terça-feira, 22 de agosto de 2017

Panagia: a Toda-Santa (Vladimir Lossky)


A Theotokos 

        A Igreja Ortodoxa não fez da Mariologia um tema dogmático independente: permanece integral a todo o ensinamento cristão, como um leitmotiv antropológico. Com base na cristologia, o dogma da Mãe de Deus tem um forte ênfase pneumatológico; e através da dupla economia do Filho e do Espírito Santo, está inextricavelmente ligado à realidade eclesiológica.

        Na verdade, se nos limitássemos a dados dogmáticos no sentido estrito da palavra e só tratássemos de dogmas afirmados pelos Concílios, não encontraríamos nada exceto o termo Theotokos, pelo qual a Igreja confirmou solenemente a maternidade divina da Santíssima Virgem. [1]

     A ênfase dogmática do termo Theotokos, afirmado contra os nestorianos, é acima de tudo cristológico: o que é defendido contra os adversários da maternidade divina é a unidade hipostática do Filho de Deus se tornar o Filho do Homem. É a cristologia que é diretamente confrontada aqui; mas, ao mesmo tempo, indiretamente, há uma confirmação dogmática da devoção da Igreja a ela que deu à luz a Deus, de acordo com a carne. Dizem que todos aqueles que se erguem contra o título Theotokos - todos os que se recusam a admitir que Maria tem essa qualidade que a piedade atribui a ela - não são verdadeiramente cristãos, pois se opõem à verdadeira doutrina da Encarnação do Verbo. Isso deve demonstrar a conexão estreita entre dogma e devoção, que são inseparáveis na consciência da Igreja.

        No entanto, conhecemos casos de cristãos que, embora reconheçam a maternidade divina da Virgem por razões puramente cristológicas, abstêm-se de toda devoção especial à Mãe de Deus pelas mesmas razões, desejando não conhecer nenhum outro mediador entre Deus e o homem além do Deus-Homem, Jesus Cristo. Esta constatação é suficiente para demonstrar que o dogma cristológico da Theotokos tomado in abstracto, fora do vínculo vivo com a devoção que a Igreja consagrou à Mãe de Deus, não seria suficiente para justificar o lugar único - além de todo ser criado - reservado à Rainha dos Céus, a que a liturgia Ortodoxa atribui "a glória que é apropriada a Deus" (he Theoprepes doxa). Por conseguinte, é impossível separar as bases dogmáticas, em sentido estrito, das bases de devoção, numa exposição teológica da doutrina sobre a Mãe de Deus. Aqui, o dogma deve lançar luz sobre a devoção, colocando-a em contato com as verdades fundamentais de nossa fé; desde que a devoção deve enriquecer o dogma com a experiência viva da Igreja.

        Estamos todos na mesma posição em relação aos dados das escrituras. Se desejássemos considerar a evidência das escrituras à parte da devoção da Igreja à Mãe de Deus, seríamos obrigados a limitar-nos às poucas passagens do Novo Testamento relativas a Maria, a Mãe de Jesus, e a uma única referência direta no Antigo Testamento: a profecia do nascimento do Messias de uma Virgem, em Isaías. Mas se olharmos a Bíblia através dos olhos da devoção da Igreja, ou - para usar um termo mais exato - na Tradição da Igreja, então os livros sagrados do Antigo e do Novo Testamento nos fornecerão inúmeros textos utilizados pela Igreja para glorificar a Mãe de Deus.

        Algumas passagens nos evangelhos, se vistas externamente, de um ponto de vista fora da Tradição da Igreja, parecem contradizer de forma flagrante essa glorificação extrema e veneração ilimitada. Tomemos dois exemplos: Cristo, ao dar testemunho de São João Batista, chama-o de o maior dos que nasceram das mulheres (Mateus 11:11; Lucas 7:28). É, portanto, para ele, e não para Maria, que a posição mais elevada entre os seres humanos deveria pertencer. De fato, na prática da Igreja, encontramos João Batista com a Mãe de Deus ao lado do Senhor nos ícones da deisis. Mas a Igreja nunca exaltou São João, o Precursor, acima dos Serafins, nem colocou seu ícone em pé de igualdade com o ícone de Cristo, em um dos lados da entrada do santuário, como é o caso do ícone da Mãe de Deus.

        Outra passagem no evangelho nos mostra que Cristo se opõe publicamente à glorificação de sua Mãe. Ele responde a exclamação da mulher na multidão que clama: "Bem-aventurado o ventre que te trouxe e os peitos em que mamaste", dizendo: "Antes bem-aventurados os que ouvem a palavra de Deus e a guardam" (Lucas 11 : 27-28). Mas é precisamente esta passagem em São Lucas, que parece depreciar o fato da maternidade divina em comparação com a qualidade daqueles que recebem e mantêm a revelação divina, que é o texto do evangelho lido solenemente nas festas da Mãe de Deus, como se sob sua aparente forma negativa escondesse um ato de louvor ainda maior.

A Mãe de Deus e a Tradição

        Mais uma vez enfrentamos a impossibilidade de separar o dogma e vida da Igreja, Escritura e a Tradição. O dogma cristológico nos obriga a reconhecer a maternidade divina da Virgem. A evidência bíblica nos ensina que a glória da Mãe de Deus não reside apenas na sua maternidade corporal, no fato de ela ter dado à luz e alimentado o Verbo Encarnado. Na verdade, a Tradição da Igreja  - a santa memória daqueles que "ouvem e guardam" as palavras da revelação - dá à Igreja a garantia com a qual ela exalta a Mãe de Deus, atribuindo-lhe uma glória ilimitada.

        À parte da Tradição da Igreja, a teologia permanecerá em silêncio sobre assunto e não conseguiria justificar essa surpreendente glorificação. É por isso que as comunidades cristãs que rejeitam qualquer idéia de Tradição também são estranhas à veneração da Mãe de Deus.

        A estreita conexão entre a Tradição e tudo o que diz respeito à Mãe de Deus não é simplesmente devido ao fato de que eventos da sua vida terrena - como sua Natividade, sua Apresentação no Templo e sua Assunção - são celebrados pela Igreja sem serem mencionados na Bíblia. Se o Evangelho é silencioso sobre esses fatos, e se sua elaboração poética se deve a livros apócrifos de data tardia, ainda assim o tema fundamental que significam pertence ao mistério de nossa fé e não deve ser afastado da consciência da Igreja. Na verdade, a noção de Tradição é mais rica do que pensamos habitualmente. A Tradição não consiste apenas em uma transmissão oral de fatos capazes de complementar a narrativa bíblica. É o complemento da Bíblia e, acima de tudo, é o cumprimento do Antigo Testamento no Novo, visto que a Igreja se faz consciente. É a Tradição que confere compreensão do significado da verdade revelada (Lucas 24). A Tradição nos diz não só o que devemos ouvir, mas ainda mais importante, como devemos manter o que ouvimos. Neste sentido geral, a Tradição implica uma operação incessante do Espírito Santo, que pôde ter seu derramamento pleno e seus frutos apenas na Igreja, depois do Dia de Pentecostes. É somente na Igreja que nos encontramos capazes de traçar as conexões internas entre os textos sagrados que fazem do Antigo Testamento e do Novo Testamento um único corpo vivo da Verdade, onde Cristo está presente em cada palavra. É somente na Igreja que a semente semeada pela palavra não permanece estéril, mas produz fruto; e esta fruição da Verdade, bem como o poder de produzir frutos, é chamada de Tradição. A devoção ilimitada da Igreja à Mãe de Deus, que, vista externamente, parece contrariar os dados bíblicos, desenvolveu-se na Tradição da Igreja. É o fruto mais precioso da Tradição.

      Mas não é apenas o fruto da Tradição; é também o embrião e o tronco da Tradição. Com efeito, podemos encontrar uma relação definitiva entre a pessoa da Mãe de Deus e o que chamamos de Tradição da Igreja. Tentaremos, ao estabelecer essa relação, vislumbrar a glória da Mãe de Deus sob o véu do silêncio das Escrituras. Um exame dos textos, em sua conexão interna, nos guiará neste sentido.

A Mãe de Deus nas Escrituras

        São Lucas, em uma passagem paralela à que já citamos, nos mostra que Cristo se recusa a ver Sua mãe e seus irmãos, declarando que "Minha mãe e meus irmãos são aqueles que ouvem a palavra de Deus e a executam" (Lucas 8: 19-21). O contexto é significativo: em São Lucas, no momento em que a Mãe de Deus deseja ver seu Filho, ele acaba de terminar a parábola do Semeador. [2] "E a que caiu em boa terra, esses são os que, ouvindo a palavra, a conservam num coração honesto e bom, e dão fruto com perseverança.... quem tem ouvidos para ouvir, ouça... Vede, pois, como ouvis; porque a qualquer que tiver lhe será dado, e a qualquer que não tiver até o que parece ter lhe será tirado" (Lucas 8: 8, 15, 18). É precisamente essa faculdade de manter as palavras ouvidas a respeito de Cristo em um coração honesto e bom, a faculdade que em outro lugar Cristo exalta acima do fato da maternidade corpórea (Lucas 11:28) - que o Evangelho atribui a nenhum indivíduo, exceto a Mãe do Senhor. São Lucas insiste nisso, pois menciona duas vezes em sua narrativa da infância: "Mas Maria manteve todas estas coisas ponderando-as em seu coração" (Lucas 2:19, 51). Ela, que deu à luz a Deus na carne manteve em sua memória todos os testemunhos da divindade de seu Filho. Poderíamos dizer que temos aqui uma personificação da Tradição da Igreja antes da Igreja, caso São Lucas não tivesse o cuidado de nos dizer que Maria e José não entenderam a fala da Criança, que ele devia tratar dos negócios de meu Pai (Lucas 2: 49-50). Portanto, o significado das palavras que a Mãe de Deus guardava fielmente em seu coração não havido sido plenamente realizado em sua consciência. 

        Antes da consumação da obra de Cristo, antes do Dia de Pentecostes, antes da Igreja, mesmo ela a quem o Espírito Santo desceu para torná-la apta para servir a Encarnação do Verbo ainda não havia alcançado a plenitude que sua pessoa foi chamada para realizar. No entanto, já é possível ver a conexão entre a Mãe de Deus, enquanto ela mantém e recolhe os ditos proféticos, e a Igreja, a Guardiã da Tradição. Uma é a semente do outra. Somente a Igreja, o complemento da humanidade de Cristo, poderá manter a plenitude da revelação que, se fosse inteiramente cometida a escrita, não poderia ser contida no espaço do mundo inteiro. (cf. João 21:25)

        Somente a Mãe de Deus, aquela que foi escolhida para carregar Deus em seu ventre, poderia compreender plenamente em sua consciência tudo o que estava envolvido no fato da Encarnação do Verbo, incluindo o fato de sua própria maternidade divina. As palavras de Cristo que parecem tão duras para sua Mãe são palavras que exaltam a qualidade que ela tem em comum com os filhos da Igreja. Mas, enquanto eles, como guardiões da Tradição, só podem tornar-se conscientes da Verdade e torná-la frutífera em maior ou menor grau, a Mãe de Deus, em virtude da relação única entre ela e Deus, a quem ela pode chamar Seu Filho - apenas ela - pode elevar-se deste mundo até a consciência completa de tudo o que o Espírito Santo comunica à Igreja, realizando essa plenitude em sua própria pessoa. Mas esta consciência completa de Deus, essa aquisição da plenitude da graça apropriada para a era futura, só poderia ocorrer em um ser deificado. Isso coloca diante de nós uma nova questão, que devemos tentar responder para que o caráter especial da devoção da Igreja Ortodoxa à Soberana Rainha do Céu possa ser melhor compreendido.

