russa, missionários diocesanos especiais que deviam pregar o Evangelho aos muçulmanos e outros descrentes. Na Rússia, até à revolução, esta era uma prática comum, e nas suas cartas ele menciona estes missionários e os muçulmanos da sua diocese que foram baptizados graças aos milagres. Portanto, é absurdo pensar que Santo Inácio falou contra as missões.

Stanoje Stankovic: Gostaria de fazer uma pergunta sobre o estado da Ortodoxia na Rússia. Há algumas pessoas na Sérvia que dizem que a Ortodoxia na Rússia está a ser reavivada, que estão a ser construídas igrejas, que existem programas de televisão Ortodoxos, etc. Mas também há pessoas que dizem que a Rússia está corrompida como um queijo suíço, que tem enormes problemas, que as pessoas sofrem de dependência de drogas, alcoolismo, etc. Qual é a verdade?

Yuri Maximov: Você poderia dizer que ambos estão corretos. Verdadeiramente há problemas. Há muitos problemas morais e religiosos na Rússia. Mas, ao mesmo tempo, há exemplos de santidade na Rússia. Estas coisas não são mutuamente exclusivas. Se olharmos para a história da Igreja, aprenderemos que sempre foi assim: na história da Igreja Universal, na Igreja russa e na Igreja sérvia. Quando eu, por exemplo, li as cartas de São Pedro de Cetinje, li muito sobre o terrível estado moral da época em Montenegro, tanto entre os padres sérvios como entre o povo simples. Como ele escreveu, havia muitos problemas. Mas, ao mesmo tempo, havia muita santidade e ele próprio era um santo da época. Sabe, às vezes na Rússia eles querem julgar o estado espiritual da Igreja através de alguns fatores externos. Alegadamente, se tudo está bem por fora, isso significa que espiritualmente tudo está bem. Mas esse nunca foi o caso. Durante os tempos de São João Crisóstomo, Basílio o Grande e Gregório o Teólogo, como sabemos, havia um conflito ariano confuso e problemas horríveis na Igreja.

Padre Daniel: São Basílio o Grande, quando lhe perguntaram: "Como está a Igreja?", ele respondeu, "Como o meu corpo: tudo dói e não há esperança de recuperação.

Yuri Maximov: É assim na Rússia neste momento. São Nikolaj [Velimirovic] da Sérvia disse que a alma russa não parece ter um meio: ou caminha nas alturas ou no fundo do inferno. Não há muito tempo, li a mesma observação de um padre belga que viveu alguns anos na Rússia. Ele disse que, por um lado, na Rússia, existem pessoas que você não consegue passar do lado sem ter medo e, por outro lado, há tal santidade como em nenhuma outra parte da Europa.

Stanoje Stankovic: Sim, esse artigo estava no pravoslavie.ru.

Padre Daniel: Eu acrescentaria que isto não diz respeito apenas à Rússia. Simplesmente, há duas cidades: a cidade celeste, que é um peregrino sobre a terra, e a cidade terrestre, que está sendo construída sobre a terra. Isto é muito óbvio na Rússia. Na Rússia há duas Rússias. Há a Santa Igreja, que peregrina neste mundo.

Este tipo muito distinto é chamado de "tserkovnik" [pessoa de igreja] na Rússia e eu também os chamo de uranopolitanos, cidadãos celestiais. Ou seja, aquelas pessoas que vivem aqui na terra, mas que têm interesses celestiais. Não há muitas pessoas assim, mas entre elas há pessoas verdadeiramente maravilhosas que realmente seguem o Santo Evangelho em suas vidas. Eu acho que coisas externas como, por exemplo, estações de TV ou rádio Ortodoxas, não são tão importantes, mas o que é importante é o brilho interior da santidade que, de fato, faz da Igreja a Igreja como tal. E há pessoas que fizeram a sua casa na terra, que querem viver aqui por prazer, e que "tiram tudo da vida" [slogan publicitário comum].  Tais pessoas podem até mesmo usar uma cruz ou ir numa igreja, mas não são familiares a Deus. Eu não direi para sempre, no entanto. Ainda há esperança para eles e o Senhor também os visita com crises financeiras e gripe suína. Deus visita todos de uma maneira diferente e entre eles há muitos que se arrependem. A propósito, é interessante que essa divisão não está de forma alguma relacionada com a posição financeira. Existem pessoas ricas justas e pessoas pobres ímpias.

