terça-feira, 30 de junho de 2020

Escolasticismo e Ortodoxia: O Método Teológico como um Fator no Cisma (Bispo Kallistos Ware)

    Uma fé sem milagres não é mais do que um sistema filosófico; e uma Igreja sem milagres não é mais do que uma organização de caridade como a Cruz Vermelha. - BISPO NICOLAU DE OCHRID

    Entre o final do século XI e o final do XII, tudo mudou no Ocidente. - PE. YVES CONGAR


A Desintegração de nossa Tradição Comum

'As diferenças surgem da desintegração de uma tradição comum, e ... o problema é encontrar o parentesco original no passado comum'. Desta maneira, o falecido Padre Bernard Leeming, parafraseando e tornando sua uma afirmação do Arcipreste George Florovskii, resumiu a relação essencial entre Ortodoxos e Católicos, entre o Oriente Grego e o Ocidente Latino[1]. É nesta perspectiva que podemos abordar de forma muito apropriada a questão da 'Ortodoxia e o Ocidente', colocada de forma tão desafiadora pelo Dr. Yannaras em seu artigo original [2], e agora retomada pelo Sr. Bonner em sua resposta cuidadosamente argumentada, 'Cristianismo e a Cosmovisão Moderna'.

Falar em termos da desintegração de uma tradição comum é afirmar por implicação duas coisas sobre o diálogo entre a Ortodoxia e o Ocidente.  Primeiro, é enganoso e inútil colocar a questão no preto e branco, contrastando "Oriente" e "Ocidente" como dois mundos independentes e autocontidos, como dois blocos opostos e mutuamente exclusivos; pois isso é ignorar nosso parentesco original num passado compartilhado. Felizmente nenhum dos nossos dois colaboradores fez isso, mas o risco de tal distorção nunca deve ser ignorado.  Em segundo lugar, é igualmente enganoso e inútil ir ao outro extremo e sugerir que estão envolvidos apenas "fatores não-teológicos" relativamente superficiais, e que no nível intelectual, dogmático e espiritual não há diferença genuína entre os dois lados. Pois isso significa ignorar a trágica desintegração - não total, mas mesmo assim significativa - que a nossa tradição comum de fato sofreu.

'Significativa' é uma palavra vaga, e é importante estabelecer com mais precisão a profundidade e os limites da desintegração. É tão grave quanto o Dr. Yannaras julga? Ou será que, apesar do racionalismo dos escolásticos, apesar da Renascença e das descobertas científicas dos séculos XVI e XVII, apesar da Revolução Industrial, o Ocidente nunca perdeu uma visão sacramental e eucarística do universo, enfatizando as consequências cósmicas da Encarnação de Cristo, da sua Transfiguração e da sua Ressurreição (temas tão caros à consciência Ortodoxa)? Esta é uma linha de pensamento que eu esperava que o Sr. Bonner pudesse desenvolver; talvez algum futuro colaborador da ECR possa expandir sobre este tema, com ilustrações detalhadas. Em todas as nossas comparações entre Oriente e Ocidente, devemos ter muito cuidado para não contrastar o melhor de um lado com o segundo melhor do outro. Esta é uma armadilha na qual muitos admiradores ocidentais da Ortodoxia tropeçaram despercebidamente; o Pe. Robert Murray tem sabiamente chamado a atenção para o perigo [3]. Além disso, em todas as nossas comparações devemos nos esforçar para ser exatos e claros, fugindo - como o Sr. Bonner acertadamente insiste - de uma seletividade unilateral em nosso uso da evidência, simplificação e sobre-generalização. [4]

O Dr. Yannaras argumenta que a tecnologia ocidental moderna é filha do escolasticismo medieval. Três pontos emergem da resposta do Sr. Bonner:
(1) A análise do Dr. Yannaras sobre o Ocidente medieval é muito simplificada; houve outras correntes no pensamento latino durante a Idade Média além do tipo de escolasticismo que ele está criticando.

(2) O Dr. Yannaras não levou em conta suficientemente as mudanças, sobretudo no método científico, que ocorreram no Ocidente durante os séculos XVI e XVII.

(3) A tecnologia moderna não é algo que, como cristãos do século 20, somos livres para aceitar ou rejeitar. É um fato básico de nosso ambiente humano, e não podemos optar por não aceitá-la. Em vez de buscar maneiras de escapar, devemos buscar Deus na e através da cosmovisão da ciência contemporânea.
Não sendo especialista na escolástica medieval e nunca tendo sido ensinado ciência em nenhuma etapa de minha educação, sinto-me desqualificado para discutir estes tópicos em detalhes. Com relação aos dois primeiros pontos, eu diria apenas que, mesmo supondo que o diagnóstico do Dr. Yannaras seja unilateral, isso não o torna totalmente insustentável. O Sr. Bonner indicou no máximo que a tese básica do Dr. Yannaras precisa ser qualificada. Sobre o terceiro ponto, estou substancialmente de acordo com o Sr. Bonner; e também, talvez, esteja o Dr. Yannaras - que não é (creio eu) tão negativo em sua atitude em relação à tecnologia moderna como o Sr. Bonner imagina.

Minha própria contribuição é mais restrita quanto ao escopo, e mesmo periférica ao debate principal. Gostaria de retomar a seção de abertura do artigo do Sr. Bonner, e também a observação de Sir John Lawrence: 'Parece-me que desde a época de Anselmo a filosofia cristã ocidental esperava que a razão humana fosse capaz de fazer mais do que pode'. [5] O Sr. Bonner, embora ele mesmo não concorde inteiramente com eles, citou várias passagens de medievalistas ocidentais contemporâneos que confirmam a opinião de Sir John.  Entretanto, pode-se argumentar que o Dr. Yannaras, ao criticar o escolasticismo, e os historiadores de nossa época, quando insistem nas mudanças intelectuais e espirituais que aconteceram no Ocidente por volta do ano 1100, estão expressando um ponto de vista especificamente moderno. Será que essas teorias não são mais do que uma reconstrução do passado criada no século 20? Até que ponto os homens da Idade Média, sejam gregos ou latinos, se sentiam conscientes dessas mudanças? É meu argumento que diversos pensadores do Oriente cristão, a partir do século XV em diante, de fato se opuseram ao Ocidente quanto à natureza e aos métodos do escolasticismo.

As discussões entre Oriente e Ocidente, no Concílio de Florença e em tempos mais recentes, concentraram-se geralmente em pontos específicos da doutrina, tais como o Filioque, as reivindicações papais, o Purgatório, a Imaculada Conceição, ou o ensino Palamita sobre a Glória Incriada do Monte Tabor. Mas há evidências que sugerem que a partir do século XV, se não antes, alguns bizantinos tinham começado a sentir que os latinos estavam em falta, não apenas em relação a pontos específicos da doutrina, mas mais amplamente em toda sua abordagem à teologia e seu método de argumentação.

O que é teologia? Que tipo de questões temos o direito de fazer na investigação teológica e que tipo de respostas devemos esperar? Qual é o lugar do raciocínio discursivo no discurso teológico? Tais eram as perguntas que surgiram nas mentes gregas quando confrontadas pelo escolasticismo. Claramente, elas são fundamentais. Antes de começarmos a jogar tênis ou xadrez, devemos concordar sobre as regras do jogo; e antes de podermos discutir de forma proveitosa a distinção entre a Essência e as Energias de Deus ou a Processão do Espírito Santo, devemos concordar sobre nosso método teológico. Como um resultado dos desenvolvimentos intelectuais na cristandade ocidental durante os séculos XI e XII, os latinos haviam de fato alterado sua interpretação das regras do jogo. Gradualmente, embora não imediatamente, os gregos perspicazes se tornaram inconfortavelmente cientes disso.

Antes de considerar o que tais gregos disseram, será útil analisar um pouco mais de perto estes desenvolvimentos intelectuais no Ocidente. À coleção de autoridades modernas do Sr. Bonner, acrescentemos mais uma - uma testemunha Católica Romana, Pe. Yves Congar[6].


 Da Teologia Monástica à Teologia Escolástica 

Na visão do Padre Congar, há um grande divisor de águas na história espiritual ocidental, "um ponto de virada decisivo", por volta do início do século XII. Ele endossa a visão de Dom A. Wilmart: um crente do século IV ou V teria se sentido mais em casa nas formas de piedade (e, podemos acrescentar, da teologia) do século XI, do que um crente do século XI teria se sentido nas do século XII. Isto, naturalmente, é verdade somente em relação ao Ocidente; no Oriente até 1453 homens continuaram a orar e teologizar de uma forma basicamente patrística. Os cristãos latinos, por outro lado, começaram a ensinar e estudar teologia em uma nova maneira, e assim, em uma medida cada vez maior, um 'universo de discurso' comum foi perdido. Mesmo em campos onde o Oriente e o Ocidente ainda pareciam estar de acordo, as mesmas afirmações passaram a ser percebidas e interpretadas diferentemente. A tradição compartilhada estava se desintegrando. Para o Pe. Congar, não parece por acaso que a ascensão do escolasticismo tenha coincidido cronologicamente com o enrijecimento do cisma entre Constantinopla e Roma.

A mudança da cosmovisão patrística para a cosmovisão escolástica é resumida pelo Pe. Congar sob três títulos principais:
(1) Foi uma mudança de uma visão do mundo predominantemente "essencialista" e exemplarista, para uma visão "naturalista", interessada pela existência. Foi uma mudança de um universo de causalidade exemplarista, onde as coisas são consideradas como recebendo sua realidade de um modelo transcendente no qual participam, para um universo de causalidade eficiente, onde os homens buscam a verdade nas próprias coisas existentes e em suas determinações empíricas. (Aqui, certamente, podemos observar uma conexão entre o escolasticismo e o método científico moderno).
(2) Foi uma mudança do simbolismo para a dialética; da "percepção sintética" para uma atitude de investigação e análise. Quando os teólogos começam a estabelecer distinções e a fazer perguntas - quis, ubi, ad quid? - a era escolástica verdadeiramente nasceu.

(3) Foi uma mudança de uma forma de estudo monástica para uma forma de estudo universitária ou "escolástica". Antes do século XII, o ensino e estudo teológico existia principalmente no ambiente do mosteiro; e assim a teologia tendia a ser tradicionalista, contemplativa e intimamente integrada com a vida litúrgica. Com a ascensão do escolasticismo, o ambiente externo da teologia muda do claustro para a sala de aulas e a ênfase é posta na pesquisa e análise pessoal em vez da aceitação da tradição.
Até então, o Padre Congar. Com algum risco de simplificar demais, pode-se dizer que no Ocidente, a partir do século XII, o teólogo recorreu principalmente à razão e ao argumento, às provas lógicas. Desnecessário dizer, os teólogos orientais também empregam o raciocínio dedutivo [7], mas para a maioria deles a ênfase principal encontra-se em outro lugar, em um apelo à Tradição: Tradição como corporificada nos Padres e nos cânones conciliares; Tradição como expressa também na experiência dos santos e dos homens santos que vivem em nossos tempos. Os escolásticos latinos também reverenciavam a autoridade dos Padres, e pode haver uma proporção maior de citações de Dionísio, o Areopagita, na Summa Theologica de Aquino do que nas Tríades de Palamas. Mas os latinos analisavam os textos patrísticos, argumentando, questionando e distinguindo, de uma forma que a maioria dos gregos não fazia. A teologia tornou-se uma 'ciência' para os latinos medievais, de uma forma que nunca foi para os primeiros Padres gregos e seus sucessores bizantinos.