        Cristo, ao dar testemunho de São João Batista, chamou-o de "o maior dos nascidos de mulher" (Mateus 11: 11; Lucas 7:28), mas acrescentou: "mas aquele que é o menor no reino dos céus é maior do que ele." Aqui a santidade do Antigo Testamento é comparada com a santidade que poderá ser realizada quando a obra redentora de Cristo fosse cumprida e quando "a promessa do Pai "(Atos 1: 4), a descida do Espírito Santo, preenchesse a Igreja com a plenitude da graça deificadora. São João, embora "mais do que um profeta" porque ele batizou o Senhor e viu os céus abertos e o Espírito como uma pomba descendo sobre o Filho do Homem, morreu sem ter recebido a promessa, como todos aqueles que deram "um bom testemunho na fé," "dos quais o mundo não era digno" que, de acordo com o plano divino, "sem nós não poderiam ser aperfeiçoados" (Hebreus 11: 38-40), isto é, à parte da Igreja de Cristo. É somente através da Igreja que a santidade do Antigo Testamento pode receber seu cumprimento no século por vir, na perfeição que era inacessível à humanidade antes de Cristo.

        Não há dúvida de que ela, que foi escolhida para ser a Mãe de Deus, representa o ápice da santidade do Antigo Testamento. Se São João Batista é chamado de "o maior" daqueles antes de Cristo, é porque a grandeza da Santíssima Mãe de Deus pertence não apenas ao Antigo Testamento, onde ela estava escondida e não aparece, mas também à Igreja, na qual realizou sua plenitude e se manifestou, para ser glorificada por todas as gerações (Lucas 1:48). A pessoa de São João permanece na dispensação do Antigo Testamento; a Santíssima Virgem passa do Antigo para o Novo; e esta transição, na pessoa da Mãe de Deus, nos mostra como a Nova Aliança é o cumprimento da Antiga.

        O Antigo Testamento não é apenas uma série de prefigurações de Cristo, que se tornam decifráveis ​​depois que a Boa Nova chegou. É sobretudo a história da preparação da humanidade para a vinda de Cristo, uma história em que a liberdade humana é constantemente posta à prova pela vontade de Deus.

        A obediência de Noé, o sacrifício de Abraão, o Êxodo do povo de Deus pelo deserto sob a liderança de Moisés, a Lei e os Profetas, é uma série de eleições divinas, nas quais os seres humanos às vezes permanecem fiéis à promessa feita a eles e outras vezes falham e sofrem punições (o cativeiro e a destruição do primeiro templo). Toda a tradição sagrada dos judeus é uma história da jornada lenta e laboriosa da humanidade caída em direção à "plenitude do tempo", quando o anjo deveria ser enviado para anunciar à Virgem escolhida a encarnação de Deus e ouvir seus lábios o consentimento humano, para que o plano divino da salvação possa ser realizado. Assim, de acordo com São João de Damasco, "O nome da Mãe de Deus contém toda a história da economia divina neste mundo". [3]

       Esta economia divina, preparando condições humanas para a Encarnação do Filho de Deus, não é unilateral: não é uma questão de vontade divina fazendo uma tabula rasa da história da humanidade. Nesta economia salvadora, a Sabedoria de Deus é adaptada às flutuações das vontades humanas, às diferentes respostas dos homens ao chamado divino. É assim que, através das gerações dos justos do Antigo Testamento, a Sabedoria "construiu a sua casa": a toda-pura natureza da Santíssima Virgem, pela qual a Palavra de Deus se tornará co-natural conosco. A resposta de Maria à anunciação do arcanjo: "Eis aqui a serva do Senhor; cumpra-se em mim segundo a tua palavra" (Lucas 1:38), resolve a tragédia da humanidade caída. Tudo o que Deus exigia da liberdade humana desde a queda é cumprido. E agora a obra de redenção, que somente o Verbo Encarnado pode executar, pode acontecer. Nicolau Cabasilas afirma, em sua homilia sobre a Anunciação: "A Encarnação não foi apenas a obra do Pai e da Virtude e do Seu Espírito; foi também a obra da vontade e da fé da Virgem. Sem o consentimento da Toda-Pura e a cooperação de sua fé, esse propósito teria sido tão irrealizável como teria sido sem a intervenção das três Pessoas Divinas. Somente depois de ensiná-la e persuadi-la, Deus a toma por Sua Mãe e recebe dela a carne que deseja oferecer. Assim como Ele voluntariamente se encarnou, assim Ele quis que Sua mãe O carregasse livremente, com seu consentimento pleno e livre." [4]


As Duas Virgens 

        De São Justino e São Ireneu em diante, os Padres muitas vezes chamaram a atenção para o contraste entre as "duas virgens", Eva e Maria. Pela desobediência da primeira, a morte entrou na humanidade. Pela obediência da "segunda Eva", o autor da vida tornou-se homem e entrou na família de Adão. Mas entre as duas Evas está toda a história do Antigo Testamento, o passado do qual a pessoa que se tornou Mãe de Deus não pode ser separada. Se ela foi escolhida para assumir uma parte única na obra da Encarnação, essa escolha seguiu e concluiu toda uma série de outros escolhidos que prepararam o caminho para tal. Não é à toa que a Igreja Ortodoxa, em seus textos litúrgicos, chama David “o ancestral de Deus” e dá o mesmo nome de “ancestrais santos e justos de Deus” para Joaquim e Anna. O dogma católico romano da Imaculada Conceição parece romper esta sucessão ininterrupta de santidade do Antigo Testamento, que atinge seu cumprimento no momento da Anunciação, quando o Espírito Santo desceu sobre a Virgem para fazê-la apta a receber a Palavra do Pai em seu ventre. A Igreja Ortodoxa não admite a exclusão da Santíssima Virgem do resto da humanidade caída - a ideia de um "privilégio" que a torna um ser resgatado antes da obra redentora, em virtude dos futuros méritos de seu Filho. Não é em virtude de um privilégio recebido no momento de sua concepção por seus pais que veneramos a Mãe de Deus mais do que qualquer outro ser criado. Ela era santa e pura de todo pecado desde o ventre de sua mãe, mas ainda assim essa santidade não a exclui do resto da humanidade antes de Cristo. Ela não estava, no momento da Anunciação, em um estado análogo ao de Eva antes da Queda. A primeira Eva, "a mãe de todos os viventes", deu ouvido às palavras do sedutor no estado paradisíaco da humanidade inocente. A segunda Eva - ela que foi escolhida para se tornar a Mãe de Deus - ouviu e entendeu a palavra angélica no estado da humanidade caída. É por isso que esta eleição única não a separa do resto da humanidade, de todos os seus pais, mães, irmãos e irmãs, sejam santos ou pecadores, cuja melhor parte ela representa.

        Como outros seres humanos, tais como São João Batista, cuja concepção e nascimento também são festas da Igreja, a Santíssima Virgem nasceu sob a lei do pecado original, compartilhando com todos a  mesma responsabilidade comum pela Queda. Mas o pecado nunca poderia ser realizado em sua pessoa; a herança pecaminosa da Queda não tinha domínio sobre sua vontade reta. Aqui estava o ponto mais elevado de santidade que poderia ser alcançado antes de Cristo, nas condições da Antiga Aliança, por uma das sementes de Adão. Ela estava sem pecado sob a soberania universal do pecado, pura de toda sedução no meio de uma humanidade escravizada pelo príncipe deste mundo. Ela não foi colocada acima da história para servir um decreto divino especial, mas realizou sua vocação única enquanto estava nas cadeias da história, compartilhando o destino comum de todos os homens que aguardavam a salvação.

        E, no entanto, se na pessoa da Mãe de Deus vemos o ápice da santidade do Antigo Testamento, sua própria santidade não é limitada por isso, pois ela também ultrapassou os ápices mais altos da Nova Aliança, realizando a maior santidade que a Igreja pode alcançar.

       A primeira Eva foi tirada de Adão: ela era uma pessoa que, no momento de sua criação por Deus, tomou a si mesma a natureza de Adão, para ser seu complemento. Encontramos uma relação inversa no caso da Nova Eva: através dela, o Filho de Deus tornou-se o "Último Adão", tomando a Si mesmo a natureza humana. Adão foi antes de Eva; o último Adão foi depois da Nova Eva. No entanto, não podemos dizer que a humanidade assumida por Cristo no ventre da Santíssima Virgem era um complemento da humanidade de sua Mãe. Era, na verdade, a humanidade de uma Pessoa divina, a do "homem celestial" (I Coríntios 15:47, 48). A natureza humana da Mãe de Deus pertence a uma pessoa criada, que é descendente do "homem terreno". Não é a Mãe de Deus, mas seu Filho, que é a cabeça da nova humanidade, "a cabeça de todas as coisas para a Igreja, que é o seu corpo" (Efésios 1: 22-23). Assim, a Igreja é o complemento de sua humanidade. Portanto, é através do seu Filho e em Sua Igreja que a Mãe de Deus pode alcançar a perfeição reservada para aqueles que têm a imagem do "homem celestial" (1 Coríntios 15:49).


A Mãe de Deus e a Igreja

        Já indicamos uma estreita ligação entre a pessoa da Mãe de Deus e a Igreja, ao falar da Tradição que ela personificou, por assim dizer, antes da Igreja existir. Ela, que deu à luz a Deus segundo a carne também manteve no seu coração todas as palavras que revelaram a divindade de seu Filho. Este é um testemunho sobre a vida espiritual da Mãe de Deus. São Lucas nos mostra que ela não era simplesmente um instrumento, que voluntariamente deixou-se ser usada na Encarnação, mas sim uma pessoa que procurava concluir, em sua própria consciência, o significado do fato de sua maternidade divina. Depois de ter oferecido sua natureza humana ao Filho de Deus, ela procurou receber por meio dEle o que ela ainda não tinha em comum com Ele: a participação na natureza divina. É no seu Filho que a plenitude da Divindade habita corporalmente (Colossenses 2: 9). A conexão natural que a ligou ao Deus-Homem não havia ainda conferido à pessoa da Mãe de Deus o estado de uma criatura deificada, embora a descida do Espírito Santo no dia da Anunciação tenha lhe tornado apta para realizar sua tarefa única. Nesse sentido, a Mãe de Deus, antes do dia de Pentecostes, antes da Igreja, ainda pertencia à humanidade do Antigo Testamento, aqueles que esperam a promessa do Pai, o batismo do Espírito Santo (Atos 1: 4-5).

        A Tradição nos mostra a Mãe de Deus no meio dos discípulos no dia de Pentecostes, recebendo com eles o Espírito Santo, que foi comunicado a cada um deles como uma língua de fogo distinta. Isso concorda com o testemunho de Atos: após a Ascensão, os apóstolos "perseveravam unanimemente em oração e súplicas, com as mulheres, e Maria mãe de Jesus, e com seus irmãos". (1:14). "E, cumprindo-se o dia de Pentecostes, estavam todos concordemente no mesmo lugar" (2:1). Com a Igreja, a Mãe de Deus recebeu a última e única coisa que lhe faltava para poder crescer "no homem perfeito, à medida da plena maturidade de Cristo" (Efésios 4:13). Ela que, pelo poder do Espírito Santo recebeu a Pessoa divina do Filho de Deus em seu ventre, agora recebe o Espírito Santo, enviado pelo Filho.


