domingo, 13 de agosto de 2017

Misticismo Ortodoxo e o Misticismo Católico-Romano (M. V. Lodyzhenskii)

Uma conversa [colloque] ocorre quando o homem imagina diante dele Jesus Cristo, crucificado na cruz.
  - Dos ensinamentos de São Inácio Loyola sobre contemplação

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De ti mesmo, não forme imaginações, e não prestes atenção àquelas que se formam, e não permitas que a mente as imprima sobre si mesma. Pois tudo o que é impresso e imaginado do exterior serve para seduzir a alma.
- Dos ensinamentos dos ascetas da Igreja Oriental

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Que o leitor não pense que ao ter intitulado este capítulo "Misticismo do Oriente e Misticismo do Ocidente", tomamos a tarefa de pesquisar em detalhes o misticismo comparativo da Igreja Oriental (Ortodoxa) e Ocidental (Católica Romana) em todas as suas manifestações características e em várias eras. Devemos dizer que tal tarefa iria muito além do alcance do presente trabalho, que diz respeito à vida dos santos da Igreja Ortodoxa propriamente dita e às manifestações de sua contemplação espiritual. Esse relato comparativo do misticismo oriental e ocidental seria um projeto amplo e exigiria uma grande quantidade de pesquisas especializadas. Deveria conter um estudo preciso sobre a vida de místicos Católicos notáveis, paralelamente a um estudo sobre a vida de clarividentes e ascetas contemplativos Ortodoxos. Não estamos assumindo tal tarefa. Neste capítulo, lidaremos apenas algumas manifestações marcantes do misticismo ocidental, manifestações que aparecem no mundo católico depois de Francisco de Assis, de modo que comparando essas manifestações com o misticismo da Filocalia possamos entender o significado do misticismo Ortodoxo. 

Portanto, não falaremos sobre os variados santos Católicos notáveis que se manifestaram no misticismo do ocidente. Não vamos, por exemplo, lidar com a vida de um santo católico famoso como o monge franciscano Boaventura [1] (século XIII). Nós também lidaremos apenas rapidamente sobre o misticismo de ascetas Católicos como Thomas à Kempis (século XV) e Santa Teresa de Ávila (século XVI). No entanto, passaremos mais tempo no misticismo do guerreiro espiritual Católico, Santo Inácio, pois esse misticismo nos é interessante, na medida em que Inácio desenvolveu amplamente o misticismo de Francisco de Assis na direção do mentalismo. Essa particularidade do misticismo de Inácio caracteriza especialmente o misticismo Católico e distingue-o do misticismo da Igreja Oriental.

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Assim, o misticismo de Francisco de Assis foi desenvolvido, como dissemos, por outro representante proeminente do mundo Católico - São Inácio. Este é o mesmo Inácio de Loyola que (três séculos após a morte de Francisco) fundou a famosa ordem Católica dos jesuítas, a principal diferença entre as regras desta ordem e as regras dos franciscanos sendo o fato de que no regulamento da ordem jesuíta, declarava-se claramente e definitivamente o voto de cada jesuíta para servir continuamente e fielmente ao vigário de Cristo na terra - o papa romano. E o principal meio de alcançar esse objetivo em tal ordem era pregando e educando a juventude.

Ignácio de Loyola legou ao mundo Católico uma memória vívida de seu misticismo. Entre suas outras obras, escreveu um guia notável para alcançar estados de êxtase. Este guia é chamado de Exercícios Espirituais (Exercitia spiritualia). Consideramos necessário examinar este manual, porque define distintamente essa direção para o mentalismo e a sensualidade que contaminaram o mundo espiritual Católico. Mas antes disso, digamos algumas palavras sobre o autor deste manual - o próprio Inácio. Inácio de Loyola nasceu em 1491 na Espanha de uma família aristocrática. Ele passou seus primeiros anos na corte do rei espanhol e, na sua juventude, assim como Francisco, tornou-se fascinado pelos romances da Idade Média. Ele era ambicioso. Aos trinta anos, participou de uma batalha com os franceses defendendo Pamplona e foi gravemente ferido. Durante sua enfermidade, começou a ler a vida dos santos, cujos esforços - especialmente os de Francisco de Assis - assumiram aos seus olhos o mesmo valor que os esforços dos cavaleiros e dos heróis que admirava. O exemplo de Francisco fascinou Loyola. A grandeza da vocação apostólica foi retratada em sua imaginação, e ele decidiu dedicar-se à pregação. No começo, entregou-se à vida ascética (na pequena cidade da Catalunha, Manresa). Reconheceu mais tarde que naquele momento ele foi ofuscado por várias visões. Posteriormente, em 1528 foi a Paris para receber uma educação teológica. Em Paris, formou um círculo de amigos que estavam muito interessados em pregar. A formação deste círculo foi finalizada em 1534. Em 1537, Loyola partiu para Roma; obteve do papa a benção para a organização da Sociedade de Jesus. A regra desta ordem foi estabelecida em 1540. Loyola conseguiu organizar e desenvolver esta instituição, fazendo dela um poderoso instrumento para propaganda Católica. Indubitavelmente, Loyola possuía um enorme talento para a organização. Loyola morreu em 1556 em Roma. Quase setenta anos após sua morte, a Igreja Católica o canonizou.

