segunda-feira, 20 de novembro de 2017

O Caminho Ortodoxo: Deus como Criador (Kallistos Ware) [Parte 4/8]


CONTEÚDO
1 Prólogo - Sinais no Caminho 
2 Deus como Mistério 
3 Deus como Trindade 
4 Deus como Criador 
5 Deus como Homem 
6 Deus como Espírito 
7 Deus como Oração 
8 Epílogo - Deus como Eternidade 

Um dos sábios daquele tempo aproximou-se de Santo Antão no deserto e disse: "Pai, como você pode tolerar morar aqui, privado de toda a consolação dos livros?". Santo Antão respondeu: "Meu livro, filósofo, é a natureza das coisas criadas, e sempre que desejo, possa lê-lo nas obras de Deus".
Evágrio do Ponto
  
Compreende que tens dentro de ti mesmo, em pequena escala, um segundo universo: dentro de ti há um sol, uma lua, e também estrelas.
Orígenes


Olhe para os céus

A atriz Lillah McCarthy descreve como certa vez que ela foi ao encontro de George Bernard Shaw sofrendo muito, logo depois de ter sido abandonada por seu marido:

Eu tremia. Shaw permaencia imóvel. O fogo trouxe-me calor ... Quanto tempo ficamos lá, não sei, mas agora encontrava-me andando com passos arrastados com Shaw ao meu lado... para um lado e para outro no Terraço Adelphi. O peso sobre mim ficou um pouco mais leve e libertou as lágrimas que nunca poderiam ter saído antes...  Ele me deixou chorar. Logo ouvi uma voz em que falavam toda a gentileza e ternura do mundo. Ela disse: "Olhe, querida, olhe para os céus. Há mais na vida do que isso. Há muito mais."

Seja qual for a sua própria fé em Deus ou a falta dela, Shaw aponta aqui algo que é fundamental para o Caminho espiritual. Ele não ofereceu palavras suaves de consolo a Lillah McCarthy, ou fingiu que sua dor seria fácil de suportar. O que ele fez foi mais perspicaz. Ele pediu a ela que olhasse para fora de si mesma por um momento, para fora de sua tragédia pessoal, e que visse o mundo em sua objetividade, que sentisse sua maravilha e variedade, a sua qualidade "isso mesmo". E o seu conselho aplica-se a todos nós. Não importa o quão oprimido eu esteja pela minha angústia ou pela dos outros, não devo esquecer-me de que há mais no mundo do que isso, muito mais.

São João de Kronstadt diz: "A oração é um estado de contínua gratidão". Se eu não tiver um sentimento de júbilo pela criação de Deus, se me esqueço de oferecer o mundo de volta a Deus com gratidão, avancei muito pouco no Caminho. Ainda não aprendi a ser verdadeiramente humano. Pois é apenas por meio da ação de graças que posso tornar-me realmente quem sou. A ação de graças repleta de júbilo., longe de ser escapista ou sentimental, é, pelo contrário, inteiramente realista - mas com o realismo de quem vê o mundo em Deus, como a criação divina.

A Ponte do Diamante

‘Tu nos trouxeste à existência a partir do nada’ (Liturgia de São João Crisóstomo). Como podemos entender a relação de Deus com o mundo que Ele criou? O que se entende por esta frase "a partir do nada", ex nihilo? Por que, de fato, Deus criou?

As palavras ‘a partir do nada’ significam, em primeiro lugar, que Deus criou o universo por um ato de seu livre arbítrio. Nada o obrigou a criar; Ele escolheu fazê-lo. O mundo não foi criado involuntariamente ou por necessidade; não é uma emanação automática ou um transbordamento de Deus, mas a conseqüência duma escolha divina.

