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sexta-feira, 27 de abril de 2018

As Trevas Divinas (Vladimir Lossky)


Índice
1. Introdução: Teologia e Misticismo na Tradição da Igreja Oriental
2. As Trevas Divinas
3. Deus na Trindade
4. Energias Incriadas
5. Ser Criado
6. Imagem e Semelhança
7. A Economia do Filho
8. A Economia do Espírito Santo
9. Dois Aspectos da Igreja
10. O Caminho da União
11. A Luz Divina
12. Conclusão: A Festa do Reino

As Trevas Divinas


O problema do conhecimento de Deus foi exposto em seus fundamentos em um pequeno tratado cujo próprio título - Περὶ μυστικῆς θεολογίας – Sobre a Teologia Mística - é significativo. Este notável livro, cuja importância para toda a história do pensamento cristão não pode ser exagerada, é o trabalho do desconhecido autor dos chamados escritos areopagíticos: um personagem que a opinião comum durante um longo período de tempo procurou identificá-lo com o discípulo de São Paulo - Dionísio, o Aeropagita. Os defensores desta atribuição, no entanto, tiveram que levar em conta um fato perturbador: o silêncio completo reina por quase cinco séculos em relação a essas obras areopagíticas. Elas não foram citadas nem referidas por qualquer escritor eclesiástico antes do início do século VI, e foram heterodoxos - os monofisitas - que, ao buscarem apoiar-se em sua autoridade, primeiro deram-nas a conhecer. São Máximo, o Confessor tomou esta arma das mãos dos hereges no decurso do século seguinte, demonstrando em seus comentários (ou scholia) o significado ortodoxo dos escritos dionisíacos.[1] Desde então, essas obras têm desfrutado de uma autoridade incontestável na tradição teológica do Oriente, bem como na do Ocidente. Os críticos modernos, até então longe de concordar quanto à identidade do 'Pseudo Dionísio' e quanto à data da composição de suas obras, vagueiam em meio às mais diversas hipóteses.[2] A maneira pela qual as pesquisas críticas oscilam entre datas tão distantes do século III ao século VI mostra quão pouca concordância já foi alcançada em relação às origens desta obra misteriosa.


Mas sejam quais forem os resultados de toda essa pesquisa, eles não podem de modo algum diminuir o valor teológico da obra Areopagitica. Desse ponto de vista, pouco importa quem era o autor. O que é importante é o julgamento da Igreja sobre o conteúdo da obra e o uso que ela fez dela. Não diz o autor da epístola aos hebreus ao citar um salmo de Davi: "Mas em certo lugar testificou alguém...”? [3] Assim mostrando em que medida a questão da autoria é de importância secundária no caso de um texto inspirado pelo Espírito Santo. O que é verdadeiro para a Sagrada Escritura também é verdade para a tradição teológica da Igreja.


Dionísio distingue duas vias teológicas possíveis. Uma delas, a teologia catafática ou positiva, que prossegue por afirmações; a outra, a teologia apofática ou negativa, que prossegue por negações. A primeira nos leva a algum conhecimento de Deus, mas é uma via imperfeita. A via perfeita, a segunda, é a única via apropriada em relação a Deus, que é, em Sua própria natureza, incognoscível - que nos leva finalmente a ignorância total. Todo o conhecimento tem como objetivo aquilo que é. Mas Deus está além de tudo o que existe. Para aproximar-se dele, é necessário negar tudo o que é inferior a Ele, isto é, tudo aquilo que é. Se vendo Deus compreendemos o que vemos, então nós não vimos o próprio Deus, mas algo inteligível, algo que Ele é menor. É pela ignorância (ἀγνωσία) que alguém pode conhecer Aquele que está acima de todo objeto possível de conhecimento. Procedendo pelas negações, ascende-se dos níveis inferiores do ser aos mais elevados, ao deixar de lado progressivamente tudo o que pode ser conhecido, a fim de aproximar-se do Desconhecido na escuridão da ignorância absoluta. Pois até mesmo a luz, e especialmente a abundância de luz, torna a escuridão invisível; ainda mais, o conhecimento das coisas criadas e, em especial, o  excesso de conhecimento, destrói a ignorância, que é a única maneira pela qual se pode alcançar Deus em Si mesmo. [4]


Se transferirmos a distinção de Dionísio entre a teologia negativa e a afirmativa para o plano da dialética, somos confrontados com uma antinomia que, em seguida, buscamos resolver; na tentativa de fazer uma síntese das duas vias opostas, as unimos como um método único de conhecer Deus. É assim que São Tomás de Aquino reduz as duas vias de Dionísio para uma só, tornando a teologia negativa um corretivo para a teologia afirmativa. Ao atribuir a Deus as perfeições que encontramos nos seres criados, devemos (de acordo com São Tomás) negar o modo segundo o qual entendemos essas perfeições finitas, mas podemos afirmá-las em relação a Deus de um modo mais sublime, modo sublimiori. Assim, as negações correspondem ao modus significandi, ao meio sempre impreciso de expressão; as afirmações, à res significata, à perfeição que desejamos expressar, que está em Deus de um modo diferente do que está nas criaturas. [5] Podemos perguntar até que ponto essa invenção filosófica muito engenhosa corresponde ao pensamento de Dionísio. Se, para o autor do Areopagitica, há uma antinomia entre as duas "teologias" que ele distingue, ele admite esta síntese das duas vias? É possível, além disso, falando em termos gerais, opor-se as duas vias, lidando com elas no mesmo nível, colocando-as no mesmo plano? Dionisio não diz mais de uma vez que a teologia apofática supera a catafática? Uma análise do tratado sobre a teologia mística, que é dedicada a via negativa, mostrará o que esse método significa para Dionísio. Ao mesmo tempo, nos permitirá julgar a verdadeira natureza desse apofaticismo que constitui a característica fundamental de toda a tradição teológica da Igreja Oriental. [6]


Dionísio começa seu tratado com uma invocação da Santíssima Trindade, a quem ele ora para guiá-lo "ao alto supremo dos escritos místicos, que está além do que é conhecido, onde os mistérios da teologia, simples, incondicionais, invariáveis, são colocados à nu numa escuridão de silêncio além da luz". Ele convida Timóteo, a quem o tratado é dedicado, à "contemplação mística" (μύστικα θεάματα). É necessário renunciar ao sentido e ao funcionamento da razão, tudo o que pode ser conhecido pelos sentidos ou entendimento, tanto aquilo que é como aquilo que não é, para poder alcançar em perfeita ignorância a união com Ele que transcende todo ser e todo o conhecimento. Já é evidente que não se trata apenas de um processo de dialética, mas de outra coisa: é necessária uma purificação, uma κάθαρσις, é necessária. É preciso abandonar tudo o que é impuro e até tudo o que é puro. É preciso, então, escalar as alturas mais sublimes da santidade deixando para trás todos os luminares divinos, todos os sons e palavras celestiais. É somente assim que se pode penetrar na escuridão, onde Ele, que está além de todas as coisas criadas, faz a sua morada.[7]


Esse caminho de ascensão, no curso do qual somos gradualmente libertados do domínio de tudo o que pode ser conhecido, é comparado por Dionísio à ascensão de Moisés ao Monte Sinai para encontrar-se com Deus. Moisés começa por se purificar. Então ele se separa de tudo que é impuro. É então que ele ouve "as muitas notas das trombetas, ele vê as muitas luzes que emitem muitos raios puros; então ele é separado dos muitos, e com os sacerdotes escolhidos ele alcança a altura das ascensões divinas. Mesmo aqui ele não se associa com Deus, ele não contempla Deus (pois Ele não é visível), mas somente o lugar onde Ele está. O que significa, creio, que na ordem visível e na ordem inteligível, os objetos mais elevados e os mais sublimes são vistos e compreendidos não passam de razões hipotéticas dos atributos que convém Àquele que é totalmente transcendente, razões que revelam a presença Daquele que está fora de toda a captação mental, acima dos cumes inteligíveis de seus mais santos lugares.. É então que Moisés é libertado das coisas que vêem e são vistas (τῶν ὀρωμένων καὶ τῶν ὀρώντων): ele passa para a escuridão verdadeiramente mística da ignorância, onde ele fecha os olhos para todas as apreensões científicas, e atinge o que é inteiramente intocado e invisível, pertencendo não a si mesmo e não a outro, mas inteiramente Àquele que é acima de tudo. Ele é unido ao melhor de seus poderes com a quiescência inconsciente de todo conhecimento, e por esse mesmo desconhecimento ele conhece o que supera o entendimento (καὶ τῷ µηδὲν γινώσκειν, ὑπερ νοῦν γινώσκων).” [8]


Agora fica claro que a via apofática, ou teologia mística - pois tal é o título do tratado dedicado a via das negações - tem por objeto a Deus, na medida em que Ele é absolutamente incompreensível. Seria até impreciso dizer que tem Deus como seu objeto. A última parte da passagem que acabamos de citar mostra que, uma vez alcançada a altura extrema do cognoscível, é preciso libertar-se daquilo que percebe tanto quanto daquilo que pode ser percebido: isto é, do sujeito, bem como do objeto da percepção. Deus não se apresenta mais como objeto, pois não é mais uma questão de conhecimento, mas de união. A teologia negativa é, portanto, um caminho para a união mística com Deus, cuja natureza permanece incompreensível para nós.