A ênfase na experiência pessoal dos santos é um ponto de importância fundamental[8]. Embora haja sem dúvida um lado místico em Tomás de Aquino que não deve ser subestimado, o apelo à experiência mística não é muito proeminente em suas duas Summae. São Gregório Palamas, por outro lado, em suas Tríades invoca regularmente a experiência viva dos homens santos: eles é que são os verdadeiros teólogos; quanto àqueles que são treinados para analisar e discutir, que são hábeis no uso das palavras e da lógica, eles são, no melhor dos casos, teólogos em um sentido inteiramente secundário e derivativo.  Como insistiu Evágrio do Ponto, a teologia é uma questão de oração, não de treinamento filosófico: 'Se tu és um teólogo, tu orarás verdadeiramente; e se tu orares verdadeiramente, tu és um teólogo'[9] O bispo sérvio Nicolau (Velimirovich) de Ochrid falou de um modo caracteristicamente oriental quando na primeira Conferência de Fé e Ordem em Lausanne (1927) ele insistiu na experiência dos santos. Durante uma discussão sobre os sacramentos, ele declarou diante de uma audiência predominantemente Protestante:
Se alguém pensar que talvez o Batismo e a Eucaristia (ou outros dois ou três dos sete Mistérios) sejam os únicos Mistérios, os únicos Sacramentos, bem - que ele pergunte a Deus sobre isso; jejuando e orando lágrimas, que ele pergunte a Deus, e ele lhe revelará a verdade como sempre a revelou aos santos. .. . Tudo o que temos dito sobre os grandes Mistérios cristãos não é uma opinião nossa (se fosse uma opinião nossa não valeria nada), mas é a experiência repetida dos Apóstolos nos tempos antigos e dos santos até nossos próprios dias. Pois a Igreja de Deus não vive da opinião, mas da experiência dos santos, tanto no início como em nossos dias. As opiniões das pessoas intelectuais podem ser maravilhosamente inteligentes e ainda assim falsas, ao passo que a experiência dos santos é sempre verdadeira. É Deus, o Senhor, que é fiel a si mesmo em seus santos [10].
Para alguém acostumado aos princípios do raciocínio escolástico, esta pode parecer uma forma emocional e sentimental de argumentar. Para um Ortodoxo, por outro lado, é precisamente a experiência dos santos que constitui o critério final na teologia.

Críticas Bizantinas ao Escolasticismo

'Uma fé sem milagres não é mais do que um sistema filosófico. . .' As palavras do bispo Nicolau, escolhidas como epígrafe de nosso artigo, expressam a reação de muitos bizantinos quando confrontados com o escolasticismo medieval. Eles sentiram que o apelo aos santos, à ação milagrosa de Deus como experimentada pelos homens santos, havia sido esquecido, e que a teologia latina havia se tornado demasiadamente filosófica e racionalista, demasiado dependente de modos de pensamento e métodos de argumento meramente humanos.

Esta questão do método teológico, embora nunca tenha sido um tópico principal no Concílio de Florença, emerge várias vezes no decorrer dos debates. Quando um porta-voz latino invocou Aristóteles, um dos enviados georgianos exclamou em exasperação: "E Aristóteles, Aristóteles? Uma figa para seu requintado Aristóteles". Quando lhe perguntaram qual autoridade ele aceitava, respondeu: "São Pedro, São Paulo, São Basílio, Gregório o Teólogo; uma figa para seu Aristóteles, Aristóteles." [11] Este é o típico apelo Ortodoxo à Sagrada Tradição, aos Pais e aos Concílios Ecumênicos, ao invés de raciocínios silogísticos. O humanista Bessarião, embora aceitando a união com Roma, o fez por razões orientais em vez de escolásticas: "As palavras [dos Pais] por si só são suficientes para resolver toda dúvida e persuadir toda alma. Não foram silogismos, probabilidades ou argumentos que me convenceram, mas as simples palavras [dos Pais]." [12]

A oposição ao escolasticismo, e em particular ao uso escolástico da filosofia, é expressa com certa aspereza por dois eminentes bizantinos que faleceram na década imediatamente anterior ao Concílio de Florença. José Bryennios ( c. 1431 /2) afirma:
Aqueles que submetem os dogmas da fé a cadeias de raciocínios silogísticos, despojam de sua glória divina a própria fé que se esforçam para defender. Eles nos forçam a crer não mais em Deus, mas no homem. Aristóteles e sua filosofia não têm nada em comum com as verdades reveladas por Cristo. [13]
O liturgista Simeão de Tessalônica (1429) protesta em termos muito similares:
Tu és um discípulo não dos Pais, mas dos gregos pagãos. Se eu quisesse, também poderia produzir silogismos para responder aos teus raciocínios sofísticos - e melhores silogismos do que os teus, assim. Mas tais métodos de argumento eu rejeito, e obtenho minhas provas a partir dos Pais e de seus escritos. Tu me responderás com Aristóteles ou Platão ou com um de teus doutores modernos; mas para me opor a ti invocarei os pescadores da Galiléia, com suas simples pregações e sua verdadeira sabedoria, as quais para ti parecem tolices. [14]
Aos olhos dos gregos, o pensamento religioso latino tinha se tornado demasiado autoconfiante, e não era suficientemente sensível às limitações necessárias de toda linguagem humana e pensamento conceitual. No Ocidente latino, assim parecia a muitos gregos, tudo é recortado à medida e classificado de acordo com as categorias criadas pelo homem; o aspecto místico e apofático da teologia é muito pouco apreciado. Esta é a queixa do Patriarca Nectário de Jerusalém em meados do século XVII:
Tu expulsaste, assim nos parece, o elemento místico da teologia. . . . Em tua teologia não há nada que esteja fora do discurso ou além do âmbito da investigação, nada envolvido pelo silêncio e guardado pela piedade; tudo é discutido. . . . Não há fenda, a rocha para confiná-lo quando estiver diante do espetáculo ao qual ninguém pode observar; não há mão do Senhor para cobri-lo quando tu contemplas a Sua glória (Ex. 33 : 22-23). [15]
Mas, pode ser objetado, o escolasticismo latino é realmente tão pouco místico e anti-apofático quanto o Patriarca Nectário alega? Não afirmou Tomás de Aquino, "Deus é conhecido como desconhecido", e ele não cita repetidamente os escritos areopagíticos? É verdade; mas isso não torna Tomás automaticamente um teólogo apofático no sentido oriental.  É necessário avaliar a forma como ele compreendeu Dionísio, o contexto teológico no qual suas citações areopagíticas são colocadas, e o papel que elas desempenham em sua argumentação. O Dionísio de Tomás é o mesmo que o de Máximo ou Palamas? Como o Arcipreste George Florovskii salientou de forma muito acertada: 
É profundamente enganoso destacar certas proposições, dogmáticas ou doutrinárias, e abstraí-las da perspectiva total em que são significativas e válidas. É um hábito perigoso manusear "citações" dos Pais e até mesmo das Escrituras, fora da estrutura total da fé, na qual, unicamente, as mesmas estão verdadeiramente vivas. "Seguir os Pais" não significa simplesmente citar suas frases. Significa adquirir a mente deles, seu phronema. A Igreja Ortodoxa afirma ter preservado este phronema e ter teologizado ad mentem Patrum. [16]
Nossa questão, então, é esta: Até que ponto Aquino preservou este phronema? Quando ele apela à Teologia Mística de Dionísio e a outros textos apofáticos, ele está verdadeiramente teologizando ad mentem Patrum? [17]

Contra Nectário e outros que acusam os latinos de "expulsar o elemento místico da teologia", pode-se também objetar que houve um rico florescimento de misticismo no Ocidente durante a Idade Média tardia: Richard Rolle, Walter Hilton, A Nuvem do Não Saber e a Lady Juliana na Inglaterra; e muitos outros na Alemanha, nos Países Baixos e na Itália. A este "rico florescimento", o Sr. Bonner muito justamente chama a atenção. Mas até que ponto esta tradição mística e a teologia das Escolas foram integradas em um único todo no Ocidente medieval, da forma como a teologia mística e dogmática foram integradas por Palamas e os Hesicastas bizantinos? No Ocidente medieval tardio parece haver uma dicotomia crescente entre teologia e misticismo, entre liturgia e devoção pessoal. É precisamente isto que perturbou muitos Ortodoxos. [18]

Um século depois do Patriarca Nectário, o teólogo leigo Eustratios Argenti de Chios considera o escolasticismo latino, e mais especificamente o uso escolástico de Aristóteles, como a causa raiz da separação entre o Oriente e o Ocidente:
Mais de mil anos após o nascimento de Cristo, surgiu a heresia dos teólogos latinos escolásticos, que desejavam unir a filosofia de Aristóteles com a teologia cristã. No entanto, eles não imitaram os santos doutores da Igreja dos primeiros séculos, que fizeram a filosofia se ajustar à teologia; mas os escolásticos fizeram o contrário, fazendo com que o Evangelho e a santa fé cristã se ajustassem às doutrinas do filósofo Aristóteles. Desta fonte surgiram na Igreja Latina numerosas heresias na teologia da Santíssima Trindade, numerosas distorções das palavras dos Evangelhos e dos Apóstolos, numerosas violações dos cânones sagrados e dos concílios divinos e, finalmente, numerosas corrupções e adulterações dos santos sacramentos. [19]
O argumento de Argenti é reafirmado, com uma ênfase ligeiramente diferente, pelos eslavófilos na Rússia do século XIX. Nas palavras de Ivan Kireevskii:
Roma preferiu o silogismo abstrato à Santa Tradição, que é a expressão da mente comum de todo o mundo cristão, e na qual esse mundo coere como uma unidade viva e indissolúvel. Esta exaltação do silogismo sobre a Tradição foi, na realidade, a única base para a ascensão de uma Roma separada e independente. . . . Roma deixou a Igreja porque desejava introduzir na fé novos dogmas, desconhecidos pela Santa Tradição, dogmas que eram por natureza os produtos acidentais da lógica ocidental [20].
Façamos aqui uma pausa por um momento para considerar o que exatamente Kireevskii está afirmando. Sua alusão à "lógica ocidental" lembra-me uma conversa que uma vez ouvi entre dois anglicanos, ambos ardentemente favoráveis aos Ortodoxos, um especialista patrístico e o outro um filósofo. Respondendo a um comentário do filósofo, o especialista patrístico exclamou: "Não queremos esse tipo de lógica latina". "Não existe tal coisa como lógica latina", replicou o filósofo. "Existe a lógica boa e a lógica ruim."

O argumento pode ser generalizado. Em justificação aos escolásticos, não deveria ser dito que o uso de silogismos e categorias filosóficas não é mais do que uma tentativa de pensar claramente e falar coerentemente? Embora exista um lugar no discurso teológico para o paradoxo e a poesia [21], não há lugar para a mera inarticulação e indolência mental. O misterioso tem um papel vital a desempenhar, mas isso não é desculpa para confusão e mistificação. Se Deus deu ao homem poderes de raciocínio, ele não deveria usá-los em sua plenitude, e não era exatamente isso que os escolásticos latinos pretendiam fazer? Quando eles empregaram distinções e termos técnicos extraídos de Aristóteles ou de outros filósofos, isto foi como uma ajuda para o pensamento lúcido. O que há de errado nisso?