Se nada forçou Deus a criar, por que então escolheu fazê-lo? Na medida em que tal pergunta admite uma resposta, nossa resposta deve ser: o motivo de Deus na criação é o Seu  amor. Ao invés de dizer que Ele criou o universo do nada, devemos dizer que o criou a partir do Seu próprio ser, que é o amor. Devemos pensar, não em Deus o Produtor ou Deus o Artesão, mas sim em Deus o Amante. A criação é um ato tanto de sua livre vontade como de seu amor livre. Amar significa compartilhar, como a doutrina da Trindade mostrou-nos claramente: Deus não é apenas um, mas um-em-três, porque ele é uma comunhão de pessoas que compatilham amor umas com as outras. O círculo do amor divino, no entanto, não permaneceu fechado. O amor de Deus é, no sentido literal da palavra, "extático" - um amor que faz com que Deus saia de si mesmo e crie outras coisas além de si mesmo. Por escolha voluntária, Deus criou o mundo no amor "extático", para que pudesse haver, além de Si mesmo, outros seres para participarem da vida e do amor que são Dele.

Deus não estava sob coação para criar; mas isso não significa que tenha havido algo de fortuito ou inconsequente em seu ato de criação. Deus é tudo o que faz, e assim Seu ato de criação não é algo separado de Si mesmo. No coração de Deus e em seu amor, cada um de nós sempre existiu. Desde toda a eternidade, Deus viu cada um de nós como uma idéia ou pensamento em Sua mente divina, e para cada um desde toda a eternidade

Ele tem um plano especial e distinto. Nós sempre existimos para Ele; a criação significa que, em um determinado momento, começamos a existir também para nós mesmos.

Como fruto da livre vontade de Deus e do amor livre, o mundo não é necessário, não  é auto-suficiente, mas contingente e dependente. Como seres criados, nunca podemos ser apenas nós mesmos sozinhos; Deus é o núcleo do nosso ser, ou deixamos de existir. A cada momento, nossa existência depende da vontade amorosa de Deus. A existência é sempre um presente de Deus - um presente gratuito de seu amor, um presente que nunca é tomado de volta; mas, ainda assim, um presente e não algo que possuímos por nosso próprio poder. Somente Deus possui a causa e a fonte de seu ser em si mesmo; todas as coisas criadas têm sua causa e fonte não em si mesmas, mas Nele. Apenas Deus tem Sua própria origem; todas as coisas criadas são originárias de Deus, enraizadas em Deus, encontrando sua origem e realização Nele. Apenas Deus é substantivo; todas as coisas criadas são adjetivos.

Ao dizer que Deus é Criador do mundo, não queremos dizer apenas que Ele colocou as coisas em movimento por um ato "no princípio", após o qual as coisas continuaram funcionando por si mesmas. Deus não é apenas um relojoeiro cósmico, que dá corda no mecanismo e depois deixa-o funcionando por conta própria. Pelo contrário, a criação é contínua. Se quisermos ser precisos ao falarmos da criação, devemos usar o verbo não no passado, mas no presente contínuo. Não devemos dizer, "Deus criou o mundo, e eu nele", mas sim "Deus está criando o mundo e eu, aqui e agora, neste momento e sempre". A criação não é um evento no passado, mas um relacionamento no presente. Se Deus não continuasse a exercer sua vontade criativa a cada momento, o universo passaria imediatamente ao não-ser; nada poderia existir por um único segundo se Deus não desejasse que fosse.  Como afirma o Metropolita Filareto de Moscou: "Todas as criaturas encontram-se equilibradas sobre a Palavra criadora de Deus, como se em cima de uma ponte de diamante; acima delas está o abismo da infinitude divina, abaixo, a infinitude de seu próprio nada." Isso é verdadeiro mesmo para Satanás e os anjos caídos no inferno: a existência deles também dependem da vontade de Deus.

O objetivo da doutrina da criação, portanto, não é atribuir um ponto de partida cronológico ao mundo, mas afirmar que, neste momento presente, como em todos os momentos, a existência do mundo depende de Deus. Quando o Gênesis afirma: "No princípio Deus criou o céu e a terra" (1: 1), a palavra "princípio" não deve ser tomada simplesmente em um sentido temporal, mas como significando que Deus é a causa constante e sustentadora de todas as coisas.