O segundo capítulo da Teologia Mística opõe à via afirmativa, aquela de "posições" (θέσεις), a via negativa, aquela de sucessivas "abstrações" ou "distanciamentos" (ἀφαιρέσεις). A primeira é uma descida dos graus superiores do ser aos inferiores; a segunda, uma ascensão em direção à incompreensibilidade divina. No capítulo três, Dionísio enumera seus trabalhos teológicos, organizando-os em ordem de "prolixidade", que aumenta à medida que se desce das teofanias superiores para as mais inferiores. O tratado Sobre a Teologia Mística é o mais resumido de todos, pois trata da via negativa que leva ao silêncio da união divina. No quarto e quinto capítulos, Dionísio considera toda uma série de atributos emprestados do mundo dos sentidos e da inteligência e recusa-se a relacioná-los com a natureza divina. Ele conclui seu tratado reconhecendo que a Causa universal foge toda afirmação, bem como toda negação. “Quando fazemos afirmações e negações sobre as coisas que são inferiores a ela, afirmamos e não negamos nada sobre a Causa em si, que, sendo totalmente à parte de todas as coisas, está acima de toda afirmação, como a supremacia Daquele que, sendo em Sua a simplicidade liberto de todas as coisas e além de tudo, está acima de toda negação.” [9]


Houve muitas tentativas de fazer de Dionísio um neoplatonista. De fato, se compararmos o êxtase dionisíaco com o que encontramos descrito no final da Sexta Enéada de Plotino, devemos registrar algumas semelhanças impressionantes. Para aproximar-se do Uno (ἑν) é necessário, de acordo com Plotino, "alcançar o que é primeiro, separar-se dos objetos sensíveis, que são as últimas coisas, e ser liberto de todo mal porque se está ansioso pelo Bom; voltar ao começo dentro de si mesmo, e tornar-se um em vez de muitos na contemplação do começo e do Uno". [10] É o primeiro passo na subida, onde nos encontramos livres das coisas do sentido e recolhidos na inteligência. Mas é necessário ir além da inteligência, uma vez que a obtenção de um objeto superior a ela está em questão. "Não é algo, mas antes de tudo; nem é ser, pois aquilo que está sendo tem a forma de seu ser; mas isto é sem forma, faltando até mesmo forma inteligível. Pois, uma vez que a natureza do Uno procria todas as coisas, ele próprio não faz parte delas.” [11] A esta natureza são aplicadas definições negativas que lembram as da Teologia Mística de Dionísio: "não é algo, nem é de nenhum tipo ou grau; não é mente, não é alma; não se move nem permanece parado; não é nem no espaço nem no tempo; é em si mesmo, de um tipo, ou melhor, sem tipo, antes de todo tipo, antes do movimento, antes da quietude, pois todas essas coisas dizem respeito ao ser e o torna muitos." [12]


Aqui aparece uma idéia que nunca se encontra em Dionísio, e que traça uma linha de demarcação entre o misticismo cristão e a filosofia mística dos neoplatonistas. Se Plotino rejeita os atributos próprios do ser em busca de alcançar a Deus, não é, como com Dionísio, por causa da incognoscibilidade absoluta de Deus: uma incognoscibilidade obscurecida por tudo o que pode ser conhecido nas criaturas. É porque o reino do ser, mesmo em seus níveis mais elevados, é necessariamente múltiplo: ele não tem a simplicidade absoluta do Uno. O Deus de Plotino não é incompreensível por natureza. Se não podemos compreender o Uno pela razão discursiva nem pela intuição intelectual, é porque a alma, quando apreende um objeto pela razão, se afasta da unidade e não é absolutamente uma só.[13] Portanto, é necessário recorrer ao caminho do êxtase, à união em que somos totalmente um com o nosso sujeito, em que toda multiplicidade desaparece e a distinção entre sujeito e objeto não existe mais. "Quando se encontram eles não passam de um: é só quando separados que são dois .... Como afirmar que ele é um objeto diferente de nós mesmos, mesmo que não o víssemos como diferente, mas unido a nós quando o contemplávamos?"[14] O que é descartado na via negativa de Plotino é a multiplicidade, e chegamos à unidade perfeita que está além do ser - já que o ser está ligado à multiplicidade e é subsequente ao Uno.


O êxtase de Dionísio é uma saída do ser como tal. O de Plotino é antes uma redução do ser à simplicidade absoluta. É por isso que Plotino descreve seu êxtase por um nome que é muito característico: o da "simplificação" (ἅπλωσις). Trata-se de uma reintegração na simplicidade do objeto de contemplação que pode ser definido positivamente como o Uno e que, nessa capacidade, não se distingue do sujeito contemplativo. Apesar de todas as semelhanças exteriores (devido principalmente a um vocabulário comum), estamos muito longe da teologia negativa da Areopagitica. O Deus de Dionísio, incompreensível por natureza, o Deus dos Salmos: "que fez das trevas seu lugar secreto", não é a unidade de Deus primordial dos neoplatonistas. Se Ele é incompreensível, não é por causa de uma simplicidade que não pode chegar a um acordo com a multiplicidade com a qual todo conhecimento relativo a criaturas está contaminado. É, por assim dizer, uma incompreensibilidade que é mais radical, mais absoluta. De fato, Deus não seria mais incompreensível por natureza se essa incompreensibilidade fosse, como em Plotino, enraizada na simplicidade do Uno. Ora, é precisamente a qualidade de incompreensibilidade que, em Dionísio, é a única definição própria de Deus - se podemos falar aqui de definições próprias. Em sua recusa em atribuir a Deus as propriedades que compõem a matéria da teologia afirmativa, Dionísio está apontando expressamente para as definições neoplatônicas: "Ele não é nem Um, nem Unidade" (οὐδὲ ἑν, οὐδὲ ἑνότης ) .[15] Em seu tratado Sobre os Nomes Divinos, ao examinar o nome do Uno, que pode ser aplicado a Deus, ele mostra sua insuficiência e compara com outro nome "mais sublime" - o da Trindade, que nos ensina que Deus não nem um nem muitos mas que Ele transcende essa antinomia, sendo incognoscível no que Ele é. [16]


Se o Deus da revelação não é o Deus dos filósofos, é esse reconhecimento de Sua incognoscibilidade fundamental que marca a fronteira entre as duas concepções. Tudo o que pode ser dito em relação ao platonismo dos Padres, e especialmente em relação à dependência do autor da Areopagitica sobre os filósofos neoplatonistas, limita-se às semelhanças externas que não vão à raiz de seus ensinamentos, e se relacionam apenas com um vocabulário que era comum à época. Para um filósofo da tradição platonista, embora ele fale da união extática como o único caminho pelo qual alcançar Deus, a natureza divina é, não obstante, um objeto, algo que pode ser explicitamente definido – o ἑν -, uma natureza cuja incógnita reside acima de tudo no fato da fraqueza de nossa compreensão, inseparável como é da multiplicidade. Como acabamos de dizer, essa união extática será uma redução à simplicidade, e não uma saída do reino dos seres criados, como em Dionísio. Pois fora da revelação nada se sabe sobre a diferença entre o criado e o incriado, da criação ex nihilo, do abismo que deve ser cruzado entre a criatura e o Criador.  As doutrinas heterodoxas com as quais Orígenes foi acusado tinham sua raiz em certa insensibilidade diante da incognoscibilidade de Deus por parte deste grande pensador cristão. Uma atitude que não era fundamentalmente apofática, fazia do professor alexandrino um filósofo religioso e não um teólogo místico, no sentido próprio da tradição oriental. Para Orígenes, de fato, Deus é "uma natureza simples e intelectual que não admite nenhuma complexidade em si mesma... Ele é Mônada (μονάς) e Unidade (ἑνάς) e Espírito; a fonte e a origem de toda natureza intelectual e espiritual."[17] É interessante notar que Orígenes era igualmente insensível à criação ex nihilo: um Deus que não é o Deus absconditus da Escritura não presta-se facilmente às verdades da revelação. Com Orígenes, o helenismo tenta infiltrar-se na Igreja. Essa concepção vinda de fora tem sua origem na natureza humana, nos modos de pensamento próprios dos homens - "aos gregos e aos judeus". Esta não é a tradição na qual Deus se revela e fala à Igreja. É por essa razão que a Igreja teve que lutar contra o "origenismo", como sempre lutou contra doutrinas que, ao atacar a incompreensibilidade divina, substituíram a experiência das profundezas insondáveis de Deus por conceitos filosóficos.


É a base apofática de toda verdadeira teologia que os grandes Capadócios estavam defendendo em sua controvérsia com Eunômio. Este último manteve a possibilidade de expressar a essência divina naqueles conceitos inatos pelos quais se revela à razão. Para São Basílio, não só a essência divina, mas também as essências criadas não poderiam ser expressas em conceitos. Ao contemplar qualquer objeto, analisamos suas propriedades: é isso que nos permite formar conceitos. Mas esta análise não pode em caso algum exaurir o conteúdo do objeto de percepção. Haverá sempre um "resíduo irracional" que escapa à análise e que não pode ser expresso em conceitos; é a incognoscível profundidade das coisas, aquilo que constitui sua essência verdadeira e indefinível. Em relação aos nomes que aplicamos a Deus, estes revelam suas energias que descem em nossa direção, mas não nos aproximam de sua essência, que é inacessível.[18] Para São Gregório de Nissa, todo conceito relativo a Deus é um simulacro, um falsa semelhança, um ídolo. Os conceitos que formamos de acordo com o entendimento e o julgamento que são naturais para nós, baseando-nos em uma representação inteligível, criam ídolos de Deus em vez de nos revelar o próprio Deus.[19] Há apenas um nome pelo qual a natureza divina pode ser expressa: a maravilha que se apodera da alma quando ela pensa em Deus.[20] São Gregório Nazianzeno, citando Platão sem nomeá-lo ("um dos gregos divinos"), corrige uma passagem do Timeu sobre a dificuldade de conhecer a Deus e a impossibilidade de expressar sua natureza, da seguinte maneira: "É difícil conceber Deus, mas defini-lo em palavras, é impossível.” [21] Esse rearranjo de uma frase de Platão por um autor cristão que muitas vezes é considerado um platonizador, demonstra por si mesmo até que ponto o pensamento dos Padres é aquele dos filósofos.