Vocação e Santificação 

       As duas descidas do Espírito Santo sobre a Santíssima Virgem podem ser comparadas, em certo sentido, com as duas comunicações do Espírito aos apóstolos, uma na noite do dia da ressurreição e outra no dia de Pentecostes. A primeira conferiu aos apóstolos o poder de ligar e desligar. Esta é uma função independente de suas qualidades subjetivas, devido unicamente a um decreto divino que os seleciona para desempenhar esse papel particular na Igreja. A segunda comunicação do Espírito, no Pentecostes, deu a cada um deles a possibilidade de realizar sua santidade pessoal - algo que sempre dependerá de fatores subjetivos. Mas as duas comunicações do Espírito, a funcional e a pessoal, são mutuamente complementares. Pode-se ver isso nos apóstolos e em seus sucessores: ninguém pode cumprir sua função na Igreja, a menos que se esforce para adquirir a santidade; por outro lado, é difícil alguém alcançar a santidade se for negligenciado a função em que Deus o colocou. As duas devem coincidir cada vez mais durante a vida; a vocação normalmente se torna uma maneira pela qual adquire-se a santidade pessoal, esquecendo-se de si mesmo. 

        Podemos ver algo análogo no caso, por outro lado único, exclusivo da Mãe de Deus: a função objetiva de sua maternidade divina, na qual foi estabelecida no dia da Anunciação, também será o caminho subjetivo de sua santificação. Ela realizará em sua consciência, e em toda a sua vida pessoal, o significado do fato de ter levado seu ventre e ter nutrido em seu seio o Filho de Deus. É assim que as palavras de Cristo, que parecem rebaixar sua Mãe em comparação com a Igreja, recebem o significado de louvor supremo: abençoada é ela que não só foi a Mãe de Deus, mas também realizou em sua pessoa o grau de santidade correspondente a essa função única. A pessoa da Mãe de Deus é exaltada mais do que a sua função, e a consumação da sua santidade recebe mais do que seus começo.

        A função da maternidade divina está cumprida no passado; mas a Santíssima Virgem, ainda na Terra após a Ascensão de seu Filho, permanece sempre como a Mãe dAquele que, em Sua gloriosa humanidade, tomada da Virgem, está sentado à direita do Pai, "acima de todo o principado, e poder, e potestade, e domínio, e de todo o nome que se nomeia, não só neste século, mas também no vindouro." (Efésios 1:21). Que grau de santidade alcançável neste mundo pode corresponder a essa relação única da Mãe de Deus com seu Filho, Cabeça da Igreja, residente nos céus? Somente a santidade total da Igreja, o complemento da gloriosa humanidade de Cristo, contendo a plenitude da graça deificadora comunicada incessantemente à Igreja desde Pentecostes pelo Espírito Santo. Os membros da Igreja podem se tornar familiares de Cristo; sua "mãe, irmãos e irmãs" (Mateus 12:50) na medida em que realizam suas vocações. Mas somente a Mãe de Deus, através da qual o Verbo se fez carne, poderá receber a plenitude da graça e alcançar uma glória ilimitada, ao realizar em sua pessoa toda a santidade de que a Igreja pode ter.


A Mãe de Deus e o Eschaton

        O Filho de Deus desceu dos céus e tornou-se homem através da Santíssima Virgem, para que os homens possam elevar-se à deificação pela graça do Espírito Santo. "Possuir pela graça o que Deus tem por natureza": essa é a vocação suprema dos seres criados, o objetivo final que os filhos da Igreja aspiram neste mundo, no desenvolvimento histórico da Igreja. Este desenvolvimento já está consumado na divina Pessoa de Cristo, a Cabeça da Igreja, ressuscitado e ascendido. Se a Mãe de Deus pudesse verdadeiramente realizar em sua pessoa humana e criada a santidade que correspondia a seu papel único, ela não poderia deixar de alcançar aqui neste mundo, pela graça, tudo o que seu Filho possuía em virtude de sua natureza divina. Mas se assim for, o desenvolvimento histórico da Igreja e do mundo já foi cumprido, não apenas na pessoa incriada do Filho de Deus, mas também na pessoa criada de sua Mãe. É por isso que São Gregório Palamas chama a Mãe de Deus "a fronteira entre o criado e o incriado". Ao lado da hipóstase divina encarnada existe uma hipóstase humana deificada.

        Já dissemos acima que, na pessoa da Mãe de Deus, é possível ver a transição da maior santidade do Antigo Testamento para a santidade da Igreja. Mas se a Santíssima Mãe de Deus consumou a santidade da Igreja e toda a santidade que é possível para um ser criado, estamos agora a lidar com outra transição - a transição do mundo do devir para a eternidade do Oitavo Dia, a passagem da Igreja para o Reino dos Céus. Esta glória última da Mãe de Deus, o eschaton realizado em uma pessoa criada antes do fim do mundo, deve estabelecê-la desde agora além da morte, além da ressurreição e além do Juízo Final. Ela participa na glória de seu Filho, reina com Ele, preside ao Seu lado sobre os destinos da Igreja e do mundo que se desdobram no tempo e intercede em nome de todos diante dEle, que virá novamente para julgar os vivos e os mortos.

        A transição suprema, pela qual a Mãe de Deus junta-se à glória celestial de seu Filho, é celebrada pela Igreja no dia da Assunção: uma morte que, segundo a convicção íntima da Igreja, não poderia deixar de ser seguida pela ressurreição e ascensão corporal da Toda-Santa. É difícil falar e não menos difícil pensar nos mistérios que a Igreja guarda nas profundezas de sua consciência interior. Aqui toda palavra proferida pode parecer grosseira, toda tentativa de formulação pode parecer um sacrilégio. Os autores dos escritos apócrifos muitas vezes aludiram imprudentemente os mistérios sobre os quais a Igreja manteve um silencio prudente pela economia para com os que estavam no exterior. A Mãe de Deus nunca foi um tema de pregação pública dos apóstolos. Enquanto Cristo foi proclamado nos telhados, proclamando ao conhecimento de todos numa catequese dirigida a todo o universo, o mistério da Mãe de Deus foi revelado apenas aos que estão dentro da Igreja, aos fiéis que receberam a palavra e tendem para "a vocação suprema de Deus em Cristo Jesus" (Filipenses 2:14). Mais do que um objeto de fé, esse mistério é um fundamento da nossa esperança, um fruto da fé, amadurecido na Tradição.

        Portanto, guardemos o silêncio, e não tentemos dogmatizar sobre a glória suprema da Mãe de Deus. Não sejamos muito loquazes como os gnósticos que, querendo dizer mais do que o necessário e, de fato, mais do que eram capazes, misturaram o joio de suas heresias com o trigo puro da Tradição Cristã.

        Prefiramos ouvir São Basílio, que descreveu o que pertence à Tradição como "um ensinamento impublicável e inefável, preservado por nossos pais em silêncio, de modo a ser inacessível a toda curiosidade e indiscrição, uma vez que eles foram zelosamente instruídos a proteger a santidade do mistério pelo silêncio. Não seria oportuno, de fato, publicar por escrito o ensinamento sobre os objetos que não devem ser apresentados aos olhos daqueles que não foram iniciados nos mistérios. Além disso, o motivo de uma tradição não escrita é este: ao examinar o conteúdo desses ensinamentos muitas vezes, alguns correm o risco de perder sua veneração pelas coisas envolvidas ao se acostumarem com elas. Pois ensinar é uma coisa e pregar é outra. Os ensinamentos devem ser mantidos em silêncio; a pregação deve ser manifestada. Uma certa obscuridade na linguagem que as Escrituras costumam usar é outra maneira de manter o silêncio; assim, o significado dos ensinamentos é mais difícil de compreender, para o maior benefício daqueles que os leem". [5]

        Se o ensinamento sobre a Mãe de Deus pertence à Tradição, é somente através da experiência da nossa vida na Igreja que podemos aderir à devoção ilimitada que a Igreja oferece à Mãe de Deus; e o grau de nossa adesão a essa devoção será a medida em que pertencemos ao Corpo de Cristo.

Vladimir Lossky, "Panaghia: La Toute-Sainte" no livro À l’Image et à la ressemblance de Dieu.


Notas

[1] O termo "Sempre-Virgem" (aeiparthenos), encontrado nos atos conciliares do Quinto Concílio em diante, nunca foi particularmente explícito pelos concílios que o empregaram.
[2] Em São Mateus (13:23) e São Marcos (4:1-20), a parábola do semeador segue imediatamente o episódio com a Mãe e os Irmãos do Senhor. Aqui também a conexão é evidente.
[3] De fide orthodoxa 111, 12; P.G. 94, cols. 1029-32.
[4] Ed. M. Jugie, Patrologia orientalis 19.2.
[5] De spiritu sancto 27; P.G. 32, col. 189.


sábado, 19 de agosto de 2017

A ira do Deus de Anselmo (Pe. Sergius Bowyer)


Para Agostinho - e pelo menos para uma parte da tradição ocidental que seguiu-o - as agonias dos condenados contribuíam para a felicidade dos eleitos. Deve-se ressaltar que essas idéias de Agostinho estavam entre as causas declaradas do ateísmo de um homem como Camus. Assim, a religião da vitória sobre o inferno tornou-se, em algum momento, uma religião do inferno ... A doutrina do julgamento pessoal, com o inferno como possibilidade, sem a chance de perdão no momento da morte, tomou forma no Ocidente no século XIV. A Reforma pôs fim às orações pelos mortos... Não é o ateísta frequentemente considerado como um libertador através do parricídio, como alguém que destrói o ídolo daquela ideia infantil de Deus que Freud denunciou com o nome de "pai sádico"? 
-Olivier Clement, Teologia após a "morte de Deus" [*]

A doutrina da Expiação de Anselmo de Cantuária tem sido considerada como uma chave para compreender a rejeição da verdade salvífica do cristianismo por um número incalculável de pessoas no último milênio. Tais pessoas rejeitam a representação de Anselmo de um Deus irado que precisa ser apaziguado; que declara as pessoas culpadas ou não. A doutrina  moderna Anselmiana da Expiação reduz o poderoso aspecto transformador do Evangelho a um conceito jurídico, drenado de sua vida. O objetivo deste capítulo será revelar e discutir brevemente alguns dos fundamentos da doutrina Anselmiana da Expiação: por que prejudicam a Nova Vida em Cristo e, em contraste, mostrar que a plenitude da mensagem evangélica é encontrada no contexto bíblico-patrístico da Igreja Ortodoxa. Esta é uma investigação indispensável se desejamos a salvação.

Um dos maiores milagres para as pessoas dos tempos antigos foi conhecer a mensagem do Evangelho: que o Deus Verdadeiro e Vivo era amor; um Deus pessoal e vivo que enviou Seu Filho unigênito, "não para que condenasse o mundo, mas para que o mundo fosse salvo por ele" (João 3:17). Os deuses dos tempos antigos eram afastados (por exemplo, o deus grego Zeus), assassinos (a deusa Hindu da morte, Kali), e até mesmo exigiam crianças como sacrifícios (o deus tribal amonita, Moloch, cf. Levítico 20: 2). O conceito de que o Deus cristão era um Deus pessoal de misericórdia, amor e perdão, atraiu grandes números; muitos até mesmo voluntariamente enfrentaram a possibilidade do martírio por confessar sua fé. 

Cristo trouxe a Vida para nós que estávamos mortos em Adão, porque Ele mesmo é "o Caminho, a Verdade e a Vida" (João 14: 6). Este é o fundamento que os primeiros cristãos, de São Paulo, o Apóstolo em diante entenderam como a chave para a salvação: "E, visto como os filhos participam da carne e do sangue, também ele participou das mesmas coisas, para que pela morte aniquilasse o que tinha o império da morte, isto é, o diabo...  aboliu a morte, e trouxe à luz a vida e a incorrupção pelo evangelho." (Heb. 2:14; II Tim. 1:10)

Nos primeiros mil anos de cristianismo, a mensagem evangélica não era entendida a partir da mentalidade escolástica agora comum de Anselmo. Hoje, as ideias de Anselmo formam, infelizmente, a perspectiva mais dominante do cristianismo no mundo ocidental, tanto protestante como católica romana. Os primeiros cristãos, assim como os cristãos ortodoxos de hoje, entenderam que Cristo nos liberta do pecado destruindo sua raiz, a morte. Aqueles que se submeteram a Cristo não são mais escravos do pecado, "pois não estais debaixo da lei, mas debaixo da graça." (Romanos 6:14). Pois a " lei do Espírito de vida, em Cristo Jesus, me livrou da lei do pecado e da morte" (Romanos 8: 2).