Como criador, então, Deus está sempre no coração de cada coisa, mantendo-a no ser.  No plano da investigação científica, discernimos certos processos ou sequências de causa e efeito. No plano da visão espiritual, que não contradiz a ciência, mas que a ultrapassa, discernimos em todos os lugares as energias criativas de Deus, sustentando tudo o que existe, formando a essência mais profunda de todas as coisas. Mas, embora presente em todo o mundo, Deus não deve ser identificado com o mundo. Como cristãos, afirmamos não o panteísmo, mas o "panenteísmo". Deus está em todas as coisas, mas, ainda assim, para além e acima de todas as coisas. Ele é tanto "maior que o maior" como "menor que o menor". Nas palavras de São Gregório Palamas: "Ele está em todos os lugares e em lugar nenhum, ele é tudo e nada". Como um monge cisterciense da Nova Claraval afirmou, "Deus está no cerne. Deus é diferente do cerne. Deus está dentro do cerne, e em todo o cerne, e além do cerne, mais próximo do cerne do que o cerne".

"E Deus viu tudo o que tinha feito, e eis que era muito bom" (Gn 1:31). A criação em sua totalidade é a obra de Deus; na sua essência interior, todas as coisas criadas são "muito boas". A ortodoxia cristã repudia o dualismo nas suas várias formas: o dualismo radical dos maniqueus, que atribuem a existência do mal a um segundo poder, co-eterno com o Deus do amor; o dualismo menos radical dos valentinianos gnósticos, que vêem a ordem material, incluindo o corpo humano, passando a existir em conseqüência de uma queda pré-cósmica; e o dualismo mais sutil dos platônicos, que consideram a matéria não como má, mas como irreal.

Contra o dualismo em todas as suas formas, o cristianismo afirma que existe um summum bonum, um "bem supremo" - ou seja, Deus mesmo - mas não há e não pode haver summum malum. O mal não é co-eterno com Deus. No início, havia apenas Deus: todas as coisas que existem são a sua criação, seja no céu ou na terra, seja espiritual ou física, e, portanto, no seu "em si" básico, todas elas são boas.

O que, então, devemos dizer sobre o mal? Uma vez que todas as coisas criadas são intrinsecamente boas, o pecado ou o mal como tal não é uma "coisa", nem um ser ou substância existente.  "Eu não vi o pecado", diz Julian de Norwich em suas Revelações, "pois acredito que não tem nenhum tipo de substância, nem participação no ser; nem pode ser reconhecido, exceto pela dor por ele causada. "O pecado é nulo", diz Santo Agostinho.

"Aquilo que é mau em sentido estrito", observa Evágrio, "não é uma substância, mas a ausência do bem, assim como a escuridão não é nada mais do que a ausência de luz." E São Gregório de Nissa afirma,  "O pecado não existe na natureza separado do livre arbítrio; não é uma substância por si só." "Nem mesmo os demônios são maus por natureza", diz São Máximo, o Confessor, "mas eles se tornam assim através do mau uso de seus poderes naturais." O mal é sempre parasita. É a distorção e a apropriação indevida daquilo que é em si mesmo bom.  O mal não reside na própria coisa, mas em nossa atitude em relação à coisa - isto é, em nossa vontade.

Pode parecer que, ao denotar o mal como "nada", nós estamos subestimando sua força e dinamismo. Mas, como C. S. Lewis observou, o Nada é muito forte. Dizer que o mal é a perversão do bem e, portanto, em última análise, uma ilusão e irrealidade, não é negar sua influência poderosa sobre nós. Pois não há força maior dentro da criação do que a livre vontade dos seres dotados de autoconsciência e intelecto espiritual; e assim o mau uso dessa livre vontade pode ter consequências bastante aterradoras.

Homem como Corpo, Alma e Espírito 

E qual é o lugar do homem na criação de Deus?

"Rezo a Deus para que todo seu espírito, alma e corpo sejam preservados irrepreensíveis até a vinda de nosso Senhor Jesus Cristo" (1 Tessalonicenses 5:23). Aqui, São Paulo menciona os três elementos ou aspectos que constituem a pessoa humana. Embora distintos, esses aspectos são estritamente interdependentes; o homem é uma unidade integral, não a soma total de partes separáveis.

Primeiro, há o corpo, "pó da terra" (Gênesis 2: 7), o aspecto físico ou material da natureza do homem.