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No primeiro contato com o tratado Exercícios Espirituais de Loyola e com a forma como esses exercícios são praticados no mundo Católico, [2] tem-se a impressão geral de que o método de exercícios espirituais de Loyola possui, em muitos aspectos, bases semelhantes ao método de exercícios do raja yoga hindu , do qual falamos em detalhes em nosso livro, Supraconsciência. Lá apontamos que, de acordo com a explicação de A. Besant, o método do raja yoga é sempre um método de pensamento e exige a concentração do pensamento e a contemplação. [3] E, como dissemos, esses exercícios mentais começam com a meditação, isto é, dedicando-se durante vários minutos a uma reflexão profunda sobre algum pensamento nobre, [4] posteriormente essa meditação passa para uma forma mais concentrada de contemplação mental, e nestes estados contemplativos o papel principal pertence ao poder da imaginação cerebral.

Meditações semelhantes e exercícios contemplativos também são recomendados por Loyola, e o papel principal nesses exercícios, assim como no raja yoga, também pertence à imaginação mental. Mas o mentalismo de Loyola não é tão puro quanto no raja yoga. A. Besant diz que o método de Raja yoga é sempre um método de pensar.

Agora, examinando mais profundamente os Exercícios Espirituais de Loyola, vemos que, após os primeiros passos dos exercícios, reconhecidos como muito importantes, a saber, os exercícios do recluso para examinar a consciência (examem) e o arrependimento dos pecados, [5] os exercícios seguintes mais importantes são definidos por Loyola usando os termos mediter [meditação] e contempler [contemplação]. Pela palavra meditação entende-se o exercício com contemplações abstratas (pelo pensamento abstrato), "quando o homem traz para mente a lembrança de alguma verdade dogmática ou moral cristã, quando, junto com esse pensamento, começa a se esforçar para penetrá-la, enquanto a vontade do asceta cristão é conduzida para a submissão à verdade, sugerindo a si mesmo o desejo de se ligar a ela ". [6] Com a palavra contemplação entende-se a contemplação não de algo abstrato, mas sim a contemplação da verdade, encarnada na vida do Salvador, onde a alma do homem treinando em sua imaginação para ver e ouvir o Verbo feito carne, funde-se com o Deus-homem, contemplando-O. [7]

Finalmente, para Loyola, além desses estados contemplativos, ainda há um estado superior - "application des sens" - "quando o esforço da imaginação já cessou, quando o mistério da vida do Salvador aparece livremente diante da alma do contemplativo, quando ocorre diante de seus olhos e faz uma impressão em todos os seus sentidos corporais."[8]

O método de conduzir o homem para todos esses estados contemplativos é o seguinte:

O objeto ou sujeito da contemplação, de acordo com Loyola, deve ser imaginado antecipadamente e organizado em dois ou três pontos (en deux ou trois points), que fixam a memória e que contêm neles circunstâncias dignas de nota. Então o asceta se aproxima do início dos exercícios, chamado prelúdio (prelude). Ele toma o controle de sua memória, sua imaginação e sua vontade. "A memória fornece os pontos fixados antecipadamente no cérebro. A imaginação forma nele um tipo de imagem, o coração em oração fervorosa pede conhecimento e amor, e tudo isso é feito, por assim dizer, na presença do próprio Cristo". [9]

De acordo com as palavras do livro católico, Manrese, São Inácio propõe, com a ajuda desses exercícios e, acima de tudo, com os exercícios de exame da consciência (examen) e de arrependimento dos pecados, dar ao homem a possibilidade de alcançar o seguinte: Mesmo se aquele que dá início aos exercícios espirituais seja pecador, se ele estiver armado com boas intenções, se é razoável e é livre para o exercício espiritual (mestre de seu tempo e futuro), então, de tal homem, ainda que seja um "pecador miserável", Santo Inácio espera fazer dele um homem santo e até mesmo um grande santo.