Tal linha de defesa, embora legítima em si mesma, não responde ao argumento principal que Simeão de Tessalônica, Argenti e Kireevskii procuram apresentar. O que eles lamentam não é o emprego da lógica humana em si, mas a não consideração de suas limitações, e o não reconhecimento do caráter único da matéria da teologia. Eles estão atacando a aplicação do raciocínio discursivo a campos onde ele deveria desempenhar apenas um papel secundário, estritamente subserviente a uma "percepção sintética" da realidade, a uma consciência intuitiva e mística do Divino. Argenti não se opõe ao uso da filosofia como ferramenta, e ele reconhece que os Pais Gregos a empregaram desta forma. Mas no caso do escolasticismo latino, como ele entende, a ferramenta tornou-se um padrão determinante; o servo tornou-se o mestre.

Para que estas acusações sejam convincentes, elas devem ser formuladas com grande precisão e inteiramente fundamentadas com evidências. Os Ortodoxos críticos do escolasticismo devem mostrar quais são de fato os limites do raciocínio humano na teologia. Eles devem indicar, com referência específica às fontes, como e quando Anselmo e Abelardo, Pedro Lombardo e Tomás de Aquino aplicaram a lógica a assuntos além do alcance da lógica. Eles devem indicar detalhadamente como Aquino se apoiou na filosofia de uma forma que os Capadócios e São João de Damasco não se apoiaram. É impraticável tentar isso em um pequeno artigo. Mas o suficiente, espero, já foi dito para estabelecer que a perspectiva dos bizantinos anti-escolásticos precisa ser levada a sério. Mesmo que nem sempre as suas críticas sejam objetivamente justificadas, continua sendo verdade que a ascensão do escolasticismo e as mudanças no método teológico que ele acarretou contribuíram permanentemente para o afastamento entre a Ortodoxia e Roma. É um fator significativo na desintegração de nossa tradição comum.

Bizantinos Tomistas

Uma qualificação importante deve ser acrescentada aqui. Nem o Ocidente latino nem o Oriente grego jamais formaram um todo uniforme e monolítico. Durante todo o período medieval houve escritores ocidentais que protestaram, tão veementemente como Bryennios ou Simeão de Tessalônica, contra o uso escolástico da filosofia secular. [22] E, ao lado dos bizantinos antiescolásticos, havia os entusiastas e distintos bizantinos tomistas. [23] Após a tradução para o grego de grandes partes das duas Summae por Demétrio Cydones (c. 1325-c. 1398) e seu irmão Prócoro (c. 1330-c. 1370), o tomismo se tornou, por um determinado período, quase moda na corte bizantina. Na véspera do Concílio de Florença, os gregos educados tinham uma melhor compreensão do tomismo do que os latinos tinham do palamismo; pois os latinos conheciam o palamismo quase exclusivamente a partir dos escritos dos opositores rancorosos de Palamas, ao passo que os gregos conheciam o tomismo a partir das obras do próprio Aquino. O que muitos bizantinos admiravam em Aquino não era primariamente sua doutrina ou suas conclusões, pois em assuntos como a Processão do Espírito Santo, alguns deles o consideravam em erro. [24] Foi seu método teológico que os impressionou - sua organização sistemática do material, suas cuidadosas definições e distinções, o rigor de sua argumentação; em suma, sua "lógica latina". Isto deveria nos impedir de concluir apressadamente que os bizantinos eram exclusivamente 'apofáticos'!

Não se deve presumir que todos os bizantinos tomistas eram a favor da união com Roma. Se tentarmos agrupar os intelectuais gregos dos séculos XIV e XV em dois "times" opostos - de um lado, os platonistas, os palamitas e os anti-unionistas; do outro, os aristotélicos, os tomistas e os unionistas - rapidamente descobrimos que a situação real é muito mais complicada. Certamente, no século XIV, os irmãos Cydones são anti-palamitas, tomistas e unionistas. Mas o próprio Palamas não mostrou nenhuma animosidade sistemática contra o Ocidente latino, e era menos anti-romano do que seus oponentes Akyndinos e Gregoras. [25] Barlaão, o calabrês, era anti-palamita, mas também anti-tomista. No século seguinte, enquanto São Marcos de Éfeso era palamita e anti-unionista, seu sucessor como líder do partido anti-unionista, George (Gennadius) Escolário, foi até o final de sua vida um tomista dedicado. Pletão, o platonista, se opôs à união; seu discípulo platonista Bessarião a apoiou. O aristotélico George de Trebizond era a favor da união, mas não gostava de Bessarião. "Mesmo na última agonia de Bizâncio, cada um de seus eruditos seguiu seu próprio caminho individual"[26] Nenhuma classificação fácil é possível. 

As Coisas da Era por Vir

"Designações precisas", comentou São Isaque, o Sírio (século VII), "só podem ser estabelecidas em relação às coisas terrenas. As coisas da Era por vir não possuem um nome verdadeiro, só podem ser apreendidas por cognição simples, que é exaltada acima de todos os nomes e sinais e formas e cores e hábitos e denominações compostas. Quando, portanto, o conhecimento da alma se exalta acima deste círculo de coisas visíveis, os Pais usam a respeito deste conhecimento quaisquer designações que lhes agradam, pois ninguém conhece seus nomes reais. . . . Como diz o santo Dionísio, nós empregamos enigmas." [27]

Usando uma perspectiva escatológica, São Isaque expressou aqui a posição básica do teólogo apofático e místico. A ciência natural e a filosofia secular interessam-se pelas coisas "terrenas" e "visíveis", pelas realidades da "Era Presente". Isto significa que no campo da ciência e da filosofia pode ser estabelecido um certo sistema de "designação precisa" (embora nunca, claro, absolutamente precisa); significa que certos métodos de argumento lógico, de análise e verificação, criados pelo homem, podem aqui ser legitimamente aplicados. O teólogo cristão, por outro lado - utilizando uma frase de São Isaque - "respira o ar da Era por Vir". Todo seu pensamento e sua fala devem ser permeados pelo espírito da Era Vindoura que, desde a Encarnação e a Ressurreição de Jesus Cristo, já está inaugurada e em ação entre nós como uma realidade presente. Em consequência, a teologia nunca poderá ser uma 'ciência' em nenhum sentido comparável à filologia ou geologia, porque o assunto da teologia é radicalmente diferente. Ela tem suas próprias formas de compreensão, por "cognição simples" em vez de raciocínio discursivo; tem suas próprias formas de análise e verificação, e os métodos da ciência natural e da filosofia secular não podem aqui ser aplicados sem uma modificação drástica, sem uma metanoia fundamental ou "mudança de mentalidade." 

Os autores bizantinos que citamos sentiram que, no escolasticismo latino, nenhuma metanoia suficiente havia ocorrido, e que, como resultado, a teologia havia sido assimilada excessivamente próxima à ciência terrena e à filosofia humana. Eles consideravam que o escolasticismo latino havia negligenciado a presença transformadora das coisas da Era por Vir. Até que ponto estes bizantinos estavam certos?

A artigo original: Scholasticism and Orthodoxy: Theological Method as a Factor in the Schism

Notas
[1] B. Leeming, sj, 'Orthodox-Catholic Relations', em A. H. Aimstrong and E. J. B. Fry, Re-Discovering Eastern Christendom: Essays in Commemoration of Dorn Bede Winslow (London 1963), p. 19.

[2] ECR iii (1971), pp. 286-300.

[3] A Brief Comment on Dr Yannaras's ECR iii (1971), p. 306.

[4] O Sr. Bonner parece esquecer momentaneamente suas próprias advertências, quando escreve no final de seu artigo: "Existe alguma razão para pensar que a Ortodoxia está melhor equipada para falar ao homem secular moderno do que o Catolicismo Romano ou o Protestantismo? O presente escritor não vê razão para supor que seus compatriotas ingleses se impressionem mais com a Ortodoxia do que com as formas de cristianismo com as quais estão familiarizados". Não seria mais seguro evitar generalizações sobre "o homem secular moderno" e "os compatriotas ingleses"? Homens 'modernos', orientais ou ocidentais, ingleses ou gregos, diferem enormemente entre si. Vários ingleses 'seculares' entre meus conhecidos pessoais ficaram imediatamente impressionados com o primeiro encontro com a Ortodoxia.  Sufocados pela tecnologia urbana, eles responderam imediatamente à interpretação Ortodoxa da oração interior, ao uso Ortodoxo do simbolismo litúrgico e à insistência nas potencialidades portadoras de espírito das coisas materiais. Mas eu não gostaria de generalizar. Outros entre meus amigos ingleses acham a Ortodoxia Oriental pitoresca, porém irrelevante.

[5] ECR iii (1971), p. 491.

[6] Y. M. -J. Congar, 'Neuf cent ans après: Notes sur le "Schisme oriental", in 1054-1954, L'Eglise et les Eglises: neuf siècles de douloureuse séparation entre l'Orient et l'Occident. Etudes et travaux . . . offerts à Dom Lambert Beauduin (Editions de Chevetogne, 1954), vol. i, pp. 43-48.

[7] Poucos textos, por exemplo, poderiam ser mais elaboradamente (para não dizer, tediosamente) silogísticos do que os três Logoi Antirritikoi de São Teodoro, o Estudita (MPG, xcix, cols 328-436).

[8] Sobre o apelo à experiência pessoal na teologia bizantina, veja A. M. Allchin, 'The Appeal to Experience in the Triads of St. Gregory Palamas', em F. L. Cross (ed.), Studia Patristica viii (Texte and Untersuchungen Berlin xciiii: 1966), pp. 323-8; e K. Ware, 'Tradition and Personal Experience in Later Byzantine Theology', em ECR iii (1970), pp. 139-40.

[9] On Prayer, 60 (MPG, lxxix, col. 1180B).

[10] Citado por N. Zernov, 'The Eastern Churches and the Ecumenical Movement in the Twentieth Century', em R. Rouse e S. C. Neill (ed.), A History of the Ecumenical Movement 1517-1948 (Segunda ed., London 1967), p. 655.

[11] J. Gill, sj, The Council of Florence (Cambridge 1959), p. 227.

[12] Carta a Alexander Lascaris (MPG, clxi, col. 360B), citado em Gill, loc. cit.

[13] Citado em Dictionnaire de theologie catholique, vol. ii (Paris 1903). col. 1159. Compare M. J. le Guillou, Mission et Unité. Les exigences de la communion, vol. ii (Unam Sanctam 34: Paris 1960), pp. 35-36; e T. [Kallistos] Ware, Eustratios Argenti: A Study of the Greek Church under Turkish Rule (Oxford 1964), pp. 110-11.

[14] Adv. omn. haer., 29 (MPG, clv, col. 140Bc).

[15] Peri tis Archis tou Papa Antirrisis (Iassy 1682), p. 195.