Anselmo, o arcebispo católico romano de Cantuária no século XI (1033-1109), foi pai da teologia e da filosofia escolástica moderna. Ele tem sido considerado por alguns o primeiro a desenvolver uma doutrina da Expiação à parte da herança bíblico-patristica da Igreja. Ajustando sua teologia para se adequar à compreensão da sociedade de seu tempo, Anselmo utiliza uma ética feudal para discernir racionalmente o profundo e incomensurável mistério de Deus.

Anselmo pode ser visto como uma ponte entre Santo Agostinho de Hipona e Tomás de Aquino. Ao usar a filosofia clássica e a lógica como instrumentos de descoberta (em vez de um meio de interpretação), as doutrinas de Anselmo sujeitaram a verdade infinita de Deus a um intelecto finito criado. Em contraste, as Escrituras são bem claras que a revelação de Deus "não é segundo os homens. Porque não o recebi, nem aprendi de homem algum, mas pela revelação de Jesus Cristo." (Gálatas 1: 11-12)

A atual posição católica romana, originária de Anselmo, afirma oficialmente que "a justificação nos foi merecida pela paixão de Cristo, que se ofereceu na cruz como vítima viva ... cujo sangue tornou-se instrumento de expiação pelos pecados de todos os homens ". Então, questiona-se: como essa expiação ocorre e a quem é oferecida? Os Ortodoxos também vêem Cristo como aquele que deu Sua vida como um resgate por muitos.

Cristo é o  resgate que foi pago para a morte, como disse São Atanásio, o Grande (século IV), à luz de Oséias 13:14: "O  resgate foi oferecido à morte em nome de todos, para que, por tal, Ele mais uma vez abriu o caminho para os ceús." Em claro contraste, a doutrina católica romana Anselmiana afirma que a dívida foi paga a Deus Pai para satisfazer Sua ira infinita, um subproduto da ofensa à Sua justiça e honra. Esta doutrina da Expiação também afirma que o pecado é uma afronta à Divindade, para a qual o mero homem não pode reparar; considera-se o pecado como uma transgressão no sentido jurídico, em vez da perspectiva Ortodoxa de uma doença do coração e da vontade. Nesta luz, a suposição de Anselmo é que uma "honra divina" foi ferida e precisa de "satisfação". Isso requer uma transação legal pela qual Cristo paga ao Pai com Seu próprio sangue a dívida incorrida pelo pecado do homem. A ressurreição de Cristo não ocupa um lugar central na redenção do homem.

Se Deus, então, é infinitamente ofendido por nosso pecado e, portanto, precisa de alguma "satisfação" infinita, muitos podem justamente (e infelizmente) equiparar este Deus com uma imagem sádica de um pai obrigado pela honra a infligir punição. Assim, Deus é sujeito à justiça. Ao submeter Deus a esta lei de necessidade e atribuir a Ele características humanas como vingança e raiva, fazemos parecer que é Deus quem precisa de cura e não o homem.

No entanto, Deus nunca muda, pois não é Deus que é inimigo com o homem; mas o homem  que está em inimizade com Deus. O fundamento de uma compreensão adequada da salvação é que Deus não muda: "Jesus Cristo é o mesmo ontem, hoje e sempre" (Hb 13: 8). Assim, a abordagem Ortodoxa procura curar o homem, e não Deus, reconhecendo o pecado como uma recusa do amor de Deus, a entrada da morte e a desconstrução da alma.


Os Ortodoxos vêem a queda do homem desde uma perspectiva médica: como uma doença do coração que traz a morte cortando a comunhão com Aquele que é a Vida. A cura holística é assim buscada pelos Ortodoxos com o fim de restaurar a comunhão com Deus. O fiel vence a morte através da participação na Vida de Deus através dos sacramentos e da disciplina ascética. Por outro lado, o entendimento Anselmiano declara essencialmente o homem "não culpado", e o deixa, infelizmente, sem cura e inalterado. Isso distorce a mensagem real da salvação cristã: tornarem-se "participantes da natureza divina" (II Pedro 1: 4).

A formação da doutrina Anselmiana da Expiação é vista pelos comentadores modernos como "uma revolução na teologia", começando "uma nova época na teologia da Expiação". Essa nova doutrina decorreu de vários fatores. Em primeiro lugar, uma influência característica da mentalidade legalista romana é exibida em teólogos ocidentais já tão cedo como Tertuliano, que encoraja e apoia uma conceituação jurídica sobre as verdades da fé. Anselmo tirou de Tertuliano, que vê o pecado do homem como uma perturbação na "ordem divina da justiça" e faz da penitência uma "satisfação para o Senhor".

Outra forte influência sobre Anselmo foi São Agostinho. Anselmo não só utilizou o conceito de "Expiação limitada" de Santo Agostinho, mas também usou seus métodos de experimentação teológica e filosófica. Após a "revolução" de Anselmo e, posteriormente, de Pedro Abelardo na teologia da expiação, a maioria no Ocidente tornou-se mais afastada da experiência Ortodoxa. Assim surgiu uma série de novos e supostos "desenvolvimentos" na teologia de estudiosos católicos e protestantes: expiação vicária, que apazigua a raiva de Deus; os "méritos" de Don Scot para os predestinados; e as indulgências, que aparentemente podem "pagar" à Igreja a taxa pelos pecados dos infratores.

Quatrocentos anos depois de Anselmo, o Concílio Católico Romano de Trento, em resposta à Reforma Protestante, foi obrigado a definir a natureza exata da Expiação de acordo com o novo entendimento de Anselmo. Este Concílio estabeleceu que, no cerne da Expiação Anselmiana, encontrava-se a doutrina de Santo Agostinho sobre o Pecado Original.

A doutrina agostiniana do pecado original, que implica que toda a posteridade de Adão herda a culpa, estabelece certos parâmetros para a doutrina Anselmiana que não existe na mentalidade bíblico-patristica Ortodoxa. Devido a uma tradução deficiente de Romanos 5:12 na Vulgata de São Jerônimo, Santo Agostinho formula a doutrina de que não só todos os homens herdam a mortalidade e a inclinação ao pecado, mas são culpados e legalmente responsáveis perante Deus pelo pecado de Adão. Esta doutrina afeta profundamente a perspectiva de como o homem é salvo e do que ele é salvo. São Agostinho faz uma dupla distinção: uma deficiência moral hereditária (a inclinação ao pecado) e uma responsabilidade legal herdada (culpado diante de Deus pelo pecado de Adão). O Concílio prossegiu anatemizando todos os que se recusaram a aceitar a doutrina do pecado original: isto é, que todos receberam a culpa de Adão por seu pecado pessoal.

Neste sistema, se Cristo pagou a dívida ao Pai, e se a vida sacramental apazigua a ira do Pai, então, não é nenhuma surpresa que o protestantismo se desenvolveu como fez, questionando a necessidade da Igreja? Pode-se dizer que a doutrina de Anselmo torna possível a Reforma Protestante, até mesmo torna-a inevitável. Consequentemente, devemos perguntar: Como, então, o ato salvífico de Cristo se torna efetivo para cada pessoa? E como alguém se liberta da noção agostiniana do pecado original? Para os Reformadores, a justificativa se dava apenas pela fé, sola fide, que confiava no sacrifício vicário de Cristo, à parte da Igreja.

Para os católicos romanos, a justificação veio através do Papa e da Igreja pela graça do santo batismo. A teologia da expiação efetivamente faz da Igreja Católica Romana os meios de uma justificação legal que declara "não culpado" pelos sacramentos, ao invés de um processo que restaurou a "bondade" inata do homem.

A perda da perspectiva patrística significou a perda da experiência plena da Igreja. Sem isso, a teologia católica romana tornou-se muitas vezes um procedimento jurídico estreito, excessivamente focado em apaziguar a justiça de Deus. Este decremento da salvação é reforçado pela concepção não-Ortodoxa da graça de Santo Agostinho. Para Santo Agostinho, parece que o homem nunca pode participar das energias deificantes de Deus e, portanto, o homem e Deus permanecem para sempre externo um ao outro. Em última análise, isso leva à salvação não definida pela comunhão com Deus, mas antes principalmente a uma relação moral e jurídica.

Em contraste, a visão Ortodoxa da justificação é tornar-se fortalecido pela graça para viver segundo a vontade de Deus. Ao viver segundo a vontade de Deus, efetuamos nossa santificação, participando assim na vida de Deus. Ao estar unidos com Aquele que vence a morte, vencemos o pecado e a morte, participando de Sua vitória, tornando-a nossa. Na perspectiva Ortodoxa, o entendimento de Anselmo sobre a ira e a punição de Deus são inexistentes.

A Igreja Ortodoxa ensina que Cristo, por Sua própria Encarnação, tira o pecado do mundo. São Gregório, o Teólogo, diz que a passagem "o Verbo se fez carne" (João 1:14) é equivalente àquela em que se diz que "por nos se fez pecado" (I Coríntios 5:21); não que o Senhor tenha sido transformado nele... como poderia ser? Mas, ao assumi-lo, ele tirou nossos pecados e suportou nossas iniqüidades.

O início da visão Ortodoxa da expiação é a encarnação. O meio deste processo é a Cruz, através da qual Cristo, como São Basílio o Grande explica, "se entregou como um resgate à morte, na qual éramos mantidos cativos, vendidos sob o pecado, [e] descendo pela Cruz para o inferno - para que Ele pudesse preencher todas as coisas com Ele mesmo - Ele nos libertou dos laços da morte". O fim desse processo foi Sua ressurreição no terceiro dia. Através de Sua ascensão, Ele "fez para toda a carne um caminho para a Ressurreição dentre os mortos, já que não era possível que o Autor da Vida fosse vítima da corrupção".

O coração da questão da expiação Ortodoxa é a theosis e a re-criação: "que, na dispensação da plenitude dos tempos, Ele possa reunir em todas as coisas em Cristo, tanto as que estão nos céus como as que estão na terra" (Efésios 1:10). A Boa Nova é que toda a boa criação de Deus é chamada a entrar na Igreja, que é a união com o Deus Triuno. Através da união das naturezas no Deus-homem, nosso Senhor Jesus Cristo, o mundo criado e o Deus incriado estão unidos.

Em conclusão, nosso objetivo não é pecado-redenção (ou seja, a Expiação Anselmiana), mas a deificação: que Cristo possa se formar em nós. Ao participar na Morte e Ressurreição de Cristo na vida sacramental-ascética, nos tornamos membros vivos do Corpo de Cristo neste mundo, libertos da morte, da inclinação ao pecado e da escuridão que vem dela. Sendo curados em nossa vontade, seguindo os mandamentos do Senhor através da ação poderosa do Espírito Santo, o Cristão Ortodoxo é crucificado com Cristo, morrendo para as paixões e prazeres pecaminosos do mundo (do velho homem), tornando-se um participante das energias imortais de Deus através da Igreja. Como Cristo é continuamente formado em nós, nos tornamos pela graça tudo o que Deus é por natureza. Esta é a visão Ortodoxa da Expiação; Esta é a visão Ortodoxa da salvação.