Citaremos do livro de Inácio de Loyola, Exercícios Espirituais, exemplos de seus exercícios contemplativos. Nós dissemos que, de acordo com as instruções de Loyola, o objeto ou sujeito da contemplação deve ser imaginado de antemão e estruturado em dois ou três pontos que fixam a memória e que contêm em si circunstâncias dignas de nota.

Em primeiro lugar, tomaremos exemplos de tais pontos e indicaremos os pontos interessantes que Loyola aconselha àquele que faz os exercícios de fixação no cérebro antes da contemplação do inferno. (O propósito desta contemplação é levar o recluso a um sincero arrependimento dos pecados.)

O primeiro ponto é que aquele que faz os exercícios vê com "a ajuda da imaginação" as terríveis chamas do inferno. Loyola diz: "Eu verei lá, olharei atentamente para as almas das pessoas encarceradas em seus corpos em chamas, como se estivessem em masmorras eternas".

O segundo ponto: "também com a ajuda da imaginação ouça os gemidos, as queixas, os gritos desgarradores que ressoam neste lugar ruinoso, ouça as maldições constantemente sendo lançadas contra Jesus e seus santos".

O terceiro ponto: novamente imaginar que sente-se o cheiro de fumaça, de enxofre, de piche, em resumo, o cheiro podre que é emitido pelo antro de todos os tipos de putrefação.

O quarto ponto: "experimentar tudo o que é mais amargo no mundo. Assim, tente tornar-se sensível às lágrimas que continuamente são derramadas por aqueles que são excomungados; tente sofrer os tormentos da consciência - o verme roendo nos pecadores".[11]

Agora citaremos um exemplo dos exercícios chamados de prelúdio (prelude). O prelúdio diz respeito à contemplação do "primeiro dia da encarnação do Verbo de Deus". O primeiro prelúdio desta contemplação é,
imaginar, como se estivesse diante de seus olhos, todo o curso histórico da mistério da encarnação, ou seja, como as três Pessoas Divinas da Santíssima Trindade olham para esta terra, povoada por pessoas que, em grandes multidões, estão lançando-se para o inferno; como a Santíssima Trindade, tocada pela compaixão, decide enviar o Verbo para encarnar como homem a fim de salvar a raça humana; como, em um dia preordenado, como resultado desta decisão, o Arcanjo Gabriel aparece como um mensageiro à abençoada Virgem Maria.

O segundo prelúdio consiste em "uma imaginação vívida de um lugar que vêem como se diante de seus próprios olhos. Aqui representam a si próprios na terra, povoada por várias tribos e em um canto deste mundo, na Galiléia, em Nazaré, uma pequena casa na qual a Santíssima Virgem vive".

O terceiro prelúdio é descrito desta maneira: "Esta é uma súplica que eu, o suplicante, possa conhecer o mistério da encarnação do Verbo por minha causa; uma súplica de que esse conhecimento estimule cada vez mais meu amor por Ele e me compila lhe servir exclusivamente."[12]

E aqui está um exemplo de uma contemplação apresentada já na forma de uma conversa (colloque) entre o recluso e o Cristo crucificado, que ele vê em seu estado contemplativo. Tomamos essa conversa palavra por palavra, tal como está estabelecida nos Exercícios Espirituais.

Essa conversa ocorre quando a pessoa imagina diante de si Jesus Cristo na cruz ... Naquele momento, quando esta imagem impressionante aparece diante dos olhos, começa-se a perguntar a si mesmo, ponderar, considerar o que exatamente inclinou o Criador a se tornar homem e assumir a forma de criatura e escravo. Como aconteceu que, possuindo uma natureza eterna em Sua própria essência, Ele quis descer a um estado de morte, para verdadeiros sofrimentos mortais.