O apofatismo, como uma atitude religiosa em relação à incompreensibilidade de Deus, não pertence exclusivamente ao Areopagitica, mas é encontrado na maioria dos Padres. Clemente de Alexandria, por exemplo, diz no Stromata que podemos alcançar a Deus não naquilo que Ele é, mas naquilo que Ele não é.[22] A própria consciência da inacessibilidade do "Deus desconhecido" não pode, segundo ele, ser adquirida exceto pela graça: "por essa sabedoria dada por Deus que é o poder do Pai". [23] Essa consciência da incompreensibilidade da natureza divina corresponde, assim, a uma experiência: a um encontro com o Deus pessoal da revelação. No poder dessa graça, Moisés e São Paulo experimentaram a impossibilidade de conhecer a Deus: o primeiro, quando penetrava nas trevas da inacessibilidade; o último, quando ouvia as palavras que transmitiam a inefabilidade divina.[24] O tema de Moisés se aproximando de Deus nas trevas do Sinai - um tema que já encontramos em Dionísio e que foi adotado em primeiro lugar por Filo de Alexandria como uma imagem de êxtase, é o símbolo favorito dos Padres para transmitir a experiência da incompreensibilidade da natureza divina. São Gregório de Nissa dedica um tratado especial à Vida de Moisés, [25] no qual a ascensão do Monte Sinai em direção às trevas da incompreensibilidade representa o caminho da contemplação, superior ao primeiro encontro de Moisés com Deus quando Ele apareceu a ele na sarça ardente. Então Moisés viu a Deus em luz; agora ele entra na escuridão, deixando para trás tudo o que pode ser visto ou conhecido; resta a ele apenas o invisível e incognoscível, mas nesta escuridão está Deus.[26] Pois Deus faz Sua morada ali onde nosso entendimento e nossos conceitos não podem ser admitidos. Nossa ascensão espiritual nos revela, cada vez mais claramente, a incompreensibilidade absoluta da natureza divina. Preenchida de um desejo sempre crescente, a alma cresce sem cessar, sai de si mesma, estende-se além de si mesma e, ao fazê-lo, é cheia de um desejo ainda maior. Assim a ascensão se torna infinita, o desejo insaciável. Este é o amor da noiva no Cântico dos Cânticos: ela estende as mãos em direção à fechadura, ela busca Aquele que não pode ser agarrado, ela o chama a quem ela não pode alcançar ... ela alcança a Ele na percepção de que a união é sem fim, a subida sem limite.[27]


São Gregório Nazianzeno retoma as mesmas imagens, especialmente a de Moisés. "Eu avançava", diz ele, "para conhecer Deus. É por isso que me afastei da matéria e de tudo o que é corporal, eu me recolhi o quanto pude para dentro de mim mesmo e subi em direção ao cume da montanha. Mas, ao abrir os olhos, mal pude ver o que estava atrás, mesmo estando coberto pela rocha, quer dizer, pela humanidade do Verbo encarnado para nossa salvação. Não fui capaz de contemplar a natureza primeira e toda pura que não é conhecida a não ser por si mesma, ou seja, a Santíssima Trindade. Porque não posso contemplar aquilo que se encontra detrás do primeiro véu, oculto pelos querubins, mas somente aquilo que desce em nossa direção, a magnificência divina que se torna visível nas criaturas." [28] Quanto à essência divina em si mesma, é “o Santo dos Santos que permanece oculto mesmo dos Serafins".[29] A natureza divina é como um mar de essência, indeterminado e sem limites, que se espalha muito além de toda noção de tempo ou de natureza. Se a mente tenta formar uma débil imagem de Deus, considerando-O não em Si mesmo, mas naquilo que o circunda, essa imagem lhe escapa antes mesmo de tentar apreendê-la, iluminando as faculdades superiores como um relâmpago que ofusca os olhos. [30] São João Damasceno se expressa da mesma maneira: "Deus, então, é infinito e incompreensível, e tudo o que é compreensível sobre Ele é Sua infinitude e incompreensibilidade. Tudo o que podemos dizer catafaticamente a respeito de Deus não mostra a Sua natureza, mas as coisas que se relacionam com a Sua natureza (τὰ πєρ τὴν ϕύσιν)…. Deus não pertence à classe das coisas existentes: não que Ele não tenha existência, mas que Ele está acima de todas as coisas existentes, até mesmo acima da própria existência. Pois, se todas as formas de conhecimento têm a ver com o que existe, seguramente, aquilo que está acima do conhecimento certamente também deve estar acima da essência; e, inversamente, aquilo que está acima da essência também estará acima do conhecimento." [31]


Seria possível continuar indefinidamente encontrando exemplos de apofatismo na teologia da tradição oriental. Nós nos limitaremos a citar uma passagem de um grande teólogo bizantino do século XIV, São Gregório Palamas: “A natureza super-essencial de Deus não é um assunto para fala ou pensamento ou mesmo contemplação, pois está muito distante de todas as coisas que existe e mais do que incognoscível, sendo fundado sobre o poder não circunscrito dos espíritos celestiais - incompreensível e inefável a todos para sempre. Não há nome pelo qual possa ser nomeada, nem nesta era nem na era por vir, nem na palavra encontrada na alma e proferida pela língua, nem no contato sensível ou intelectual, nem ainda em qualquer imagem que possa proporcionar qualquer conhecimento sobre ela, se não for aquela perfeita incompreensibilidade que se professa ao negar tudo o que pode ser nomeado. Ninguém pode nomear corretamente sua essência ou natureza, se está realmente buscando a verdade que está acima de toda a verdade.''[32] "Pois, se Deus é a natureza, então tudo o mais não é natureza. Se aquilo que não é Deus é natureza, Deus não é natureza e, do mesmo modo, Ele não é, se ou outros seres são. " [33]


Frente a frente com esse apofatismo radical, característico da tradição teológica do Oriente, podemos perguntar se corresponde ou não a uma abordagem extática: se existe uma busca de êxtase sempre que o conhecimento de Deus é buscado por meio de negações. Essa teologia negativa é necessariamente uma teologia do êxtase ou é suscetível de uma interpretação mais geral? Vimos, ao examinar a Teologia Mística de Dionísio, que o caminho apofático não é meramente uma busca intelectual, que é algo mais que um jogo de abstrações. Como nos platonistas extáticos, com também em Plotino, trata-se de uma κάθαρσις: de uma purificação interior. Há, no entanto, essa diferença: a purificação platônica é, acima de tudo, de natureza intelectual, destinada a libertar a compreensão da multiplicidade inseparável do ser. Para Dionísio, por outro lado, é uma recusa em aceitar o ser como tal, na medida em que oculta o não-ser divino: é uma renúncia ao domínio das coisas criadas a fim de obter acesso àquele do incriado; uma libertação mais existencial envolvendo todo o ser daquele que quer conhecer a Deus. Em ambos os casos, é uma questão de união. A união com o ἑν (Uno) de Plotino pode significar, de fato, uma percepção da união primordial e ontológica do homem com Deus: em Dionísio, a união mística é uma nova condição que implica um progresso, uma série de mudanças, uma transição do criado para o incriado, a aquisição de algo que não é até então possuído pela natureza. De fato, ele não só sai de si mesmo (pois isso também acontece em Plotino), mas ele pertence completamente ao Incognoscível, sendo deificado nesta união com o incriado. Aqui união significa deificação. Ao mesmo tempo, enquanto intimamente unido a Deus, ele O conhece apenas como Incognoscível, em outras palavras, como infinitamente separado por Sua natureza, permanecendo, mesmo na união, inacessível naquilo que Ele é em Seu ser essencial. Embora Dionísio fale de êxtase e união, embora sua teologia negativa, longe de ser um exercício puramente intelectual, envolva uma experiência mística, uma ascensão para Deus; ele deixa claro que, apesar de atingirmos os picos mais altos acessíveis aos seres criados, a única noção racional que podemos ter de Deus ainda será a da incompreensibilidade Dele. Consequentemente, a teologia deve ser menos  uma busca de noções positivas sobre o ser divino do que  uma experiência que supera todo entendimento. "Falar de Deus é algo bom, mas ainda melhor é se purificar para Deus", diz São Gregório Nazianzeno. [34] O apofatismo não é necessariamente uma teologia do êxtase. É, acima de tudo, uma atitude mental que se recusa a formar conceitos sobre Deus. Tal atitude exclui totalmente toda a teologia abstrata e puramente intelectual que gostaria de adaptar os mistérios da sabedoria de Deus aos modos de pensar humanos. É uma atitude existencial que envolve todo o homem: não há teologia à parte da experiência; é necessário mudar, tornar-se um novo homem. Para conhecer a Deus, é preciso aproximar-se Dele. Ninguém que não siga o caminho da união com Deus pode ser um teólogo. O caminho do conhecimento de Deus é necessariamente o caminho da deificação. Aquele que, seguindo este caminho, imagina, num dado momento, que ele sabe o que é Deus, esse tem um espírito depravado, de acordo com São Gregório Nazianzeno. [35] O apofatismo é, portanto, um critério: o sinal seguro de uma atitude mental conformada à verdade. Nesse sentido, toda verdadeira teologia é fundamentalmente apofática.