Do livro: Arquimandrita Sergius Bowyer, Acquiring the Mind of Christ: Embracing the Vision of the Orthodox Church 




[*] A citação do Olivier Clement foi adicionada pelo tradutor e não consta no original (no livro Acquiring the Mind of Christ).



domingo, 13 de agosto de 2017

Misticismo Ortodoxo e o Misticismo Católico-Romano (M. V. Lodyzhenskii)

Uma conversa [colloque] ocorre quando o homem imagina diante dele Jesus Cristo, crucificado na cruz.
  - Dos ensinamentos de São Inácio Loyola sobre contemplação

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De ti mesmo, não forme imaginações, e não prestes atenção àquelas que se formam, e não permitas que a mente as imprima sobre si mesma. Pois tudo o que é impresso e imaginado do exterior serve para seduzir a alma.
- Dos ensinamentos dos ascetas da Igreja Oriental

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Que o leitor não pense que ao ter intitulado este capítulo "Misticismo do Oriente e Misticismo do Ocidente", tomamos a tarefa de pesquisar em detalhes o misticismo comparativo da Igreja Oriental (Ortodoxa) e Ocidental (Católica Romana) em todas as suas manifestações características e em várias eras. Devemos dizer que tal tarefa iria muito além do alcance do presente trabalho, que diz respeito à vida dos santos da Igreja Ortodoxa propriamente dita e às manifestações de sua contemplação espiritual. Esse relato comparativo do misticismo oriental e ocidental seria um projeto amplo e exigiria uma grande quantidade de pesquisas especializadas. Deveria conter um estudo preciso sobre a vida de místicos Católicos notáveis, paralelamente a um estudo sobre a vida de clarividentes e ascetas contemplativos Ortodoxos. Não estamos assumindo tal tarefa. Neste capítulo, lidaremos apenas algumas manifestações marcantes do misticismo ocidental, manifestações que aparecem no mundo católico depois de Francisco de Assis, de modo que comparando essas manifestações com o misticismo da Filocalia possamos entender o significado do misticismo Ortodoxo. 

Portanto, não falaremos sobre os variados santos Católicos notáveis que se manifestaram no misticismo do ocidente. Não vamos, por exemplo, lidar com a vida de um santo católico famoso como o monge franciscano Boaventura [1] (século XIII). Nós também lidaremos apenas rapidamente sobre o misticismo de ascetas Católicos como Thomas à Kempis (século XV) e Santa Teresa de Ávila (século XVI). No entanto, passaremos mais tempo no misticismo do guerreiro espiritual Católico, Santo Inácio, pois esse misticismo nos é interessante, na medida em que Inácio desenvolveu amplamente o misticismo de Francisco de Assis na direção do mentalismo. Essa particularidade do misticismo de Inácio caracteriza especialmente o misticismo Católico e distingue-o do misticismo da Igreja Oriental.

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Assim, o misticismo de Francisco de Assis foi desenvolvido, como dissemos, por outro representante proeminente do mundo Católico - São Inácio. Este é o mesmo Inácio de Loyola que (três séculos após a morte de Francisco) fundou a famosa ordem Católica dos jesuítas, a principal diferença entre as regras desta ordem e as regras dos franciscanos sendo o fato de que no regulamento da ordem jesuíta, declarava-se claramente e definitivamente o voto de cada jesuíta para servir continuamente e fielmente ao vigário de Cristo na terra - o papa romano. E o principal meio de alcançar esse objetivo em tal ordem era pregando e educando a juventude.

Ignácio de Loyola legou ao mundo Católico uma memória vívida de seu misticismo. Entre suas outras obras, escreveu um guia notável para alcançar estados de êxtase. Este guia é chamado de Exercícios Espirituais (Exercitia spiritualia). Consideramos necessário examinar este manual, porque define distintamente essa direção para o mentalismo e a sensualidade que contaminaram o mundo espiritual Católico. Mas antes disso, digamos algumas palavras sobre o autor deste manual - o próprio Inácio. Inácio de Loyola nasceu em 1491 na Espanha de uma família aristocrática. Ele passou seus primeiros anos na corte do rei espanhol e, na sua juventude, assim como Francisco, tornou-se fascinado pelos romances da Idade Média. Ele era ambicioso. Aos trinta anos, participou de uma batalha com os franceses defendendo Pamplona e foi gravemente ferido. Durante sua enfermidade, começou a ler a vida dos santos, cujos esforços - especialmente os de Francisco de Assis - assumiram aos seus olhos o mesmo valor que os esforços dos cavaleiros e dos heróis que admirava. O exemplo de Francisco fascinou Loyola. A grandeza da vocação apostólica foi retratada em sua imaginação, e ele decidiu dedicar-se à pregação. No começo, entregou-se à vida ascética (na pequena cidade da Catalunha, Manresa). Reconheceu mais tarde que naquele momento ele foi ofuscado por várias visões. Posteriormente, em 1528 foi a Paris para receber uma educação teológica. Em Paris, formou um círculo de amigos que estavam muito interessados em pregar. A formação deste círculo foi finalizada em 1534. Em 1537, Loyola partiu para Roma; obteve do papa a benção para a organização da Sociedade de Jesus. A regra desta ordem foi estabelecida em 1540. Loyola conseguiu organizar e desenvolver esta instituição, fazendo dela um poderoso instrumento para propaganda Católica. Indubitavelmente, Loyola possuía um enorme talento para a organização. Loyola morreu em 1556 em Roma. Quase setenta anos após sua morte, a Igreja Católica o canonizou.

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No primeiro contato com o tratado Exercícios Espirituais de Loyola e com a forma como esses exercícios são praticados no mundo Católico, [2] tem-se a impressão geral de que o método de exercícios espirituais de Loyola possui, em muitos aspectos, bases semelhantes ao método de exercícios do raja yoga hindu , do qual falamos em detalhes em nosso livro, Supraconsciência. Lá apontamos que, de acordo com a explicação de A. Besant, o método do raja yoga é sempre um método de pensamento e exige a concentração do pensamento e a contemplação. [3] E, como dissemos, esses exercícios mentais começam com a meditação, isto é, dedicando-se durante vários minutos a uma reflexão profunda sobre algum pensamento nobre, [4] posteriormente essa meditação passa para uma forma mais concentrada de contemplação mental, e nestes estados contemplativos o papel principal pertence ao poder da imaginação cerebral.

Meditações semelhantes e exercícios contemplativos também são recomendados por Loyola, e o papel principal nesses exercícios, assim como no raja yoga, também pertence à imaginação mental. Mas o mentalismo de Loyola não é tão puro quanto no raja yoga. A. Besant diz que o método de Raja yoga é sempre um método de pensar.

Agora, examinando mais profundamente os Exercícios Espirituais de Loyola, vemos que, após os primeiros passos dos exercícios, reconhecidos como muito importantes, a saber, os exercícios do recluso para examinar a consciência (examem) e o arrependimento dos pecados, [5] os exercícios seguintes mais importantes são definidos por Loyola usando os termos mediter [meditação] e contempler [contemplação]. Pela palavra meditação entende-se o exercício com contemplações abstratas (pelo pensamento abstrato), "quando o homem traz para mente a lembrança de alguma verdade dogmática ou moral cristã, quando, junto com esse pensamento, começa a se esforçar para penetrá-la, enquanto a vontade do asceta cristão é conduzida para a submissão à verdade, sugerindo a si mesmo o desejo de se ligar a ela ". [6] Com a palavra contemplação entende-se a contemplação não de algo abstrato, mas sim a contemplação da verdade, encarnada na vida do Salvador, onde a alma do homem treinando em sua imaginação para ver e ouvir o Verbo feito carne, funde-se com o Deus-homem, contemplando-O. [7]

Finalmente, para Loyola, além desses estados contemplativos, ainda há um estado superior - "application des sens" - "quando o esforço da imaginação já cessou, quando o mistério da vida do Salvador aparece livremente diante da alma do contemplativo, quando ocorre diante de seus olhos e faz uma impressão em todos os seus sentidos corporais."[8]

O método de conduzir o homem para todos esses estados contemplativos é o seguinte:

O objeto ou sujeito da contemplação, de acordo com Loyola, deve ser imaginado antecipadamente e organizado em dois ou três pontos (en deux ou trois points), que fixam a memória e que contêm neles circunstâncias dignas de nota. Então o asceta se aproxima do início dos exercícios, chamado prelúdio (prelude). Ele toma o controle de sua memória, sua imaginação e sua vontade. "A memória fornece os pontos fixados antecipadamente no cérebro. A imaginação forma nele um tipo de imagem, o coração em oração fervorosa pede conhecimento e amor, e tudo isso é feito, por assim dizer, na presença do próprio Cristo". [9]

De acordo com as palavras do livro católico, Manrese, São Inácio propõe, com a ajuda desses exercícios e, acima de tudo, com os exercícios de exame da consciência (examen) e de arrependimento dos pecados, dar ao homem a possibilidade de alcançar o seguinte: Mesmo se aquele que dá início aos exercícios espirituais seja pecador, se ele estiver armado com boas intenções, se é razoável e é livre para o exercício espiritual (mestre de seu tempo e futuro), então, de tal homem, ainda que seja um "pecador miserável", Santo Inácio espera fazer dele um homem santo e até mesmo um grande santo.

Citaremos do livro de Inácio de Loyola, Exercícios Espirituais, exemplos de seus exercícios contemplativos. Nós dissemos que, de acordo com as instruções de Loyola, o objeto ou sujeito da contemplação deve ser imaginado de antemão e estruturado em dois ou três pontos que fixam a memória e que contêm em si circunstâncias dignas de nota.

Em primeiro lugar, tomaremos exemplos de tais pontos e indicaremos os pontos interessantes que Loyola aconselha àquele que faz os exercícios de fixação no cérebro antes da contemplação do inferno. (O propósito desta contemplação é levar o recluso a um sincero arrependimento dos pecados.)

O primeiro ponto é que aquele que faz os exercícios vê com "a ajuda da imaginação" as terríveis chamas do inferno. Loyola diz: "Eu verei lá, olharei atentamente para as almas das pessoas encarceradas em seus corpos em chamas, como se estivessem em masmorras eternas".

O segundo ponto: "também com a ajuda da imaginação ouça os gemidos, as queixas, os gritos desgarradores que ressoam neste lugar ruinoso, ouça as maldições constantemente sendo lançadas contra Jesus e seus santos".

O terceiro ponto: novamente imaginar que sente-se o cheiro de fumaça, de enxofre, de piche, em resumo, o cheiro podre que é emitido pelo antro de todos os tipos de putrefação.

O quarto ponto: "experimentar tudo o que é mais amargo no mundo. Assim, tente tornar-se sensível às lágrimas que continuamente são derramadas por aqueles que são excomungados; tente sofrer os tormentos da consciência - o verme roendo nos pecadores".[11]

Agora citaremos um exemplo dos exercícios chamados de prelúdio (prelude). O prelúdio diz respeito à contemplação do "primeiro dia da encarnação do Verbo de Deus". O primeiro prelúdio desta contemplação é,
imaginar, como se estivesse diante de seus olhos, todo o curso histórico da mistério da encarnação, ou seja, como as três Pessoas Divinas da Santíssima Trindade olham para esta terra, povoada por pessoas que, em grandes multidões, estão lançando-se para o inferno; como a Santíssima Trindade, tocada pela compaixão, decide enviar o Verbo para encarnar como homem a fim de salvar a raça humana; como, em um dia preordenado, como resultado desta decisão, o Arcanjo Gabriel aparece como um mensageiro à abençoada Virgem Maria.

O segundo prelúdio consiste em "uma imaginação vívida de um lugar que vêem como se diante de seus próprios olhos. Aqui representam a si próprios na terra, povoada por várias tribos e em um canto deste mundo, na Galiléia, em Nazaré, uma pequena casa na qual a Santíssima Virgem vive".