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Além disso, deve-se culpar a si mesmo, repreender a consciência, perguntando: o que fiz até agora para Jesus Cristo? Posso dizer que realmente fiz alguma coisa por ele? E por fim, o que eu farei a partir de agora? O que devo fazer?
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Dirigindo de tal maneira meu olhar a Jesus crucificado, eu conto para Ele tudo o que minha mente e meu coração me levam a dizer .... Tal conversa pode ser comparada a uma conversa entre dois amigos ou uma conversa de um servo com seu mestre.

Aqui não se deve ignorar a estreita semelhança desta conversa contemplativa de Loyola com a forma como São Francisco orou no Monte Alverna, quando imaginou "duas grandes luzes", uma das quais ele reconheceu o Salvador, e na outra ele mesmo.

Além disso, consideramos interessante mencionar aqui alguns métodos puramente externos que Loyola aconselha àquele que está fazendo os exercícios. Assim, por exemplo, Loyola diz que "durante os exercícios de contemplação do inferno e arrependimento, àquele que exercita deve privar-se da luz do dia tanto quanto possível. Para isso ele deve manter as janelas e portas fechadas por todo tempo enquanto estiver ocupado com este empenho, e admitirá luz somente quanto for necessário a fim de ler ou em extrema necessidade." [14]

De todos estes trechos retirados de Loyola, pode-se ver que seu misticismo conduz quase ao puro mentalismo, que é próximo ao raja yoga, onde a imaginação cerebral desempenha um papel importante. Para isso, basta recordar, por exemplo, este exercício de yoga aconselhado por Vivekananda: "Imagine para si", ele diz, "algum lugar no seu coração e no centro uma chama; imagine que esta chama é a sua própria alma, que dentro desta chama há um espaço radiante e que este espaço é a alma da sua alma - Deus - contemple, este é o seu coração" e assim por diante. [15]

No entanto, se São Inácio de Loyola desenvolveu o misticismo de São Francisco na direção do puro mentalismo, nesse sentido, levando-o ao extremo, ainda é preciso dizer que no mundo Católico também houve desvios de tais entusiasmos; houve atletas espirituais que não tentaram em seus estados místicos se entregarem unicamente aos impulsos de sua imaginação cerebral, mas sim se esforçaram pela supraconsciência espiritual. Citamos entre tais santos católicos, o famoso Thomas à Kempis (falecido em 1471), cujas idéias não estavam distante daquelas dos ascetas da Igreja Oriental, e por isso a obra principal de Thomas à Kempis, Imitação de Cristo, foi traduzida muitas vezes para as línguas eslavas e russa [*]. (A primeira tradução para o eslavônico foi feita em 1647.)

Thomas à Kempis compreendeu bem os estágios superiores da supraconsciência espiritual. Isso é evidente, por exemplo, na seguinte declaração em sua composição, "De nativitate Christi" ["Sobre o nascimento de Cristo"]. Ele diz que,
Há certos santos dias da alma, em que o doce arrebatamento do sentimento interior é tão forte que a fraqueza da natureza humana dificilmente pode suportar; nenhum sinal ou palavra pode expressar o que a alma sente em si mesma em tais visitas ... Quando a alma, esquecendo a si mesma e a tudo mais, lembra-se apenas de Deus, quando livra-se de toda imaginação corporal e contempla apenas a eternidade, mergulhando no abismo da luz divina, quando iluminada pelos raios do Sol eterno, ela sobe mais alto que toda a criação, então realiza esta grande e misteriosa celebração, uma celebração que pertence mais à glória da bem-aventurança eterna do que ao grave estado da nossa vida atual.[16]
Se alguém comparasse esta descrição de um estado místico com a descrição de São Isaque da Síria (veja Capítulo 1, nota 19), muitos traços comuns seriam encontrados.

Falando de manifestações típicas do misticismo ocidental, tampouco podemos ficar em silêncio sobre Santa Teresa de Ávila, relatando suas experiências místicas em sua autobiografia escrita entre 1561-1562. Para definir o misticismo desta santa, é suficiente que refiramos à opinião competente de William James, que estudou os escritos de Santa Teresa.