Será naturalmente perguntado qual é a função da teologia "catafática" ou afirmativa, a teologia dos "nomes divinos" que encontramos manifestada na ordem da criação. Ao contrário da via negativa, que é uma ascensão em direção à união, esta é uma via que desce até nós: uma escada de "teofanias" ou manifestações de Deus na criação. Pode até ser dito que é uma e a mesma via que pode ser seguida em duas direções diferentes: Deus condescende em direção a nós nas "energias" nas quais Ele é manifestado; nós nos aproximamos dEle nas "uniões" nas quais Ele permanece incompreensível por natureza. A "suprema teofania", a perfeita manifestação de Deus no mundo pela encarnação do Verbo, conserva para nós seu caráter apofático. "Na humanidade de Cristo", diz Dionísio, "o supra-essencial manifestou-se na substância humana, sem deixar de se esconder depois dessa manifestação, ou para me expressar segundo uma maneira mais celestial, nessa própria manifestação". [36] "As afirmações de que a humanidade sagrada de Jesus Cristo é o objeto têm toda a força das negações mais formais." [37] Tanto mais as teofanias parciais de grau inferior escondem Deus naquilo que Ele é, enquanto O manifesta naquilo que Ele não é por natureza. A escada da teologia catafática, que revela os nomes divinos extraídos, acima de tudo, da Sagrada Escritura, é uma série de passos que a alma pode subir para a contemplação. Essas não são as noções racionais que formulamos, os conceitos com os quais nosso intelecto constrói uma ciência positiva da natureza divina; elas são, antes, imagens ou idéias destinadas a nos guiar e se adequar às nossas faculdades para a contemplação daquilo que transcende todo o entendimento. [38] Especialmente nos níveis inferiores, essas imagens são formadas a partir dos objetos materiais menos propensos a desencaminhar as mentes não treinadas na contemplação. De fato, é mais difícil confundir Deus com pedra ou fogo do que ser identificado com inteligência, unidade, essência ou bondade. [39] O que parecia evidente no início da ascensão - "Deus não é pedra, Ele não é fogo" - é menos e menos ainda quando atingimos as alturas da contemplação, impulsionadas pelo mesmo espírito apofático que agora nos leva a dizer: 'Deus não é ser, Ele não é o bem'. A cada passo dessa ascensão, à medida que alguém se depara com imagens ou idéias mais elevadas, é necessário evitar fazer delas um conceito, "um ídolo de Deus". Então pode-se contemplar a própria beleza divina: Deus, na medida em que Ele se manifesta na criação. A especulação gradualmente dá lugar à contemplação, conhecimento à experiência; pois, ao rejeitar os conceitos que prendem o espírito, a disposição apofática revela horizontes ilimitados de contemplação em cada passo da teologia positiva. Assim, há diferentes níveis na teologia, cada um apropriado às diferentes capacidades dos entendimentos humanos que alcançam os mistérios de Deus. Neste contexto, São Gregório Nazianzeno retoma a imagem de Moisés no Monte Sinai: "Deus ordena que eu entre na nuvem e converse com Ele; se algum for Arão, suba comigo, e fique perto, estando pronto, se for assim, para ficar fora da nuvem. Mas se algum for um Nadabe ou um Abiú, ou da ordem dos anciãos, suba de fato, mas que fique de longe… Mas se alguém for da multidão, indigno dessa altura de contemplação, se ele for completamente impuro, que ele não se aproxime, pois seria perigoso para ele; mas se ele for pelo menos temporariamente purificado, que ele permaneça abaixo e ouça a voz apenas, e a trombeta, as palavras nuas de piedade, e que ele veja a montanha fumegando e iluminando… Mas se existe uma besta maligna e feroz, quero dizer aos homens incapazes de especulação e de teologia que não ataquem os dogmas com fúria… que se afastem o máximo possível da montanha, ou serão apedrejados.’[40]


Este não é um ensinamento mais perfeito ou esotérico escondido do profano; nem é uma separação gnóstica entre aqueles que são espirituais, psíquicos ou carnais, mas uma escola de contemplação na qual cada um recebe sua parte na experiência do mistério cristão vivido pela Igreja. Esta contemplação dos tesouros ocultos da Sabedoria divina pode ser praticada em graus variados, com maior ou menor intensidade: seja uma ascensão do espírito em direção a Deus, distanciando-se das criaturas, o que permite que Seu esplendor se torne visível; seja uma meditação sobre as Sagradas Escrituras em que Deus se esconde, como se estivesse atrás de uma tela, sob as palavras que expressam a revelação (Gregório de Nissa); seja através dos dogmas da Igreja ou através de sua vida litúrgica; seja, finalmente, através do êxtase que penetramos no mistério divino, esta experiência de Deus será sempre o fruto dessa atitude apofática que Dionísio nos recomenda em sua Teologia Mística.


Tudo o que dissemos sobre o apofatismo pode ser resumido em poucas palavras. A teologia negativa não é meramente uma teoria do êxtase. É uma expressão dessa atitude fundamental que transforma a totalidade da teologia em uma contemplação dos mistérios da revelação. Não é um ramo da teologia, um capítulo ou uma introdução inevitável sobre a incompreensibilidade de Deus, da qual se passa tranquilamente a uma exposição doutrinária na terminologia usual da razão e da filosofia humanas em geral. O apofatismo nos ensina a ver, acima de tudo, um significado negativo nos dogmas da Igreja: proíbe-nos seguir os modos naturais de pensar e formar conceitos que usurpam o lugar das realidades espirituais. Pois o cristianismo não é uma escola filosófica para especular sobre conceitos abstratos, mas é essencialmente uma comunhão com o Deus vivo. É por isso que, apesar de toda a sua aprendizagem filosófica e inclinação natural à especulação, os Padres da tradição oriental, permanecendo fiéis ao princípio apofático da teologia, nunca permitiram que seu pensamento cruzasse o limiar do mistério, ou substituísse os ídolos de Deus por Deus mesmo. É também por isso que não há filosofia mais ou menos cristã. Platão não é mais cristão que Aristóteles. A questão das relações entre teologia e filosofia nunca surgiu no Oriente. A atitude apofática deu aos Padres da Igreja aquela liberdade e liberalidade com a qual empregaram termos filosóficos sem correr o risco de serem mal interpretados ou de cair em uma "teologia de conceitos". Sempre que a teologia é transformada numa filosofia religiosa (como no caso de Orígenes), é sempre o resultado do abandono do apofatismo que é verdadeiramente característico de toda a tradição da Igreja Oriental.


Incognoscibilidade não significa agnosticismo ou recusa em conhecer a Deus. No entanto, esse conhecimento só será alcançado no caminho que leva não ao conhecimento, mas à união - à deificação. Assim, a teologia nunca será abstrata, operando através de conceitos, mas contemplativa: elevando a mente àquelas realidades que ultrapassam todo entendimento. É por isso que os dogmas da Igreja freqüentemente se apresentam à razão humana como antinomias, tanto  mais difíceis  de resolver quanto mais sublime é o mistério que expressam. Não se trata de suprimir a antinomia adaptando o dogma à nossa compreensão, mas de uma mudança de coração e mente que nos permita alcançar a contemplação da realidade que se revela a nós quando nos eleva a Deus e nos une, de acordo com nossas diversas capacidades, a Ele.


O ponto mais alto da revelação, o dogma da Santíssima Trindade, é eminentemente uma antinomia. Para alcançar a contemplação dessa realidade primordial em toda a sua plenitude, é necessário alcançar o objetivo que ela colocou diante de nós: atingir o estado de deificação; pois, nas palavras de São Gregório Nazianzeno, "serão herdeiros da luz perfeita e da contemplação da Santíssima e Soberana Trindade aqueles que se unirem totalmente ao Espírito total, e assim será, segundo acredito, o Reino Celeste”. A via apofática não leva a uma ausência, a um vazio absoluto; pois o incognoscível Deus do cristão não é o Deus impessoal dos filósofos. É para a Santíssima Trindade, "superessencial, mais que divino e mais que bom" [42] que o autor da Teologia Mística se recomenda ao entrar no caminho que o levará a uma presença e uma plenitude sem medida.




NOTAS
1 Scholia ou comentários sobre o Corpus Dionysiacum que estão sob o nome de São Máximo são, em grande parte, obra de João de Cipótolis (fl. 530-40) cujas notas foram confundidas com as de Máximo por copistas bizantinos. O texto da Scholia apresenta uma estrutura em que é praticamente impossível desvendar a parte que pertence ao próprio São Máximo. Veja sobre este assunto as pesquisas de S. Epiphanovitch, Materiais para o estudo da vida e obra de São Máximo o Confessor, Kiev, 1917 (em russo); e um artigo do pe. von Balthasar intitulado "Das Scholienwerk des Johannes von Scythopolis", em Scholastik, XV (1940), pp. 16-38.