O terceiro prelúdio é descrito desta maneira: "Esta é uma súplica que eu, o suplicante, possa conhecer o mistério da encarnação do Verbo por minha causa; uma súplica de que esse conhecimento estimule cada vez mais meu amor por Ele e me compila lhe servir exclusivamente."[12]

E aqui está um exemplo de uma contemplação apresentada já na forma de uma conversa (colloque) entre o recluso e o Cristo crucificado, que ele vê em seu estado contemplativo. Tomamos essa conversa palavra por palavra, tal como está estabelecida nos Exercícios Espirituais.

Essa conversa ocorre quando a pessoa imagina diante de si Jesus Cristo na cruz ... Naquele momento, quando esta imagem impressionante aparece diante dos olhos, começa-se a perguntar a si mesmo, ponderar, considerar o que exatamente inclinou o Criador a se tornar homem e assumir a forma de criatura e escravo. Como aconteceu que, possuindo uma natureza eterna em Sua própria essência, Ele quis descer a um estado de morte, para verdadeiros sofrimentos mortais.

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Além disso, deve-se culpar a si mesmo, repreender a consciência, perguntando: o que fiz até agora para Jesus Cristo? Posso dizer que realmente fiz alguma coisa por ele? E por fim, o que eu farei a partir de agora? O que devo fazer?
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Dirigindo de tal maneira meu olhar a Jesus crucificado, eu conto para Ele tudo o que minha mente e meu coração me levam a dizer .... Tal conversa pode ser comparada a uma conversa entre dois amigos ou uma conversa de um servo com seu mestre.

Aqui não se deve ignorar a estreita semelhança desta conversa contemplativa de Loyola com a forma como São Francisco orou no Monte Alverna, quando imaginou "duas grandes luzes", uma das quais ele reconheceu o Salvador, e na outra ele mesmo.

Além disso, consideramos interessante mencionar aqui alguns métodos puramente externos que Loyola aconselha àquele que está fazendo os exercícios. Assim, por exemplo, Loyola diz que "durante os exercícios de contemplação do inferno e arrependimento, àquele que exercita deve privar-se da luz do dia tanto quanto possível. Para isso ele deve manter as janelas e portas fechadas por todo tempo enquanto estiver ocupado com este empenho, e admitirá luz somente quanto for necessário a fim de ler ou em extrema necessidade." [14]

De todos estes trechos retirados de Loyola, pode-se ver que seu misticismo conduz quase ao puro mentalismo, que é próximo ao raja yoga, onde a imaginação cerebral desempenha um papel importante. Para isso, basta recordar, por exemplo, este exercício de yoga aconselhado por Vivekananda: "Imagine para si", ele diz, "algum lugar no seu coração e no centro uma chama; imagine que esta chama é a sua própria alma, que dentro desta chama há um espaço radiante e que este espaço é a alma da sua alma - Deus - contemple, este é o seu coração" e assim por diante. [15]

No entanto, se São Inácio de Loyola desenvolveu o misticismo de São Francisco na direção do puro mentalismo, nesse sentido, levando-o ao extremo, ainda é preciso dizer que no mundo Católico também houve desvios de tais entusiasmos; houve atletas espirituais que não tentaram em seus estados místicos se entregarem unicamente aos impulsos de sua imaginação cerebral, mas sim se esforçaram pela supraconsciência espiritual. Citamos entre tais santos católicos, o famoso Thomas à Kempis (falecido em 1471), cujas idéias não estavam distante daquelas dos ascetas da Igreja Oriental, e por isso a obra principal de Thomas à Kempis, Imitação de Cristo, foi traduzida muitas vezes para as línguas eslavas e russa [*]. (A primeira tradução para o eslavônico foi feita em 1647.)

Thomas à Kempis compreendeu bem os estágios superiores da supraconsciência espiritual. Isso é evidente, por exemplo, na seguinte declaração em sua composição, "De nativitate Christi" ["Sobre o nascimento de Cristo"]. Ele diz que,
Há certos santos dias da alma, em que o doce arrebatamento do sentimento interior é tão forte que a fraqueza da natureza humana dificilmente pode suportar; nenhum sinal ou palavra pode expressar o que a alma sente em si mesma em tais visitas ... Quando a alma, esquecendo a si mesma e a tudo mais, lembra-se apenas de Deus, quando livra-se de toda imaginação corporal e contempla apenas a eternidade, mergulhando no abismo da luz divina, quando iluminada pelos raios do Sol eterno, ela sobe mais alto que toda a criação, então realiza esta grande e misteriosa celebração, uma celebração que pertence mais à glória da bem-aventurança eterna do que ao grave estado da nossa vida atual.[16]
Se alguém comparasse esta descrição de um estado místico com a descrição de São Isaque da Síria (veja Capítulo 1, nota 19), muitos traços comuns seriam encontrados.

Falando de manifestações típicas do misticismo ocidental, tampouco podemos ficar em silêncio sobre Santa Teresa de Ávila, relatando suas experiências místicas em sua autobiografia escrita entre 1561-1562. Para definir o misticismo desta santa, é suficiente que refiramos à opinião competente de William James, que estudou os escritos de Santa Teresa.

Em seu livro As Variedades de Experiência Religiosa, James diz que a piedade de Santa Teresa não dá a impressão de grande profundidade e, em geral, "a sua apresentação da religião equivale a, se se pode expressar assim, um interminável flerte amoroso entre uma pretendente e sua Divindade ".[17]

O arrebatamento místico de Teresa incita sua natureza física;  ela conta sobre um sentimento de prazer como algo que é difícil de suportar (quase como uma dor física). Em relação à parte desempenhada pelo corpo nas alegrias celestiais, ela diz que o sentimento de alegria "perfura (o corpo) até a medula do osso, ao passo que as delícias terrenas só agem superficialmente. Esta é apenas uma descrição aproximada", ela acrescenta,"mas sou incapaz de me expressar com mais clareza." [18]

A partir desta informação é evidente que um elemento sensual também entrou na supraconsciência de Santa Teresa; e esta qualidade de seu misticismo ela tem em comum com o misticismo sensual de São Francisco de Assis, expressando-se, como já sabemos, até mesmo em fenômenos fisiológicos como a estigmatização.


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M. V. Lodyzhenski - Svet nezrimyi
Luz Invisível 

Agora retornaremos para o misticismo oriental e lembraremos o leitor de seus principais fundamentos. Nós dissemos que a supraconsciência de São Serafim, desenvolvida de acordo com o caminho dos ascetas cristãos da Filocalia, estava concentrada no coração de Serafim. Lá, dentro de si, ele sentiu o fogo da Divindade; Ele sentiu Cristo. Esse sentimento de unidade com Deus desceu sobre ele de forma natural e livre, como o resultado direto de seu crescimento espiritual, como resultado de seu enorme esforço em si mesmo no caminho da humildade e do arrependimento. A consciência espiritual desceu sobre São Serafim, assim como disse São Isaac da Síria - a alma do Serafim percebeu essa supraconsciência dentro de si mesmo de forma imaterial e inesperada, sem pensar nela (isto é, sem procurá-la deliberadamente). Esta realização da supraconsciência em Serafim foi a mesma realização da pura espiritualidade que ofusca o coração do homem, descrita pelos ascetas cristãos da Filocalia, que discutimos em detalhes nos últimos quatro capítulos do nosso livro Supraconsciência.

Portanto, agora que nos familiarizamos com o misticismo ocidental, como esse difere do misticismo oriental, seria interessante aprender como os ascetas orientais consideravam o tipo de misticismo que enxergamos em São Francisco e São Inácio; ou seja, determinar se havia ou não alguma indicação na Filocalia sobre a possibilidade de manifestações extáticas semelhantes como vimos em Francisco e sobre a qual Loyola fala em seus escritos, e quais opiniões sobre tais estados de êxtase foram expressas pelos ascetas cristãos orientais.

Após um estudo aprofundado das obras dos ascetas na Filocalia, verifica-se que existem tais indicações. Embora o misticismo dos santos católicos, Francisco e Inácio, tenha sido enraizado e se estabelecido consideravelmente mais tarde do que os ascetas cristãos orientais, como por exemplo, São Isaque da Síria, Nilus do Sinai e Simeão, o Novo Teólogo, mesmo assim, parece que orientações no misticismo semelhantes aquelas de Loyola surgiram em seu tempo. Portanto, nos ascetas já mencionados, encontramos escritos definindo suas opiniões sobre esse misticismo. Nós também encontramos instruções típicas sobre tal misticismo em santos de uma era posterior, a saber, Gregório do Sinai e Gregório Palamas.

Citaremos os escritos desses ascetas cristãos orientais que dizem respeito à questão de nosso interesse. Começaremos com o asceta cristão do século V, Nilus do Sinai. Nilus do Sinai, dirigindo-se aos monges com suas instruções sobre a oração, diz:
Quando orardes, não atribua à Divindade algum tipo de aparência e não permita que sua mente se transforme em algum tipo de imagem (ou conceba a si mesmo na forma de alguma imagem ou que qualquer tipo de imagem se imprima em sua mente); mas aproxime-se imaterialmente ao Imaterial e una-se a Ele .[19]
Além disso, ele diz: "Não pense que a Divindade seja qualitativa (ocupa espaço, é estendida, tem partes); pois a Divindade não tem quantidade nem forma." [20] Ademais, Nilus do Sinai afirma: "Não deseje ver sensorialmente Anjos ou Poderes ou Cristo, para que não saias de sua mente, aceitando o lobo como o pastor e adorando os demônios inimigos".[21] Ele acrescenta: "Se você deseja orar no espírito, não tome emprestado nada da carne ". [22]

E aqui está o que São Isaque da Síria diz: "Enquanto o homem usar a força para que a espiritualidade venha até ele, ela não se submeterá. E se ele é arrogante e ergue seu olhar para o espiritual, e aproxima-se com sua mente antes do tempo (antes de adquirir a verdadeira santidade), então sua visão logo se entorpecerá e em vez da realidade enxergará fantasmas e formas." [23]

É de interesse também as seguintes palavras de São Simeão o Novo Teólogo, sobre o estado de alguém que ora, comparado ao que Inácio de Loyola busca em seus exercícios espirituais. Simeão o Novo Teólogo diz,
Quando alguém que está em oração, levantando aos céus suas mãos, seus olhos e mente, mantém pensamentos divinos, imagina bênçãos celestiais, as fileiras dos anjos, as moradas dos santos ... e, às vezes, até trazendo lágrimas e chora, então, durante esse tipo de oração, ele pouco a pouco torna-se presunçoso em seu coração, mesmo sem compreender: parece-lhe que o que ele está fazendo é da Graça de Deus .... Mas isto é um sinal de prelest [delusão].
Para Simeão, o Novo Teólogo, tal estado pode ser muito perigoso para o asceta cristão, e "mesmo se ele não ficar fora de si, ainda assim será impossível para ele adquirir virtude ou despaixão" (supraconsciência espiritual superior). Simeão diz ainda: "Aqueles que estão neste caminho estão em prelest, vêem a luz com seus olhos corporais, sentem fragrâncias com seu olfato, ouvem vozes, e assim por diante". [24]

O asceta do século XIV, Gregório do Sinai, diz sobre o mesmo:  "De ti mesmo, não forme imaginações, e não prestes atenção àquelas que se formam, e não permitas que a mente as imprima sobre si mesma. Pois tudo o que é impresso e imaginado do exterior serve para seduzir a alma." [25] "A mente (a razão inferior) em si mesma tem o poder natural de sonhar e pode facilmente criar imagens ilusórias do que deseja ... Então, aquele que está experimentando isso torna-se um sonhador, e não um guarda do silêncio." [26] "Que aquele que se aproxima da contemplação sem a luz da graça saiba que ele está formando fantasias e não tem contemplação, está em um espírito sonhador, sendo enredado em fantasias e enganando a si mesmo." [27]

