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sábado, 31 de outubro de 2020

São Gregório Palamas e a Tradição dos Pais (Pe. George Florovsky)

Seguindo os Pais

"SEGUINDO OS SANTOS PAIS" ... Era habitual na Igreja Antiga introduzir afirmações doutrinárias através de frases como esta. O Decreto de Calcedônia abre precisamente com estas mesmas palavras. O Sétimo Concílio Ecumênico introduz sua decisão sobre os Santos Ícones de uma forma mais elaborada: "Seguindo o ensinamento divinamente inspirado dos Santos Pais e a Tradição da Igreja Católica." A didaskalia dos Pais é o termo de referência formal e normativo.

Isso era muito mais do que apenas um "apelo à antiguidade". De fato, a Igreja salienta sempre a permanência de sua fé através dos tempos, desde o princípio. Esta identidade, desde os tempos apostólicos, é o sinal mais evidente e expressão da fé correta - sempre a mesma. No entanto, a "antiguidade" por si só não é uma prova adequada da verdadeira fé. Além disso, a mensagem cristã era obviamente uma "novidade" impactante para o "mundo antigo" e, de fato, um chamado à "renovação" radical. O "Velho" passou, e tudo foi "feito Novo". Por outro lado, as heresias também podem apelar ao passado e invocar a autoridade de certas "tradições". De fato, as heresias frequentemente persistiam no passado.[1] As fórmulas arcaicas podem muitas vezes ser perigosamente enganosas. O próprio Vicente de Lerins estava plenamente consciente desse perigo. Bastaria citar esta tocante passagem dele: "E agora, que inversão espantosa da situação! Os autores da mesma opinião são julgados católicos, mas os seguidores - heréticos; Os mestres são absolvidos, os discípulos são condenados; Os escritores dos livros serão filhos do Reino, seus seguidores irão para a Geena" (Commonitorium, cap. 6). Vincente tinha em mente, evidentemente, São Cipriano e os Donatistas. O próprio São Cipriano enfrentou a mesma situação. "Antiguidade" como tal pode ser apenas um preconceito inveterado: nam antiquitas sine veritate vetustas erroris est (Epist. 74). Ou seja - " costumes antigos " como tais não garantem a verdade. "Verdade" não é apenas um "hábito".

A verdadeira tradição é apenas a tradição da verdade, traditio veritatis. Esta tradição, segundo Santo Irineu, está fundamentada em, e assegurada por, aquele carisma veritatis certum [carisma seguro da verdade], que foi "depositado" na Igreja desde o início e preservado pela sucessão ininterrupta do ministério episcopal. A "tradição" na Igreja não é uma continuidade da memória humana, nem uma permanência de ritos e hábitos.É uma tradição viva - depositum juvenescens, na expressão de Santo Irineu. Por conseguinte, não pode ser contada entre mortuas régulas [entre regras mortas]. Em última análise, a tradição é uma continuidade da presença permanente do Espírito Santo na Igreja, uma continuidade da orientação e da iluminação divina. A Igreja não está presa pela "letra". Ao contrário, ela é constantemente movida pelo "Espírito". O mesmo Espírito, o Espírito da Verdade, que "falou pelos Profetas", que guiou os Apóstolos, ainda está continuamente guiando a Igreja na compreensão e entendimento mais pleno da verdade divina, de glória em glória.

"Seguindo os Santos Pais" ... Isto não é uma referência a alguma tradição abstrata, em fórmulas e proposições. É primariamente um apelo ao testemunho santo. De fato, apelamos aos Apóstolos, e não apenas a uma "Apostolicidade" abstrata. Do mesmo modo, referimo-nos aos Pais. O testemunho dos Pais pertence, intrínseca e integralmente, à própria estrutura da crença Ortodoxa. A Igreja está igualmente comprometida com o kerygma dos Apóstolos e com o dogma dos Pais. Podemos citar neste ponto um admirável antigo hino (provavelmente, da pena de São Romano, o Melodista). "Preservando o kerigma dos Apóstolos e os dogmas dos Pais, a Igreja selou a única fé e vestindo a túnica da verdade, ela molda corretamente o tecido ricamente adornado da teologia celeste e louva o grande mistério da piedade " [2].

A Mente dos Pais 

A Igreja é de fato "Apostólica". Mas a Igreja também é "Patrística". Ela é intrinsecamente "a Igreja dos Pais". Estas duas "notas" não podem ser separadas. Apenas por ser "Patrística", a Igreja é verdadeiramente "Apostólica". O testemunho dos Pais é muito mais do que uma simples característica histórica, uma voz do passado. Citemos outro hino - do ofício dos Três Hierarcas. "Pela palavra do conhecimento vós compusestes os dogmas que os pescadores estabeleceram primeiramente em palavras simples, no conhecimento pelo poder do Espírito, pois assim a nossa simples piedade teve que adquirir composição". Há, por assim dizer, dois estágios básicos na proclamação da fé cristã. "A nossa simples fé teve que adquirir composição." Havia um impulso interior, uma lógica interior, uma necessidade interna, nesta transição - do kerygma para o dogma. Com efeito, o ensinamento dos Pais, e o dogma da Igreja, são ainda a mesma "simples mensagem" que uma vez foi transmitida e depositada, uma vez para sempre, pelos Apóstolos. Mas agora ela é, por assim dizer, devidamente e plenamente articulada. A pregação apostólica é mantida viva na Igreja, não apenas meramente preservada. Neste sentido, o ensino dos Pais é uma categoria permanente da existência cristã, uma medida constante e última e critério de fé correta. Os Pais não são apenas testemunhas da fé antiga, testes antiquitatis. São, antes, testemunhas da verdadeira fé, testes veritatis. "A mente dos Pais" é um termo de referência intrínseco na teologia ortodoxa, não menos do que a palavra da Sagrada Escritura, e de fato nunca se separou dela. Como foi bem dito, "a Igreja Católica de todos as épocas não é meramente uma filha da Igreja dos Pais - ela é e continua a ser a Igreja dos Pais". [3]

O caráter existencial da teologia patrística

A principal marca distintiva da teologia patrística era seu caráter "existencial", se pudermos usar este neologismo contemporâneo. Os Pais teologizaram, como dizia São Gregório de Nazianzo, "à maneira dos Apóstolos, não à maneira de Aristóteles - alieutikos, ouk aristotelikos [lit. “como pescadores, não como Aristóteles”— ed] (Hom. 23. 12). A teologia deles ainda era uma "mensagem", um kerygma. Sua teologia ainda era "teologia kerigmática", mesmo que muitas vezes fosse logicamente arranjada e acompanhada de argumentos intelectuais. A referência final ainda era a visão da fé, ao conhecimento espiritual e à experiência. À parte da vida em Cristo, a teologia não tem convicção e, se separada da vida de fé, a teologia pode degenerar em uma dialética vazia, uma polylogia vã, sem nenhuma consequência espiritual. A teologia patrística estava existencialmente enraizada no compromisso decisivo da fé. Não era uma "disciplina" auto-explicativa que podia ser apresentada argumentativamente, isto é, aristotelikos, sem qualquer engajamento espiritual prévio. Na era das disputas teológicas e dos debates incessantes, os grandes Pais Capadócios protestaram formalmente contra o uso da dialética, dos "silogismos aristotélicos", e tentaram remeter a teologia de volta à visão da fé. A teologia patrística só poderia ser pregada" ou "proclamada" - pregada do púlpito, proclamada também nas palavras da oração e nos ritos sagrados, e de fato manifestada na estrutura total da vida cristã. Uma teologia deste tipo nunca pode ser separada da vida de oração e do exercício da virtude. "O clímax da pureza é o início da teologia", como diz São João Clímaco: Telos de hagneias hypotheosis theologias (Scala Paradisi, grau 30).

Por outro lado, a teologia deste tipo é sempre, por assim dizer, "propedêutica", uma vez que seu objetivo e propósito último é verificar e reconhecer o Mistério do Deus Vivo, e de fato testemunhá-lo, em palavras e atos. A "teologia" não é um fim em si mesma. Ela é sempre apenas um caminho. A teologia, e mesmo os "dogmas", apresentam não mais que um "contorno intelectual" da verdade revelada, e um testemunho "noético" da mesma. Somente no ato de fé é que este "contorno" é preenchido com conteúdo. As fórmulas cristológicas são plenamente significativas apenas para aqueles que encontraram o Cristo Vivo, e O receberam e reconheceram como Deus e Salvador, e estão habitando pela fé nEle, em Seu corpo, a Igreja. Neste sentido, a teologia nunca é uma disciplina auto-explicativa. Ela apela constantemente para a visão da fé. "O que vimos e ouvimos, anunciamos a vocês". À parte este "anúncio", as fórmulas teológicas são vazias e não têm qualquer consequência. Pela mesma razão, estas fórmulas nunca podem ser tomadas "abstratamente", ou seja, fora do contexto total da crença. É enganoso destacar declarações particulares dos Pais e desprendê-las da perspectiva total na qual foram realmente pronunciadas, assim como é enganoso manipular com citações desprendidas das Escrituras. É um hábito perigoso "citar" os Pais, ou seja, seus dizeres e frases isoladas, fora daquele quadro concreto no qual unicamente têm seu pleno e próprio significado e estão verdadeiramente vivos. "Seguir" os Pais não significa apenas "citá-los". "Seguir" os Pais significa adquirir a "mente" deles, seu phronema.

O significado da "Era" dos Pais

Agora, chegamos ao ponto crucial. O nome de "Pais da Igreja" é geralmente restrito aos doutores da Igreja Antiga. E atualmente assume-se que a autoridade deles depende de sua "antiguidade", de sua proximidade comparativa com a "Igreja Primitiva", com a "Era" inicial da Igreja. Já São Jerônimo teve que contestar esta idéia. De fato, não houve diminuição de "autoridade", nem diminuição na imediatez da competência espiritual e do conhecimento, no curso da história cristã. De fato, porém, esta idéia de "diminuição" afetou fortemente nosso pensamento teológico moderno. Na realidade, é muito frequentemente assumido, consciente ou inconscientemente, que a Igreja Primitiva estava, por assim dizer, mais próxima da fonte da verdade. Como uma admissão de nosso próprio fracasso e inadequação, como um ato de autocrítica humilde, tal suposição é sólida e útil. Mas é perigoso fazer dela o ponto de partida ou a base de nossa "teologia da história da Igreja", ou mesmo de nossa teologia da Igreja. De fato, a Era dos Apóstolos deve manter sua posição única. No entanto, foi apenas um começo. É amplamente assumido que a "Era dos Pais" também terminou, e por isso é considerada apenas como uma formação antiga, "antiquada" em um sentido e "arcaica". O limite da "Era Patrística" é definido de forma variada. É comum considerar São João de Damasco como o "último Pai" no Oriente, e São Gregório o Dialogista ou Isidoro de Sevilha como "o último" no Ocidente. Esta periodização tem sido justamente contestada em tempos recentes. Não deveria, por exemplo, o São Teodoro do Estúdio, pelo menos, ser incluído entre os "Pais"? Mabillon sugeriu que Bernardo de Claraval, o Doutor melífluo, foi "o último dos Pais, e certamente não desigual dos anteriores". [4] Na verdade, é mais do que uma questão de periodização. Do ponto de vista ocidental, "a Era dos Pais" foi sucedida, e de fato superada, pela "Era dos Escolares", que foi um passo essencial adiante. Desde a ascensão do Escolasticismo, a "Teologia Patrística" passou a ser antiquada, tornou-se na realidade uma "era passada", uma espécie de prelúdio arcaico. Este ponto de vista, legítimo para o Ocidente, tem sido, infelizmente, aceito também por muitos no Oriente, de forma cega e acrítica. Portanto, é preciso enfrentar a alternativa.  Ou se tem que lamentar o "atraso" do Oriente que nunca desenvolveu nenhum "escolasticismo" próprio. Ou é preciso se retirar para "Era Antiga", de forma mais ou menos arqueológica, e praticar o que tem sido descrito de forma astuciosa recentemente como uma "teologia da repetição". Esta última, de fato, é apenas uma forma peculiar de "escolasticismo" imitativo.