Em seu livro As Variedades de Experiência Religiosa, James diz que a piedade de Santa Teresa não dá a impressão de grande profundidade e, em geral, "a sua apresentação da religião equivale a, se se pode expressar assim, um interminável flerte amoroso entre uma pretendente e sua Divindade ".[17]

O arrebatamento místico de Teresa incita sua natureza física;  ela conta sobre um sentimento de prazer como algo que é difícil de suportar (quase como uma dor física). Em relação à parte desempenhada pelo corpo nas alegrias celestiais, ela diz que o sentimento de alegria "perfura (o corpo) até a medula do osso, ao passo que as delícias terrenas só agem superficialmente. Esta é apenas uma descrição aproximada", ela acrescenta,"mas sou incapaz de me expressar com mais clareza." [18]

A partir desta informação é evidente que um elemento sensual também entrou na supraconsciência de Santa Teresa; e esta qualidade de seu misticismo ela tem em comum com o misticismo sensual de São Francisco de Assis, expressando-se, como já sabemos, até mesmo em fenômenos fisiológicos como a estigmatização.


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M. V. Lodyzhenski - Svet nezrimyi
Luz Invisível 

Agora retornaremos para o misticismo oriental e lembraremos o leitor de seus principais fundamentos. Nós dissemos que a supraconsciência de São Serafim, desenvolvida de acordo com o caminho dos ascetas cristãos da Filocalia, estava concentrada no coração de Serafim. Lá, dentro de si, ele sentiu o fogo da Divindade; Ele sentiu Cristo. Esse sentimento de unidade com Deus desceu sobre ele de forma natural e livre, como o resultado direto de seu crescimento espiritual, como resultado de seu enorme esforço em si mesmo no caminho da humildade e do arrependimento. A consciência espiritual desceu sobre São Serafim, assim como disse São Isaac da Síria - a alma do Serafim percebeu essa supraconsciência dentro de si mesmo de forma imaterial e inesperada, sem pensar nela (isto é, sem procurá-la deliberadamente). Esta realização da supraconsciência em Serafim foi a mesma realização da pura espiritualidade que ofusca o coração do homem, descrita pelos ascetas cristãos da Filocalia, que discutimos em detalhes nos últimos quatro capítulos do nosso livro Supraconsciência.

Portanto, agora que nos familiarizamos com o misticismo ocidental, como esse difere do misticismo oriental, seria interessante aprender como os ascetas orientais consideravam o tipo de misticismo que enxergamos em São Francisco e São Inácio; ou seja, determinar se havia ou não alguma indicação na Filocalia sobre a possibilidade de manifestações extáticas semelhantes como vimos em Francisco e sobre a qual Loyola fala em seus escritos, e quais opiniões sobre tais estados de êxtase foram expressas pelos ascetas cristãos orientais.

Após um estudo aprofundado das obras dos ascetas na Filocalia, verifica-se que existem tais indicações. Embora o misticismo dos santos católicos, Francisco e Inácio, tenha sido enraizado e se estabelecido consideravelmente mais tarde do que os ascetas cristãos orientais, como por exemplo, São Isaque da Síria, Nilus do Sinai e Simeão, o Novo Teólogo, mesmo assim, parece que orientações no misticismo semelhantes aquelas de Loyola surgiram em seu tempo. Portanto, nos ascetas já mencionados, encontramos escritos definindo suas opiniões sobre esse misticismo. Nós também encontramos instruções típicas sobre tal misticismo em santos de uma era posterior, a saber, Gregório do Sinai e Gregório Palamas.

Citaremos os escritos desses ascetas cristãos orientais que dizem respeito à questão de nosso interesse. Começaremos com o asceta cristão do século V, Nilus do Sinai. Nilus do Sinai, dirigindo-se aos monges com suas instruções sobre a oração, diz:
Quando orardes, não atribua à Divindade algum tipo de aparência e não permita que sua mente se transforme em algum tipo de imagem (ou conceba a si mesmo na forma de alguma imagem ou que qualquer tipo de imagem se imprima em sua mente); mas aproxime-se imaterialmente ao Imaterial e una-se a Ele .[19]
Além disso, ele diz: "Não pense que a Divindade seja qualitativa (ocupa espaço, é estendida, tem partes); pois a Divindade não tem quantidade nem forma." [20] Ademais, Nilus do Sinai afirma: "Não deseje ver sensorialmente Anjos ou Poderes ou Cristo, para que não saias de sua mente, aceitando o lobo como o pastor e adorando os demônios inimigos".[21] Ele acrescenta: "Se você deseja orar no espírito, não tome emprestado nada da carne ". [22]

E aqui está o que São Isaque da Síria diz: "Enquanto o homem usar a força para que a espiritualidade venha até ele, ela não se submeterá. E se ele é arrogante e ergue seu olhar para o espiritual, e aproxima-se com sua mente antes do tempo (antes de adquirir a verdadeira santidade), então sua visão logo se entorpecerá e em vez da realidade enxergará fantasmas e formas." [23]