[16] Em Keith Bridston (ed.), Orthodoxy, A Faith and Order Dialogue (Geneva 1960), p. 42; citado por Leeming, 'Orthodox-Catholic Relations', art. cit., p. 21.

[17] A respeito do assunto da teologia apofática, aceito a distinção do Sr. Bonner entre (i) o apofatismo como disciplina intelectual, complementando a teologia catafática, e (ii) o apofatismo como atitude de adoração, acompanhando a união mística. (Sobre esta distinção, cf. C. Journet, 'Palamisme et thomisme. A propos d'un livre récent1, em Revue Thomiste lx [1960], pp. 429-53, esp. p. 431). Mas os dois tipos de apofatismo são paralelos e interligados.

O Sr. Bonner tem razão, claro, em protestar contra um apofatismo excessivo. Um uso exclusivo da teologia negativa seria autodestrutivo, terminando em silêncio e niilismo intelectual. Os Pais Gregos nunca usaram a teologia negativa desta forma. Dionísio escreveu outras obras além da Teologia Mística, e em todo caso ele não é de forma alguma representativo da tradição patrística como um todo. Minha própria leitura dos Pais Gregos, entretanto, de São Clemente de Alexandria a São Gregório Palamas, me leva a suspeitar que eles são mais apofáticos do que o Sr. Bonner admite.

[18] Compare Peter Hammond, The Waters of Marah: The Present State of the Greek Church (Londres 1956), pp. 16-17: "A cristandade Ortodoxa nunca sofreu uma convulsão comparável àquela que abalou a unidade do mundo ocidental no século XVI, não por causa da geleira do domínio turco que caiu sobre ela cem anos antes, mas porque nunca conheceu tal separação entre teologia e misticismo, liturgia e devoção pessoal, que - quando tudo é dito quanto à influência de fatores políticos e econômicos - é necessária para explicar o cataclismo devastador de grande alcance da Reforma".

[19] Syntagma kata azymon (Leipzig 1760), pp. 171-2.

[20] Polnoe sobranie sochinenii, vol. i (Moscou 1911), p. 226. Eu devo esta referência ao Dr. J. H. Pain, da Universidade Drew, Madison, N.J.

[21] Sobre a importância do elemento poético na teologia, cf. Robert Murray, sj: 'Toda teologia começa com a mente humana tentando conceber algum eco ou reflexão do inefável por meio de imagens poéticas, sabendo que o inefável não pode ser afixado... Os picos da poesia teológica remanescem para nos inspirar novamente - Efraim, Dante, Milton, Blake, T. S. Eliot. Seria bom para a Igreja se eles fossem melhor posicionados na linha de frente do estudo teológico" (ECR iii [1971], p. 384).

[22] Para detalhes, veja le Guillou, Mission et Unite, vol. ii, p. 277, nota 55.

[23] O impacto do tomismo sobre os bizantinos é discutido brevemente, mas de forma perspicaz, por R. W. Southern, Western Society and the Church in the Middle Ages (The Pelican History of the Church, vol. Harmondsworth 1970), pp. 79-82. Para detalhes, veja S. Salaville, 'Un Thomiste Byzance au XVe siècle : Gennade Scholarios', em Echos d'Orient xxiii (1924), pp. 129-36; M. jugie, 'Demetrius Cyclones et la theologie latine a Byzance aux XIVe et XVe siecles', em Echos d'Orient xxvii (1928), pp. 385-402; G. Mercati, Notizie di Procoro e Demetrio Cidone, Manuele Caleca e Teodoro Meliteniota ed altri appunti per la storia della Teologia e della Letteratura Bizantina del secolo XIV (Studi e Testi 56: Vatican 1931).  O tratamento mais completo e mais recente do assunto encontra-se nas três obras de S. G. Papadorpoulos: Metaphraseis Thomistikon Ergon: Philothomistai kai Antithomistai en Byzantio (Athens 1967); Synantisis Orthodoxou kai Scholastikis Theologias (en to prosopo Kallistou Angelikoudi kai Thoma Akinatou) (Analekta Vlatadon 4: Thessalonika 1970); Kallistou Angelikoudi kata Thoma Akinatou (Athens 1970).

[25] Veja J. Meyendorff, Introduction a l'etude de Gregoire Palamas (Patristica Sorbonensia 3: Paris 1959), pp. 122, 313. 

[26] S. Runciman, The Last Byzantine Renaissance (Cambridge 1970), p. 84. 

[27] Mystic Treatises por  Isaque de Nínive, traduzido do texto siríaco de Bedjan por A. I. Wensinck (Amsterdam 1923), pp. 114-15 (tradução adaptada).

quarta-feira, 24 de junho de 2020

Jesus foi um revolucionário? (Sergei Khudiev)


Mito


Algumas pessoas dizem que Jesus foi um revolucionário e que por isso foi punido pelas autoridades.

Portanto, os seus verdadeiros herdeiros são os revolucionários de todos os tempos posteriores, não a Igreja conservadora. Um dos personagens do romance A Paixão Grega, ou Cristo Recrucificado por Nikos Kazantzakis, famoso escritor grego de meados do século 20, diz o seguinte: "Se Cristo descesse à Terra hoje em dia, o que ele carregaria em seus ombros? O que você acha? A cruz? Não! Um reservatório de querosene".

Realidade

Então, Jesus foi um revolucionário, um Che Guevara do mundo antigo? Não nos nossos conceitos habituais. Jesus não tentou tomar o poder por meios armados ou qualquer outro meio. Quando eles quiseram fazer dele rei, Ele recusou (João 6:15). No entanto, no Seu tempo, havia alguns Che Guevaras, ou seja, revolucionários em busca de uma reorganização radical da sociedade, conhecidos como Zelotes.

Eles procuravam destruir o sistema existente por considerá-lo manifestamente injusto e estabelecer um reino de justiça que agradasse a Deus. Foram inspirados pelo exemplo de uma revolta bem sucedida (hoje seria chamada de libertação nacional) que os Macabeus haviam alcançado dois séculos antes. Naquela época Israel também caiu sob o poder dos conquistadores pagãos, só que naquela época não foram os romanos, mas os herdeiros helenistas de Alexandre o Grande.



O rei pagão Antíoco Epifânio quis introduzir uniformidade religiosa e cultural em seu império, e para isso forçou os judeus a adorarem os deuses pagãos. Eles responderam com feroz resistência, e os pagãos, por sua vez, reagiram com violenta repressão. Parecia que Israel, que enfrentava o vasto império, estava condenado. No entanto, um milagre aconteceu: Deus veio em auxílio do seu povo, e os judeus conquistaram uma vitória incrível! Israel conquistou a independência por um tempo.
No tempo de Jesus, o povo esperava por um Messias como os Macabeus, um poderoso guerreiro que pusesse fim ao odioso domínio romano e estabelecesse um reino ideal de paz e justiça.
Os homens corajosos desafiaram a invencível máquina de guerra de Roma e morreram com as espadas dos legionários ou em cruzes para aproximar esse tempo. Ou seja, existia definitivamente um movimento revolucionário na Judéia, na época de Jesus. O que Ele tinha a ver com esse movimento? Nada. Além disso, sua mensagem de amor aos inimigos e de oferecer a outra face era exatamente o oposto da imagem heróica da batalha sangrenta em nome de Deus, com que os Zelotas sonhavam.

Enquanto isso, havia injustiças gritantes na época, das quais o sangue fervia nas veias e as mãos estendiam-se às armas. Mas o governador romano, Pôncio Pilatos, era rápido quanto a subjugar toda a agitação através de matanças. Entre suas outras atrocidades, ele certa vez matou um grupo de judeus piedosos e misturou o sangue dos mesmos com o sangue de seus sacrifícios, que eles haviam oferecido a Deus (Lucas 13:1).
O povo veio a Jesus para que ele finalmente os conduzisse a uma "batalha sangrenta, santa e justa" contra os opressores. Mas eles ficaram desapontados - ao invés de se revoltar contra Pilatos junto com eles, Jesus lhes apontou os próprios pecados de que eles tinham que se arrepender.
Como o mito difere do Evangelho em espírito? Aceitar o Evangelho é adotar uma visão completamente diferente das coisas. Estamos todos inclinados a acreditar que nossos problemas estão lá fora, fora de nós - eles se encontram em pessoas más que nos tratam injustamente, nas circunstâncias de nossas vidas... O Evangelho afirma que meu principal problema não se encontra no exterior, mas no interior. Não são outras pessoas ou circunstâncias que me condenam ao infortúnio temporário e eterno, mas eu mesmo. Como diz o Evangelho, Cristo veio para salvar as pessoas dos pecados delas (Mateus 1:21) - não dos romanos ou de algum outro "povo mau", mas dos seus próprios pecados.
É extremamente difícil de aceitar, mas o Evangelho não é sobre coisas que precisam mudar ao meu redor, quer sejam pessoas, circunstâncias, estado ou sociedade, mas sobre as coisas que precisam mudar dentro de mim.
Deve ocorrer uma profunda transformação interior. Eu preciso olhar para Deus, para outras pessoas e para mim mesmo de uma maneira diferente. Tenho que reconhecer meus pecados, confessá-los a Cristo, aceitar Seu perdão e buscar a graça para que eu possa mudar profundamente. Esta revolução é muito mais importante que todos os golpes de Estado políticos: ela tem consequências eternas. O próprio Senhor fala dela como um "novo nascimento", e o mesmo é reafirmado pelos Apóstolos, assim como a imagem da "nova criação". 

A vida das pessoas que experimentaram esta revolução pode ser diretamente contrária à vida dos revolucionários. São Sérgio de Radonezh não lutou, não matou, não liderou as multidões furiosas. Pelo contrário, humilhou-se, cedeu aos outros; tentou viver segundo a vontade de Deus e evitou a fama mundana. Mas foi ele quem influenciou a vida e os valores da Rússia medieval da forma mais profunda. Ele foi um daquelas pessoas através das quais Deus operou neste mundo, mudando a vida de nações inteiras. É a esta revolução que Jesus Cristo nos conduz: devemos deixar que Ele nos mude para que Ele possa agir através de nós no mundo.

Quem precisa desse mito e por quê?

A luta política - ainda mais a luta revolucionária - pode facilmente ocupar o lugar na consciência humana que a fé deveria ocupar: aquele "propósito último", o mais importante ao qual o homem dedica sua vida, no qual encontra sentido e justificação, esperança e unidade com outras pessoas. Quando isto (lamentavelmente!) lhe acontece, ele procura submeter tudo - prudência, moralidade, religião - à sua luta por aquilo que considera correto.

Jesus não pode ser nosso aliado na luta, porque Ele veio a ser nosso Senhor e Salvador. Não adianta recrutá-Lo para as nossas fileiras e sob as nossas bandeiras. Ele não é uma celebridade que poderíamos trazer para apoiar a nossa causa. Ele é o Senhor, Deus e Salvador - e Ele espera que sejamos plena e incondicionalmente fiéis a Ele e não a qualquer causa política que consideramos grande e correta.