Agora, não é raro sugerir que, provavelmente, "a Era dos Pais" tenha terminado muito mais cedo do que São João de Damasco. Muito frequentemente não se prossegue além da Era de Justiniano, ou mesmo já do Concílio de Calcedônia. Leôncio de Bizâncio não era já "o primeiro dos Escolásticos"? Psicologicamente, esta atitude é bastante compreensível, embora não possa ser teologicamente justificada. De fato, os Pais do século IV são muito mais impressivos, e sua grandeza única não pode ser negada. No entanto, a Igreja permaneceu plenamente viva também depois de Nicéia e Calcedônia. A atual ênfase excessiva nos "primeiros cinco séculos" distorce perigosamente a visão teológica e impede a compreensão correta do próprio dogma calcedoniano. O decreto do Sexto Concílio Ecumênico é frequentemente considerado como uma espécie de "apêndice" de Calcedônia, interessante apenas para especialistas em teologia, e a grande figura de São Máximo, o Confessor, é quase completamente ignorada. Assim, o significado teológico do Sétimo Concílio Ecumênico é perigosamente obscurecido, e  resta perguntar-se por que a Festa da Ortodoxia deveria estar relacionada à comemoração da vitória da Igreja sobre os Iconoclastas. Não foi apenas uma "controvérsia ritualística"? Muitas vezes esquecemos que a famosa fórmula do Consensus quinquesaecularis [consenso dos cinco séculos], ou seja, até Calcedônia, era uma fórmula Protestante, e refletia uma peculiar "teologia da história" Protestante. Era uma fórmula restritiva, por mais que parecesse ser demasiado inclusiva para aqueles que queriam ser isolados na Era Apostólica. A questão é que a atual fórmula oriental dos "Sete Concílios Ecumênicos" dificilmente é muito melhor, se ela tende, como costuma fazer, a restringir ou limitar a autoridade espiritual da Igreja aos primeiros oito séculos, como se "a Era de Ouro" do Cristianismo já tivesse passado e estivéssemos agora, provavelmente, já em uma Idade do Ferro, muito mais abaixo na escala do vigor espiritual e da autoridade. Nosso pensamento teológico tem sido perigosamente afetado pelo padrão de decadência, adotado para a interpretação da história cristã no Ocidente desde a Reforma. A plenitude da Igreja foi então interpretada de forma estática, e a atitude para com a Antiguidade tem sido distorcida e mal interpretada. Afinal, não faz muita diferença, se restringimos a autoridade normativa da Igreja a um século, ou a cinco, ou a oito. Não deveria haver nenhuma restrição. Consequentemente, não há espaço para qualquer "teologia da repetição". A Igreja ainda é plenamente autoritativa como tem sido nas eras passadas, uma vez que o Espírito da Verdade a vivifica de forma não menos eficaz como nos tempos antigos.

O Legado da Teologia Bizantina

Um dos resultados imediatos de nossa periodização descuidada é que simplesmente ignoramos o legado da teologia bizantina. Estamos preparados, agora mais do que há apenas algumas décadas, para admitir a autoridade perene dos "Pais", especialmente desde o reavivamento dos estudos patrísticos no Ocidente. Mas ainda tendemos a limitar o escopo da admissão, e obviamente os "teólogos bizantinos" não são prontamente incluídos entre os "Pais". Estamos inclinados a discriminar bastante rigidamente entre "Patrística" - num sentido mais ou menos estreito - e "Bizantinismo". Ainda estamos inclinados a considerar o "Bizantinismo" como uma sequência inferior à Era Patrística. Ainda temos dúvidas sobre sua relevância normativa para o pensamento teológico. Entretanto, a teologia bizantina era muito mais do que apenas uma "repetição" da teologia patrística e o que nela era novo não era de qualidade inferior em comparação com a "Antiguidade Cristã". De fato, a teologia bizantina era uma continuação orgânica da Era Patrística. Houve alguma ruptura? O ethos da Igreja Ortodoxa Oriental alguma vez foi alterado, em algum ponto ou data histórica, que, no entanto, nunca foi unanimemente identificado, de modo que o desenvolvimento "posterior" foi de menor autoridade e importância que qualquer outro? Esta admissão parece estar silenciosamente implícita no comprometimento restritivo aos Sete Concílios Ecumênicos. Assim, São Simeão, o Novo Teólogo, e São Gregório Palamas são simplesmente deixados de fora, e os grandes Concílios Hesicastas do século XIV são ignorados e esquecidos. Qual é a posição e a autoridade deles na Igreja?

Porém, de fato, São Simeão e São Gregório ainda são mestres e inspiradores de todos aqueles que, na Igreja Ortodoxa, estão lutando pela perfeição, e estão vivendo a vida de oração e contemplação, seja nas comunidades monásticas sobreviventes, seja na solitude do deserto, e até mesmo no mundo. Estas pessoas fiéis não estão cientes de nenhuma suposta "ruptura" entre "Patrística" e "Bizantinismo". A Filocalia, esta grande enciclopédia de piedade oriental, que inclui escritos de muitos séculos, está, em nossos dias, se tornando cada vez mais o manual de orientação e instrução para todos aqueles que estão dispostos a praticar a Ortodoxia em nossa situação contemporânea. A autoridade de seu compilador, São Nicodemos da Santa Montanha, foi recentemente reconhecida e reforçada por sua canonização formal na Igreja. Neste sentido, somos levados a dizer que "a Era dos Pais" ainda continua na "Igreja Venerante". Não deveria ela continuar também em nossa busca teológica e em nosso estudo, pesquisa e instrução? Não deveríamos recuperar "a mente dos Pais" também em nosso pensamento teológico e ensino? Recuperá-la, de fato, não como uma forma arcaica ou uma pose, e não apenas como uma relíquia venerável, mas como uma atitude existencial, como uma orientação espiritual. Somente desta forma nossa teologia poderá ser reintegrada à plenitude de nossa existência cristã. Não basta manter uma "Liturgia Bizantina", como nós fazemos, restaurar a iconografia bizantina e a música bizantina, como ainda estamos relutantes em fazer consistentemente, e praticar certos modos de devoção bizantina. É preciso ir às próprias raízes desta "piedade" tradicional, e recuperar a "mente patrística". Caso contrário, podemos estar em perigo de estarmos divididos interiormente - como muitos em nosso meio estão de fato - entre as formas "tradicionais" de "piedade" e um hábito não muito tradicional do pensamento teológico. Trata-se de um perigo real. Como "veneradores", ainda estamos na "tradição dos Pais". Não deveríamos nos manter, consciente e declaradamente, na mesma tradição também como "teólogos", como testemunhas e doutores da Ortodoxia? Podemos manter nossa integridade por qualquer outra maneira?




São Gregório Palamas e Theosis 

Todas estas considerações preliminares são altamente relevantes para nosso propósito imediato. Qual é o legado teológico de São Gregório Palamas? São Gregório não foi um teólogo especulativo. Ele era um monge e um bispo. Ele não estava preocupado com problemas abstratos de filosofia, embora ele também estivesse bem treinado neste campo. Ele estava preocupado apenas com os problemas da existência cristã. Como teólogo, ele era simplesmente um intérprete da experiência espiritual da Igreja. Quase todos os seus escritos, exceto provavelmente as suas homilias, eram escritos ocasionais. Ele estava lutando contra os problemas de sua própria época. E era uma época crítica, uma era de controvérsia e ansiedade. De fato, era também uma era de renovação espiritual.

São Gregório havia sido suspeito de inovações subversivas por seus inimigos em seu próprio tempo. Esta acusação ainda é mantida contra ele no Ocidente. Na verdade, porém, São Gregório estava profundamente enraizado na tradição. Não é difícil rastrear a maioria de seus pontos de vista e motivos de volta aos Pais Capadócios e a São Máximo o Confessor, que foi, por sinal, um dos mais populares mestres do pensamento e devoção bizantina. De fato, São Gregório também estava intimamente familiarizado com os escritos de Pseudo-Dionísio. Ele estava enraizado na tradição. No entanto, em nenhum sentido sua teologia foi apenas uma "teologia da repetição". Era uma extensão criativa da tradição antiga. Seu ponto de partida era a Vida em Cristo.

De todos os temas da teologia de São Gregório, destacamos apenas um, o crucial e o mais controverso. Qual é o caráter básico da existência cristã? O objetivo e o propósito último da vida humana foi definido na tradição patrística como theosis [divinização]. O termo é bastante ofensivo para o ouvido moderno. Ele não pode ser adequadamente traduzido em nenhuma língua moderna, nem mesmo em latim. Mesmo em grego, ele é um tanto pesado e pretensioso. De fato, é uma palavra ousada. O significado da palavra é, no entanto, simples e lúcido. Foi um dos termos cruciais do vocabulário patrístico. Neste ponto, bastaria citar apenas São Atanásio. Gegonen gar anthropos, hin hemas en heauto theopoiese [Ele se fez homem para nos divinizar em si mesmo (Adelphium 4)]. Autos gar enenthropesen, hina hemeis theopoiethomen. [Ele se tornou homem para que pudéssemos ser divinizados (De Incarnatione 54)]. Santo Atanásio retoma aqui a idéia favorita de Santo Irineu: qui propter imensam dilectionem suam factus est quod sumus nos, uti nos perficeret esse quod est ipse [Que, através de seu imenso amor se tornou o que somos, para que Ele pudesse nos levar a ser o que Ele mesmo é (Adv. Haeres. V, Praefatio)] Era a convicção comum dos Pais Gregos. Pode-se citar amplamente São Gregório de Nazianzo. São Gregório de Nissa, São Cirilo de Alexandria, São Máximo, e de fato São Simeão, o Novo Teólogo. O homem permanece sempre o que ele é, isto é, criatura. Mas a ele é prometido e concedido, em Cristo Jesus, o Verbo que se fez homem, uma participação íntima no que é Divino: A vida eterna e incorruptível. A principal característica da theosis é, segundo os Pais, precisamente "imortalidade" ou "incorruptibilidade". Pois só Deus "tem imortalidade" -ho monos echon athanasian (I Tm 6,16). Mas o homem agora é admitido em uma "comunhão" íntima com Deus, através de Cristo e pelo poder do Espírito Santo. E isto é muito mais que uma comunhão "moral", e muito mais que uma simples perfeição humana. Somente a palavra theosis pode apresentar adequadamente a singularidade da promessa e da oferta. O termo theosis é certamente bastante embaraçoso, se pensarmos em categorias "ontológicas". De fato, o homem simplesmente não pode "tornar-se" deus. Mas os Pais estavam pensando em termos "pessoais", e o mistério da comunhão pessoal estava envolvido neste ponto. A theosis significava um encontro pessoal. É aquela relação íntima do homem com Deus, na qual toda a existência humana é, por assim dizer, permeada pela Presença Divina. [5]