É de interesse também as seguintes palavras de São Simeão o Novo Teólogo, sobre o estado de alguém que ora, comparado ao que Inácio de Loyola busca em seus exercícios espirituais. Simeão o Novo Teólogo diz,
Quando alguém que está em oração, levantando aos céus suas mãos, seus olhos e mente, mantém pensamentos divinos, imagina bênçãos celestiais, as fileiras dos anjos, as moradas dos santos ... e, às vezes, até trazendo lágrimas e chora, então, durante esse tipo de oração, ele pouco a pouco torna-se presunçoso em seu coração, mesmo sem compreender: parece-lhe que o que ele está fazendo é da Graça de Deus .... Mas isto é um sinal de prelest [delusão].
Para Simeão, o Novo Teólogo, tal estado pode ser muito perigoso para o asceta cristão, e "mesmo se ele não ficar fora de si, ainda assim será impossível para ele adquirir virtude ou despaixão" (supraconsciência espiritual superior). Simeão diz ainda: "Aqueles que estão neste caminho estão em prelest, vêem a luz com seus olhos corporais, sentem fragrâncias com seu olfato, ouvem vozes, e assim por diante". [24]

O asceta do século XIV, Gregório do Sinai, diz sobre o mesmo:  "De ti mesmo, não forme imaginações, e não prestes atenção àquelas que se formam, e não permitas que a mente as imprima sobre si mesma. Pois tudo o que é impresso e imaginado do exterior serve para seduzir a alma." [25] "A mente (a razão inferior) em si mesma tem o poder natural de sonhar e pode facilmente criar imagens ilusórias do que deseja ... Então, aquele que está experimentando isso torna-se um sonhador, e não um guarda do silêncio." [26] "Que aquele que se aproxima da contemplação sem a luz da graça saiba que ele está formando fantasias e não tem contemplação, está em um espírito sonhador, sendo enredado em fantasias e enganando a si mesmo." [27]

Por fim, Gregório Palamas, também um asceta cristão do século XIV, diz sobre os estados contemplativos,
Neste caso, o homem ascende não com as asas fantásticas da imaginação, que, como um homem cego vagueia em torno de tudo e não recebe uma compreensão verdadeira e correta de assuntos sensoriais ou mentais; mas aqui o homem ascende para a verdade pelo poder inefável do Espírito, e com o ouvido espiritual entende palavras inefáveis e vê o invisível, e tudo isso é um milagre. [28]
Essas visões dos ascetas cristãos da Filocalia foram transmitidas, juntamente com a divulgação do conhecimento religioso, para o misticismo Ortodoxo russo. [29]

Aqui, para concluir, citamos uma opinião muito característica de um escritor Ortodoxo russo de nossos tempos - o asceta, Bispo Teófano o Recluso (falecido em 1894) - sobre o misticismo baseado nos êxtases de uma imaginação exultada. Assim, ele escreve para um de seus alunos, que foi arrebatado por orações extasiadas,
Que o Senhor te liberte de orações arrebatadoras. Arrebatamento, movimentos intensos com excitações são simplesmente movimentos mentais sanguíneos de uma imaginação inflamada. Para esses, Inácio de Loyola escreveu muitas instruções. Os homens alcançam estes êxtases e pensam que alcançaram elevados graus, mas, entretanto, tudo isso são bolhas de sabão. A verdadeira oração é silenciosa, quieta e é de tal forma em todos os seus graus. [30]

Em outra de suas cartas, Teófano diz,
A imaginação - a capacidade de formar e reter imagens - é uma faculdade inexperiente ... a mais inferior! Portanto, não é apropriado permitir que ela apareça com suas imagens em um domínio superior, como da oração ... A atividade mental / contemplativa é elevada, mas a atividade espiritual manifestada na oração é ainda mais elevada.... Se é admitido imagens, existe o perigo de orar para um sonho. Existe apenas um caminho - da oração sincera (oração de puro sentimento) .... Vem à mente o que foi dito de um staretz [ancião] que sempre imaginou Deus em uma forma. Quando lhe foi explicado que isso não deveria ser feito, ele disse: você tirou Deus de mim ... Mas eles não tiraram Deus dele, mas sim seu sonho. [31]