Bem-aventurado Agostinho disse há muito tempo: "As pessoas pertencem à cidade celeste quando amam a Deus, mesmo ao desprezo de si mesmas. E as pessoas pertencem à cidade terrestre quando amam a si mesmas, mesmo ao desprezo de Deus" [Livro XIV, cap. 28, Cidade de Deus]. Esta divisão é muito distinta e na Rússia é muito visível. Pode-se dizer que ambas estão certas, particularmente porque [a Rússia] é duas terras. A propósito, eu acho que o mesmo acontece na Sérvia.

Stanoje Stankovic: A próxima pergunta é sobre as tentações modernas que temos. Na Sérvia, eles começaram a introduzir passaportes biométricos e há uma tentação entre as pessoas na Igreja que pensam que, se alguém aceita um novo passaporte, elas estão negando Cristo e aceitando a marca do Anticristo.

Yuri Maximov: Isto é um prelest demoníaco e uma das armadilhas tradicionais do diabo. Isto é fácil de ver através da história da Rússia. Não muito tempo atrás, quando eles trocaram os passaportes soviéticos por passaportes russos, as pessoas disseram que aqueles que aceitam passaportes russos não são mais cristãos e nada irá salvá-los; não se deveria aceitar os novos passaportes, eles são do Anticristo, você tem que manter os antigos, soviéticos, os passaportes "bons". No entanto, quarenta anos atrás, quando eles introduziram aqueles passaportes soviéticos "bons" em todo o país, pessoas semelhantes disseram a mesma coisa - que eles eram do Anticristo e que não se deveria aceitá-los. E além disso, mesmo antes da revolução, sob o czar, havia pessoas que diziam a mesma coisa - que não se deveria aceitar os passaportes czaristas porque eles são do Anticristo.

Padre Daniel: São Dimitri de Rostov escreveu que no século XVIII, na introdução dos primeiros passaportes e do primeiro papel-moeda, havia pessoas que afirmavam que era a marca do Anticristo.

Yuri Maximov: Qual é o objetivo desta armadilha? Fazer com que as pessoas olhem para as coisas exteriores, não para Cristo. Passaportes, cartões, códigos de barras, e assim por diante. Mas uma pessoa não pode servir a dois mestres. Desta maneira, a pessoa não mais olha se está com Cristo ou não, se cumpre seus mandamentos ou não, se mantém a fé em Cristo ou não, mas olha se aceitou um passaporte ou não, se há um código de barras na embalagem ou não. Ou seja, as pessoas param de olhar para a essência e se distraem.

Stanoje Stankovic: As pessoas que têm tais opiniões sobre passaportes novos, etc., referem-se às palavras dos anciãos, do ancião Paisios do Monte Athos e de alguns outros, sobre os quais não sei nada, exceto o que está escrito na internet. O que devemos pensar disto?

Padre Daniel: Sabemos que até os Santos Padres cometeram erros quando ensinaram contra a Santa Tradição. Como dizia São Vicente de Lerins, a Santa Tradição é aquela que foi ensinada por todos, sempre e em toda parte. E, a propósito, o ensinamento sobre um "selo", como algum tipo de ferramenta externa, ou "pré-selo" (na Rússia eles inventaram tal termo) é um ensinamento que só agora apareceu. Não havia tal coisa anteriormente. Mas o que ocorre é que esta opinião é falsa também no sentido teológico. Yuri Valeryevich falou do significado espiritual e eu vou falar do significado teológico. O fato é que para nós o mais importante é a aliança do homem com Cristo. Temos um acordo com Deus e Ele tem um com nós. Como o Senhor disse, ninguém pode nos tirar das mãos do Pai Celestial porque o Pai Nosso é maior do que todos. O Senhor disse que das Suas mãos, ninguém pode nos tirar. E o próprio selo do Anticristo, que é descrito no décimo terceiro capítulo do Apocalipse, de acordo com a explicação dos Santos Padres - São Hipólito de Roma, Santo André de Cesaréia, Santo Irineu de Lyon - é nomeadamente uma questão de um acordo pessoal com o Anticristo. [O selo] é também uma aliança, mas diferente. Não foi em vão que Santo André de Cesaréia disse que assim como recebemos o selo do Espírito Santo na crisma, assim também o Anticristo dará um selo impuro e maligno. A questão não é sequer sobre os meios técnicos - esta é uma forma falsa de pensar. Pois um selo pode ser aplicado por uma simples mão ou qualquer outra coisa. Porque a essência desse selo não está nos meios técnicos, mas no fato da pessoa se mover voluntariamente para o lado do inimigo. Isto é o que é muito importante!