Fonte: https://blog.obitel-minsk.com/2020/06/was-jesus-a-revolutionary.html

Homilias de São Marcos de Éfeso sobre a Oração pelos Mortos e Contra o Purgatório Católico Romano

O Ensinamento Ortodoxo de São Marcos de Éfeso sobre o Estado da Alma após a Morte [1] 

O ensinamento Ortodoxo sobre o estado das almas após a morte é algo que muitas vezes não é inteiramente compreendido, mesmo pelos próprios cristãos Ortodoxos; e o ensinamento latino relativamente tardio do "purgatório" causou ainda mais confusão na mente das pessoas. A doutrina Ortodoxa em si, no entanto, não é de todo ambígua ou imprecisa. Talvez a exposição Ortodoxa mais concisa seja encontrada nos escritos de São Marcos de Éfeso no Concílio de Florença, em 1439, composta precisamente para responder ao ensinamento latino sobre o "purgatório". Estes escritos são especialmente valiosos para nós, na medida em que, como vêm do último dos Padres Bizantinos, antes da era moderna com todas as suas confusões teológicas, eles tanto nos apontam para as fontes da doutrina Ortodoxa, como nos instruem a como abordar e compreender essas fontes. Essas fontes são: as Escrituras, as homilias patrísticas, os ofícios da Igreja, as Vidas dos Santos e certas revelações e visões da vida após a morte, como as contidas no Livro IV dos Diálogos de São Gregório Magno.

Os teólogos acadêmicos de hoje tendem a desconfiar dos últimos dois ou três tipos de fontes, e é por isso que frequentemente se sentem desconfortáveis ao falar sobre esse assunto e às vezes preferem manter uma "reticência agnóstica" em relação a ele (Timothy Ware, The Orthodox Church, p. 259). Os escritos de São Marcos, por outro lado, mostram-nos o quanto "em casa" estão os genuínos teólogos Ortodoxos com essas fontes; aqueles que estão "desconfortáveis" com elas talvez revelam assim uma infecção insuspeita de incredulidade moderna.

São Marcos de Éfeso
Das quatro respostas de São Marcos sobre o purgatório, compostas no Concílio de Florença, a Primeira Homilia contém o relato mais conciso da doutrina Ortodoxa contra os erros latinos, e é principalmente dela que esta tradução foi compilada. As outras respostas contêm sobretudo material ilustrativo para os pontos discutidos aqui, assim como respostas a argumentos latinos mais específicos.

O "Capítulo Latino" ao qual São Marcos responde são aqueles escritos pelo cardeal Juliano Cesarini (tradução russa em Pogodin, pp. 50-57), que expõe o ensinamento latino, definido anteriormente no Concílio de "União" de Lyon (1270), sobre o estado das almas após a morte. Esse ensinamento choca o leitor ortodoxo (como de fato chocou São Marcos) devido ao seu caráter inteiramente "literalista" e "legalista". Os latinos nessa época passaram a considerar o céu e o inferno [Hades] [A] como "finais" e "absolutos" e aqueles que estavam neles já possuíam a plenitude do estado que terão após o Juízo Final; assim, não há necessidade de orar por aqueles que estão no céu (cuja sorte já é perfeita) ou por aqueles no inferno (pois eles nunca podem ser libertos ou purificados do pecado). Mas como muitos dos fiéis morrem num estado "intermediário" - não suficientemente perfeito para o céu, mas não suficientemente mau para o inferno - a lógica dos argumentos latinos exigia um terceiro lugar de purificação ("purgatório"), onde mesmo aqueles cujos pecados já tinham sido perdoados tinham que ser punidos ou oferecer "satisfação" por seus pecados antes de serem suficientemente purificados para entrar no céu. Esses argumentos legalistas de uma "justiça" puramente humana (que na verdade nega a suprema bondade de Deus e Seu amor pela humanidade) os latinos passaram a apoiá-los através de interpretações literalistas de certos textos patrísticos e várias visões; quase todas essas interpretações são bastante forçadsa e arbitrárias, porque nem mesmo os antigos Padres latinos falaram de um lugar como "purgatório", mas apenas da "purificação" dos pecados após a morte, a que alguns deles se referiram (provavelmente alegoricamente) como por "fogo".

Na doutrina Ortodoxa, por outro lado, que São Marcos ensina, os fiéis que morreram com pequenos pecados não confessados, ou que não apresentaram frutos de arrependimento pelos pecados que confessaram, são purificados destes pecados ou no processo da própria morte com seu medo, ou após a morte, quando eles estão confinados (mas não permanentemente) no inferno [Hades], pelas orações e Liturgias da Igreja e boas ações executadas para eles pelos fiéis. Mesmo os pecadores destinados ao tormento eterno podem receber um certo alívio de seu tormento no inferno por esses meios também. Não há fogo que atormenta os pecadores agora, nem no inferno (pois o fogo eterno começará a atormentá-los somente depois do Julgamento Final), nem muito menos em qualquer terceiro lugar como o "purgatório"; todas as visões de fogo que são vistas pelos homens são, por assim dizer, imagens ou profecias do que acontecerá na era futura. Todo perdão dos pecados após a morte vem somente da bondade de Deus, que se estende até aos que estão no inferno [Hades], com a cooperação das orações dos homens, e nenhum "pagamento" ou "satisfação" é oferecida pelos pecados que foram perdoados.

Deve-se notar que os escritos de São Marcos dizem respeito primariamente ao ponto específico do estado das almas após a morte e pouco falam sobre os eventos que ocorrem à alma imediatamente após a morte. Sobre isso há uma literatura Ortodoxa abundante, mas este ponto não estava em discussão em Florença.

Todas as notas foram adicionadas pelos tradutores. 

Primeira Homilia
Refutação dos Capítulos Latinos a respeito do Fogo Purgatorial

Na medida em que somos solicitados, preservando a nossa Ortodoxia e os Dogmas da Igreja transmitidos pelos Padres, a responder com amor ao que você disse, como regra geral citaremos primeiro cada argumento e testemunho que o senhor apresentou por escrito, a fim de que a resposta e a resolução de cada um deles possa seguir de forma breve e clara.

1. E assim, no início do seu relatório, você fala assim: "Se aqueles que verdadeiramente se arrependeram partiram desta vida em amor (para com Deus) antes de poderem oferecer satisfação por meio de frutos dignos por suas transgressões ou ofensas, suas almas são purificadas depois da morte por meio de sofrimentos purgatoriais; mas para a atenuação (ou 'libertação') desses sofrimentos, eles são auxiliados pela ajuda que lhes é concedida pelos fiéis que estão vivos, como por exemplo: orações, liturgias, esmolas e outras obras de piedade".

A isto respondemos o seguinte: Do fato de que aqueles que repousam na fé são sem dúvida ajudados pelas Liturgias e orações e esmolas feitas por eles, e de que esse costume está em vigor desde a antiguidade, há o testemunho de muitos e várias afirmações dos Doutores, tanto latinos como gregos, proferidos e escritos em vários momentos e em vários lugares. Mas que as almas são libertadas graças a um certo sofrimento purgatorial e fogo temporal que possui tal poder (purgatorial) e tem o caráter de uma ajuda - isso não encontramos nem nas Escrituras nem nas orações e hinos para os mortos, nem nas palavras dos Doutores. Por outro lado, aceitamos que mesmo as almas que estão detidas no Hades e já sujeitas ao tormento eterno, quer seja de fato e na experiência, quer seja na expectativa desesperançosa de tal tormento, podem ser auxiliadas e receber certa pequena ajuda, muito embora isso não possa libertá-las completamente do tormento, ou dar-lhes esperança de uma libertação final. E isto é demonstrado pelas palavras do grande Macário, o asceta egípcio que, encontrando um crânio no deserto, foi por ele instruído a esse respeito pela atividade do Poder Divino.[2] E Basílio, o Grande, nas orações lidas no Pentecostes, escreve literalmente o seguinte: Tu 'que também, nesta festa perfeita e salvífica, te dignas a receber orações propiciatórias por aqueles que estão aprisionados no Hades, concedendo-nos uma grande esperança de que o alívio e o conforto serão enviados por Ti para os que se encontram ali aprisionados da aflição confinante deles." (Terceira Oração Ajoelhada nas Vésperas).

Mas, se as almas partiram desta vida na fé e no amor, mas, no entanto, levando consigo certas faltas, sejam elas pequenas, das quais não se arrependeram de modo algum, ou grandes, das quais - ainda que se tenham arrependido delas - não se empenharam em mostrar os frutos de arrependimento: tais almas, cremos, devem ser purificadas deste tipo de pecados, mas não por meio de algum fogo purgatorial ou de uma punição específica em algum lugar (pois isto, como temos dito, não nos foi de maneira alguma transmitido). Mas algumas devem ser purificadas na própria saída do corpo, apenas devido ao medo, como mostra literalmente São Gregório, o Dialogista; [3] enquanto outras devem ser purificadas após a saída do corpo, ou enquanto permanecem no mesmo lugar terreno, antes que venham a adorar a Deus e sejam honradas com a sorte dos bem-aventurados, ou - se seus pecados foram mais graves e as detém por mais tempo - elas são mantidas no Hades, mas não para permanecerem para sempre no fogo e no tormento, mas como que na prisão e em confinamento sob guarda.

Todos essas, afirmamos, são auxiliados pelas orações e Liturgias realizadas por elas, com a cooperação da Bondade e Amor Divino pelos homens. Deus concede a remissão de certos pecados, como aqueles cometidos devido à fraqueza humana, como diz Dionísio, o Grande (o Areopagita), nas "Reflexões do Mistério dos que Repousam na Fé" (em A Hierarquia Eclesiástica, VII, 7); ao passo que outros pecados, depois de um certo tempo, por julgamentos justos, ou são absolvidos e perdoados - e isso completamente - ou é aliviada a responsabilidade por eles até o Julgamento final. E, portanto, não vemos necessidade alguma de qualquer outra punição ou de um fogo purificador; pois alguns são purificados pelo medo, enquanto outros são devorados pelo roer da consciência com maior tormento do que qualquer fogo, e ainda outros são purificados apenas pelo próprio grande terror experimentado diante da Glória Divina e a incerteza quanto ao que será o futuro. E que isto é muito mais atormentador e punitivo do que qualquer outra coisa, a própria experiência mostra, e São João Crisóstomo nos testemunha em quase todas ou pelo menos na maioria de suas homilias morais, que afirmam isso, assim como o santo asceta Doroteu em sua homilia "Sobre a Consciência...". [Quanto ao fato de que a incerteza sobre o futuro é um tormento maior para os condenados do que a própria punição, isso é mencionado por doutores como Gregório o Teólogo, que em sua Oração "Sobre a Praga da Saraiva" diz isso: "Estes serão destinados a serem acolhidos pela luz inefável e pela visão da Santíssima e Régia Trindade, ao passo que aqueles juntamente com os outros, ou melhor, antes dos outros, - pelo sofrimento: de serem rejeitados por Deus, e atormentados pelo interminável remorso da consciência".] [B]

2. E assim suplicamos a Deus e pensamos em livrar [do tormento eterno] os que partiram, e não de qualquer outro tormento ou de qualquer outro fogo diferente daqueles que foram proclamados eternos. E, além disso, que as almas dos que partiram são libertas através, da oração, do confinamento no Hades, como se de um tipo de prisão, é testemunhado, entre muitos outros, por Teófano, o Confessor, chamado de Graptos [o Marcado] (pois as palavras do seu testemunho pelo ícone de Cristo, escritas na sua testa, ele selou com sangue). Em um dos cânones para os que repousaram, ele ora por eles assim: "Liberta, ó Salvador, Teus servos que estão no Hades das lágrimas e prantos" (Octoechos, cânone de sábado para os repousados, Tom 8, Cântico 6, Glória).