E assim vemos que o tipo de misticismo o qual Francisco de Assis estabeleceu os fundamentos e que Inácio de Loyola posteriormente desenvolveu era reprovado pelos ascetas orientais, e eles até mesmo consideravam o caminho desse misticismo perigoso para a alma de um asceta cristão. [32]


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NOTAS

1. No tratado místico "Sobre a Redução das Artes à Teologia", São Boaventura diz que o homem tem três olhos: o corpóreo, o mental e o contemplativo; ele desenvolve este tema em detalhes.
2. Graças à assistência do publicista SN Syromyatnikov (Sigma), obtivemos em São Petersburgo dois livros sobre o assunto que nos interessa: o primeiro livro é uma tradução do latim para o francês da composição original da obra Exercícios Espirituais de Inácio de Loyola  (tradução publicada em 1817). O outro, Manrese, é difundido no mundo católico como um guia para entender a composição acima mencionada de Loyola. No prefácio da nona edição deste guia (que foi impresso em 1851), diz que o autor deste guia não é nomeado, mas é um conhecido teólogo pertencente à ordem jesuíta, que reuniu e juntou no livro Manrese o que foi estabelecido pela prática do ascetismo católico, os comentários mais importantes sobre os exercícios espirituais do trabalho de São Inácio.
3. M. V. Lodyzhenskii, Super-Consciousness, 176. 
4. Ibid., 197. 
5. Manrese, Introdução, 8. 
6. Ibid. 
7. Manrese, Introdução, 9. 
8. Ibid. 
9. Manrese, Introdução, 8. 
10. Manrese, Introdução, 15. 
11. “Primeira Semana, Quinto Exercício” Exercícios Espirituais, 70–71. 
12. “Segunda Semana, Primeira Meditação,” Exercícios Espirituais, 95–97. 
13. “Colloque,” Exercícios Espirituais, 56–57. 
14. “Meditação sobre o Inferno,” Exercícios Espirituais, 79. 
15. Swami Vivekananda, A Filosofia da Yoga, 123. 
[*]. Nota do tradutor: A opinião do autor, M.V. Lodyzhenskii, sobre o livro do Thomas a Kempis difere bastante da opinião de alguns anciões e santos Ortodoxos. São Inácio Brianchaninov escreve em uma de suas obras:
O segundo tipo de prelest - chamado de "presunção" - age sem compor imagens sedutoras: contenta-se em compor sentimentos e estados de graça falsos, dos quais forma uma noção falsa e perversa sobre todo feito espiritual em geral. Aquele que está no estado de "presunção", adquire perspectivas falsas sobre tudo o que o rodeia. Ele é enganado tanto de dentro como de fora. O sonho age fortemente em quem é enganado com "presunção", mas opera exclusivamente no campo abstrato. Inclui ou não, imaginação do paraíso, palácios, mansões, luzes celestiais, fragrância, Cristo, Anjos e Santos; sempre compõe estados aparentemente espirituais, estreita amizade com Jesus (Imitação de Thomas a Kempis, livro 2, cap. 8), conversa interior com Ele (livro 3, capítulo 1), revelações místicas (livro 3, cap. 3), vozes, prazer; com base em tudo isso, cria-se uma falsa noção sobre si mesmo e sobre os feitos cristãos em geral; cria-se uma maneira de pensar e disposição do coração geralmente falsa, leva ao arrebatamento ou à exaltação. Esses diversos sentimentos surgem da ação sútil da vanglória e luxúria: a partir desta ação, o sangue adquire um movimento pecador e sedutor que aparenta ser um prazer da graça. Por sua vez, a vaidade e a luxúria são excitadas com a arrogância, inseparável companheira da "presunção". [...] 
"Imitação ", quando apareceu, foi condenado até mesmo pela própria Igreja Latina, perseguido pela Inquisição. A acusação ulteriormente foi deixada de lado e passou a ser protegido, quando se viu que o livro era uma boa ferramenta de propaganda entre as pessoas que perderam a compreensão verdadeira do cristianismo [...] Sob o nome da propaganda papal, entende-se a difusão do conceito do Papa, que o Papa quer sugerir-se à humanidade, isto é, o conceito de poder supremo, autocrático, absoluto do Papa em todo o mundo. Propaganda, tendo isso como objetivo, presta pouca atenção à qualidade do ensino que usa [...] Isto é auto-engano! Isto é prelest! Foi composto a partir de falsas noções; falsas noções surgiram das sensações erradas relatadas pelo livro. Uma unção do espírito astuto vive e respira, que lisonjeia os leitores dando-lhes uma bebida de falsidade, adoçado com os sabores sutis de arrogância, vaidade e luxúria. O livro leva os leitores diretamente à comunhão com Deus, sem pré-purificação por arrependimento: é por isso que excita uma simpatia especial entre as pessoas passionais que não estão familiarizadas com a via do arrependimento; [...] 
Em contraste com o sentido dos homens carnais, os homens espirituais que sentem a fragrância do mal, que finge ser boa, sentem imediatamente uma aversão aos livros. Uma passagem do livro "Imitação" foi lida para o ancião Isaías, um monge que vivia em silêncio no mosteiro de Nikiforov Pustyn (diocese de Olonetsk ou Petrozavodsk) que havia alcançado a oração noética [...] . O ancião imediatamente entrou profundamente no significado do livro. Ele riu e disse: "Oh, isso é escrito de uma presunção. Não há nada verdadeiro aqui! Tudo é inventado! O que Thomas imaginou sobre os estados espirituais ...  sem conhecê-los pela experiência, assim descreveu." Prelest, como um infortúnio, representa um espetáculo triste; ... O arquimandrita do mosteiro de Cyril Novoezersk (diocese de Novgorod), conhecido por sua vida austera e que, na simplicidade do coração, se engajou quase que exclusivamente nos feitos corporais e que tinha uma noção muito moderada sobre os feitos da alma [lhe propuseram] ler o livro "Imitação"; poucos anos antes de sua morte, ele começou a proibir a leitura, falando com uma santa simplicidade: "Antes eu reconhecia este livro como edificante, mas Deus me revelou que é prejudicial para a alma". O monge hiero-schema Leonid, conhecido pela experiência monástica ativa ... no Mosteiro Optina (diocese de Kaluga) tinha a mesma opinião sobre a "Imitação". Todos esses ascetas me eram familiares. - Um proprietário de terras, criado no espírito da Ortodoxia, que conhecia bem a chamada alta sociedade, isto é, o mundo, nos escalões mais altos, uma vez viu o livro "Imitação" nas mãos de sua filha. Ele proibiu ela de ler o livro, dizendo: "Eu não quero que você siga a moda e flerte com Deus". Essa é a avaliação mais correta do livro.