Por fim, Gregório Palamas, também um asceta cristão do século XIV, diz sobre os estados contemplativos,
Neste caso, o homem ascende não com as asas fantásticas da imaginação, que, como um homem cego vagueia em torno de tudo e não recebe uma compreensão verdadeira e correta de assuntos sensoriais ou mentais; mas aqui o homem ascende para a verdade pelo poder inefável do Espírito, e com o ouvido espiritual entende palavras inefáveis e vê o invisível, e tudo isso é um milagre. [28]
Essas visões dos ascetas cristãos da Filocalia foram transmitidas, juntamente com a divulgação do conhecimento religioso, para o misticismo Ortodoxo russo. [29]

Aqui, para concluir, citamos uma opinião muito característica de um escritor Ortodoxo russo de nossos tempos - o asceta, Bispo Teófano o Recluso (falecido em 1894) - sobre o misticismo baseado nos êxtases de uma imaginação exultada. Assim, ele escreve para um de seus alunos, que foi arrebatado por orações extasiadas,
Que o Senhor te liberte de orações arrebatadoras. Arrebatamento, movimentos intensos com excitações são simplesmente movimentos mentais sanguíneos de uma imaginação inflamada. Para esses, Inácio de Loyola escreveu muitas instruções. Os homens alcançam estes êxtases e pensam que alcançaram elevados graus, mas, entretanto, tudo isso são bolhas de sabão. A verdadeira oração é silenciosa, quieta e é de tal forma em todos os seus graus. [30]

Em outra de suas cartas, Teófano diz,
A imaginação - a capacidade de formar e reter imagens - é uma faculdade inexperiente ... a mais inferior! Portanto, não é apropriado permitir que ela apareça com suas imagens em um domínio superior, como da oração ... A atividade mental / contemplativa é elevada, mas a atividade espiritual manifestada na oração é ainda mais elevada.... Se é admitido imagens, existe o perigo de orar para um sonho. Existe apenas um caminho - da oração sincera (oração de puro sentimento) .... Vem à mente o que foi dito de um staretz [ancião] que sempre imaginou Deus em uma forma. Quando lhe foi explicado que isso não deveria ser feito, ele disse: você tirou Deus de mim ... Mas eles não tiraram Deus dele, mas sim seu sonho. [31]

E assim vemos que o tipo de misticismo o qual Francisco de Assis estabeleceu os fundamentos e que Inácio de Loyola posteriormente desenvolveu era reprovado pelos ascetas orientais, e eles até mesmo consideravam o caminho desse misticismo perigoso para a alma de um asceta cristão. [32]


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NOTAS

1. No tratado místico "Sobre a Redução das Artes à Teologia", São Boaventura diz que o homem tem três olhos: o corpóreo, o mental e o contemplativo; ele desenvolve este tema em detalhes.
2. Graças à assistência do publicista SN Syromyatnikov (Sigma), obtivemos em São Petersburgo dois livros sobre o assunto que nos interessa: o primeiro livro é uma tradução do latim para o francês da composição original da obra Exercícios Espirituais de Inácio de Loyola  (tradução publicada em 1817). O outro, Manrese, é difundido no mundo católico como um guia para entender a composição acima mencionada de Loyola. No prefácio da nona edição deste guia (que foi impresso em 1851), diz que o autor deste guia não é nomeado, mas é um conhecido teólogo pertencente à ordem jesuíta, que reuniu e juntou no livro Manrese o que foi estabelecido pela prática do ascetismo católico, os comentários mais importantes sobre os exercícios espirituais do trabalho de São Inácio.
3. M. V. Lodyzhenskii, Super-Consciousness, 176. 
4. Ibid., 197. 
5. Manrese, Introdução, 8. 
6. Ibid. 
7. Manrese, Introdução, 9. 
8. Ibid. 
9. Manrese, Introdução, 8. 
10. Manrese, Introdução, 15. 
11. “Primeira Semana, Quinto Exercício” Exercícios Espirituais, 70–71. 
12. “Segunda Semana, Primeira Meditação,” Exercícios Espirituais, 95–97. 
13. “Colloque,” Exercícios Espirituais, 56–57. 
14. “Meditação sobre o Inferno,” Exercícios Espirituais, 79. 
15. Swami Vivekananda, A Filosofia da Yoga, 123. 
[*]. Nota do tradutor: A opinião do autor, M.V. Lodyzhenskii, sobre o livro do Thomas a Kempis difere bastante da opinião de alguns anciões e santos Ortodoxos. São Inácio Brianchaninov escreve em uma de suas obras:
O segundo tipo de prelest - chamado de "presunção" - age sem compor imagens sedutoras: contenta-se em compor sentimentos e estados de graça falsos, dos quais forma uma noção falsa e perversa sobre todo feito espiritual em geral. Aquele que está no estado de "presunção", adquire perspectivas falsas sobre tudo o que o rodeia. Ele é enganado tanto de dentro como de fora. O sonho age fortemente em quem é enganado com "presunção", mas opera exclusivamente no campo abstrato. Inclui ou não, imaginação do paraíso, palácios, mansões, luzes celestiais, fragrância, Cristo, Anjos e Santos; sempre compõe estados aparentemente espirituais, estreita amizade com Jesus (Imitação de Thomas a Kempis, livro 2, cap. 8), conversa interior com Ele (livro 3, capítulo 1), revelações místicas (livro 3, cap. 3), vozes, prazer; com base em tudo isso, cria-se uma falsa noção sobre si mesmo e sobre os feitos cristãos em geral; cria-se uma maneira de pensar e disposição do coração geralmente falsa, leva ao arrebatamento ou à exaltação. Esses diversos sentimentos surgem da ação sútil da vanglória e luxúria: a partir desta ação, o sangue adquire um movimento pecador e sedutor que aparenta ser um prazer da graça. Por sua vez, a vaidade e a luxúria são excitadas com a arrogância, inseparável companheira da "presunção". [...] 
"Imitação ", quando apareceu, foi condenado até mesmo pela própria Igreja Latina, perseguido pela Inquisição. A acusação ulteriormente foi deixada de lado e passou a ser protegido, quando se viu que o livro era uma boa ferramenta de propaganda entre as pessoas que perderam a compreensão verdadeira do cristianismo [...] Sob o nome da propaganda papal, entende-se a difusão do conceito do Papa, que o Papa quer sugerir-se à humanidade, isto é, o conceito de poder supremo, autocrático, absoluto do Papa em todo o mundo. Propaganda, tendo isso como objetivo, presta pouca atenção à qualidade do ensino que usa [...] Isto é auto-engano! Isto é prelest! Foi composto a partir de falsas noções; falsas noções surgiram das sensações erradas relatadas pelo livro. Uma unção do espírito astuto vive e respira, que lisonjeia os leitores dando-lhes uma bebida de falsidade, adoçado com os sabores sutis de arrogância, vaidade e luxúria. O livro leva os leitores diretamente à comunhão com Deus, sem pré-purificação por arrependimento: é por isso que excita uma simpatia especial entre as pessoas passionais que não estão familiarizadas com a via do arrependimento; [...] 
Em contraste com o sentido dos homens carnais, os homens espirituais que sentem a fragrância do mal, que finge ser boa, sentem imediatamente uma aversão aos livros. Uma passagem do livro "Imitação" foi lida para o ancião Isaías, um monge que vivia em silêncio no mosteiro de Nikiforov Pustyn (diocese de Olonetsk ou Petrozavodsk) que havia alcançado a oração noética [...] . O ancião imediatamente entrou profundamente no significado do livro. Ele riu e disse: "Oh, isso é escrito de uma presunção. Não há nada verdadeiro aqui! Tudo é inventado! O que Thomas imaginou sobre os estados espirituais ...  sem conhecê-los pela experiência, assim descreveu." Prelest, como um infortúnio, representa um espetáculo triste; ... O arquimandrita do mosteiro de Cyril Novoezersk (diocese de Novgorod), conhecido por sua vida austera e que, na simplicidade do coração, se engajou quase que exclusivamente nos feitos corporais e que tinha uma noção muito moderada sobre os feitos da alma [lhe propuseram] ler o livro "Imitação"; poucos anos antes de sua morte, ele começou a proibir a leitura, falando com uma santa simplicidade: "Antes eu reconhecia este livro como edificante, mas Deus me revelou que é prejudicial para a alma". O monge hiero-schema Leonid, conhecido pela experiência monástica ativa ... no Mosteiro Optina (diocese de Kaluga) tinha a mesma opinião sobre a "Imitação". Todos esses ascetas me eram familiares. - Um proprietário de terras, criado no espírito da Ortodoxia, que conhecia bem a chamada alta sociedade, isto é, o mundo, nos escalões mais altos, uma vez viu o livro "Imitação" nas mãos de sua filha. Ele proibiu ela de ler o livro, dizendo: "Eu não quero que você siga a moda e flerte com Deus". Essa é a avaliação mais correta do livro.



16. Thomas à Kempis, Imitação de Cristo (trans. Count Speransky; Russian 
Pilgrim, 1893), 252–3. 
17. William James, As Variedades das Experiências Religiosas, 337. Itálico nosso.
18. Ibid., 401. 
19. “Homilia sobre a Oração,” Filocalia 2, sec. 67, 215. 
20. Ibid., sec. 66. 
21. Ibid., sec. 115, 221. 
22. Ibid., sec. 128, 222. 
23. Ibid., 697. 
24. Ibid., 5:463–4. 
25. Ibid., 233. 
26. Ibid., 224. 
27. Bispo Alexei, Byzantine Church Mystics of the 14th Century (1906), 85. 
28. Ibid., 45. 
29. Na literatura espiritual russa, o principal e primeiro pregador do misticismo oriental foi St Nilus de Sora (1433-1508). Ele morou no Monte Atos, estudou lá a vida dos monges de Atos e, na sua obra Tradição da Vida no Skete, estabeleceu a essência do ensinamento dos ascetas cristãos da Filocalia, entre eles de Nilus do Sinai, Isaque da Síria, Simeão o Novo Teólogo e Gregório do Sinai.
30. Bispo Teófano, Cartas sobre a vida cristã (Moscow, 1900), 25. 
31. Bispo Teófano, Carta 1063, Collected Letters, 24–5. 
32. Aqui é interessante notar que mesmo o misticismo protestante, na pessoa do famoso místico Boehme do século XVII, era contra a manifestação do uso da imaginação e dos sentidos nos estados de êxtase. Boehme fala assim a um aluno que se esforça para sentir Deus: "Quando com pensamento abstrato você bloqueia a imaginação e os sentidos externos, então a audição, a visão e a linguagem eterna se abrirá dentro de você e Deus ouvirá e verá através de você, porque agora você será o órgão do Seu Espírito "(P.D. Uspenskii, Tertium Organum, 225).



Do livro "Light Invisible: Satisfying the Thirst for Happiness" por M. V. Lodyzhenski 

sexta-feira, 11 de agosto de 2017

Pavel Florensky: A Verdade como Antinomia (Andrew Louth)

Uma alternativa a Kant

As antinomias de Kant aparecem no tratado que foi o ponto de decisivo em sua carreira filosófica, e que inaugurou as preocupações que são características da filosofia moderna, sua obra Crítica da Razão Pura; elas fazem parte de sua "Dialética Transcendental". Existe, ele argumenta, quatro antinomias da razão pura: em cada caso, a antinomia é uma contradição, cujos termos podem ser demonstrados apenas pela razão, ou pela razão pura. Uma vez que podemos provar os dois lados de uma contradição, demonstramos, de fato, que a razão aqui falha: não podemos ir mais longe, já não há mais nada na base da qual a razão possa prosseguir. Suas quatro antinomias são estas:

1. O mundo, o cosmos, tem um começo no tempo e é limitado no espaço? Ou não tem limites em relação ao tempo ou ao espaço, pois é infinito? Kant mostra como é possível demonstrar-se ambos: tanto finito quanto infinito.