Você ouviu? Ele disse "lágrimas" e "prantos", e não qualquer tipo de punição ou fogo purgatorial. E se nesses hinos e orações se encontra alguma menção ao fogo, não é uma menção a um fogo que tem um poder purgatorial, mas sim a esse fogo eterno da punição incessante. Os santos, movidos pelo amor aos homens e pela compaixão pelos seus semelhantes, ousando e desejando o que é quase impossível, oram pela libertação de todos aqueles que partiram na fé. Pois assim diz São Teodoro o Estudita, ele mesmo confessor e testemunha da verdade, logo no início do seu cânon para os defuntos:  "Roguemos todos a Cristo, celebrando hoje um memorial pelos mortos de todas as épocas, para que Ele possa livrar do fogo eterno os que partiram na fé e na esperança da vida eterna" (Triodion da Quaresma, Sábado da Abstinência da Carne, Cânon, Cântico 1). E então, em outro troparion, no Cântico 5 do Cânon, ele diz: "Livrai, ó nosso Salvador, todos os que faleceram na fé do fogo sempre-ardente e das trevas sem luz, do ranger de dentes, do verme atormenta sem cessar, e de todos os tormentos".

Onde está o "fogo purgatorial" aqui? E se de fato existisse, onde seria mais apropriado que o Santo falasse dele, se não aqui? Não nos cabe procurar saber se os santos são ouvidos por Deus quando oram com essa intenção.Mas eles mesmos sabiam, assim como o Espírito que neles habitava, por Quem eram movidos, e falavam e escreviam nesse conhecimento; e assim também Cristo o Senhor sabia disso, Aquele que nos deu o mandamento de orarmos por nossos inimigos, e que orou por aqueles que O crucificavam, e inspirou o Primeiro Mártir Estêvão, quando estava sendo apedrejado até a morte, a fazer o mesmo. Mesmo que ninguém possa dizer que somos ouvidos quando oramos por essas pessoas, apesar disso devemos fazer tudo o que estiver ao nosso alcance. E eis que alguns dos santos que oravam não só pelos fiéis, mas até mesmo pelos ímpios, foram ouvidos e por suas orações os resgataram do tormento eterno, como por exemplo a Primeira Mulher-Mártir Thecla resgatou Falconila, e o santo Gregório, o Dialogista, como é relatado, resgatou o Imperador Trajano. [4]
(O capítulo 3 demonstra que a Igreja ora também por aqueles que já desfrutam da bem-aventurança junto a Deus - os quais, evidentemente, não têm necessidade de passar através do "fogo purgatorial".)
4. Depois disso, um pouco mais adiante, você quis provar o dogma acima mencionado do fogo purgatorial, primeiramente citando o que é dito no livro dos Macabeus: É santo e piedoso... orar pelos mortos... para que eles sejam libertados de seus pecados (2 Macabeus 12:44-45). Em seguida, tomando do Evangelho segundo Mateus o lugar em que o Salvador declara que "todo aquele que falar contra o Espírito Santo, não alcançará perdão nem neste século nem no século vindouro" (Mt. 12:32),  você diz que a partir disto se pode constatar que há remissão de pecados na vida futura.

Mas que a partir disso não decorre de forma alguma a idéia de fogo purgatorial é algo mais claro que o sol; pois o que há em comum entre a remissão, por um lado, e a purificação pelo fogo e punição, por outro? Porque, se a remissão dos pecados é alcançada por causa das orações, ou meramente pelo amor Divino à humanidade em si, não há necessidade de punição e purificação (através do fogo).  Mas se a punição, e também a purificação, são estabelecidas (por Deus)... então, pareceria, as orações (pelos que repousaram) são feitas em vão, e em vão entoamos hinos ao amor Divino pela humanidade. E assim, essas citações são menos uma prova da existência do fogo purgatorial do que uma refutação dele: pois a remissão dos pecados daqueles que transgrediram é apresentada nelas como resultado de uma certa autoridade régia e do amor pela humanidade, e não como uma libertação da punição ou de uma purificação.

5. Em terceiro lugar, (tomemos) a passagem da primeira epístola do Bem-aventurado Paulo aos Coríntios, na qual ele, falando do edifício sobre o fundamento, que é Cristo, "de ouro, prata, pedras preciosas, madeira, feno, palha", acrescenta:  "Pois aquele Dia a declarará, porque pelo fogo será descoberta; e o fogo provará qual seja a obra de cada um. Se a obra que alguém edificou nessa parte permanecer, esse receberá recompensa. Se a obra de alguém se queimar, sofrerá detrimento; mas o tal será salvo, todavia como pelo fogo." (I Cor. 3:11-15). Esta citação, ao que parece, mais do que qualquer outra introduz a idéia de fogo purgatorial; mas na realidade ela, mais do que qualquer outra, a refuta.

Em primeiro lugar, o santo Apóstolo chamou-o não de um fogo purgatorial, mas de um fogo de prova; em seguida, ele declarou que através dele também devem passar obras boas e honrosas, e tais, evidentemente, não têm necessidade de qualquer purificação; em seguida, ele diz que aqueles que trazem más obras, depois que essas obras queimam, sofrem detrimento, ao passo que aqueles que estão sendo purificados não só não sofrem detrimento, mas recebem ainda mais; então ele diz que isso deve acontecer "naquele Dia", ou seja, no dia do julgamento e da era vindoura, mas supor a existência de um fogo purgatorial depois daquela temível vinda do Juiz e da sentença final - não é isso um absurdo total? Pois a Escritura não nos transmite nada do tipo, mas Ele mesmo que nos julgará diz: "E irão estes para o tormento eterno, mas os justos para a vida eterna." (Mateus 25:46); e também: "E os que fizeram o bem sairão para a ressurreição da vida; e os que fizeram o mal para a ressurreição da condenação." (João 5:29) Portanto, não resta nenhum tipo de lugar intermediário; mas, depois que Ele dividiu todos os que se encontram sob julgamento em duas partes, colocando uns à direita e outros à esquerda, e chamando os primeiros de "ovelhas" e os segundos de "bodes" - Ele não declarou, de modo algum, que há alguns que devem ser purificados por aquele fogo. Ao que parece, o fogo de que fala o Apóstolo é o mesmo do qual fala o Profeta Davi: "Um fogo abrasador o precede; ao seu redor, furiosa tempestade" (Sl. 49:4); e também: "Ele é precedido por um fogo que devora em redor os inimigos" (Sl. 96:3). Daniel, o Profeta, também fala deste fogo: "Saído de diante dele, corria um rio de fogo" (Daniel 7:10).

Como os santos não trazem consigo nenhuma obra má ou marca má, esse fogo os manifesta como ainda mais luminosos, como o ouro provado no fogo, ou como a pedra amianto, que, como é relatado, quando colocada no fogo mostra-se como carbonizada, mas quando tirada do fogo torna-se ainda mais pura, como se tivesse sido lavada com água, como também aconteceu com os corpos dos Três Jovens na fornalha babilônica. Os pecadores, porém, que trazem consigo o mal, são apreendidos como um material apropriado para esse fogo e são imediatamente incendiados por ele, e as suas "obras", isto é, a sua má disposição ou atividade, é queimada e inteiramente destruída e eles são privados do que trouxeram consigo, isto é, privados do seu fardo do mal, ao passo que eles mesmos são "salvos" - isto é, serão preservados e mantidos para sempre, de modo que eles não sejam sujeitos à destruição juntamente com o seu mal.

6. O santo Pai Crisóstomo também (que por nós é chamado "os lábios de Paulo", assim como este último é "os lábios de Cristo") considera necessário fazer tal interpretação desta passagem em seu comentário à Epístola (Homilia 9 sobre Primeiro Coríntios); e Paulo fala através de Crisóstomo, como ficou claro com a visão de Proclo, seu discípulo, e o sucessor de sua Sé.[5]  São Crisóstomo dedicou um tratado especial a esta passagem, a fim de que os Origenistas não citasse estas palavras do Apóstolo como confirmação do modo de pensar deles (que, ao que parece, é mais adequado para eles do que para você), e não causasse dano à Igreja, introduzindo um fim ao tormento do inferno e uma restauração final (apocatástase) dos pecadores. Pois a expressão de que o pecador é "salvo, todavia como pelo fogo" significa que ele permanecerá atormentado no fogo e não será destruído juntamente com suas más obras e má disposição de alma.

Basílio o Grande também fala disso em seu "Moralia", ao interpretar a passagem da Escritura, "a voz do Senhor separa a labareda de fogo." (Sl. 28:7): "O fogo preparado para o tormento do diabo e seus anjos, é separado pela voz do Senhor, de modo que depois disso possa haver duas forças nele: uma que queima, e outra que ilumina; o poder de tormento e punição daquele fogo é reservado para aqueles dignos de tormento; ao passo que o poder iluminador e radiante é destinado ao resplendor daqueles que rejubilam. Portanto, a voz do Senhor que divide e separa a labareda de fogo é para isto: que a parte escura seja um fogo de tormento e a parte que não queima seja uma luz de deleite" (São Basílio, Homilia sobre o Salmo 28).

E assim, como se pode ver, essa divisão e separação desse fogo acontecerá quando absolutamente todos passarem por ele: as obras brilhantes e resplandecentes se manifestarão ainda mais brilhantes, e aqueles que as trazem se tornarão herdeiros da luz e receberão a recompensa eterna; ao passo que aqueles que trazem más obras apropriadas para queimar, sendo punidos pela perda delas, permanecerão eternamente no fogo e herdarão uma salvação que é pior do que a perdição, pois é isso que, rigorosamente falando, a palavra "salvo" significa - que o poder destruidor do fogo não lhes será aplicado e que eles mesmos não serão totalmente destruídos. Seguindo esses Padres, muitos outros de nossos Doutores também entenderam essa passagem no mesmo sentido. E se alguém a interpretou de maneira diferente e entendeu "salvação" como "libertação da punição", e "passar pelo fogo" como "purgatório" - esse alguém, se assim podemos nos expressar, entende essa passagem de maneira completamente errada. E isso não surpreende, pois esse é um homem, e muitos mesmo entre os Doutores podem ser observados interpretando passagens da Escritura de várias maneiras, e nem todos eles alcançaram em grau igual o significado preciso. Não é possível que um mesmo texto, sendo transmitido em várias interpretações, corresponda em grau igual em todas as interpretações do mesmo; mas nós, selecionando as mais importantes e as que melhor correspondem aos dogmas da igreja, devemos colocar as outras interpretações em segundo lugar. Portanto, não nos desviaremos da interpretação acima citada das palavras do Apóstolo, mesmo que Agostinho ou Gregório, o Dialogista, ou outro de seus Doutores, dê tal interpretação; pois tal interpretação é menos favorável às idéias de um fogo purgatorial temporário do que ao ensinamento de Orígenes que, ao falar de uma restauração final das almas através desse fogo e de uma libertação do tormento, foi rejeitado e anatemizado pelo V Concílio Ecumênico, e foi definitivamente repudiado como uma impiedade comum para a Igreja.
(Do capítulo 7 ao 12, São Marcos responde a objeções levantadas por citações das obras do Bem-aventurado Agostinho, Santo Ambrósio, São Gregório o Dialogista, São Basílio o Grande e outros Padres, mostrando que eles foram mal interpretados ou talvez citados incorretamente e que esses Padres na verdade ensinam a doutrina Ortodoxa, e caso contrário, então seus ensinamentos não devem ser aceitos. Além disso, ele aponta que São Gregório de Nissa não ensina nada sobre o "purgatório", mas mantém o erro muito pior de Orígenes, o de que haverá um fim para as chamas eternas do inferno - embora possa ser que essas idéias tenham sido inseridas mais tarde em seus escritos por Origenistas.)
13. E por fim você diz: "A verdade acima mencionada é evidente com base na Justiça Divina, que não deixa impune nada do que foi feito de errado, e daí decorre necessariamente que para aqueles que aqui não sofreram punição, e não podem pagá-la nem no Céu nem no Hades, resta supor a existência de um outro lugar, um terceiro lugar, no qual essa purificação se realiza, em virtude da qual cada um, ao se purificar, é imediatamente levado ao deleite celestial".