16. Thomas à Kempis, Imitação de Cristo (trans. Count Speransky; Russian 
Pilgrim, 1893), 252–3. 
17. William James, As Variedades das Experiências Religiosas, 337. Itálico nosso.
18. Ibid., 401. 
19. “Homilia sobre a Oração,” Filocalia 2, sec. 67, 215. 
20. Ibid., sec. 66. 
21. Ibid., sec. 115, 221. 
22. Ibid., sec. 128, 222. 
23. Ibid., 697. 
24. Ibid., 5:463–4. 
25. Ibid., 233. 
26. Ibid., 224. 
27. Bispo Alexei, Byzantine Church Mystics of the 14th Century (1906), 85. 
28. Ibid., 45. 
29. Na literatura espiritual russa, o principal e primeiro pregador do misticismo oriental foi St Nilus de Sora (1433-1508). Ele morou no Monte Atos, estudou lá a vida dos monges de Atos e, na sua obra Tradição da Vida no Skete, estabeleceu a essência do ensinamento dos ascetas cristãos da Filocalia, entre eles de Nilus do Sinai, Isaque da Síria, Simeão o Novo Teólogo e Gregório do Sinai.
30. Bispo Teófano, Cartas sobre a vida cristã (Moscow, 1900), 25. 
31. Bispo Teófano, Carta 1063, Collected Letters, 24–5. 
32. Aqui é interessante notar que mesmo o misticismo protestante, na pessoa do famoso místico Boehme do século XVII, era contra a manifestação do uso da imaginação e dos sentidos nos estados de êxtase. Boehme fala assim a um aluno que se esforça para sentir Deus: "Quando com pensamento abstrato você bloqueia a imaginação e os sentidos externos, então a audição, a visão e a linguagem eterna se abrirá dentro de você e Deus ouvirá e verá através de você, porque agora você será o órgão do Seu Espírito "(P.D. Uspenskii, Tertium Organum, 225).



Do livro "Light Invisible: Satisfying the Thirst for Happiness" por M. V. Lodyzhenski 

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