2 Assim, para H. Koch, os escritos areopagíticos foram obra de um falsificador do final do século V, "Pseudo-Dionysius Areopagita in seinen Beziehungen zum Neoplatonismus und Mysterienwesen" (Forsch. zu christl. Litter. und Dogmengeschichte 86, I, 1 and 2, Mainz, 1900). A mesma data é aceita por Bardenhewer (Les Pères de l'Eglise; Paris, 1905). Pe. Stiglmayr identificaria o Pseudo-Dionísio com Severus de Antioquia, um monofisita do século VI, "Der sogennante Dionysius areopagita und Severus von Antiochen" (Scholastik III, 1928). Ao criticar esta tese, M. Robert Devreesse transporta a data da composição dos escritos de Dionísio para um período antes do ano 440, "Denys 1'Aréopagite et Sévère d'Antioche" (Archives d’histoire doctrinale et littéraire du moyen age, IV 1930). M. H.-Ch. Puech reivindicou a atribuição dos escritos a uma data no final do quinto século, Liberatus de Carthage et la data d'apparition des écrits dionysiens (Annuaire de l'École des Hautes Etudes, 1930-1931). Para Monsenhor Atenágoras, Dionísio foi um discípulo de Clemente de Alexandria. Ele identifica-o com Dionísio, o Grande, bispo de Alexandria (meados do século III),  γνήσιος συγγραφεὺς τῶν εἰς Διονύσιον τὸν Ὰρεοπαγίτην ἀποδιδομένων συγγραμμάτων, Athènes, 1932 ; Διονύσιον ὁ μέγας, ὲπίσκοπος Ὰλεξανδρείας, ὁ συγγραφεὺς τῶν ἀρεοπαγιτικῶν σηγγραμμάτων, Alexandrie, 1934. Finalmente, pe. Ceslas Pera, em seu artigo 'Denys le Mystique et la θεομαχαα' (Revue des sciences philosophiques et théologiques, XXV, 1936), detecta a influência do pensamento capadócio nos escritos dionisíacos, e procura atribuí-los a um discípulo desconhecido de São Basílio.
3 Heb. ii, 6.

4 Ep. I., Migne P.G., III, 1065.

5 Quaestiones disputatae, VII, 5.

6 A ‘Teologia Mística’ é publicada na Migne III, 997–1048. Há uma versão em ingles por C. E. Rolt (S.P.C.K. translations of Christian Literature, London, 1920), e uma versão em francês mais recente por  M. de Gandillac, Oeuvres complètes du pseudo-Denys l’Aréopagite, Aubier, 1943.

7 ‘Mystical Theology’, I, 3, P.G., III, 1000.

8 Ibid. 1000–1001.

9 Ibid., 1048 B.

10 Enn., VI, ix, 3.

11 Ibid.

12 Ibid. 

13 Enn., VI, ix, 4.

14 Enn., VI, ix, 10.

15 P.G., III, 1048 A.

16 Of the Divine Names, XIII, 3; P.G., III, 981 A.

17 ‘П ρί ἀρχ ν’, P.G. XI, 125 A.

18 ‘Adversus Eunomium’, I, i, c. 6, P.G., XXIX, 521–4; I. ii. c. 4. 570–80; I. ii. c., 648 ‘Ad Amphilochium, Epist. 234’, P.G., XXXII, 869 A C. Cf. Gregory of Nyssa, ‘Con. Eunom’, X, P.G., XLV, 828.

19 ‘De Vita Moysis’, P.G., XLIV, 377 B., new edition by J. Daniélou, S.J., Series Sources chrétiennes (Paris, 1955), p. 82. ‘Con. Eunom.’, III, P.G., XLV, 604 B-D; XII, ibid., 944 C.

20 ‘In Cantica Canticorum. Homil.’, XII, P.G., XLIV, 1028 D.

21 Oratio XXVIII (theol. II) 4, P.G., XXXVI, 29–32. Ed. A. J. Mason (The Five Theological Orations of Gregory of Nazianzus), Cambridge, 1899, p. 26.

22 ‘Stromata’, V, 2; P.G., IX, 109 A.

23 Ibid., V, 13, 124 B–125 A.

24 Ibid., V, 12, 116–124.

25 P.G., XLIV, 297–430. Ed. J. Daniélou, Sources Chrétiennes, 1bis.

26 Veja o artigo por M. Henri-Charles Puech, ‘La ténèbre mystique chez le pseudo-Denys l’Aréopagite et dans la tradition patristique,’ in Etudes Carmélitaines, Oct. 1938, pp. 33–53.

27 ‘In Cant. Canticorum’, P.G., XLIV, 755–1120.

28 ‘Oratio XXVIII (theologica II)’, 3, P.G., XXXVI, 29 AB.

29 ‘Oratio XXXVII, In Theophaniam’, 8, ibid., 320 BC. Cf. ‘Or. XLV, In sanct. Pascha’, 4, ibid., 628D–629 A.

30 ‘Oratio XXXVIII’, 7, ibid., 317 BC; ‘Oratio XLV’, 3, 625–628 A.

31 ‘De fide orthodoxa’, I, 4, P.G., XCIV, 800 BA.

32 ‘Theophanes’, P.G., CL, 937 A.

33 ‘Capita 150 physica, theologica, moralia et practica, cap. 78’, P.G., CL, 1176 B.

34 ‘Oratio XXXII, 12, P.G., XXXVI, 188 C.

35 ‘Carmina moralia. X: П ρί ἀρ τ ’, P.G., XXXVII, 748.

36 ‘Epist. III’, P.G., III, 1069 B.

37 ‘Epist. IV’, ibid., 1072 B.

38 Gregory of Nyssa, ‘Con. Eunom.’, P.G., XLV, 939–41.

39 ‘De Coel. hier., II, 3–5’, ibid., 140–5.

40 ‘Oratio XXVIII (theologica II), 2’; P.G., XXXVI, 28 AC.

41 ‘Oratio XVI’, P.G., XXXV, 945 C.

42 ‘Myst. Theology, I, 1’, P.G., III, 997.



quarta-feira, 28 de março de 2018

Teologia e Misticismo na Tradição da Igreja Oriental (Vladimir Lossky)



Índice
1. Introdução: Teologia e Misticismo na Tradição da Igreja Oriental
2. As Trevas Divinas
3. Deus na Trindade
4. Energias Incriadas
5. Ser Criado
6. Imagem e Semelhança
7. A Economia do Filho
8. A Economia do Espírito Santo
9. Dois Aspectos da Igreja
10. O Caminho da União
11. A Luz Divina
12. Conclusão: A Festa do Reino

Introdução: Teologia e Misticismo na Tradição da Igreja Oriental

É nossa intenção, no seguinte ensaio, estudar certos aspectos da espiritualidade oriental em relação aos temas fundamentais da tradição dogmática ortodoxa. No presente trabalho, portanto, o termo "teologia mística" não significa mais que uma espiritualidade que expressa uma atitude doutrinária.

Em certo sentido, toda a teologia é mística, na medida em que manifesta o mistério divino: os dados da revelação. Por outro lado, o misticismo é freqüentemente colocado em oposição à teologia como um reino inacessível ao entendimento, como um mistério inexprimível, uma profundidade oculta, a ser vivido ao invés de conhecido; cedendo a uma experiência específica que ultrapassa nossas faculdades de compreensão e não a qualquer percepção sensorial ou da inteligência. Se adotássemos esta última concepção de forma incondicionalmente, resolutamente opondo o misticismo à teologia, seríamos levados em última instância à tese de Bergson que distingue, em sua obra Deux Sources, a "religião estática" das Igrejas da "religião dinâmica" dos místicos; a primeira de caráter social e conservador, e a última de caráter pessoal e criativo.

Até que ponto a afirmação de Bergson é justificável? Esta é uma pergunta difícil, ainda mais porque os dois termos que Bergson contrapõe no plano religioso estão enraizados nos dois pólos de sua visão filosófica do universo: a natureza e o élan vital. Para além desta atitude de Bergson, no entanto, muitas vezes se ouve expressar a perspectiva que enxergaria no misticismo um reino reservado para poucos, uma exceção à regra comum, um privilégio concedido a algumas almas que desfrutam da experiência direta da verdade, os outros, entretanto, precisam se contentar com uma submissão mais ou menos cega aos dogmas impostos desde fora, em relação a uma autoridade coercitiva. Essa oposição às vezes é levada a grandes proporções, especialmente se a realidade histórica for forçada a um padrão preconcebido. Assim, os místicos são colocados contra os teólogos, os contemplativos contra os prelados, os santos contra a Igreja. Basta lembrar para muitos uma passagem de Harnack, na vida de São Francisco de Paulo Sabatier e outras obras, mais freqüentemente escritas por historiadores protestantes.