A isso dizemos o seguinte, e prestamos atenção ao quão simples e ao mesmo tempo justo é: geralmente é reconhecido que a remissão dos pecados é ao mesmo tempo também uma libertação da punição; pois aquele que recebe a remissão dos pecados ao mesmo tempo é libertado da punição devida por eles. A remissão é concedida de três formas e em momentos diferentes: (1) durante o Batismo; (2) depois do Batismo, através da conversão, tristeza e compensação (pelos pecados) pelas boas obras na vida presente; e (3) depois da morte, através de orações e boas obras e mediante tudo mais que a Igreja faz pelos mortos.

Assim, a primeira remissão de pecados não está de todo ligada ao esforço; ela é comum a todos e igual em honra, como o derramar da luz e a contemplação do sol e as mudanças das estações do ano, pois esta é apenas a graça e nada mais nos é exigido senão a fé. Mas a segunda remissão é dolorosa, como para aquele que "todas as noites banha de pranto sua cama, e com lágrimas inundo o seu leito" (Sl. 6:5), para quem até os vestígios dos golpes do pecado são dolorosos, que caminha lamentando e com rosto contrito e imita a conversão dos ninivitas e a humildade de Manassés, sobre a qual houve misericórdia. A terceira remissão também é dolorosa, pois está ligada ao arrependimento e a uma consciência contrita e que sofre com a falta do bem; porém, não está de modo algum misturada com a punição, se ela é uma remissão de pecados; pois remissão e punição não podem de modo algum existir juntas. Além disso, na primeira e última remissão de pecados a graça de Deus tem a parte maior, com a cooperação da oração, e muito pouco é feito de nossa parte. A remissão do meio, por outro lado, tem pouco da graça, ao passo que a maior parte se deve ao nosso esforço. A primeira remissão dos pecados se distingue da última por isso: a primeira é uma remissão de todos os pecados em igual grau, ao passo que a última é uma remissão somente daqueles pecados que não são mortais e sobre os quais uma pessoa se arrependeu em vida.

Assim pensa a Igreja de Deus e ao suplicar pelos que partiram a remissão dos pecados e crendo que lhes é concedida, ela não define como uma lei de punição com relação a eles, sabendo bem que a Bondade Divina em tais questões conquista a idéia de justiça.

Trechos da Segunda Homilia Contra o Fogo Purgatorial [6]

3. Afirmamos que nem os justos já receberam a plenitude da sua sorte e aquela condição bem-aventurada pela qual se prepararam aqui por meio das obras, nem os pecadores, após a morte, foram submetidos à punição eterna, na qual serão atormentados eternamente. Antes, ambos devem necessariamente ocorrer após o Julgamento do último dia e a ressurreição de todos. Agora, porém, tanto um como o outro estão em lugares apropriados para eles: os primeiros, em repouso absoluto e livres, estão no céu com os anjos e diante do próprio Deus, e já como se estivessem no paraíso de onde Adão caiu (no qual o bom ladrão entrou antes dos outros) e muitas vezes nos visitam naqueles templos onde eles são venerados, e ouvem aqueles que os invocam e oram por eles a Deus, tendo recebido dEle este dom sublime, e através de suas relíquias operam milagres, e deleitam-se com a visão de Deus e com iluminação vinda dEle, com mais perfeição e pureza do que antes, quando estavam vivos; ao passo que os segundos, por sua vez, estando confinados no Hades, permanecem no abismo mais profundo, em trevas e na sombra da morte (Sl. 87:7), como diz Davi, e então Jó: para a terra onde a luz é como a escuridão (Jó 10:21-22). E os primeiros permanecem em toda alegria e júbilo, já esperando e somente não tendo em suas mãos o Reino e as coisas boas indescritíveis que lhes foram prometidos; e os segundos, ao contrário, permanecem em todo confinamento e sofrimento inconsolável, como homens condenados aguardando a sentença do Juiz e prevendo os tormentos. Nem os primeiros já receberam a herança do Reino e as coisas boas que o olho não viu, e o ouvido não ouviu, e não subiram ao coração do homem (I Cor. 2:9); nem os segundos já foram submetidos aos tormentos eternos, nem ao ardor no fogo inextinguível. E este ensinamento, transmitido como tal por nossos Pais na antiguidade, podemos facilmente mostrá-lo como proveniente das próprias Escrituras Divinas.

10. Aquilo que alguns dos santos viram em visão e revelação a respeito do tormento futuro dos ímpios e pecadores que ali estão, são certas imagens de coisas futuras e por assim dizer representações, e não o que de fato já está acontecendo agora. Assim, por exemplo, Daniel, descrevendo esse Julgamento futuro, diz: Continuei a olhar, até o momento em que foram colocados os tronos e um ancião chegou e se sentou... e os livros foram abertos (Daniel 7:9-10), porém é claro que isso não aconteceu realmente, mas foi revelado no espírito antecipadamente ao Profeta.

19. Quando examinamos os testemunhos que você citou do livro de Macabeus e do Evangelho, falando simplesmente com amor à verdade, vemos que eles não contêm nenhum testemunho de algum tipo de punição ou purificação, mas apenas falam da remissão dos pecados. Você fez uma certa divisão surpreendente, dizendo que todo pecado deve ser entendido sob dois aspectos: (1) a ofensa em si que é feita a Deus, e (2) a punição que a segue. Desses dois aspectos (você ensina), a ofensa a Deus, de fato, pode ser perdoada após o arrependimento e o afastamento em relação ao mal, mas a culpabilidade à punição deve existir em todos os casos; de modo que, com base nessa idéia, é essencial que aqueles libertos dos pecados sejam, mesmo assim, sujeitos à punição por eles.

Mas nos permitimos dizer que tal afirmação da questão contradiz verdades claras e conhecidas: se vemos que um rei, depois de ter concedido anistia e perdão, não sujeita o culpado a ainda mais punição, então ainda mais Deus, que, entre Suas muitas características, o amor à humanidade é especialmente extraordinário, ainda que Ele puna um homem por um pecado que cometeu, ainda assim, depois de Ele o ter perdoado, Ele o liberta imediatamente da punição também. E isso é natural. Pois se a ofensa a Deus leva à punição, então, quando a culpa é perdoada e a reconciliação ocorre, a própria consequência da culpa - a punição - necessariamente chega ao fim.
 
Retirado do livro The Soul After Death do Pe. Serafim Rose

Notas

[1] Traduzido a partir da tradução russa do Arquimandrita Amvrossy Pogodin, em São Marcos de Éfeso e da União de Florença. Jordanville, N. Y., 1963, pp. 58-73.

[A] Nota do tradutor para o português: Na teologia Ortodoxa, assim como na teologia Ocidental nos primeiros séculos, há uma importante distinção entre Hades e Geena embora ambos sejam traduzidos frequentemente como inferno. No texto em inglês Pe. Serafim Rose faz uso da palavra hell [inferno], no entanto, muito provavelmente, considerando o contexto, ele se referia não ao estado final das almas condenadas após o Julgamento Final, mas sim ao estado entre o pós-morte e o Julgamento Final. Esse estado, ou local, que difere daquele pós-Julgamento, é chamado de Hades. Para evitar essa confusão, acrescentei, na introdução e em uma das notas escritas pelo Pe. Serafim, ao lado da palavra inferno, a palavra Hades entre colchetes. Sobre esta distinção veja: https://skemmata.blogspot.com/2019/12/uma-proposta-razoavel-sobre-o-inferno.html e https://skemmata.blogspot.com/2020/01/purgatorio-clark-carlton.html

[2] Na "Coleção Alfabética" dos ditos dos Padres do Deserto, no capítulo "Macário, o Grande", lemos: "Abba Macário disse: Um dia, andando no deserto, encontrei o crânio de um homem morto, caído no chão. Enquanto eu o movia com meu bastão, o crânio falou comigo. Eu lhe disse: 'Quem és tu?' O crânio respondeu: 'Eu era o sumo sacerdote dos ídolos e dos pagãos que habitava neste lugar; mas tu és Macário, o portador do Espírito. Sempre que tens compaixão por aqueles que estão nos tormentos, e oras por eles, eles sentem um pouco de alívio.' O crânio instruiu ainda São Macário a respeito dos tormentos do inferno, concluindo: "Recebemos um pouco de misericórdia porque não conhecíamos Deus, mas aqueles que conheciam Deus e O negaram estão abaixo de nós." The Saying of the Desert Fathers, tr. por Benedicta Ward, London, A. R. Mowbray & Co., 1975, pp. 115-6).

[3] No Livro IV dos Diálogos.

[B] Nota do tradutor para o português: Este trecho final entre colchetes do cap.1 da Primeira Homilia não se encontra na tradução inglesa feita pelo Pe. Serafim Rose. A tradução russa, no entanto, apresenta o trecho em questão e por isso acrescentei-o. Em russo: А что касается того, что неизвестность будущого больше терзает наказуемых, чем самое наказание, об этом говорят Учители, как напр. Григорий Богослов в слове “На побиение града”, говорит следующее: “Тех восприимет несказанный свет и видение Святой и царственной Троицы, а этих вместе с иными – лучше же сказать – ранее других, – мучение: быть отверженными от Бога, и угрызение совести, не имущее конца.”"