Muitos, por alguma razão, pensam que o Anticristo não pode identificar uma pessoa sem um selo, mas Satanás habitará no Anticristo; como diz na Epístola aos Tessalonicenses, ele agirá de acordo com Satanás - e todos os espíritos malignos estão sujeitos a Satanás. Espíritos malignos estão atrás de nós e nos comprometem como podem. Como está escrito nos telônios da Bem-aventurada Theodora, eles anotam qualquer maldade que façamos. Seria realmente difícil para o Anticristo convocar um espírito e perguntar onde alguém está localizado? Será fácil para ele perguntar. Ele não precisará nos perseguir para isso. Para o Anticristo, não é importante saber onde a pessoa está ou o que está fazendo, mas o importante é que a pessoa faça um acordo com ele - que uma união seja feita. E ele chantageará com a ajuda da fome. Portanto, o comércio será proibido e a idéia será simples: se você não me adorar, eu vou te matar de fome. Essa é a lógica, entendeu?

E há uma substituição enganosa neste caso, uma substituição que os sectários fizeram. A idéia de que os passaportes biométricos e NCIs, bem como os passaportes em geral, são o selo do Anticristo vem de ambientes cismáticos. Foram os cismáticos que pensaram nisso sobre passaportes: primeiro os cismáticos russos do Velho Rito, depois os beguny (havia tal seita como disse Yuri Valeryevich). A idéia relativa ao NCI veio de Adventistas do Sétimo Dia. Na década de 1970, um dos pregadores adventistas teve uma "visão" onde um espírito lhe revelou que o NCI é o selo do Anticristo; você vê de que tipo de fonte turva todas essas idéias vêm?