No entanto, o problema permanece: Como mesmo esta relação pode ser compatível com a Transcendência Divina? E este é o ponto crucial. Será que o homem realmente encontra Deus, nesta vida presente na Terra? Será que o homem encontra Deus, verdadeiramente, em sua vida presente de oração? Ou será que não existe mais do que uma actio in distans? A afirmação comum dos Pais Orientais era que, em sua ascensão devocional, o homem encontra realmente Deus e contempla Sua Glória eterna. Mas como é possível, se Deus "habita na luz inacessível"? O paradoxo era especialmente acentuado na teologia oriental, que sempre esteve comprometida com a crença de que Deus era absolutamente "incompreensível" - akataleptos - e incognoscível em Sua natureza ou essência. Esta convicção foi poderosamente expressa pelos Pais Capadócios, especialmente na luta deles contra Eunômio, e também por São João Crisóstomo, em seus magníficos discursos Peri Akataleptou. Assim, se Deus é absolutamente "inacessível" em Sua essência, e, portanto, Sua essência simplesmente não pode ser "comunicada", como pode a theosis ser possível? "Insulta a Deus aquele que procura apreender Seu ser essencial", diz Crisóstomo.  Já em Santo Atanásio encontramos uma clara distinção entre a própria "essência" de Deus e Seus poderes e recompensas: Kai en pasi men esti kata ten heautou agathoteta, exo de ton panton palin esti kata ten idian physin [Ele está em tudo por seu amor, mas fora de tudo por sua própria natureza (De Decretis II)]. A mesma concepção foi cuidadosamente elaborada pelos Capadócios. A "essência de Deus" é absolutamente inacessível ao homem, diz São Basílio (Adv. Eunomium 1:14). Só conhecemos Deus em Suas ações, e por Suas ações: Hemeis de ek men ton energeion gnorizein legomen ton Theon hemon, te de ousia prosengizein ouch hypischnoumetha hai men gar energeiai autou pros hemas katabainousin, he de ousia autou menei aprositos [Dizemos que conhecemos nosso Deus a partir de suas energias (atividades), mas não professamos aproximar-nos de sua essência - pois suas energias descem até nós, mas sua essência permanece inacessível (Epist. 234, ad Amphilochium)]. No entanto, é um verdadeiro conhecimento, não apenas uma conjectura ou dedução: hai energeiai autou pros hemas katabainousin. Nas palavras de São João de Damasco, estas ações ou "energias" de Deus são a verdadeira revelação do próprio Deus: he theia ellampsis kai energeia (De Fide Orth. 1: 14). É uma presença real, e não apenas uma certa praesentia operativa, sicut agens adest ei in quod agit [como o ator está presente na coisa em que ele atua]. Este modo misterioso de Presença Divina, apesar da transcendência absoluta da Essência Divina, ultrapassa toda compreensão. Mas não é menos certa por essa razão.

São Gregório Palamas se encontra em uma antiga tradição neste ponto. Em Suas "energias", o Deus inacessível se aproxima misteriosamente do homem. E este movimento divino efetua o encontro: proodos eis ta exo, nas palavras de São Máximo (Scholia in De Div. Nom., 1: 5).

São Gregório começa com a distinção entre "graça" e "essência": he theia kai theopoios ellampsis kai charis ouk ousia, all' energeia esti Theou [a iluminação divina e divinizante e graça não é a essência, mas a energia de Deus (Capita Phys., Theol., etc., 68-9)]. Esta distinção básica foi formalmente aceita e elaborada nos Grandes Concílios de Constantinopla, 1341 e 1351. Aqueles que negavam esta distinção foram anátematizados e excomungados. Os anátematismos do Concílio de 651 foram incluídos no rito do Domingo da Ortodoxia, no Triodion. Os teólogos Ortodoxos estão vinculados a esta decisão. A essência de Deus é absolutamente amethekte [incomunicável].  A fonte e o poder da theosis humana não é a essência divina, mas a "Graça de Deus": theopoios energeia, hes ta metechonta theountai, theia tis esti charis, all' ouch he physis tou theou [a energia divinizadora, pela qual alguém que participa é divinizado, é uma graça divina, mas de nenhuma maneira a essência de Deus (ibid. 92-3)]. Charis não é idêntico à ousia. É theia kai aktistos charis kai energeia [Graça e Energia divina e incriada (ibid., 69)]. Esta distinção, entretanto, não implica ou efetua divisão ou separação. Tampouco é apenas um "acidente", oute symbebekotos (ibid., 127). As energias "procedem" de Deus e manifestam Seu próprio Ser. O termo proienai [proceder] simplesmente sugere diakrisin [distinção], mas não uma divisão: ei kai dienenenoche tes physeos, ou diaspatai he tou Pneumatos charis [a graça do Espírito é diferente da Substância, e ainda assim não separada dela (Theophan, p. 940)].

Na realidade, todo o ensino de São Gregório pressupõe a ação do Deus Pessoal. Deus se move em direção ao homem e o abraça por Sua própria "graça" e ação, sem deixar aquela phos aprositon [luz inacessível], na qual Ele habita eternamente. O objetivo último do ensinamento teológico de São Gregório era defender a realidade da experiência cristã. A salvação é mais do que o perdão. É uma genuína renovação do homem. E esta renovação é efetuada não pela descarga, ou liberação, de certas energias naturais implicadas no próprio ser criatural do homem, mas pelas "energias" do próprio Deus, que assim encontra e envolve o homem, e o admite em comunhão com Ele mesmo. De fato, o ensinamento de São Gregório afeta todo o sistema da teologia, todo o corpo da doutrina cristã. Começa com a clara distinção entre "natureza" e "vontade" de Deus. Esta distinção também era característica da tradição oriental, pelo menos desde Santo Atanásio. Poder-se-ia perguntar neste ponto: esta distinção é compatível com a "simplicidade" de Deus? Não deveríamos antes considerar todas estas distinções como conjecturas meramente lógicas, necessárias para nós, mas em última análise sem qualquer significado ontológico? Na realidade, São Gregório Palamas foi atacado por seus oponentes precisamente a partir desse ponto de vista. O Ser de Deus é simples, e nEle até mesmo todos os atributos coincidem. Já Santo Agostinho divergia, neste ponto, da tradição oriental. Sob os pressupostos agostinianos, o ensino de São Gregório é inaceitável e absurdo. O próprio São Gregório antecipou a amplitude das implicações de sua distinção básica. Se alguém não a aceita, argumentou ele, então seria impossível discernir claramente entre a "geração" do Filho e a "criação" do mundo, sendo ambos atos da essência, e isto levaria a uma completa confusão na doutrina trinitária. São Gregório era bastante formal nesse ponto.
Se de acordo com os opositores delirantes e aqueles que concordam com eles, a energia Divina não difere em nada da essência Divina, então o ato de criar, que pertence à vontade, não será de forma alguma diferente da geração (gennan) e processão (ekporeuein), que pertencem à essência. Se criar não é diferente da geração e da processão, então as criaturas não serão de forma alguma diferentes do Gerado (gennematos) e do Projetado [dAquele que procede] (problematos). Se este for o caso segundo eles, então tanto o Filho de Deus quanto o Espírito Santo não serão diferentes das criaturas, e todas as criaturas serão tanto o gerado (gennematos) quanto o projetado (problematos) de Deus Pai, e a criação será deificada e Deus estará classificado entre as criaturas. Por esta razão, o venerável Cirilo, mostrando a diferença entre a essência de Deus e a energia, diz que gerar pertence à natureza Divina, ao passo que criar pertence a Sua energia Divina. Isto ele mostra claramente dizendo: "natureza e energia não são a mesma coisa". Se a essência Divina não difere em nada da energia Divina, então gerar (gennan) e projetar (ekporeuein) não diferirá em nada de criar (poiein). Deus Pai cria através do Filho e no Espírito Santo. Assim, Ele também gera e projeta através do Filho e no Espírito Santo, de acordo com a opinião dos opositores e daqueles que concordam com eles. (Capita 96 e 97.)
São Gregório cita São Cirilo de Alexandria. Mas São Cirilo, neste ponto, estava simplesmente repetindo Santo Atanásio. Santo Atanásio, em sua refutação do arianismo, enfatizou formalmente a diferença última entre ousia [essência] ou physis [substância], por um lado, e a boulesis [vontade], por outro. Deus existe, e então Ele também age. Há uma certa "necessidade" no Ser Divino, na realidade não uma necessidade de compulsão, e não fatum, mas uma necessidade de ser em si. Deus é simplesmente o que Ele é. Mas a vontade de Deus é eminentemente livre. Ele em nenhum sentido é necessitado para fazer o que Ele faz. Assim, gennesis [geração] é sempre kata physin [segundo a essência], mas a criação é uma bouleseos ergon [energia da vontade] (Contra Arianos III. 64-6). Estas duas dimensões, a de ser e a de agir, são diferentes, e devem ser claramente distinguidas. Evidentemente, esta distinção não compromete de forma alguma a "simplicidade divina". No entanto, é uma distinção real, e não apenas um dispositivo lógico. São Gregório estava plenamente consciente da importância crucial desta distinção. Neste ponto, ele foi um verdadeiro sucessor do grande Atanásio e dos hierarcas Capadócios.

Foi recentemente sugerido que a teologia de São Gregório, deve ser descrita em termos modernos como uma "teologia existencialista". Na realidade, ela difere radicalmente das concepções modernas que são atualmente denotadas por este rótulo. De qualquer forma, em todo caso, São Gregório opôs-se definitivamente a todos os tipos de "teologias essencialistas" que fracassam em considerar a liberdade de Deus, o dinamismo da vontade de Deus, a realidade da ação divina. São Gregório remontaria esta tendência a Orígenes. Era o problema da metafísica impessoalista grega. Se existe algum espaço para a metafísica cristã, ela deve ser uma metafísica de pessoas. O ponto de partida da teologia de São Gregório era a história da salvação: na escala maior, a história bíblica, que consistia de atos divinos, culminando na Encarnação do Verbo e Sua glorificação através da Cruz e da Ressurreição; na escala menor, a história do homem cristão, lutando em busca da perfeição, e ascendendo passo a passo, até encontrar Deus na visão de Sua glória. Era comum descrever a teologia de Santo Irineu como uma "teologia dos fatos". E com não menos justificativa podemos descrever também a teologia de São Gregório Palamas como uma "teologia dos fatos".

Em nosso próprio tempo, estamos chegando cada vez mais à convicção de que "teologia dos fatos" é a única teologia Ortodoxa sólida. Ela é bíblica. É Patrística. Ela está em total conformidade com a mente da Igreja.

Neste contexto, podemos considerar São Gregório Palamas como nosso guia e mestre, em nosso esforço para teologizar a partir do coração da Igreja.

Capítulo VII de The Collected Works of Georges Florovsky, Vol. I, Bible, Church, Tradition: An Eastern Orthodox View

Notas

1. Foi recentemente sugerido que os gnósticos foram, de fato, os primeiros a invocar formalmente a autoridade de uma "Tradição Apostólica" e que foi o uso deles que moveu Santo Irineu a elaborar sua própria concepção de Tradição. D. B. Reynders, "Paradosis: Le proges de l'idee de tradition jusqu'a Saint Irenee", em Recherches de Theologie ancienne et medievale, V (1933), Louvain, 155-191. Em qualquer caso, os gnósticos costumavam se referir à "tradição".