A tradição oriental nunca fez uma nítida distinção entre misticismo e teologia; entre a experiência pessoal dos mistérios divinos e o dogma afirmado pela Igreja. As seguintes palavras ditas há um século por um grande teólogo ortodoxo, o Metropolita Filareto de Moscou, expressam perfeitamente esta atitude: "nenhum dos mistérios da sabedoria mais secreta de Deus deve parecer estranha ou completamente transcendente para nós, mas com toda a humildade, devemos submeter o nosso espírito à contemplação das coisas divinas”. [1] Em outras palavras, devemos viver o dogma que expressa uma verdade revelada, que nos aparece como um mistério insondável, de tal forma que, ao invés de assimilar o mistério ao nosso modo de entendimento, devemos, ao contrário, buscar por uma mudança profunda, uma transformação interior do espírito, permitindo experimentá-lo de forma mística. Longe de ser mutuamente opostos, a teologia e o misticismo se apóiam e se complementam. Um é impossível sem o outro. Se a experiência mística é um trabalho pessoal a partir do conteúdo da fé comum, a teologia é uma expressão, para o proveito de todos, daquilo que pode ser experimentado por todos. Fora da verdade mantida por toda a experiência pessoal da Igreja, o misticismo seria privado de toda certeza, de toda objetividade. Seria uma mistura da verdade e da falsidade, da realidade e da ilusão: "misticismo" no mau sentido da palavra. Por outro lado, o ensinamento da Igreja não poderia manter as almas se não expressasse, em certo grau, uma experiência interior de verdade, concedida em diferentes medidas a cada um dos fiéis. Não existe, portanto, nenhum misticismo cristão sem teologia; mas, acima de tudo, não há teologia sem misticismo. Não é por acaso que a tradição da Igreja Oriental tenha reservado o nome de "teólogo" peculiarmente para três santos escritores dos quais o primeiro é São João, o mais "místico" dos quatro Evangelistas; o segundo São Gregório Nazianzeno, escritor de poesia contemplativa; e o terceiro São Simeão, chamado "o Novo Teólogo", o cantor da união com Deus. O misticismo é, portanto, tratado no presente trabalho como o aperfeiçoamento e a coroa de toda a teologia: como teologia por excelência.

Ao contrário do gnosticismo, [2] onde o conhecimento por si próprio constitui o objetivo do gnóstico, a teologia cristã sempre é, em última instância, um meio: uma unidade de conhecimento que facilita um fim que transcende todo o conhecimento. Este fim último é a união com Deus ou deificação, a Θεώσις dos Padres Gregos. Assim, somos por fim levados a uma conclusão que pode parecer bastante paradoxal: a teoria cristã deve ter um significado eminentemente prático; e quanto mais mística é, mais diretamente ela aspira ao fim supremo da união com Deus. Todo o desenvolvimento das disputas dogmáticas que a Igreja atravessou ao longo dos séculos parece-nos, se o considerarmos do ponto de vista puramente espiritual, dominado pela constante preocupação que a Igreja teve de salvaguardar, em cada momento de sua história, para todos os cristãos, a possibilidade de alcançar a plenitude da união mística. Assim, a Igreja lutou contra os gnósticos em defesa desta mesma ideia de deificação como o fim universal: "Deus tornou-se homem para que os homens se tornassem deuses". Ela afirmou, contra os Arianos, o dogma da Trindade consubstancial; pois é o Verbo, o Logos, que nos abre o caminho para a união com a Divindade; e se o Verbo encarnado não tem a mesma substância com o Pai, se Ele não é verdadeiramente Deus, então nossa deificação é impossível. A Igreja condenou os nestorianos para que derrubasse o muro da divisão, através do qual, na pessoa do próprio Cristo, eles teriam separado Deus do homem. Ela se ergueu contra os Apolinarianos e os Monofisitas para mostrar que, uma vez que a plenitude da verdadeira natureza humana foi assumida pelo Verbo, é toda a nossa humanidade que deve entrar em união com Deus. Ela lutou contra os Monotelitas porque, fora da união das duas vontades, divina e humana, não poderia haver a possibilidade de deificação: "Deus criou o homem por sua vontade apenas, mas Ele não pode salvá-lo sem a cooperação da vontade humana". A Igreja emergiu triunfante da controvérsia iconoclasta, afirmando a possibilidade da expressão através de um meio material das realidades divinas - símbolo e garantia de nossa santificação. A principal preocupação, a questão em jogo, nas questões que sucessivamente se originam sobre o Espírito Santo, a graça e a própria Igreja - esta última, a questão dogmática do nosso tempo - é sempre a possibilidade, a maneira ou o meio de nossa união Com Deus. Toda a história do dogma cristão se desenvolve sobre este centro místico, guardado por diferentes armas contra seus numerosos e diversos inimigos no curso das eras sucessivas.

As doutrinas teológicas que foram elaboradas no decorrer dessas disputas podem ser tratadas na mais direta relação com o fim vital - a união com Deus - para a realização da qual são subservientes. Assim, elas aparecem como os fundamentos da espiritualidade cristã. É isto que devemos entender ao falar de "teologia mística"; não o misticismo propriamente dito, as experiências pessoais de diferentes mestres da vida espiritual. Tais experiências, por outro lado, muitas vezes permanecem inacessíveis para nós: mesmo que possam encontrar expressão verbal. O que, na realidade, pode-se dizer da experiência mística de São Paulo: Conheço um homem em Cristo que há catorze anos (se no corpo, não sei, se fora do corpo, não sei; Deus o sabe) foi arrebatado ao terceiro céu. E sei que o tal homem (se no corpo, se fora do corpo, não sei; Deus o sabe) foi arrebatado ao paraíso; e ouviu palavras inefáveis, que ao homem não é lícito falar. Para atrever-se em julgar a natureza dessa experiência, seria necessário compreendê-la mais plenamente do que o de São Paulo, que confessa a sua ignorância: “não sei; Deus o sabe”. Nós deliberadamente deixamos de lado toda questão de psicologia mística.  Tampouco são doutrinas teológicas que propomos estabelecer no presente trabalho, mas apenas elementos da teologia indispensáveis à compreensão de uma espiritualidade: os dogmas que constituem o fundamento do misticismo. Aqui, portanto, está a primeira definição e limitação do nosso assunto, que é a teologia mística da Igreja Oriental.

A segunda limitação circunscreve nosso assunto, por assim dizer, no espaço. Trata-se do Oriente cristão ou, mais precisamente, da Igreja Ortodoxa Oriental, que formará a área de nossos estudos sobre a teologia mística. Devemos reconhecer que essa limitação é um pouco artificial. Na realidade, uma vez que a divisão entre o Oriente e o Ocidente apenas data de meados do século XI, tudo o que é anterior a esta data constitui um tesouro comum e indivisível para ambas as partes de uma cristandade dividida. A Igreja Ortodoxa não seria o que é se não houvesse São Cipriano, Santo Agostinho e São Gregório Magno. Da mesma forma, a Igreja Católica Romana não seria o que é sem São Atanásio, São Basílio ou São Cirilo de Alexandria. Assim, quando se fala da teologia mística do Oriente ou do Ocidente, posiciona-se dentro de uma das duas tradições que permaneceram, até certo momento, duas tradições locais dentro de uma única Igreja, testemunhando uma única verdade cristã; mas que subseqüentemente separam-se, uma do outra, e dão origem a duas atitudes dogmáticas diferentes, irreconciliáveis em vários pontos. Podemos julgar as duas tradições, assumindo nossa posição em um terreno neutro, tão alheio a uma quanto à outra? Isso seria julgar o cristianismo do ponto de vista não-cristão: em outras palavras, recusar antecipadamente a entender qualquer coisa sobre o objeto de estudo. Pois a objetividade de modo algum consiste em se posicionar fora de um objeto, mas, ao contrário, consiste em considerar o próprio objeto em si mesmo e por si só. Existem áreas em que o que é geralmente denominado "objetividade" é apenas indiferença, e onde a indiferença significa incompreensão. No atual estado de diferença dogmática entre o Oriente e o Ocidente, é essencial, se desejamos estudar a teologia mística da Igreja Oriental, escolher entre dois pontos de vista possíveis. Ou colocar-se no terreno dogmático ocidental e examinar a tradição oriental através do Ocidente - isto é, por meio de críticas - ou então apresentar essa tradição à luz da atitude dogmática da Igreja Oriental. Este último caminho é o único possível para nós.

Será objetado, talvez, que a dissensão dogmática entre o Oriente e o Ocidente foi apenas acidental, que não tem importância decisiva, que se tratou mais uma questão dois mundos históricos diferentes, que, cedo ou mais tarde, viriam a se separar para que cada um pudesse seguir seu próprio caminho; e, por fim, que a disputa dogmática não foi mais do que um pretexto para romper de uma vez por todas a unidade eclesiástica que, de fato, deixara de ser uma realidade.

Tais afirmações, que são ouvidas com muita frequência tanto no Oriente como no Ocidente, são resultado de uma mentalidade puramente secular e do hábito generalizado de tratar a história da Igreja segundo os métodos que excluem a natureza religiosa da Igreja. Para o "historiador da Igreja", o fator religioso desaparece e se encontra deslocado por outros; como, por exemplo, o jogo de interesses políticos ou sociais, o papel desempenhado pelas condições raciais ou culturais, considerados como fatores determinantes na vida da Igreja. Nós pensamos que somos mais perspicazes, mais atualizados, ao colocar esses fatores como as verdadeiras forças orientadoras da história eclesiástica. Embora reconhecendo sua importância, um historiador cristão dificilmente pode resignar-se a considerá-los senão como acidental em relação à natureza essencial da Igreja. Ele não é capaz de ver na Igreja um corpo autônomo, sujeito a uma lei diferente do determinismo deste mundo. Se considerarmos a questão dogmática da processão do Espírito Santo, que dividiu o Oriente e o Ocidente, não podemos tratá-la como um fenômeno fortuito na história da Igreja. Do ponto de vista religioso, é a única questão de importância na cadeia de eventos que terminou na separação. Condicionado, pois pode muito bem ter sido, por vários fatores, essa escolha dogmática era - para uma parte como para a outra - um compromisso espiritual, uma tomada consciente de um dos lados em uma questão de fé.