Em segundo lugar, há a alma, a força vital que vivifica e anima o corpo, fazendo com que não seja apenas um pedaço de matéria, mas algo que cresce e se move, que sente e percebe. Os animais também possuem uma alma, e talvez as plantas também. Mas, no caso do homem, a alma é dotada de consciência; é uma alma racional, possuindo a capacidade para o pensamento abstrato e a habilidade de avançar por meio do argumento discursivo das premissas até uma conclusão. Esses poderes estão presentes em animais, se o estiverem,  apenas em um grau muito limitado.

Em terceiro lugar, há o espírito, o "sopro" de Deus (ver Gênesis 2: 7), que os animais não têm. É importante distinguir o "Espírito", com letra maiúscula, do "espírito" com "s" minúsculo. O espírito criado do homem não deve ser identificado com o incriado ou o Espírito Santo de Deus, a terceira pessoa da Trindade; contudo, os dois estão intimamente ligados, pois é através do seu espírito que o homem apreende Deus e entra em comunhão com ele.

Com sua alma (psique), o homem realiza a investigação científica ou filosófica, analisando os dados de sua experiência sensorial por meio da razão discursiva. Com seu espírito (pneuma), às vezes chamado de nous ou intelecto espiritual, ele entende a verdade eterna sobre Deus ou sobre os logoi ou essências internas das coisas criadas, não através de raciocínio dedutivo, mas através da apreensão direta ou percepção espiritual - por uma espécie de intuição que São Isaque, o Sírio, chama de "cognição simples". O espírito ou o intelecto espiritual é, portanto, distinto dos poderes de raciocínio do homem bem como das suas emoções estéticas, e superior a ambos.

Porque o homem tem uma alma racional e um intelecto espiritual, ele possui o poder da autodeterminação e da liberdade moral, isto é, o sentido do bem e do mal e a capacidade de escolher entre eles. Onde os animais agem por instinto, o homem é capaz de tomar uma decisão livre e consciente.

Por vezes, os Padres não adotam um esquema tripartite, mas um duplo, descrevendo o homem simplesmente como uma unidade de corpo e alma; nesse caso, tratam o espírito ou o intelecto como o aspecto mais elevado da alma. Mas o esquema triplo do corpo, da alma e do espírito é mais preciso e mais iluminador, particularmente em nossa época, quando a alma e o espírito são muitas vezes confundidos e quando a maioria das pessoas nem sequer percebe que possuem um intelecto espiritual. A cultura e o sistema educacional do ocidente contemporâneo baseiam-se quase que exclusivamente na formação do raciocínio cerebral e, em menor grau, nas emoções estéticas. A maioria de nós esqueceu que não somos apenas cérebro e vontade, sentimentos e sentimentos; também somos espírito. O homem moderno perdeu, em sua maior parte, o contato com o aspecto mais verdadeiro e mais elevado de si mesmo; e o resultado dessa alienação interior pode ser visto de forma muito clara em sua inquietação, sua falta de identidade e perda de esperança.

Microcosmo e Mediador 

Corpo, alma e espírito, três em um, o homem ocupa uma posição única na ordem criada.

De acordo com a visão de mundo ortodoxa, Deus formou dois níveis de coisas criadas: primeiro o nível "noético", "espiritual" ou "intelectual", e em segundo lugar, o material ou o corporal. No primeiro nível, Deus formou os anjos, que não possuem corpo material. No segundo nível, formou o universo físico - galáxias, estrelas e planetas, com os vários tipos de vida mineral, vegetal e animal. O homem, e apenas o homem, existe em ambos os níveis ao mesmo tempo. Por meio de de seu espírito ou intelecto espiritual, ele participa do reino noético e é companheiro dos anjos; por meio de de seu corpo e sua alma, ele se move, sente e pensa; ele come e bebe, transmutando alimentos em energia e participando organicamente no reino material, que passa por dentro dele através de suas percepções sensoriais.