2. Paul Maas, ed.. Fruhbyzantinische Kirchenpoesie, I (Bonn, 1910), p. 24.

3. Louis Bouyer, "Le renouveau des etudes patristiques," em La Vie Intellectuelle, XV (Fevrier 1947), 18.

4. Mabillon, Bernardi Opera, Praefatio generalis, n. 23 (Migne, P. L., CLXXXII, c. 26).

5. Cf. M. Lot-Borodine, "La doctrine de la deification dans I'Eglise grecque jusqu'au XI siecle," em Revue de l'histoire des religions, tome CV, Nr I (Janvier-Fevrier 1932), 5-43; tomo CVI, Nr 2/3 (Setembro-Dezembro 1932), 525-74; tomo CVII, Nr I (Janeiro-Fevereiro 1933), 8-55.

sexta-feira, 22 de novembro de 2019

A Catolicidade da Igreja Ortodoxa (Pe. Georges Florovsky)

A Igreja é una. Há apenas uma Igreja de Cristo. Pois a Igreja é o Seu corpo e Cristo nunca está dividido. A unidade não é uma marca da Igreja entre as outras. Ela denota antes a própria natureza da Igreja: uma Cabeça e um corpo. "A unidade do Espírito" foi concedida desde o início no mistério de Pentecostes. Mas esta unidade deve ser mantida e fortalecida "pelo vínculo da paz", por um esforço sempre crescente de fé e caridade, para que " seguindo a verdade em amor, cresçamos em tudo naquele que é a cabeça, Cristo" (Efésios 4, 3.15). "Unidade" e "catolicidade" são dois aspectos da mesma realidade viva. A Igreja una é intrinsecamente a Igreja Católica.

O termo "católico" é usado nos antigos credos. A origem do termo é incerta. Por sua etimologia, a palavra denota principalmente "união" ou "totalidade" em oposição a qualquer "particularidade". Nos primeiros documentos, o termo "católico" nunca foi usado no sentido quantitativo para denotar a expansão geográfica ou a universalidade territorial da Igreja. Foi usado antes para enfatizar a integridade de sua fé e doutrina, a lealdade da Grande Igreja à tradição original e primitiva, em oposição aos hereges e sectários que se separaram desta totalidade original, cada um para seguir uma linha particular e particularista.  "Católico" naquela época significava "ortodoxo" em vez de "universal". É neste sentido que o termo foi usado pela primeira vez na Epístola de Santo Inácio de Antioquia à Igreja de Esmirna e no Martírio de São Policarpo. Em suas Orações Catequéticas, São Cirilo de Jerusalém mais tarde deu uma descrição sintética do termo onde o significado original foi bem enfatizado:
A Igreja é chamada "católica" porque existe em toda a superfície da terra, de um extremo ao outro; porque ensina integralmente e sem omissão (kathotikos kai anelleipos) todos os dogmas que devem ser levados ao conhecimento dos homens, tanto nas coisas visíveis como nas invisíveis, nas coisas celestes e nas coisas terrenas; porque leva ao mesmo culto todas as categorias de pessoas, governantes e súditos, instruídos e ignorantes; por fim, porque ela cuida e cura integralmente (katholikos) todos os tipos de pecados, tanto carnais como da alma; e mais, porque ela possui todos os tipos de virtudes, em atos, em palavras, em dons espirituais de toda sorte.
A ênfase original na integridade e na abrangência qualitativa é óbvia nesta descrição. A expansão universal em todo o mundo é antes uma manifestação desta integridade interna, da plenitude espiritual da Igreja. Foi somente no Ocidente que a palavra "católico" recebeu um significado quantitativo, especialmente por Santo Agostinho, para combater o provincialismo geográfico dos donatistas. Santo Agostinho sabia bem, porém, que a palavra "católico" significava secunditm totum, quia per totum est. Desde então, as duas palavras "católico" e "universal" passaram a ser consideradas sinônimas, primeiro no Ocidente e, por fim, também no Oriente Ortodoxo. Esta foi uma lamentável redução da grande concepção católica, uma mutilação da ideia original. Ela transferiu a ênfase do significado primário para o secundário e derivado. A catolicidade essencial não é uma concepção topográfica. A Igreja de Cristo não era menos "católica" no dia de Pentecostes, quando não era mais que uma pequena comunidade em Jerusalém, nem mais tarde, quando as comunidades cristãs eram como ilhas espalhadas no oceano do paganismo. Além disso, nenhuma redução territorial pode afetar sua natureza católica. Em resumo, na frase de um teólogo [católico] romano contemporâneo, "a catolicidade não é uma questão de geografia ou de números".

[...]

Além disso, "católico" não é apenas um termo coletivo. A Igreja é católica não apenas como um conjunto de todas as igrejas locais, não apenas como uma comunidade mundial. A Igreja é católica em todos os seus elementos e ramos, em todos os seus atos e em todos os momentos da sua vida. Cada membro da Igreja é e deve ser também "católico", não só na medida em que é membro de um corpo católico, mas sobretudo na medida em que a sua personalidade é espiritualmente integrada e, neste sentido, "catolicizada". "Católico" denota um estado ou atitude espiritual, sem qualquer "particularismo" ou "sectarismo". A meta e o critério desta catolicidade interna é "que a multidão dos crentes era de um só coração e uma só alma" (At 4,32). 

A catolicidade é tanto um dom inicial de graça - na integridade da fé apostólica e na caridade integral - como uma tarefa ou um problema a ser resolvido repetidamente. Objetivamente, a Igreja é católica nos seus sacramentos. A graça sacramental é sempre uma graça de unidade. O Espírito Santo une-nos ao Senhor, incorporando-nos no Seu corpo. O espírito nos une para formar "um só corpo", a Igreja católica. E em cada alma fiel o Espírito é a fonte viva da paz e da concórdia interior, daquela paz que "o mundo não pode dar". Em Cristo e "na comunhão do Espírito Santo", a catolicidade da Igreja já está dada e fundamentada. Por outro lado, ela é ainda uma tarefa e uma meta a ser atingida por cada nova geração, em cada comunidade local, por cada pessoa fiel. A catolicidade interna implica a transformação ou transfiguração total da vida e do comportamento, que só pode ser realizada com um esforço espiritual constante, com a prática constante da renúncia e da caridade. Na estrutura católica da Igreja não há lugar para o egoísmo e exclusividade, nem para qualquer auto-suficiência individualista. 

[...]

A Igreja Ortodoxa afirma ser a Igreja. Não há orgulho nem arrogância nesta tremenda reivindicação. Pelo contrário, implica uma pesada responsabilidade. É um lembrete constante de inadequação, um chamado ao arrependimento e à humildade. De modo algum é uma reivindicação de "perfeição". A Igreja ainda está em peregrinação, em trabalho, in via. Ela tem os seus fracassos e perdas históricas; tem as suas tarefas e problemas inacabados. Nem é apenas uma reivindicação. É antes uma expressão da mais profunda convicção - do mais profundo autoconhecimento espiritual - humilde e agradecida. A Igreja Ortodoxa é consciente de sua identidade através dos tempos, apesar de todas as provações e tribulações históricas. Ela acredita que manteve intacta e imaculada a herança sagrada da Igreja primitiva, dos Apóstolos e dos Padres, a "fé uma vez por todas confiada aos santos". Ela está consciente da identidade do seu ensinamento com a pregação apostólica e a tradição da Igreja antiga, mesmo que tenha falhado ocasionalmente e provavelmente com demasiada frequência em transmitir esta mensagem e esta tradição às gerações particulares em todo o seu esplendor e de uma forma que carrega convicção. Em certo sentido, a Igreja Ortodoxa é uma continuação, uma "sobrevivência", do antigo cristianismo, tal como se formou na era dos Concílios Ecumênicos. Ela representa a tradição dos Padres, que se encarna também na sua estrutura litúrgica e na sua prática espiritual. Trata-se de uma tradição viva, que confere à Igreja ortodoxa a sua identidade. Também não se trata de uma mera tradição humana, mantida pela memória e imitação humanas. A identidade última da Igreja fundamenta-se na sua estrutura sacramental, na continuidade orgânica do corpo. A Igreja Ortodoxa encontra-se numa sucessão ininterrupta de vida sacramental e de fé. Ela tem consciência de ter sido sempre a mesma desde o início. E por isso mesmo a Igreja Ortodoxa se reconhece, na nossa cristandade dividida, como verdadeira guardiã da antiga fé e ordem, isto é, como sendo a Igreja. Todo o programa de ação ecumênica está implícito nesta eclesiologia Ortodoxa.

Do capítulo "The Historical Problem of a Definition of the Church" no livro "Ecumenism II: A Historical Approach"  (Vol. das obras reunidas)



Num certo sentido, a Igreja Ortodoxa é uma sobrevivência do antigo cristianismo, tal como foi moldada na era dos Concílios Ecumênicos e dos Santos Padres. A Igreja Ortodoxa representa exatamente a tradição Patrística. Certamente ela foi, e deve ser, a tradição comum tanto do Oriente como do Ocidente, e aqui reside a sua importância primordial e o seu poder unificador. Mas no Ocidente, na Idade Média, esta tradição Patrística foi reduzida ou empobrecida (por um período considerável de tempo "Patrística" significava no Ocidente simplesmente "Agostinianismo", e todo o resto foi ignorado ou esquecido,) e mais uma vez foi obscurecida e sobrecarregada com uma superestrutura escolástica mais tarde. Assim, no Ocidente, ela tornou-se uma espécie de reminiscência histórica, apenas uma parte do passado que aconteceu e deve ser redescoberta por um esforço de memória. Apenas no Oriente ela se manteve viva durante séculos até aos nossos dias. Não se trata, de forma alguma, apenas de uma relíquia arcaica, um remanescente sombrio de épocas passadas. É uma tradição viva. É o que dá ao Oriente a sua identidade cristã. É o que manteve a sua identidade através de séculos de contendas e tentações. Não estou falando aqui de opiniões Patrísticas, mas precisamente da mentalidade e atitude Patrísticas. 

Do capítulo "The Greek and Latin Mind in the Early Ages of the Church" no livro "Ecumenism II: A Historical Approach"  (Vol. 14 das obras reunidas)










quarta-feira, 20 de novembro de 2019

A União de Brest; "Irmandades"; o Mosteiro das Cavernas de Kiev (Pe. Georges Florovsky)

A Unia começou como um cisma e permaneceu um cisma. Na frase pertinente do historiador da igreja moderna Metropolita Makarii (Bulgakov), "a União na Lituânia, ou melhor, nas terras da Rússia Ocidental, originou-se com um anátema". A Unia foi fundamentalmente um movimento clerical, obra de alguns bispos, separados e isolados da comunidade da Igreja, que agiram sem o consentimento livre e conciliar, sem consensus plebis, ou como se lamentava na época, "secretamente e furtivamente, sem o conhecimento [porazumenie] do povo cristão". Assim, não pôde senão dividir a Igreja Ortodoxa, fragmentar a comunidade de fé e afastar a hierarquia do povo.