Por que Satanás propaga tudo isso? Para que quando o verdadeiro Anticristo aparecer todas aquelas pessoas que estão com medo de aceitar o selo recebam com alegria o selo real, porque elas buscarão o selo ali onde ele não está. Eles buscarão o selo em algum tipo de meio técnico que o Anticristo não precisa. O diabo quer preparar as pessoas para que quando o verdadeiro inimigo vier elas não tenham medo. São Hipólito diz o seguinte: "O que dirá a pessoa que aceita o selo do Anticristo? Ele dirá: 'Eu renuncio a Deus, o Criador do céu e da terra, Seu único Filho Jesus Cristo, o Espírito Santo e a Santa Igreja e me entrego a você'". Pode ver que São Hipólito estava correto. A principal coisa com a qual o Anticristo se apodera dos seus em nossos dias é com a negação da criação do universo. A evolução não é uma preparação para a vinda do Anticristo? Naturalmente, a evolução teísta é especialmente essa preparação. Quando alguém afirma que Deus criou com a ajuda do mal e da morte, isto leva ao Anticristo. A afirmação de que Cristo não é o único caminho para Deus é o caminho para o Anticristo. A afirmação de que fora da Igreja há salvação é o caminho para o Anticristo. A afirmação de que devemos fazer nosso lar na terra é o caminho para o Anticristo - como diz o Apóstolo Paulo, quando eles disserem paz e segurança, então virá a destruição [I Tess. 5:3]; tudo isso é o caminho para o Anticristo. Na ideologia está o caminho para o Anticristo e não na tecnologia. Aqui está verdadeiramente uma substituição demoníaca: substituir os sistemas tecnológicos pela questão de um acordo real. Direi que, no sentido espiritual, muitas pessoas agora estão de acordo com as idéias do Anticristo. A idéia de que há um só Deus, mas muitos caminhos para Ele é certamente uma idéia do Anticristo. Mas ninguém escreve contra ela; ninguém luta contra ela. Eles lutam contra aquelas coisas que há muito tempo se tornaram obsoletas. Eles dizem que há supostamente um "computador-besta" em Bruxelas, você já ouviu falar? Mas, perdoem-me, um "computador-besta" feito em 1976 é menos poderoso do que o meu que está aqui mesmo. Até mesmo o aparelho de gravação em suas mãos é mais poderoso do que aquele computador que, alegadamente, envolveu toda a humanidade. E algumas pessoas ainda estão assustadas com essas coisas velhas. Isto é simplesmente tolice das pessoas que caíram prelest. E a razão para isso é muito simples: se você notar, quanto mais alguém começa a se envolver na batalha contra o NCI ou passaportes biométricos, mais inquieto, irritado, malicioso e agressivo ele se torna. Pode isto ser do Espírito Santo? O Espírito Santo é o Deus da confusão? Como o Apóstolo Paulo disse, Deus não é Deus da confusão, senão da paz [I Cor. 14:33]. Eu ainda não vi uma pessoa calma e tranquila que luta ativamente contra o NCI. Todas elas são histéricas. Havia um arquimandrita renomado em um grande mosteiro, eu não vou nomeá-lo para não difamá-lo, que lutou ativamente contra o NCI e, como resultado, ficou louco. No verdadeiro sentido da palavra. Ele começou a correr ao redor do mosteiro nu, gritando disparates e acabou em uma instituição mental. Tal é o obscurecimento espiritual que danificou completamente uma pessoa. Tivemos pessoas que começaram a se retirar para cavernas. Você conhece a história de Penza?  É tudo resultado do mesmo prelest. Pode ser de Deus? Não, isso é de Satanás. É de Satanás particularmente, porque o diabo quer enganar as pessoas. Ele os enganou para que eles se esquecessem de Cristo e se lembrassem apenas do diabo.Você falou do Ancião Paisios e eu lembrei-me de uma história que conheço em primeira mão. Nos anos 80, certos peregrinos foram ao Ancião Paisios da Montanha Santa e começaram a questioná-lo quando viria o Anticristo. E ele respondeu-lhes: "Por quê? Vocês estão esperando ansiosamente por ele?"

Stanoje Stankovic: Mais uma pergunta sobre a vida espiritual. O que é necessário para resistir às tentações modernas? Particularmente, qual é a virtude mais importante?

Padre Daniel: Confiar apenas em Deus é o mais importante. Se não tivermos confiança em Deus, então nossa oração se transforma em uma regra tortuosa. Um pai espiritual se transforma em psicanalista. Tudo o resto se transforma em desenvolvimento vazio. Precisamos confiar em Deus pessoalmente. Devemos lembrar que estamos sob os cuidados de Deus e Ele está conosco. Deus verdadeiramente nos mantém em Suas Mãos. E ninguém pode nos separar dEle; como diz o Apóstolo Paulo: "Quem nos separará do amor de Cristo?" [Romanos 8:35]. Verdadeiramente, se estamos com Deus, todas as demais virtudes serão formadas. A oração se tornará comunhão com Deus que está conosco. A obediência se tornará a habilidade de ouvir a Sua Santa Palavra - de ouvi-la no ruído deste mundo.  A obediência a um pai espiritual tornar-se-á a capacidade de ver nele um ícone vivo de Cristo e ver, através dele, o Senhor. Um pai espiritual é aquele que conduz a Deus, mas não aquele que fica no caminho e humilha o filho espiritual. O mesmo acontece com a humildade. Humildade não é dizer que alguém é uma pessoa má, estúpida, ou que ela não é capaz de fazer nada, mas é a habilidade de entender que não se pode fazer nada sem Deus e que com Deus se pode fazer muito. Aliás, a humildade tem outro lado: coragem, quando uma pessoa reconhece os talentos que Deus lhe deu e pelos quais terá que responder. A mansidão estará ao mesmo tempo ligada à coragem, porque a mansidão sem Deus é covardia, mas com Deus é coragem. E é assim em tudo. Portanto, devemos caminhar diante de Deus em todos os momentos, tanto modernos como antigos, sempre.