2. A matéria é composta de átomos que não podem ser ainda mais divididos, ou a matéria é infinitamente divisível? Mais uma vez, pode-se mostrar que ambas posições são verdadeiras.

3. A causalidade de acordo com as leis da natureza é a única causalidade que existe? Ou é possível que os humanos atuem livremente como causa de ações? Novamente, ambos podem ser demostrados. 

4. Existe dentro do cosmos um ser absolutamente necessário, seja como parte dele ou como sua causa, ou não? Mais uma vez, ambas as posições podem ser demonstradas.

Para Kant, isso demonstra que a razão não pode estabelecer nada sólido sobre a natureza do cosmos, a natureza da matéria, a natureza da causalidade ou a existência de Deus. Todos os chamados problemas da metafísica - sobre Deus, a alma e o cosmos - estão além da razão humana. As antinomias constituem para Kant o que se poderia chamar de barreiras para a razão; elas impedem razão de ir mais longe na busca das questões centrais da metafísica. Para Kant, segue-se que não há metafísica especulativa; aquilo que a metafísica especulativa trata é relegado por Kant ao domínio do regulativo, que é derivado de pressuposições morais, mas não é, em nenhum sentido comum, uma questão de conhecimento. Devemos ser seres morais melhores se atuarmos como se Deus existisse, como se a alma fosse imortal, se acreditarmos que o bem será recompensado além dessa vida e o mal castigado. Mas nós não temos nenhuma razão para supor que essas coisas sejam verdadeiras.

Pe. Pavel Florensky vira isso de ponta-cabeça e, fazendo isso, desafia a noção de Kant da natureza da razão, e defende algo muito diferente. Na Divina Liturgia, pouco antes do credo ser cantado, quando confessamos a nossa fé no que a Igreja ensina, o sacerdote diz: "Amemo-nos uns aos outros para que em comunhão de espírito confessemos", e as pessoas respondem: "Pai, Filho e Espírito Santo, Trindade consubstancial e indivisível!" A terceira carta do livro The Pillar and Ground of the Truth, que é sobre Tri-unidade, Triëdinstvo, retoma esta resposta, suas primeiras palavras: "'Trindade consubstancial e indivisível, unidade tri-hipostática e eternamente coexistente' - esse é o único esquema que garante resolver a epoche, se a dúvida do ceticismo é resolvível". Somente a Trindade, a incompreensível Três-em-unidade, pode resolver a suspensão de julgamento, a epoche, dos antigos céticos; apenas o dogma aparentemente incompreensível da Trindade pode atravessar a dúvida que subjaz e debilita todo o pensamento humano.

Isso é explorado na Carta 6, onde é tratado a contradição, e é aqui que Florensky introduz o termo antinomia. Para Florensky, a antinomia é fundamental para o reconhecimento da verdade, pois, sem antinomias, sem contradição, simplesmente seríamos confrontados com provas racionalmente convincentes. Isso significaria que seríamos obrigados a aceitar a verdade, pois não se pode rejeitar arbitrariamente a conclusão de um argumento, se aceita-se suas premissas. Isso teria duas conseqüências, ambas inaceitáveis ​​para Florensky: por um lado, a liberdade seria abolida - a verdade seria imposta, por assim dizer, em vez de ser aceita e abraçada; mas, por outro lado, a verdade seria transparente, óbvia, "clara e distinta", como disse Descartes; mas essa verdade não teria nenhuma relação com o mundo em que vivemos, que é fragmentado pelo pecado e a finitude, e, portanto - longe de ser transparente - é totalmente opaca. A verdade sem antinomia, afirma Florensky, é tirânica e também algo que não faz sentido no mundo em que vivemos.

De fato, Florensky continua, a dependência na racionalidade levaria a contradições irreconciliáveis entre os diferentes sistemas de crenças e, portanto, ao conflito entre aqueles que estão comprometidos com eles. Seríamos abandonados ao isolamento egoísta da racionalidade e sua oposição egoísta. De fato, isso é realmente o que experimentamos; esta é a natureza da humanidade decaída. Argumentos baseados na razão estabelecem os seres humanos uns contra os outros; isso conduz mais profundamente ao mundo decaído que constituem.  A articulação da antinomia por Kant é ingênua: o uso da razão em que se baseia não irá parar nos obstáculos constituídos pelas antinomias de Kant; ele conduzirá de volta para onde se iniciou - formas conflitantes de entender o mundo e a humanidade, para um conflito que não se limita necessariamente ao argumento instruído, mas que pode levar diretamente a conflitos entre diferentes pessoas e diferentes sociedades. A herança filosófica de Kant parece-me sofrer disso.

A solução de Florensky é o abraço da antinomia, pois esse abraço nos levará a questionar as reivindicações da razão, suas reivindicações de coagir que aquilo que mantém é a verdade. Como ele expressa na carta 6:
Em outras palavras, a verdade é uma antinomia, e não pode deixar de ser tal. E a verdade não pode ser outra coisa, pois pode-se afirmar de antemão que o conhecimento da verdade exige uma vida espiritual e, portanto, uma ascese. Mas a ascese da racionalidade é a crença, ou seja, a renúncia de si mesmo. O ato de auto-renúncia à racionalidade é uma expressão de antinomia. De fato, apenas uma antinomia pode ser crida. Todo julgamento não antinômico é meramente aceito ou meramente rejeitado pela racionalidade, pois esse julgamento não ultrapassa o limite do isolamento egoísta da racionalidade. Se a verdade fosse não-antinômica, então a racionalidade, sempre girando em sua esfera apropriada, não possuiria um sustentáculo, não veria objetos extra-racionais e, portanto, não seria induzida a iniciar a ascese da crença. Esse sustentáculo é o dogma. Com o dogma começa nossa salvação, pois apenas o dogma, sendo antinômico, não restringe nossa liberdade e permite a crença voluntária ou a incredulidade perversa. Pois é impossível obrigar alguém a crer, assim como é impossível obrigar alguém a não crer. De acordo com Agostinho, "ninguém crê, exceto voluntariamente" (nemo credit nisi volens). (P 109)
Ao passo que, para Kant, as antinomias constituem barreiras para a razão, para Florensky elas fazem a razão tropeçar, por assim dizer, expõem sua deficiência e nos fazem perceber que a verdade não pode ser alcançada por nenhum método como o da racionalidade, mas somente pela vida espiritual, que exige a renúncia de si, a ascese, que explora o mundo aberto pelo dogma, que é o reino da liberdade, a liberdade do espírito que descobre a verdade através do abrir-se para Deus. Essa idéia de que a derrota da razão permite que a razão transcenda a si mesma e alcance o que realmente busca lembra a maneira pela qual Orígenes justifica a alegoria: as contradições na narrativa das Escrituras nos obrigam a olhar para além do significado literal e a alcançar o verdadeiro significado das Escrituras por uma sensibilidade ao símbolo e à alegoria - mas isso significa mover-se para um reino em que as certezas convencionais são abandonadas, e o caminho a seguir prossegue através do arrependimento, da renúncia de si mesmo, do progresso na vida espiritual, que não é uma questão de conquista, mas de entrega de si mesmo ao amor de Deus. Lembra ainda mais de Soloviev que, como vimos, vê o amor como um encontro com o outro que desloca o centro do eu e supera o egoísmo.

Outra maneira de colocar o ponto que Florensky está mostrando seria dizer que a racionalidade prossegue pelo sucesso: os argumentos apenas convencem se eles são bem-sucedidos. Mas tal sucesso não leva à verdade de forma fundamental, embora possa ajudar a obter algumas coisas certas, especialmente em relação ao mundo material. O caminho para a verdade se dá através da vida espiritual; é uma via que prossegue através do arrependimento e da renúncia de si. Pode-se dizer que, em contraste com a via da racionalidade, a via espiritual passa pelo fracasso, a derrota, que desprende o eu, o desloca e torna acessível o domínio da liberdade e do dogma.

Pavel Flonreksy, Padre, Filósofo, Matemático,
Físico, Engenheiro, Inventor, Polímata e Novo-Mártir 

A Verdade Antinômica

Várias consequências decorrem dessa compreensão da natureza da verdade e da maneira de abraçá-la. Primeiro, para Pe. Pavel, o perigo com a racionalidade ou racionalismo é que ele coloca o eu que raciocina no centro; implica uma visão egoísta ou egocêntrica do mundo, e isso implica a ilusão de que aqui na terra é possível transcender a fragmentação do mundo, causada pelo pecado e a finitude. Na realidade, isso é impossível: muitos egos produzem muitas visões conflitantes do mundo, que competem umas com as outras e prevalecem através do poder. Na realidade, a verdade e a apreensão exigem a auto-renúncia; há um ascetismo da verdade. Como Florensky exclama: "Contradição! É sempre um mistério da alma, um mistério de oração e amor. Quanto mais próximo se está de Deus, mais distintas são as contradições".

Em segundo lugar, o derrocada suprema da razão - pela razão - é a percepção de que a razão não é suficiente, que a prova não é suficiente. O que é necessário é o compromisso com a vida espiritual, com arrependimento e renúncia de si - experimentar. Como Florensky coloca no final da carta preliminar para o leitor em The Pillar and Ground of the Truth:
O sabor Ortodoxo, o gosto Ortodoxo, é sentido, mas não está sujeito ao cálculo aritmético. A Ortodoxia é mostrada, não provada [uma antecipação de Wittgenstein!]. É por isso que existe apenas uma maneira de entender a Ortodoxia: através da experiência Ortodoxa direta. . . Para tornar-se Ortodoxo, é necessário mergulhar de uma vez na própria raiz da Ortodoxia, para começar a viver de maneira Ortodoxa. Não há outro caminho.
Terceiro lugar, para Florensky a verdade é o dogma –  não é algo que fabricamos ou construimos, mas algo a que nos rendemos, e não um breve momento de rendição, mas uma tentativa constante de render-se à verdade que nos abraça. Florensky teria simpatizado com a convicção de T. S. Eliot de que a santidade envolve uma "morte durante toda vida no amor".

O dogma dificilmente é entendido em nosso mundo moderno; suas conotações em uso são quase sempre negativas. Mas é o dogma, a aparente arbitrariedade de uma perspectiva meramente humana, que nos aponta para a verdade consagrada na antinomia como oferecendo a única possibilidade de significado. Deste modo, Florensky diz, na carta sobre Tri-unidade, em uma observação parafraseada por Vladimir Lossky, um teólogo supostamente tão distante da filosofia religiosa de Florensky:
Ou o Deus Triuno cristão ou morrer na insanidade. Tertium non datur. Preste atenção: eu não exagero. É exatamente assim que as coisas são. . . Entre a vida eterna dentro da Trindade e a segunda morte eterna, não há espaço, nem mesmo a largura de cabelo...
Em momentos como este, Florensky lembra Pascal, ou Anselmo. De fato, Florensky menciona a aposta de Pascal nesta carta (P 49) e cita o credo ut intelligam de Anselmo (P 47). Mas Florensky dá um passo além de Anselmo: em vez de um argumento ontológico para a existência de Deus, podemos considerá-lo como um argumento epistemológico para a existência da Trindade.


Andrew Louth, do livro "Modern Orthodox Thinkers: From the Philokalia to the Present"