Este mesmo padrão foi seguido posteriormente em outras áreas, na Transilvânia e na região Cárpato-Russa da Hungria. O resultado em toda a parte foi uma situação peculiar e anormal: à cabeça do povo Ortodoxo estava uma hierarquia uniata. As hierarquias viam a sua submissão à autoridade romana como uma "reunião da Igreja", mas na realidade as Igrejas estavam agora mais afastadas do que nunca. Enquanto que, por um lado, seguindo sua própria lógica, a nova hierarquia uniata entendia a resistência do povo como sendo desobediência incondicional à autoridade estabelecida, a rebelião de um rebanho rebelde contra seus pastores legítimos, por outro lado, os crentes Ortodoxos, entendiam a resistência à hierarquia, sua chamada "desobediência", como o cumprimento do dever cristão, a inevitável exigência de lealdade e fidelidade.  "Nem sacerdotes, nem bispos, nem metropolitas nos salvarão, mas o mistério da nossa fé e a observância dos mandamentos divinos é o que nos salvará", escreveu Ivan Vishenskii do Monte Athos. E ele logo em seguida defendeu o direito dos fiéis cristãos de depor e expulsar qualquer bispo apóstata, "para eles não irem para a Geena com o mau olhado ou pastor". Este foi um conselho perigoso. Mas a situação tinha se tornado cheia de ambiguidade e complexidade.

A Unia na Polônia não só fragmentou a Igreja Oriental, mas também dividiu a comunidade Católica Romana. Ao criar um segundo santo corpo sob autoridade papal, ela originou uma dualidade dentro da Igreja ocidental. A “paridade total de ritos” nunca foi alcançada ou reconhecida, nem os dois rebanhos de obediência comum jamais se tornaram um - de fato, isso não foi exigido no acordo original. As tensões entre o Oriente e o Ocidente entraram então na vida da Igreja Católica Romana. À medida que se espalhavam, intensificavam-se. Assim, sociologicamente, a Unia provou ser um fracasso. A única saída para este impasse, ou assim alguns vieram a acreditar, era através da integração gradual (i.e., "latinização") da Igreja Uniata. Esta tendência foi reforçada por mais um outro sentimento. Muitos, desde o início, viam o rito oriental como "cismático", mesmo que dentro da obediência romana. Eles sentiam que era uma acrescência estranha, uma concessão tática a ser tolerada por razões estratégicas, mas destinada a dar lugar à plena integração em um rito uniforme, isto é, latino. Daí que a história posterior da Unia no Estado Polaco-Lituano passou a ser dominada apenas por esse desejo de uniformidade, esse desejo de "latinização".

Tem sido argumentado por alguns do lado Católico Romano que este desenvolvimento foi normal, um sinal de vida orgânica e prova de vitalidade. Em certo sentido, isso é verdade. Mas qualquer que seja o caso, deve-se reconhecer que a Unia em sua forma madura foi bem diferente daquela concebida em 1595, e até mesmo daquela nutrida pelos primeiros líderes Uniatas. Também tem sido argumentado que tal instituição "bizantina" dificilmente poderia ter sobrevivido em um estado que por princípio e aspiração era totalmente ocidental, ainda mais depois que várias regiões eslavas orientais foram para Moscou e os grupos Ortodoxos mais "intransigentes" foram removidos dos cuidados poloneses. Todas estas são apenas formas suaves e eufemísticas de dizer que, em princípio, a Unia significava "Polonização", que é o que aconteceu historicamente. Este era, naturalmente, um dos objetivos originais. Os interesses do Estado Polonês exigiam a integração cultural e espiritual do seu povo cristão, e é por esta razão que o Estado primeiro encorajou e depois apoiou a Unia. Realmente, o fato de ter sobrevivido foi devido à intervenção do Estado. Mas também politicamente, a Unia foi um fracasso. Ela promoveu a resistência em vez da integração e acrescentou ao "cisma na alma", um "cisma no corpo político".  O outro impulso primordial para a Unia (aparentemente a ideia comovente de missionários Católicos Romanos tal como Possevino) buscou uma verdadeira "reunião das Igrejas", abrangendo toda a Igreja Russa e, se possível, todas as Igrejas Orientais. A esta aspiração distintamente religiosa foi dado um golpe fatal por aquilo que foi alcançado política e culturalmente, precisamente por aquilo que foi elogiado como prova de sucesso ou de vitalidade.

A União de Brest permaneceu como começou, um "arranjo local" em sua maior parte gerado e preservado por razões e forças de caráter não teológico. A União de Brest não nasceu de um movimento religioso popular. Foi a composição de vários bispos Ortodoxos então responsáveis pelas dioceses Ortodoxas no Estado Polaco-Lituano, juntamente com autoridades da Igreja Romana e do Reino da Polônia. Uma vez que se percebeu que o ato não garantiria o acordo ou a simpatia de todo o corpo da Igreja, ela só poderia continuar como um caso clandestino.  Aparentemente temerosos de que mais atrasos pudessem subverter todo o empreendimento, os Bispos Pociej e Terletskii (Terlecki) partiram para Roma. Mas as notícias do plano secreto deles tornaram-se públicas, e mesmo enquanto estavam fora, o protesto público contra a Unia começou na Igreja. O Concílio de Brest foi convocado no regresso deles. Foi planejado para uma promulgação solene de um  fait accompli [fato consumado], não para uma discussão. Mas antes que os membros se reunissem, apareceu uma divisão nas fileiras dos Ortodoxos. Dois "concílios" resultaram, reunindo-se simultaneamente e movendo-se para resoluções opostas. O "Concílio Uniata" contou com a presença de representantes da Coroa Polonesa e da hierarquia latina, bem como de várias hierarquias da Igreja Ortodoxa. Ele elaborou um instrumento de fidelidade Ortodoxa à Santa Sé, que foi então assinado por seis bispos e três arquimandritas. O “Concílio Ortodoxo” contou com a presença de um exarca do patriarca ecumênico (Nicephorus), um emissário do patriarca de Alexandria (Cirilo Lucaris), três bispos (Lucas, o metropolita de Belgrado, Gedeon Balaban, e Mikhail Kopystenskii), mais de duzentos clérigos e um grande número de leigos reunidos em uma câmara separada. O Concílio rejeitou a Unia e depôs os bispos que seguiram ela, anunciando as suas ações em nome e sob a autoridade do patriarca ecumênico, que tinha jurisdição suprema sobre a metrópole das terras da Rússia Ocidental. As decisões do "Concílio Ortodoxo" foram denunciadas pelos bispos Uniatas e - de maior importância - repudiadas pelo Estado polonês. A partir de então, toda resistência à Unia foi interpretada como oposição à ordem existente, e qualquer escrito crítico ao ato foi classificado como ofensa criminal. O exarca Nicéforo, que presidiu o "Concílio Ortodoxo", foi perseguido e condenado como agente de um estado estrangeiro. Como uma medida final, foi declarado que a "fé grega" não seria reconhecida por lei. Aqueles que permaneceram fiéis à Ortodoxia não seriam mais simplesmente estigmatizados como "cismáticos", mas também perseguidos como "rebeldes". O que até então para o estado tinha sido essencialmente um problema de "unidade religiosa" foi instantaneamente transformado em um problema de "lealdade política". Quanto aos crentes Ortodoxos, eles tinham agora que preparar uma defesa teológica de sua fé e, mais urgentemente, lutar pelo reconhecimento legal.

A luta dos Ortodoxos contra a Unia forçada foi sobretudo uma manifestação da consciência coletiva do povo da Igreja. Inicialmente os principais centros eram Vilna e Ostrog. Mas logo Lvov veio à tona, e juntou-se a Kiev no início do século XVII. De maior importância foi a mudança nos estratos sociais sobre os quais os apologistas Ortodoxos podiam contar com a simpatia e apoio. Enquanto nos dias de Kurbskii e Ostrozhskii a causa Ortodoxa foi principalmente apoiada pela alta aristocracia [szlachta], na geração seguinte as famílias nobres experimentaram um êxodo para a Unia ou mesmo para a Igreja Católica Romana. O estudo nas escolas jesuítas frequentemente precipitou ou promoveu o êxodo, e a integração cultural na alta sociedade polonesa sempre o exigiu. Outra pressão foi a exclusão dos "cismáticos" de todas as posições importantes no serviço público, ou seja, em qualquer ramo da vida. Para substituir a aristocracia nas linhas de frente da defesa Ortodoxa, os citadinos tomaram a posição. E com a virada do século, os cossacos, ou mais especificamente a chamada "Irmandade dos Cavaleiros do Regimento de Zaporozhe", assumiram as armas. Nesses mesmos anos ocorreu também uma importante mudança institucional. O papel principal na defesa da Ortodoxia era agora assumido pelas famosas "irmandades" [bratstva], cuja rede logo se espalhou por todas as terras ocidentais.

A origem das irmandades ainda é obscura. Várias teorias foram apresentadas, mas nenhuma é totalmente convincente. A visão mais sensata sugere que elas começaram como organizações paroquiais e, em algum momento nos anos conturbados anteriores à Unia, provavelmente na década de 1580, se transformaram em "corporações para a defesa da fé", e depois disso receberam confirmação eclesiástica. As irmandades de Vilna e Lvov tiveram seus “estatutos” aprovados pelo Patriarca Jeremias em 1586, e então, inesperadamente, receberam cartas reais. Nos assuntos internos, as irmandades eram autônomas. Algumas também gozavam do status de stauropegia; isto é, estavam isentas da jurisdição do bispo local e isso, com efeito, as colocava diretamente sob o domínio do patriarca de Constantinopla. A primeira irmandade a receber tal status foi Lvov, seguida por Vilna, Lutsk, Slutsk e Kiev, e ainda mais tarde Mogilev. A irmandade de Lvov, por um tempo, teve até mesmo a autoridade do patriarca para supervisionar as ações de seu bispo local, incluindo o direito de julgá-lo como uma corte de instância final. Qualquer decisão de culpa proferida pela irmandade carregava o anátema automático dos quatro patriarcas do oriente. Esse arranjo incomum só pode ser explicado pela anormalidade da situação, na qual o elemento menos confiável na Igreja da Rússia Ocidental era a hierarquia. Ainda assim, conceder tal poder aos corpos leigos era um empreendimento ousado. Sem dúvida, esse crescimento sem precedentes do poder leigo, provavelmente com abusos concomitantes, foi um forte fator que levou alguns bispos em direção a Roma, na crença de que Roma conseguiria restaurar a autoridade adequada. O conflito e o distanciamento gerado entre a hierarquia e os leigos após a Unia criaram uma atmosfera nociva que afetava profundamente a consciência religiosa de ambos. De fato, nenhum período na vida da Igreja da Rússia Ocidental foi mais difícil do que aquele entre o Concílio de Brest e a “restauração” da hierarquia Ortodoxa pelo Patriarca Teófanes de Jerusalém em 1620, época em que o episcopado Ortodoxo estava quase extinto. Os mal-entendidos e os confrontos destes anos entre as irmandades e as autoridades eclesiásticas locais foram tão numerosos e graves que mesmo o restabelecimento de uma hierarquia canônica não pôde restabelecer a ordem na Igreja. E a continuação dos problemas foi ainda mais assegurada quando o Estado polonês se recusou obstinadamente a reconhecer esta nova hierarquia.
O complexo da Irmandade de Kiev incluía o Mosteiro da Irmandade e sua escola religiosa 
A restauração de uma hierarquia canônica foi precedida por prolongadas negociações entre o Patriarca Teófanes IV e vários círculos na Rússia Ocidental, onde permaneceu por dois anos. Ele então foi para Moscou, onde teve a oportunidade de discutir a situação com as mais altas autoridades locais, o Patriarca Filareto e o Tsar Mikhail. No seu regresso a Jerusalém, Teófanes voltou a visitar a Polônia. Seus contatos desta vez incluíram os cossacos, então liderados por Hetman Peter Konashevich-Sagadaichny, um ex-aluno da escola Ostrog, um dos fundadores da escola da irmandade de Kiev, e um homem de genuína inclinação cultural. Em movimentos que dificilmente foram não premeditados, Teófanes, em duas ocasiões, organizou a consagração dos bispos, criando no total seis novos hierarcas, entre eles o Metropolita de Kiev. Vários dos novos bispos eram conhecidos por sua educação: Iov Boretskii, ex-diretor das escolas de Lvov e Kiev, agora feito Metropolita de Kiev; Meletii Smotritskii, ex-aluno da Academia de Vilna, que também havia frequentado várias universidades alemãs; e Ezekiel Kurtsevich, filho de uma família principesca e por um tempo estudante da Universidade de Pádua. Apesar de tais qualificações, os novos hierarcas Ortodoxos se viram imediatamente envolvidos em uma amarga luta por autoridade. Tanto a Igreja Uniata como o Estado polonês contestaram as consagrações, alegando que Teófanes era um intruso, um impostor e até mesmo um espião turco. Somente em 1632, logo após a morte do rei Sigismundo III, a hierarquia Ortodoxa conseguiu obter do seu sucessor, o rei Wladyslaw IV, o reconhecimento da lei. Mas, mesmo assim, as dificuldades não tinham cessado completamente. 