Se muitas vezes somos levados a minimizar a importância da questão dogmática que determinou todo o desenvolvimento subsequente das duas tradições, isso é devido a certa insensibilidade ao dogma - que é considerado algo externo e abstrato. Dizem que é a espiritualidade que importa. A diferença dogmática não tem nenhuma conseqüência. No entanto, a espiritualidade e o dogma, o misticismo e a teologia estão inseparavelmente ligados à vida da Igreja. No que diz respeito à Igreja Oriental, já observamos que ela não faz distinção clara entre teologia e misticismo, entre o reino da fé comum e a da experiência pessoal. Assim, se quisermos falar de teologia mística na tradição oriental, não podemos fazer de outra maneira senão considerando-a dentro da definição dogmática da Igreja Ortodoxa.

Antes de abordar nosso assunto, é necessário dizer algumas palavras sobre a Igreja Ortodoxa, pouco conhecida até os nossos dias no Ocidente. O livro do padre Congar, a Cristandade Dividida, embora muito notável em muitos aspectos, permanece, apesar de todo esforço pela objetividade, sujeito, nas páginas que ele dedica à Igreja Ortodoxa, a certas noções preconcebidas. "Ao passo que o Ocidente", diz ele, "baseando-se na desenvolvida e limitada ideologia Agostiana, reivindicava a independência na vida e organização da Igreja, e assim estabelecia as linhas de uma eclesiologia muito definida, o Oriente estabelecia-se na prática e, até certo ponto, na teoria, em um princípio de unidade que era político, não-religioso e não verdadeiramente universal". [4] Para o padre Congar, assim como para a maioria dos escritores católicos e protestantes que se expressaram sobre esse assunto, a Ortodoxia se apresenta sob a forma de uma federação de igrejas nacionais, tendo como base um princípio político - a igreja do estado. Tais afirmações generalizadas só são possíveis ignorando-se a base canônica e a história da Igreja Oriental. A perspectiva que basearia a unidade de uma igreja local em um princípio político, racial ou cultural é considerada pela Igreja Ortodoxa como uma heresia, particularmente conhecida pelo nome do filetismo.[5] É o território eclesiástico, a área santificada por uma tradição cristã mais ou menos antiga que constitui a base de uma província metropolitana, administrada por um arcebispo ou metropolita, com os bispos de todas as dioceses reunindo-se de tempos em tempos em sínodo. Se as províncias metropolitanas são agrupadas para formar igrejas locais sob a jurisdição de um bispo que muitas vezes tem o título de patriarca, ainda é a comunidade de tradição local e de destino histórico (bem como a conveniência de convocar um concílio de muitas províncias), que determina a formação desses grandes círculos de jurisdição, cujos territórios não correspondem necessariamente aos limites políticos de um estado. [6] O Patriarca de Constantinopla goza de um certo primado de honra, arbitrando de tempos em tempos em disputas, mas sem exercer uma jurisdição sobre todo o corpo da Igreja ecumênica. As igrejas locais do Oriente tinham mais ou menos a mesma atitude em relação ao patriarcado apostólico de Roma - primeira sé da Igreja antes da separação e símbolo de sua unidade. A Ortodoxia não reconhece líder visível da Igreja. A unidade da Igreja se expressa através da comunhão dos líderes das igrejas locais, pelo acordo de todas as igrejas em relação a um concílio local - que, assim, adquire uma importância universal; por fim, em casos excepcionais, pode manifestar-se através de um concílio geral.[7] A catolicidade da Igreja, longe de ser o privilégio de qualquer um ou centro específico, é concretizada na riqueza e multiplicidade das tradições locais que dão testemunho unânime de uma única Verdade: aquilo que é preservado sempre, em todos os lugares e por todos. Uma vez que a Igreja é católica em todas as suas partes, cada um de seus membros - não só o clero, mas também cada leigo - é chamado a confessar e a defender a verdade da tradição; opondo-se até mesmo aos bispos se caírem em heresia. Um cristão que recebeu o dom do Espírito Santo no sacramento da Santa Crisma deve ter plena consciência de sua fé: ele é sempre responsável pela Igreja. Daí o caráter inquieto e às vezes agitado da vida eclesiástica de Bizâncio, da Rússia e de outros países do mundo Ortodoxo. Isso, no entanto, é o preço pago por uma vitalidade religiosa, uma intensidade de vida espiritual que penetra toda a massa dos crentes, unida na consciência de que formam um único corpo com a hierarquia da Igreja. A partir disso, também vem a energia invencível que permite à Ortodoxia passar por todas as provas, todos os cataclismos e convulsões, adaptando-se continuamente à nova realidade histórica e mostrando-se mais forte do que as circunstâncias externas. As perseguições dos fiéis na Rússia, cuja fúria sistemática não conseguiu destruir a Igreja, são a melhor testemunha de um poder que não é deste mundo.

A Igreja Ortodoxa, embora comumente referida como Oriental, considera-se, apesar disso, a Igreja universal; e isso é verdade no sentido de que ela não está limitada por nenhum tipo particular de cultura, pelo legado de qualquer civilização (helenística ou outra), ou por formas culturais estritamente orientais. Além disso, oriente pode significar muitas coisas: do ponto de vista cultural, o Oriente é menos homogêneo do que o Ocidente. O que tem em comum o helenismo e a cultura russa, apesar das origens bizantinas do cristianismo na Rússia? A Ortodoxia tem sido fermento em muitas culturas diferentes para ser considerada uma forma cultural do Cristianismo Oriental. As formas são diferentes: a fé é uma. A Igreja Ortodoxa nunca confrontou culturas nacionais com outras que poderiam ser consideradas especificamente Ortodoxas. É por esta razão que a sua obra missionária conseguiu expandir-se tão prodigiosamente: testemunhar a conversão da Rússia ao cristianismo nos séculos X e XI, e, mais tarde, a pregação do Evangelho em toda a Ásia. No final do século XVIII, as missões Ortodoxas chegaram às ilhas Aleutianas e ao Alasca, passaram de lá para a América do Norte, criando novas dioceses da Igreja Russa além dos confins da Rússia, espalhando-se para a China e o Japão. [8] As variações antropológicas e culturais que se encontra da Grécia às partes mais remotas da Ásia e do Egito ao Ártico, não destroem o caráter homogêneo desse parentesco de espiritualidade, muito diferente do Ocidente cristão.

Existe uma grande riqueza de formas de vida espiritual que se encontra dentro dos limites da Ortodoxia, mas o monaquismo continua a ser a mais clássica de todas. Ao contrário do monaquismo ocidental, no entanto, o do Oriente não inclui uma multiplicidade de ordens diferentes. Este fato é explicado pela concepção da vida monástica, cujo objetivo só pode ser a união com Deus em uma completa renúncia à vida deste mundo presente. Se o clero secular (sacerdotes e diáconos casados), ou confraternidades de leigos podem ocupar-se de trabalho social, ou se dedicar a outras atividades externas, ocorre de outra forma com os monges. Estes últimos tomam o hábito acima de tudo para se dedicarem à oração, à vida interior, em um claustro ou eremitério. Entre um mosteiro de vida comum e a solidão de um ancorita que segue as tradições dos Pais do Deserto, existem muitos tipos intermediários de instituições monásticas. Poder-se-ia dizer de forma geral que o monaquismo oriental era exclusivamente contemplativo, se a distinção entre os dois caminhos, ativo e contemplativo, tivesse no Oriente o mesmo significado que no Ocidente. Na verdade, para um monge oriental, os dois caminhos são inseparáveis. Um não pode ser exercido sem o outro, pois a regra ascética e a escola de oração interior recebem o nome de atividade espiritual. Se os monges se ocupam de tempos em tempos com trabalhos físicos, é acima de tudo com um fim ascético em vista: para melhor superar sua natureza rebelde, bem como para evitar a ociosidade, inimiga da vida espiritual. Para alcançar a união com Deus, na medida em que é realizável aqui na Terra, exige-se esforço contínuo ou, mais precisamente, uma vigília incessante onde a integridade do homem interior, "a união de coração e o espírito" (para usar uma expressão do ascetismo Ortodoxo), resiste a todos os assaltos do inimigo: todo movimento irracional de nossa natureza caída. A natureza humana deve passar por uma mudança; deve ser cada vez mais transfigurada pela graça no caminho da santificação, que tem um alcance que não é apenas espiritual, mas também corporal e, portanto, cósmico. O trabalho espiritual de um monge que vive em comunidade ou um eremita retirado do mundo conserva todo o seu valor para o universo inteiro, mesmo que permaneça escondido da vista de todos. É por isso que as instituições monásticas sempre tiveram grande veneração em todos os países do mundo Ortodoxo.