[4] Este último acontecimento é relatado em algumas das primeiras obras sobre a vida de São Gregório, como por exemplo em uma Vida Inglesa do século VIII: "Alguns de nosso povo também contam uma história relatada pelos romanos de como a alma do Imperador Trajano foi refrescada e até batizada pelas lágrimas de São Gregório, uma história maravilhosa de se contar e maravilhosa de se ouvir. Que ninguém se surpreenda que digamos que ele foi batizado, pois sem batismo ninguém jamais verá a Deus; e um terceiro tipo de batismo é pelas lágrimas. Um dia, ao passar diante do Fórum, uma obra magnífica pela qual se diz que Trajano foi responsável, ele descobriu ao examiná-la cuidadosamente que Trajano, apesar de pagão, tinha feito uma ato tão caridoso que parecia mais provável que tivesse sido um ato de um cristão do que de um pagão. Pois é relatado que, enquanto conduzia seu exército com grande pressa contra o inimigo, foi movido pela piedade devido às palavras de uma viúva, e o imperador de todo o mundo parou. Ela disse: 'Senhor Trajano, aqui estão os homens que mataram meu filho e não estão dispostos a me pagar recompensa'. Ele respondeu: 'Fale-me sobre isso quando eu voltar e eu farei com que eles te recompensem'. Mas ela respondeu: 'Senhor, se tu nunca mais voltares, não haverá ninguém para me ajudar'. Então, armado como estava, ele fez os acusados pagarem imediatamente a compensação que lhe deviam, em sua presença. Quando Gregório descobriu esta história, reconheceu que isto era exatamente o que lemos na Bíblia, fazei justiça ao órfão, defendei a viúva. Pois bem, justifiquemo-nos, diz o Senhor. Como Gregório não sabia o que fazer para confortar a alma deste homem que trouxe as palavras de Cristo à sua mente, ele foi à Igreja de São Pedro e chorou torrente de lágrimas, como era seu costume, até que finalmente obteve por revelação divina a certeza de que suas preces foram atendidas, visto que ele nunca havia presumido pedir isso para nenhum outro pagão." (The Earliest Life of Gregory the Great, de um monge anônimo de Whitby, tr. de Benram Colgrave, The University of Kansas Press, Lawrence, Kansas, 1968 , cap. 29, pp. 127-9). Como a Igreja não oferece oração pública pelos não-crentes [N.T.: não-Ortodoxos] que partiram, é evidente que essa libertação do inferno [Hades] foi fruto da própria oração pessoal de São Gregório. Embora esta seja uma ocorrência rara, dá esperança àqueles que têm entes queridos que faleceram fora da fé.

[5] É relatado na Vida de São Proclo (20 de novembro) que quando São Crisóstomo estava trabalhando em seus comentários sobre as epístolas de São Paulo, São Proclo viu o próprio São Paulo se inclinando ao lado de São Crisóstomo e sussurrando em seu ouvido.

[6] Texto em russo em Pogodin, pp. 118 - 150.

terça-feira, 23 de junho de 2020

Pergunta: "Os Ortodoxos crêem na Expiação?" (Pe. John Whiteford)

O conceito de expiação é encontrado em diversas passagens da Escritura, e é claro que nós Ortodoxos acreditamos nele. Havia, na realidade, uma festa no Antigo Testamento chamada "O Dia da Expiação", que em hebraico é chamada de Yom Kippur. Este era o único dia de jejum especificamente solicitado na Lei de Moisés, e era "um sábado santíssimo [Shabbat Shabbaton]" (Levítico 16:31). Este é o jejum que foi mencionado em Atos 27:9, que diz que "já havia passado a época do jejum - e a navegação se tornava perigosa."

A palavra inglesa "atonement" [Expiação] foi cunhada por William Tyndale, e significa "to make one" [tornar um] ou literalmente "at one-ment" (juntando as duas palavras "at" [em] e "one" [um] e acrescentando o sufixo "-ment" [mente]). Isso traduziu bem o significado da palavra hebraica "Kippur", que significa "reconciliação" - especificamente reconciliar homens pecadores com um Deus Santo.

Outro termo que William Tyndale trouxe para o inglês é "Mercy Seat" [Assento da Misericórdia]. William Tyndale baseou sua tradução na tradução de Lutero para a palavra alemã: "Gnadenstuhl", que literalmente significa o assento da graça ou da misericórdia. No entanto, não há nada no termo hebraico, Kapporet, que sugere "misericórdia" ou "assento". "Kapporet" é uma forma da palavra "Kippur", e literalmente significa "o lugar da reconciliação". Esta era a tampa da Arca da Aliança, e o Assento da Misericórdia era o lugar sobre o qual o sangue do sacrifício no dia da Expiação era aspergido, e pelo qual a reconciliação entre Deus e os homens se realizava.


A tradução grega para o Assento da Misericórdia era "ἱλαστήριον, hilasterion". E encontramos esta palavra usada em Romanos 3:24-25: "Sendo justificados gratuitamente pela sua graça, pela redenção que há em Cristo Jesus. Ao qual Deus propôs para propiciação pela fé no seu sangue, para demonstrar a sua justiça pela remissão dos pecados dantes cometidos, sob a paciência de Deus." Interessantemente encontramos nesse texto a palavra "redemption" [redenção], que poderia ser traduzida como "ransom" [resgate], e a palavra hebraica para "resgate" (Koper) é da mesma palavra raiz de Kippur -- palavra usada em referência aos sacrifícios do Antigo Testamento, e que tem claramente a conotação de "pagamento".

A Tradição da Igreja conecta diretamente a Cruz com a Arca da Aliança, porque a Arca e o Assento da Misericórdia era o lugar da expiação, e a Arca é referida como "adoremos no lugar onde repousam os seus pés" (Salmo 131:7 lxx) e a Cruz é o lugar onde os pés de Cristo repousaram, quando Ele fez a expiação por nossos pecados (veja Christopher Veniamin, trad. Saint Gregory Palamas: The Homilies (Waymart, PA: Mount Thabor Publishing, 2009) p. 86).

Há muitos escritores Ortodoxos contemporâneos que desejam negar ou minimizar uma série de conceitos que se relacionam com nossa redenção. Eles argumentarão que nós não acreditamos que Cristo teve que morrer em nosso lugar, ou que Seu sangue precisou ser derramado para pagar a penalidade por nossos pecados. Negarão a legitimidade dos termos legais, em favor da idéia de que a Igreja é um hospital espiritual. O problema não é que a Igreja não é um hospital espiritual, mas sim que, ao enfatizar um conjunto de imagens usadas para explicar nossa salvação, eles negam todo um conjunto de imagens igualmente válidas que são claramente bíblicas. É verdade que no Ocidente houve uma ênfase excessiva nas imagens legais/jurídicas, mas a solução para tal desequilíbrio não é um novo desequilíbrio na direção oposta. Podemos e devemos falar do pecado como uma doença, mas quando morremos, não chegamos diante do exame médico final - nos deparamos com o julgamento final, que é uma imagem legal, se é que alguma vez houve uma. E assim também podemos falar do pecado como uma transgressão da Lei de Deus, e da nossa necessidade de sermos justificados por Deus, mesmo enquanto falamos de pecado em termos de uma doença da qual precisamos ser curados.

Rejeitamos a idéia de que a morte de Cristo foi um resgate pago ao diabo, mas que ela foi um resgate em certo sentido é confirmado pelo próprio Senhor, e em outra parte da Escritura (Mateus 20:28; Marcos 10:45; 1 Timóteo 2:6). Então temos que entender que as imagens verbais apontam para uma realidade, mas não são a realidade em si, e temos uma idéia melhor dessa realidade considerando todas as imagens bíblicas que apontam para ela - não focando em uma ou duas excluindo as outras, e certamente não forçando essas imagens para além do objetivo que elas visam.

São Gregório Palamas, em sua 16ª Homilia (proferida no Sábado Santo: "Sobre a Dispensação Segundo a carne de nosso Senhor Jesus Cristo e os Dons de Graça Concedidos àqueles que verdadeiramente crêem nEle"), fala um pouco sobre a necessidade de Cristo morrer em nosso lugar. Toda a homilia merece ser lida, mas aqui estão alguns trechos:
"O homem foi levado ao seu cativeiro quando experimentou a ira de Deus, sendo essa ira o justo abandono do homem por parte do bom Deus. Deus tinha de reconciliar-se com a raça humana, pois, caso contrário, a humanidade não poderia ser libertada da servidão. Era necessário um sacrifício para reconciliar o Pai das alturas conosco e para nos santificar, pois estávamos sujos devido à comunhão com o maligno. Tinha que haver um sacrifício que ao mesmo tempo purificasse e fosse puro, e um sacerdote purificado e sem pecado." (Christopher Veniamin, trad. Saint Gregory Palamas: The Homilies (Waymart, PA: Mount Thabor Publishing, 2009) p. 124).

"Cristo derrotou o diabo através do sofrimento e da Sua carne, que Ele ofereceu como um sacrifício a Deus Pai, como uma vítima pura e inteiramente santa - que grande é o Seu dom! -- e reconciliou Deus com a nossa raça humana" (p.125).

"Por esta razão o senhor suportou pacientemente por nós uma morte que Ele não estava obrigado a sujeitar-se, para nos redimir, a nós que estávamos obrigados a sofrer a morte, devido à servidão ao diabo e à morte, e com isso quero dizer a morte tanto da alma como do corpo, temporária e eterna. Uma vez que Ele ofereceu Seu sangue, que era sem pecado e, portanto, isento de culpa, como resgate por nós, que estávamos sujeitos a punição por causa de nossos pecados, Ele nos redimiu de nossa culpa. Ele perdoou os nossos pecados, rasgou o registro deles na Cruz e nos libertou da tirania do diabo (cf. Cl 2:14-15)"(p. 128f)".
Como muitas vezes é o caso, a perspectiva Ortodoxa apropriada sobre esta questão é uma de equilíbrio. Devemos proclamar todo o conselho de Deus (Atos 20:27), e não apenas as partes que nos parecem mais atrativas. Nem devemos exagerar na reação aos desequilíbrios dos teólogos heterodoxos, e assim cair em um novo erro, ao rejeitar aspectos importantes da nossa Tradição.

Texto original: https://fatherjohn.blogspot.com/2015/08/stump-priest-atonement.html

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Atualização 1:

A seguinte citação por São João Crisóstomo também é de interesse:
"Deus permitiu que seu Filho sofresse como se fosse um pecador condenado, para que pudéssemos ser libertos da pena dos nossos pecados. Esta é a justiça de Deus, que não somos justificados pelas obras (pois então elas teriam que ser perfeitas, o que é impossível), mas pela graça, e assim todo o nosso pecado é removido" (Comentário em 2 Coríntios 5:21, citado em Ancient Christian Commentary on Scripture: New Testament, Vol. VII, Gerald Bray, ed. (Downers Grove, IL: Intervasity Press, 1999) p. 252).
Atualização 2:

São Justino Popovich disse isto ao comentar 1 João 2:2:
"O Senhor Cristo é a propiciação do Pai pelos nossos pecados, porque orando ao Pai por nós, portadores de carne pecaminosa, Ele indica as Suas chagas por nós, sobre o Seu Corpo, o corpo humano, que era sem pecado na terra, e assim permaneceu para sempre. Ele é a propiciação do Pai pelos pecados do mundo inteiro, porque por causa de todos, e no lugar de todos, e em nome de todos, Ele suportou inúmeros sofrimentos desde o berço até a morte na Cruz, o sacrifício supremo, e Ele a suportou em Seu infinito amor pelo homem. Se não fosse a propiciação salvífica pelo pecado da humanidade, o mundo, pela justiça de Deus, teria sido destruído muitas vezes por causa de seus pecados." (Arquimandrita Justino Popovich, Commentary on the Epistles of St. John the Theologian, trad. Radomir M. Plavsic (Alhambra, CA: Sebastian Press, 2009) p. 21).