Os problemas com o Estado polonês não foram os únicos que os fiéis Ortodoxos enfrentaram. Em geral, foi um período inconveniente, uma era de lutas e conflitos internos, uma era de guerras e revoltas. Ser construtivo em tais condições não era fácil. Era difícil organizar atividades religiosas sistemáticas e criar um sistema escolar regular. Era ainda mais difícil preservar alguma forma de calma e clareza de pensamento, tão indispensável à vida da mente. No entanto, um pouco foi alcançado, embora ainda não seja possível avaliar seu pleno significado.

No campo da educação, as irmandades assumiram a liderança. Eles organizaram escolas, montaram centros de publicação e livros impressos. As primeiras escolas da irmandade - como a escola de Ostrog - foram planejadas segundo o padrão grego. Afinal, a população grega nas cidades do sul da Rússia e da Moldávia era bastante considerável naquele tempo, com toda a região servindo como uma área importante da diáspora grega. O contato com Constantinopla era frequente e regular. A influência grega podia ser sentida em tudo, e não começou a desaparecer até o final do século XVII. A escola da irmandade em Lvov foi fundada por um prelado emigrante, Arsenius, arcebispo de Elassona e um ex-aluno do patriarca Jeremias. Lá, depois de 1586, a língua grega tornou-se um destaque, se não a característica principal do currículo. Inevitavelmente, parte da nomenclatura tornou-se grega. Professores, por exemplo, eram chamados didascais e os alunos chamados spudei. Em 1591, Arsenius compilou uma gramática grega, que ele publicou em grego e eslavo. Baseado principalmente na notável gramática de Constantine Lascaris, também se baseou nos manuais de Melanchthon, Martin (Kraus) Crusius, e Clenard de Louvain. Na sua escola da irmandade em Lvov, como também em Vilna e Lutsk, não era incomum os alunos aprenderem a falar grego fluentemente. Também não havia falta de literatura grega disponível. Os catálogos das bibliotecas da irmandade listam edições inteiras dos clássicos - Aristóteles, Tucídides e similares. Os pregadores citariam o texto grego das Escrituras em seus sermões. Em todos os lugares, os títulos gregos eram a moda para os livros e panfletos e, em geral, a língua literária da Rússia Ocidental naquela época era saturada pela terminologia grega. Aparentemente, todo o espírito de ensino, assim como o ethos, era helênico. Também é verdade que o latim fazia parte do currículo das escolas da irmandade desde o início. Mas, em geral, o “aprendizado do latim” era visto como um ornamento desnecessário, ou mesmo como uma “sofística” perigosa. O comentário de Zakharii Kopystenskii era bastante típico: “Os latinizadores estudam silogismos e argumentos, treinam-se para disputas e depois tentam vencer debates entre si. Mas gregos e eslavos Ortodoxos mantêm a verdadeira fé e recorrem às Sagradas Escrituras para suas provas.”

Em 1615, no mesmo ano em que a famosa irmandade de Kiev foi fundada, uma colônia de monges eruditos residia no Mosteiro das Cavernas de Kiev, reunidos principalmente em Lvov pelo novo arquimandrita e abade Elisei Pletenetskii. Em 1617, a imprensa Balaban foi levada de Striatin ao mosteiro, onde foi posta em uso imediato. As principais publicações eram livros litúrgicos e os escritos dos Padres, mas outras obras e autores também merecem destaque. Em primeiro lugar, existe o valioso léxico eslavo-ucraniano [Leksikon Slaveno-Rossiskii i imen tolkovanie] compilado por Pamvo (Pamfil) Berynda, um moldavo, e impresso em 1627. Das obras originais dos estudiosos de Kiev, a mais interessante e significativa é o Livro de Defesa da Santa Igreja Apostólica Ecumênica Apostólica [Palinodiia] de Zakharii Kopystenskii, que em 1624 sucedeu a Pletenetskii como abade do Mosteiro das Cavernas. Foi escrito como resposta ao livro uniata, Defesa do Encontro da Unidade da Igreja [Obrono jednosci cerkiewney, (Vilna, 1617)], de Leo Krevsa. Kopystenskii procurou em seu estudo elucidar o entendimento oriental da unidade da Igreja e, com grande talento artístico, substanciou seu argumento através das Escrituras e dos Padres. A partir da obra Palinodiia e outros escritos, fica claro que Kopystenskii era um homem de ampla erudição. Ele conhecia os Padres e conhecia historiadores e canonistas bizantinos, além de livros modernos sobre o Oriente (por exemplo, Turko-Graeciae de Crusius) e também tinha lido alguns livros em latim (por exemplo, De republica ecclesiastica por Marco Antonio de Dominis e De Papa Romano de Lubbertus). Kopystenskii - como Máximo, o Grego antes dele - silenciosamente e sobriamente rejeitou o escolasticismo ocidental. É evidente que Kopystenskii conhecia seu material e o havia trabalhado por conta própria. Ele não era um imitador, nem simplesmente um fatologista, mas um estudioso criativo no molde bizantino. Seu Palinodiia, obra de muitos anos, ainda é um modelo de lucidez. Infelizmente, não foi publicado em sua época e, em verdade, até o século XIX. Kopystenskii morreu logo após sua conclusão. Seu sucessor no Mosteiro das Cavernas, Pedro Mogila, era um homem de temperamento e persuasão bastante diferentes. Ele não podia ter simpatia pelo livro de Kopystenskii, pois era muito direto e franco.

Ainda outro nome a ser adicionado à lista dos primeiros estudiosos de Kiev, cujos escritos foram significativos, é o de Lavrentii (Tustanovskii) Zizani (falecido depois de 1627). Antes de vir para Kiev, ele ensinou em Lvov e Brest e publicou em Vilna, em 1596, uma gramática eslava e um léxico. Uma vez em Kiev, Zizani voltou-se para seu talento como especialista grego para a tradução do Comentário de Santo André de Creta sobre o Apocalipse e para a supervisão de uma edição das homilias de São João Crisóstomo. Mas a obra principal de Zizani continua sendo seu Catecismo [Katekhizis]. Quando concluído, o livro foi enviado a Moscou para publicação. Lá houve dificuldades. Primeiro, teve que ser traduzido do "dialeto lituano" - como os moscovitas denotavam a língua literária da Rússia Ocidental - para o eslavão eclesiástico. Mas a tradução foi mal feita. Além disso, as autoridades de Moscou detectaram graves erros doutrinais no livro. Zizani, ao que parece, sustentou uma série de opiniões peculiares com toda a probabilidade derivadas de suas fontes estrangeiras: protestantes e católicas romanas. Ele próprio escapou da condenação, mas a versão impressa de seu catecismo foi retirada da circulação e em 1627, queimada. No entanto, cópias em forma de manuscrito sobreviveram e receberam ampla divulgação e popularidade. No decorrer do século XVIII, o livro foi três vezes reimpresso pelos Velho-Crentes de Grodno. Zizani, como Berynda, Kopystenskii e a maioria dos primeiros estudiosos de Kiev, trabalhou principalmente com fontes gregas e eslavônicas, e os escritos desses monges instruídos refletem uma autêntica inspiração cultural. Mas, enquanto trabalhavam, uma nova onda estava emergindo naquele mesmo ambiente de Kiev.

À medida que o século XVII se desenrolava, Kiev começou a sentir cada vez mais o impacto do “aprendizado do latim”. As novas gerações estavam por necessidade se voltando aos livros ocidentais e com crescente frequência estudando em escolas jesuítas, onde, como se inexoravelmente, elas se impregnaram com o padrão latino de estudo. Até Elisei Pletenetskii, em seu esforço para neutralizar a iniciativa uniata do Metropolita Veliamin Rutskii, parece ter pensado em um modelo ocidental quando procurou criar uma "ordem Ortodoxa". Sob sua direção, a vida comunitária no Mosteiro das Cavernas foi restaurada, mas sob a regra de São Basílio, em vez da regra mais comum Estudita. Um "tema latino" também pode ser observado em alguns dos livros publicados na época por certos membros do círculo no Mosteiro das Cavernas. Ocasionalmente, esse viés se infiltrava através de fontes gregas contaminadas; outras vezes, entrava diretamente a partir da literatura latina. Tarasii Zemka, compositor de versos laudatórios e editor erudito dos livros litúrgicos de Kiev, fez um uso considerável da famosa obra de Gabriel Severus sobre os sacramentos, que apareceu em Veneza em 1600. O livro de Severus era permeado pela influência latina, mesmo que apenas na fraseologia que Zemka adotou livremente. (Para dar um exemplo, onde Severus usou "metaousiosis", ou o equivalente grego de "transubstanciação", Zemka empregou o "prelozhenie suchchestv" em eslavão ["as metástases das substâncias"]). A influência do pensamento latino é ainda mais nítida em Kirill Trankvillion-Stavrovet-skii. Seu livro Espelho da Teologia [Zertsalo bogosloviia], publicado no mosteiro de Pochaev em 1618, pode ser considerado como a primeira tentativa de um estudioso de Kiev de um sistema teológico. Um estudo subseqüente, Comentários sobre o Evangelho [Uchitel noe Evangelie, impresso em 1618], também se preocupa com a doutrina. Ambos os trabalhos refletem o tomismo, e até algo do platonismo. Em Kiev e Moscou, eles foram censurados devido a "erros heréticos" [ereticheskie sostavy] e condenados à destruição. Mas a rejeição oficial não impediu sua disseminação em manuscritos nem atenuou sua ampla aceitação no sul e no norte da Rússia. Mesmo assim, desapontado por seus livros terem sido repudiados por seus superiores eclesiásticos, Stavrovetskii entrou para a Unia.