Stanoje Stankovic: Que atitude os Ortodoxos russos têm em relação aos santos sérvios: Santo Hierarca Nikolai (Velimirovic) e Abba Justino (Popovic)?

Yuri Maksimov: São Nikolai da Sérvia e Abba Justino Popovic são os santos sérvios mais amados e conhecidos, bem como os sérvios mais conhecidos do século XX na Rússia. O conhecimento sobre eles começou com pequenas traduções, mas os corações do povo Ortodoxo na Rússia responderam tão animadamente à palavra do Espírito Santo que estava nas obras desses dois ascetas sérvios que os editores, vendo um grande interesse, começaram a traduzir e publicar cada vez mais os seus livros. Hoje, se você entrar em uma livraria na Rússia você verá uma infinidade de livros de São Nikolai e Abba Justino. Além disso, se você olhar os escritos Ortodoxos modernos, verá citações de São Nikolai e Abba Justino. Esta é uma oferta da Igreja Ortodoxa Sérvia que a Igreja Ortodoxa Russa aceitou e hoje continua a aceitar com amor e gratidão. Ambos têm uma grande autoridade na Rússia, e penso que isto se deve também ao fato de São Nikolai ter tido um talento especial para explicar coisas difíceis de uma forma simples, explicando-as de uma maneira que tocava os corações do homem moderno. Além disso, ele não apresentou uma versão condensada ou reduzida, nem coisas primitivas, mas explicou as profundezas de nossa fé. E, portanto, o amor por ele e sua autoridade é muito grande, claro, o que é compreensível. O interesse pela herança dos ascetas sérvios levou à tradução e publicação de outros livros de escritores Ortodoxos sérvios, incluindo teólogos modernos que ainda vivem. Mas, tanto quanto sei, nenhum deles é tão popular entre os russos como estes dois pilares. E isto porque, ao ler um texto de São Nikolai, sentimos como ele toca as nossas almas.

Padre Daniel: Gostaria de acrescentar algo. O fato é que as primeiras traduções de São Justino foram versões samizdat dos anos 70. E então as versões samizdat feitas por volta de 1982-1983 foram capazes de alcançar uma coisa importante. Temos que lembrar que o ecumenismo era característico no período soviético. Sabemos que as Igrejas Ortodoxas participaram dele e que até mesmo hierarcas participaram, pensando que o único inimigo fosse o materialismo (esse ídolo) e que isso encorajaria a superação das discordâncias entre Ortodoxos, Católicos Romanos e outros. Isso, claro, foi um erro. E particularmente a obra de São Justino A Igreja Ortodoxa e o Ecumenismo em muitos aspectos mudou a perspectiva de muitas pessoas que agora praticamente moldam a vida da Igreja na Rússia.  Isto não diz respeito apenas aos teólogos e hierarquias; na verdade, esse livro teve o efeito de uma bomba. Vou dizer que, na minha experiência, as pessoas simples amam muito São Nikolai, ao passo que São Justino, de muitas maneiras, ajudou a mudar a visão das pessoas de disposição teológica, digamos assim. Em muitos aspectos, particularmente, aquele estímulo que São Justino deu com sua obra contra o ecumenismo encorajou a reavaliação desse fenômeno e  levou ao fato de que agora resta muito pouco ecumenismo na Igreja Russa. Na Rússia, o ecumenismo é desprezado. A maioria das pessoas, mesmo as que estão envolvidas no ecumenismo, têm de se justificar constantemente, o que não acontecia anteriormente. Na década de 1970, o ecumenismo era aceito como completamente normal. Agora é considerado vergonhoso, mesmo por aqueles que estão envolvidos nele. E aqui está, verdadeiramente, o mérito de São Justino. Primeiro foi Justino e depois começaram a publicar São Hilário (Troitsky) e outros autores. Mas um começo foi estabelecido especificamente por São Justino.


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