O papel desempenhado pelos grandes centros de espiritualidade foi muito considerável não apenas na vida eclesiástica, mas também na esfera da cultura e da política. Os mosteiros do Monte Sinai e de Studion, perto de Constantinopla, a república monástica do Monte Athos, reunindo religiosos de todas as nações (havia monges latinos antes do cisma), outros grandes centros além dos limites do Império, como o mosteiro de Tirnovo, na Bulgária, e as grandes lavras da Rússia - Petcheri em Kiev e a Santíssima Trindade próximo de Moscou - todos foram bastiões da Ortodoxia, escolas da vida espiritual, cuja influência religiosa e moral foi de primeira importância na moldagem de povos recém-convertidos ao Cristianismo. [9] Mas se o ideal monástico teve uma influência tão grande sobre as almas, esse não era, contudo, o único tipo de vida espiritual que a Igreja oferecia aos fiéis. O caminho da união com Deus pode ser buscado fora do claustro, em todas as circunstâncias da vida humana. As formas externas podem mudar, os mosteiros podem desaparecer, como nos nossos dias desapareceram por um tempo na Rússia, mas a vida espiritual continua com a mesma intensidade, encontrando novos modos de expressão.

A hagiografia oriental, que é extremamente rica, mostra ao lado dos santos monges muitos exemplos de perfeição espiritual alcançado por leigos simples e pessoas casadas que vivem no mundo. Também conhece caminhos estranhos e inusitados para a santificação: aquele, por exemplo, dos "tolos por Cristo", que cometiam atos extravagantes para que seus dons espirituais pudessem permanecer escondidos dos olhos dos outros sob o horrível aspecto da loucura; ou, em vez disso, para que eles pudessem ser libertados dos laços deste mundo em sua expressão mais íntima e espiritualmente problemática, a de nosso "ego" social. A união com Deus às vezes se manifesta através de dons carismáticos como, por exemplo, de direção espiritual exercida pelos staretz ou anciões. Estes últimos são mais freqüentemente monges que, tendo passado muitos anos de sua vida em oração e isolados de todo o contato com o mundo, no final de suas vidas, abrem para todos as portas de suas celas. Possuem o dom de poder penetrar nas profundidades insondáveis ​​da consciência humana, de revelar pecados e as dificuldades internas que normalmente nos são desconhecidas, de elevar as almas sobrecarregadas e de dirigir os homens não apenas no seu curso espiritual, mas também em todas as vicissitudes de suas vidas no mundo.[11]

As experiências individuais dos maiores místicos da Igreja Ortodoxa na maioria das vezes permanecem desconhecidas para nós. Exceto por algumas raras exceções, a literatura espiritual do Oriente cristão possui pouquíssimos relatos autobiográficos que tratam da vida interior, como os de Angela de Foligno e Henry Suso, ou como Histoire d’une âme de Santa Teresa de Lisieux. O caminho da união mística é quase sempre um segredo entre Deus e a alma em questão, que nunca é confiado aos outros, a não ser a um confessor ou alguns discípulos. O que é publicado exteriormente é o fruto desta união: a sabedoria, a compreensão dos mistérios divinos, expressando-se no ensinamento teológico ou moral ou no conselho para a edificação de seus irmãos. Quanto ao aspecto interior e pessoal da experiência mística, permanece escondido dos olhos de todos. Deve ser reconhecido que foi apenas em um período comparativamente tardio, por volta do século XIII, na verdade, que o individualismo místico fez sua aparição na literatura ocidental. Apenas raramente São Bernardo fala diretamente de sua experiência pessoal - em uma única ocasião nos Sermões sobre o Cântico dos Cânticos  - e com uma espécie de relutância, seguindo o exemplo de São Paulo. Foi necessário que certa divisão tivesse ocorrido entre a experiência pessoal e a fé comum, entre a vida do indivíduo e a vida da Igreja, para que a espiritualidade e o dogma, o misticismo e a teologia, pudessem se tornar duas esferas distintas; e para que as almas incapazes de encontrar alimento adequado nas sumas teológicas se voltassem para buscar com avidez nos relatos de experiência mística individual, a fim de revigorar-se numa atmosfera de espiritualidade. O individualismo místico permaneceu estranho à espiritualidade da Igreja Oriental.

O padre Congar está certo quando diz: "Nós nos tornamos homens diferentes. Nós temos o mesmo Deus, mas diante Dele somos homens diferentes, incapazes de concordar quanto à natureza do nosso relacionamento com Ele". [12] Mas, para avaliar com precisão essa divergência espiritual, seria necessário examiná-la em suas manifestações mais perfeitas: nos diferentes tipos de santidade no Oriente e no Ocidente desde o cisma. Só então seríamos capazes de falar do vínculo estreito que sempre existe entre o dogma que a Igreja confessa e o fruto espiritual que produz. Pois a experiência interior do cristão se desenvolve dentro do círculo delineado pelo ensino da Igreja: dentro do quadro dogmático que molda sua pessoa. Se até mesmo uma doutrina política professada pelos membros de um partido pode modelar a mentalidade deles de forma a produzir um tipo de homem distinguível dos outros por certas marcas morais ou psíquicas, a fortiori o dogma religioso consegue transformar as próprias almas daqueles que o confessam. São homens diferentes dos outros homens, daqueles que foram formados por outra concepção dogmática. Nunca é possível entender uma espiritualidade se não se tiver em conta o dogma em que está enraizada. Devemos aceitar os fatos como são, e não procurar explicar a diferença entre a espiritualidade oriental e ocidental por motivos raciais ou culturais quando uma questão maior, uma questão dogmática, está em jogo. Nem podemos dizer que as questões da processão do Espírito Santo ou da natureza da graça não têm grande importância no esquema da doutrina cristã, que permanece mais ou menos idêntica entre os Católicos Romanos e entre os Ortodoxos. Em dogmas tão fundamentais como estes, é este "mais ou menos" que é importante, pois transmite uma ênfase diferente a toda doutrina, apresenta-a em outra luz; em outras palavras, dá lugar a outra espiritualidade.

Fica a cargo do leitor julgar em que medida esses aspectos teológicos do misticismo Ortodoxo podem ser úteis para a compreensão de uma espiritualidade que é estranha ao cristianismo ocidental. Se, permanecendo leais aos nossos respectivos pontos de vistas dogmáticos, conseguirmos conhecer uns aos outros, sobretudo nos pontos em que diferimos, isso, sem dúvida, seria um caminho mais seguro em direção à união do que aquele que deixa as diferenças de lado. Pois, nas palavras de Karl Barth, "a união das Igrejas não é produzida, mas a descobrimos". [13]

NOTAS
1 Sermons and Addresses of the Metropolitan Philaret, Moscow, 1844, Part II, p. 87. (In Russian.)

2 Veja o artigo por M. H.-Ch. Puech: ‘Où en est le problème du gnosticisme?’, Revue de l’Université de Bruxelles, 1934, Nos. 2 and 3.

3 II Cor. xii, 2–4.

4 M. J. Congar, O.P., Chrétiens désunis. Principes d’un ‘oecuménisme’ catholique, Paris, 1937, p. 15. English translation by M. A. Bousfield, Divided Christendom, London, 1939, p. 13.

5 Synod of Constantinople, 1872. v. Mansi, Coll. concil., vol. 45, 417–546. See also the article by M. Zyzykine: ‘L’Eglise orthodoxe et la nation,’ Irénikon, 1936, pp. 265–77.

6 Assim, o Patriarcado de Moscou inclui as dioceses da América do Norte e de Tóquio além das fronteiras da Rússia. Por outro lado, o catolicato da Geórgia, embora dentro dos limites dos EUA, não faz parte da Igreja Russa. Os territórios dos Patriarcados de Constantinopla, Alexandria, Antioquia e Jerusalém são politicamente dependentes de muitos poderes diferentes.

7 O nome do Concílio Ecumênico, dado no Oriente aos sete primeiros sínodos gerais, corresponde a uma realidade de caráter puramente histórico. Estes são os concílios dos territórios "ecumênicos", isto é, do Império Bizantino que se estendeu (teoricamente, pelo menos) por todo o mundo cristão. Em épocas posteriores, a Igreja Ortodoxa conheceu concílios gerais que, sem ter o título de "ecumênico", não eram nem menores nem menos importantes.

8 Veja S. Bolshakoff, The Foreign Missions of the Russian Orthodox Church, London, 1943.

9 Há algumas informações úteis sobre o monasticismo oriental no pequeno livro de pe. N. F. Robinson, S.S.J.E., intitulado Monasticism in the Orthodox Churches (Londres, 1916). Sobre o Monte Athos, veja Hasluck: Athos e seus Monastérios (Londres, 1924) e F. Spunda, Der Heilige Berg Athos (Leipzig, 1928). Para a vida monástica na Rússia, ver os seguintes estudos de Igor Smolitsch, 'Studien zum Klosterwesen Russlands', em Kyrios, n. 2 (1937), pp. 95-112 e n. 1 (1939), pp. 38, e, acima de tudo, o mesmo autor 'Das altrussische Mönchtum' (XI-XVI Jhr.), Würzburg, 1940, em Das östliche Christentum, XI, e Russischer Mönchtum, Würzburg, 1953.

10 Veja sobre esse assunto E. Benz, ‘Heilige Narrheit’, in Kyrios, 1938, Nos. i and 2, pp. 1–55; Mme Behr-Sigel, ‘Les Fous pour le Christ et la sainteté laïque dans l’ancienne Russie’, in Irénikon, Vol. XV (1939), pp. 554–65; Gamayoun, ‘Etudes sur la spiritualité populaire russe: les fous pour le Christ’, in Russie et Chrétienté, 1938–9, I, pp. 57–77.

11 Smolitsch, Leben und Lehre der Starzen, Vienna, 1936.

12 Congar, op. cit., p. 47.

13 ‘The Church and the churches’, Oecumenica, III, No. 2, July, 1936.