Ainda outra figura em que uma influência tomista pode ser vista é Kassian Sakovich (1578-1674), diretor da escola de irmandade de Kiev de 1620-1624. É mais transparente em Sobre a alma [O dushe], impresso em Cracóvia em 1625. De Kiev, Sakovich foi para Lublin, onde estabeleceu contato com os dominicanos e participou de aulas de teologia. Mais tarde, ele continuou este estudo em Cracóvia. E, por fim, Sakovich também se juntou à Unia, e depois disso lançou uma polêmica virulenta contra a Igreja Ortodoxa. Dessa maneira, então, na segunda e terceira décadas do século XVII, o estilo de teologia Católica Romana começou a penetrar na comunidade de estudiosos de Kiev. A década seguinte, a de 1630, viu a dominação Católica Romana. A mudança ocorreu simultaneamente com uma mudança de administração no Mosteiro das Cavernas de Kiev, quando Pedro Mogila se tornou abade.

[...]

A "pseudomorfose" do pensamento Ortodoxo.

Do ponto de vista cultural e histórico, a educação Kievana não foi um mero episódio passageiro, mas um evento de significado inquestionável. Este foi o primeiro encontro direto com o Ocidente. Poder-se-ia até chamar de encontro livre se não tivesse terminando em cativeiro ou, mais precisamente, em rendição. Mas, por esse motivo, não poderia ter ocorrido um uso criativo do encontro. Uma tradição escolástica foi desenvolvida e uma escola começou, mas nenhum movimento espiritualmente criativo emergiu dali. Em vez disso, surgiu um escolasticismo imitativo e provincial, em seu sentido literal uma theologica scholastica ou "teologia escolar". Isso significou um novo estágio na consciência religiosa e cultural. Mas, no processo, a teologia foi arrancada de suas raízes vivas. Um cisma maligno estabelecido entre a vida e o pensamento. Certamente o horizonte dos eruditos de Kiev era amplo o suficiente. O contato com a Europa era ativo, com notícias dos estudos e tendências contemporâneas no Ocidente chegando facilmente a Kiev. Ainda assim, a aura de ruína pairava sobre todo o movimento, pois estabelecia um "pseudomorfismo" da consciência religiosa da Rússia, uma "pseudomorfose" do pensamento Ortodoxo.



Do livro "Caminhos da Teologia Russa" do Pe. Georges Florovsky 

sábado, 3 de agosto de 2019

A política do Vaticano em relação aos imigrantes russos pós-1917 (Paul L. Gavrilyuk)

A retórica virulenta e anti-católica da obra "Rússia e Latinidade" foi parcialmente provocada pelos esforços expansionistas do Vaticano, que viu a queda do governo czarista na Rússia como uma oportunidade para espalhar a influência católica para o território antes inacessível. [47] Em 1917, reagindo prontamente às novas circunstâncias, o papa Bento XV fundou o Instituto Oriental, em Roma, com o objetivo de preparar os missionários católicos para trabalhar na Rússia. Florovsky aparentemente estava ciente desses movimentos, descrevendo a Rússia em 1922 como um país “onde crianças eram entregues para serem corrompidas pelos jesuítas, onde coisas sagradas estavam sendo blasfemamente saqueadas, onde a hierarquia da igreja era difamada, onde os santos estavam sendo executados como mártires, e as fundações da igreja estavam sendo abaladas. ” [48] De uma maneira que lembra o artigo de Savitsky em Rússia e Latinidade, Florovsky listou os horrores da perseguição estatal da Igreja lado a lado com as tentativas católicas romanas de proselitismo, descrevendo as últimas como “corrupção das crianças pelos jesuítas”.

Em 1923, o mesmo ano em que Rússia e Latinidade foi publicado, o sucessor de Bento XV, o papa Pio XI, lançou a encíclica Ecclesiam Dei, dirigida aos eslavos orientais, e mais ainda aos refugiados da Rússia. Neste documento, o papa lamentou a "separação dos gregos da unidade da Igreja Universal", como resultado do qual "os eslavos orientais também foram desviados e perdidos da fé". [49] A encíclica celebrou a vida e o “martírio” do bispo ruteno do século XVII, Josaphat de Polotsk, que teria sido morto por seus esforços em trazer os “cismáticos” ortodoxos para o interior da Igreja Grega-Católica [uniata]. [50] Voltando-se para a situação do século XX, o Papa encorajou os católicos a obras de caridade nas comunidades russas imigrantes, com o objetivo de reconciliar os cismáticos orientais com a Igreja Católica ao longo das linhas unionistas. [51] Para provar que ele realmente estava disposto, em 1929, o papa iniciou uma faculdade para treinar padres católicos gregos [uniatas] para a Ucrânia na capital italiana.

Comunidade Ortodoxa Russa em Paris
Quaisquer que tenham sido as intenções do papa, a encíclica deixou um gosto ruim na boca dos líderes imigrantes [russos], não apenas os eurasianos, mas também aqueles mais ecumenicamente inclinados. [52] Para tornar as coisas mais complicadas, o Vaticano apoiou a “Igreja Viva”. Esse considerável grupo cismático, que em certo momento contava com mais de trinta bispos, operou na Rússia de 1917 a 1946, e fez muito para minar a já precária posição do Patriarcado de Moscou. 

Além disso, em nível oficial, a Igreja Católica manteve-se em grande parte distante do movimento ecumênico. Certamente, essa política oficial não impediu que pensadores católicos e líderes eclesiásticos individuais estabelecessem contatos não oficiais e apoiassem os exilados ortodoxos em particular.[53] Mas a posição oficial da Igreja Católica permaneceu cautelosa e, às vezes, até mesmo hostil, antes do Concílio Vaticano II (1962-1965). Se os filhos dos exilados russos desejassem estudar nas escolas católicas, eram encorajados, às vezes até pressionados, a se converter ao catolicismo.[54] Para piorar, o clero católico grego [uniata] empenhou-se no proselitismo nas comunidades ortodoxas emigrantes da Turquia, Tchecoslováquia e outros Países europeus. [55] A mudança da Bulgária predominantemente ortodoxa para países europeus não-ortodoxos, como a Tchecoslováquia, a França e a Alemanha, na época da redação da obra Rússia e Latinidade, tornou os autores eurasianos particularmente alarmados com os perigos do proselitismo e assimilação. [56]


Notas
47 Veja N. Zernov, The Russian Religious Renaissance of the Twentieth Century, 254–5; Arjakovsky, Zhurnal “Put’ ” (1925–1940), 161; Étienne Fouilloux, “Vatican et Russie soviétique (1917–1939),” Relations internationals, 3 (1981), 303–18.
48 Florovsky, carta para P. P. Suvchinsky, July 13 (26), 1922, Vestnik RKhD, 196 (2010), 80.
49 Ecclesiam Dei, 3 at <http://www.papalencyclicals.net>.
50 Ecclesiam Dei, 9–15.
51 Ecclesiam Dei, 16–22.
52 Veja Bratstvo sviatoi Sofii, 44.
53 Berdyaev, carta para P. B. Struve, November 6, 1922 (de Berlim), Bratstvo sviatoi Sofii, 170–1.
54 Veja Gillian Crow, This Holy Man: Impressions of Metropolitan Anthony (Crestwood, NY: St Vladimir’s Seminary Press, 2006), 24.
55 S. Bulgakov, “Iz pamiati serdtsa,” Issledovaniia (1998), 118–21.
56 Veja P. Suvchinsky, “Strasti i opasnost’,” Rossiia i Latinstvo, 33.

Do livro Georges Florovsky and the Russian Religious Renaissance por Paul L. Gavrilyuk


terça-feira, 21 de novembro de 2017

Bíblia, Igreja, Tradição: Uma Visão Ortodoxa (Pe. Georges Florovsky) [PARTE 1]






A Perda da Mentalidade das Escrituras

"Como a verdade está em Jesus" (Efésios 4:21)




Os ministros cristãos não devem pregar suas opiniões particulares, pelo menos não do púlpito. Os ministros são comissionados e ordenados na Igreja, precisamente para pregar a Palavra de Deus. Eles recebem alguns termos fixos de referência - ou seja, o evangelho de Jesus Cristo - e estão comprometidos com esta única e perene mensagem. Espera-se que se propaguem e sustentem "a fé que uma vez foi entregue aos santos". É claro que a Palavra de Deus deve ser pregada "de forma eficiente". Ou seja, sempre deve ser apresentada para levar convicção e comandar a fidelidade de cada nova geração e de cada grupo particular. Pode ser atualizada em novas categorias, se as circunstâncias o exigirem. Mas, acima de tudo, a identidade da mensagem deve ser preservada. É preciso ter certeza de que alguém está pregando o mesmo evangelho que foi entregue e que não está apresentando, em vez disso, um "evangelho estranho" próprio. A Palavra de Deus não pode ser facilmente ajustada, ou acomodada, aos costumes e atitudes fugazes de qualquer idade em particular, incluindo o nosso próprio tempo. Infelizmente, muitas vezes estamos inclinados a medir a Palavra de Deus por nossa própria estatura, em vez de verificar nossa mente segundo a estatura de Cristo. A "mente moderna" também está sob o julgamento da Palavra de Deus. 

O Homem Moderno e as Escrituras: 

Mas é precisamente neste ponto que nossa principal dificuldade começa. A maioria de nós perdeu a integridade da mente bíblica, mesmo que alguns fragmentos de fraseologia bíblica sejam mantidos. O homem moderno muitas vezes se queixa de que a verdade de Deus é oferecida a ele em uma "linguagem arcaica" - isto é, na linguagem da Bíblia - que não é mais sua e não pode ser usada espontaneamente. Recentemente, foi sugerido que devemos radicalmente "desmistificar" a Escritura, o que significa substituir as categorias antiquadas da Sagrada Escrita por algo mais moderno. No entanto, a questão não pode ser evadida: o idioma das Escrituras realmente não é senão um envolvimento acidental e externo de que alguma "idéia eterna" deve ser removida e desenredada, ou é antes um veículo perene da mensagem divina, que foi Uma vez entregue por todos os tempos? Estamos em perigo de perder a singularidade da Palavra de Deus no processo de "reinterpretação" contínua. Mas, como podemos interpretar se esquecermos o idioma original? Não seria mais seguro dobrar nosso pensamento aos hábitos mentais da linguagem bíblica e reaprender o idioma da Bíblia? Ninguém pode receber o evangelho a menos que ele se arrependa - "muda de opinião". Pois na linguagem do evangelho, o "arrependimento" (metanoia) não significa meramente reconhecimento e contrição por pecados, mas precisamente uma "mudança de mentalidade" - uma mudança profunda da atitude mental e emocional do homem, uma renovação integral do próprio homem, que começa em sua auto-renúncia e é realizado e selado pelo Espírito.

Vivemos agora em uma era de caos intelectual e desintegração. Possivelmente, o homem moderno ainda não se decidiu, e a variedade de opiniões está além de qualquer esperança de reconciliação. Provavelmente, a única sinalização luminosa que temos para guiar-nos através da névoa mental da nossa era desesperada, é apenas a "fé que foi entregue aos santos", obsoleta ou arcaica, como o idioma da Igreja primitiva parece ser, julgado por nossos padrões passageiros. 
  
Pregar os Credos! 

 O que, então, vamos pregar? O que eu pregaria aos meus contemporâneos "em um tempo como este"? Não há espaço para hesitação: vou pregar Jesus, Crucificado e Ressuscitado. Eu vou pregar a todos, para quem eu possa ser chamado para dirigir a mensagem de salvação, como me foi transmitida por uma Tradição ininterrupta da Igreja Universal. Eu não me isolaria na minha época. Em outras palavras, vou pregar as "doutrinas do Credo".  

Estou plenamente consciente de que os credos são um obstáculo para muitos na nossa própria geração. "Os credos são símbolos veneráveis, como as bandeiras esfarrapadas nos muros das igrejas nacionais, mas para a guerra atual da igreja na Ásia, na África, na Europa e na América, os credos, quando são entendidos, são tão úteis como um machado de batalha ou um arcabuz nas mãos de um soldado moderno ". Isso foi escrito há alguns anos por um estudioso britânico proeminente, que também é um ministro devoto. Possivelmente, ele não os escreveria hoje. Mas ainda há muitos que sinceramente creem nessa afirmação vigorosa. Recordemos, no entanto, que os primeiros credos eram deliberadamente escriturários, e é precisamente a fraseologia bíblica que os torna difíceis para o homem moderno.
  
Então, voltamos a enfrentar o mesmo problema: o que podemos oferecer em vez da Sagrada Escritura? Preferiria o idioma da Tradição, não por causa de um "conservadorismo" preguiçoso e crédulo, ou uma "obediência" cega a algumas "autoridades" externas, mas simplesmente porque não consigo encontrar uma fraseologia melhor. Estou preparado para me expor à inevitável acusação de ser "antiquário" e "fundamentalista". E eu protesto que tal carga é gratuita e errada. Eu mantenho e seguro as "doutrinas do credo", conscienciosamente e de todo o coração, porque aprecio por fé sua adequação perene e relevância para todas as épocas e para todas as situações, incluindo "um tempo como esse". E acredito que são precisamente as "doutrinas do Credo" que podem permitir que uma geração desesperada, como a nossa, recupere coragem e visão cristã. 

A Tradição Vive 

 "A igreja não é um museu de depósitos mortos, nem uma sociedade de pesquisa". Os depósitos estão vivos - depositum juvenescens, para usar a frase de São Irineu. O Credo não é uma relíquia do passado, mas sim, a "espada do Espírito". A reconversão do mundo ao cristianismo é o que temos de pregar em nossos dias. Esta é a única maneira de sair desse impasse em que o mundo foi impulsionado pelo fracasso dos cristãos, em ser verdadeiramente cristãos. Obviamente, a doutrina cristã não responde diretamente qualquer questão prática no campo da política ou da economia. Nem o evangelho de Cristo. No entanto, seu impacto em todo o curso da história humana tem sido enorme. O reconhecimento da dignidade humana, da misericórdia e da justiça nas raízes do Evangelho. O novo mundo pode ser construído apenas por um novo homem. 
  
O que significou Calcedônia 

 "E foi feito homem". Qual é a conotação final desta declaração do Credo? Ou, em outras palavras, quem era Jesus, o Cristo e o Senhor? O que significa, na linguagem do Concílio de Calcedônia, que o mesmo Jesus era "homem perfeito" e "Deus perfeito", mas uma personalidade individual e única? O "homem moderno" geralmente é muito crítico com essa definição de Calcedônia. Ela não transmite qualquer significado para ele. A "imagem" do Credo é para ele, nada mais do que uma poesia, se ainda alguma coisa. Toda a abordagem, penso eu, é errada. A "definição" de Calcedônia não é uma afirmação metafísica, e nunca foi tratada como tal. Nem o mistério da encarnação foi apenas um "milagre metafísico". A fórmula de Calcedônia foi uma declaração de fé e, portanto, não pode ser entendida quando tirada da experiência total da Igreja. Na verdade, é uma "declaração existencial". A fórmula de Calcedônia é, por assim dizer, um contorno intelectual do mistério que é apreendido pela fé. Nosso Redentor não é um homem, mas o próprio Deus. Aqui está a ênfase existencial da declaração. Nosso Redentor é aquele que "desceu" e que, "sendo feito homem", identificou-se com os homens na comunhão de uma vida e natureza verdadeiramente humanas. Não só a iniciativa era divina, mas o Capitão da Salvação era uma pessoa divina. A plenitude da natureza humana de Cristo significa simplesmente a adequação e a verdade dessa identificação redentora. Deus entra na história humana e se torna uma pessoa histórica. Isso parece paradoxal. Na verdade, há um mistério: "E, sem controvérsia, é o mistério da piedade: Deus se manifestou na carne". Mas esse mistério foi uma revelação; o verdadeiro caráter de Deus havia sido divulgado na Encarnação. Deus estava tão intimamente preocupado com o destino do homem (e precisamente com o destino de todos os "pequenos"), como para intervir pessoalmente no caos e na miséria da vida perdida. A providência divina, portanto, não é apenas uma decisão onipotente do universo a partir de uma distância solene pela divina majestade, mas uma kenosis, uma "auto-humilhação" do Deus da glória. Há um relacionamento pessoal entre Deus e o homem. 

Tragédia em uma Nova Luz 
  
Toda a tragédia humana aparece, portanto, em uma nova luz. O mistério da Encarnação é um mistério do amor divino, da identificação divina com o homem perdido. E o clímax da Encarnação foi a cruz. É o ponto de viragem do destino humano. Mas o impressionante mistério da cruz é compreensível apenas na perspectiva mais ampla de uma Cristologia integral; isto é, apenas se acreditarmos que o Crucificado é na verdade "o Filho do Deus vivo". A morte de Cristo foi a entrada de Deus na miséria da morte humana (novamente em pessoa), uma descida para Hades, e isso significou o fim da morte e a inauguração da vida eterna para o homem. Existe uma consistente coerência no corpo da doutrina tradicional. Mas pode ser apreendido e compreendido apenas no contexto vivo da fé, pelo que quero dizer, em uma comunhão pessoal com o Deus pessoal. A fé sozinha faz fórmulas convincentes; A fé sozinha faz estas formulas viverem. "Parece paradoxal, contudo, é a experiência de todos os observadores das coisas espirituais: ninguém lucra com os Evangelhos, a menos que ele se apaixonasse por Cristo". Para Cristo não é um texto, mas uma pessoa viva, e ele permanece em seu corpo, a Igreja. 
  
Um novo nestorianismo 
  
Pode parecer ridículo sugerir que se deve pregar a doutrina de Calcedônia "em um tempo como este". No entanto, é precisamente essa doutrina - a realidade a que essa doutrina testemunha - que pode mudar toda a visão espiritual do homem moderno. Isso lhe traz uma verdadeira liberdade. O homem não está sozinho neste mundo, e Deus se interessa pessoalmente pelos acontecimentos da história humana. Esta é uma implicação imediata da concepção integral da Encarnação. É uma ilusão que as disputas Cristológicas do passado são irrelevantes para a situação contemporânea. Na verdade, elas são continuadas e repetidas nas controvérsias da nossa época. O homem moderno, deliberadamente ou subconscientemente, é tentado pelo Nestoriano extremo. Ou seja, ele não leva a Encarnação com seriedade. Ele não se atreve a acreditar que Cristo é uma pessoa divina. Ele quer ter um redentor humano, apenas assistido por Deus. Ele está mais interessado na psicologia humana do Redentor, do que no mistério do amor divino. Porque, em última instância, ele acredita com otimismo na dignidade do homem. 
  
Um novo monofisismo 
  
No outro extremo, temos nos nossos dias um avivamento das tendências "monofisitas" na teologia e religião, quando o homem é reduzido a uma passividade completa e só é permitido ouvir e esperar. A tensão atual entre "liberalismo" e "neo-ortodoxia" é, de fato, uma reconstituição da velha luta Cristológica, em um novo nível existencial e em uma nova chave espiritual. O conflito nunca será resolvido ou solucionado no campo da teologia, a menos que uma visão mais ampla seja adquirida. Na Igreja primitiva, a pregação era enfaticamente teológica. Não era uma vã especulação. O próprio Novo Testamento é um livro teológico. A negligência da teologia na instrução dada aos leigos nos tempos modernos é responsável, tanto pela decadência da religião pessoal, quanto por essa sensação de frustração que domina o humor moderno. O que precisamos na Cristandade, "em um tempo como esse", é precisamente uma teologia sadia e existencial. Na verdade, tanto o clero quanto os leigos estão com fome de teologia. E porque nenhuma teologia é geralmente pregada, eles adotam algumas "ideologias estranhas" e combinam-nas com os fragmentos das crenças tradicionais. Todo o apelo dos "evangelhos rivais" nos nossos dias é que eles oferecem algum tipo de pseudo-teologia, um sistema de pseudo-dogmas. Eles são aceitos de bom grado por aqueles que não conseguem encontrar qualquer teologia no cristianismo reduzido do estilo "moderno". 

Essa alternativa existencial que muitos enfrentam em nossos dias foi formulada corretamente por um teólogo inglês, "Dogma ou ... morte". A idade de um dogmatismo e pragmatismo fechou. E, portanto, os ministros da Igreja precisam pregar novamente doutrinas e dogmas - a Palavra de Deus. 
  
A crise moderna 
  
A primeira tarefa do pregador contemporâneo é a "reconstrução da crença". Não é de modo algum um esforço intelectual. A crença é apenas o mapa do mundo verdadeiro, e não deve ser confundido com a realidade. O homem moderno tem estado muito preocupado com suas próprias idéias e convicções, suas próprias atitudes e reações. A crise moderna precipitada pelo humanismo (um fato inegável) foi provocada pela redescoberta do mundo real, na qual acreditamos. A redescoberta da igreja é o aspecto mais decisivo desse novo realismo espiritual. A realidade não é mais rastreada pelo muro de nossas próprias ideias. É novamente acessível. Mais uma vez percebi que a igreja não é apenas uma companhia de crentes, mas o "Corpo de Cristo". Esta é uma redescoberta de uma nova dimensão, uma redescoberta da presença contínua do divino Redentor no meio de seu fiel rebanho. Esta descoberta lança um novo fluxo de luz sobre a miséria da nossa existência desintegrada em um mundo profundamente secularizado. Já é reconhecido por muitos que a verdadeira solução de todos os problemas sociais reside de alguma forma na reconstrução da Igreja. "Em um tempo como este" é preciso pregar o "Cristo inteiro", Cristo e a Igreja-totus Christus, caput et corpus, para usar a famosa frase de Santo Agostinho. Possivelmente, esta pregação ainda é incomum, mas parece ser o único meio de pregar a Palavra de Deus eficientemente, em um período de desgraça e desespero como o nosso. 

A relevância dos pais 
  
Tenho muitas vezes um sentimento estranho. Quando leio os antigos clássicos da teologia cristã, os Pais da Igreja, considero-os mais relevantes para os problemas e preocupações do meu tempo, que a produção de teólogos modernos. Os Pais estavam lutando com problemas existenciais, com as revelações dos problemas eternos que foram descritos e registrados na Sagrada Escritura. Eu arriscaria uma sugestão de que Santo Atanásio e Santo Agostinho estão muito mais atualizados do que muitos de nossos teólogos contemporâneos. A razão é muito simples: eles estavam lidando com as coisas e não com os mapas, eles não estavam preocupados com o que o homem pode acreditar, mas com o que Deus havia feito para o homem. Temos, "em um momento como este", que ampliar nossa perspectiva, para reconhecer os mestres antigos e para tentar, pela nossa era, uma síntese existencial da experiência cristã.