Nossa natureza humana é, portanto, mais complexa do que a angélica, e dotada de potencialidades mais ricas. Visto sob perspectiva, o homem deixa de ser inferior, e passa a ser mais elevado do que os anjos; como o Talmud da Babilônia afirma: "Os justos são maiores do que os anjos que ministram" (Sanhedrin 93a). O homem está no coração da criação de Deus. Participando dos reinos noético e material, ele é uma imagem ou espelho de toda a criação, imago mundi, um "pequeno universo" ou microcosmo. Todas as coisas criadas encontram-se nele. O homem pode dizer de si mesmo, nas palavras de Kathleen Raine:

Porque eu amo

O sol derrama seus raios de ouro vivo

Derrama o seu ouro e prata no mar ...

Porque eu amo

As samambaias crescem verdes, e verde a grama, e verdes

As árvores transparentes iluminadas pelo sol ...

Porque eu amo

Durante toda a noite o rio flui para o meu sono,

Dez mil coisas vivas estão dormindo em meus braços,

E, ao dormirem, despertam; e ao fluirem, estão em repouso.

Sendo um microcosmo, o homem também é mediador. É tarefa dada ele por Deus conciliar e harmonizar os reinos noéticos e materiais, levá-los à unidade, espiritualizar o material e manifestar todas as capacidades latentes da ordem criada. Como o judaísmo hasídico expressa, o homem é chamado para "avançar de degrau a degrau até que, através dele, tudo esteja unido". Como microcosmo, então, o homem é aquele em quem o mundo é resumido; como mediador, ele é aquele por quem o mundo é oferecido de volta a Deus.

O homem é capaz de exercer esse papel mediador apenas porque sua natureza humana é essencial e fundamentalmente uma unidade. Se ele fosse apenas uma alma habitando temporariamente um corpo, como muitos dos filósofos gregos e indianos imaginaram - se seu corpo não fosse parte de seu verdadeiro eu, mas fosse apenas um pedaço de roupa que ele acabaria por deixar de lado, ou uma prisão da qual ele procura escapar - então o homem não poderia agir propriamente como mediador. O homem espiritualiza a criação antes de tudo espiritualizando seu próprio corpo e oferecendo-o a Deus. "Ou não sabeis que o vosso corpo é o templo do Espírito Santo, que habita em vós?", escreve São Paulo. '... Glorificai, pois, a Deus no vosso corpo ... Rogo-vos, pois, irmãos, pela compaixão de Deus, que apresenteis os vossos corpos em sacrifício vivo, santo e agradável a Deus (1 Coríntios 6:19-20; Romanos 12:1). Mas, na "espiritualização" do corpo, o homem não o desmaterializa: pelo contrário, é a vocação humana manifestar o espiritual no material e através do material. Os cristãos são, nesse sentido, os únicos verdadeiros materialistas.

O corpo, então, é parte integrante da personalidade humana. A separação do corpo e da alma na morte não é natural, é algo contrário ao plano original de Deus, que ocorreu em conseqüência da queda. Além disso, a separação é apenas temporária: esperamos, para além da morte, a ressurreição final no Último Dia, quando o corpo e a alma se reunirem mais uma vez.

Imagem e semelhança

"A glória de Deus é o homem", afirma o Talmud (Derech Eretz Zutta 10,5); e Santo Irineu afirma o mesmo: "A glória de Deus é o homem vivo". A pessoa humana forma o centro e a coroa da criação de Deus. A posição única do homem no cosmos é indicada sobretudo pelo fato de que ele é feito "à imagem e semelhança" de Deus (Gênesis 1:26). O homem é uma expressão finita da auto-expressão infinita de Deus.
Por vezes, os Padres Gregos associam a imagem divina ou "ikon" no homem com a totalidade de sua natureza, considerada como uma "tríplice unidade" de espírito, alma e corpo. Outras vezes, eles ligam essa imagem mais especificamente ao aspecto mais elevado do homem, ao seu espírito ou intelecto espiritual, através do qual alcança o conhecimento de Deus e a união com Ele. Fundamentalmente, a imagem de Deus no homem denota tudo o que o distingue o dos animais, que o torna, no sentido pleno e verdadeiro, uma pessoa - um agente moral capaz do certo e do errado, um sujeito espiritual dotado de liberdade interior.

O aspecto da livre escolha é particularmente importante para a compreensão do homem como criado à imagem de Deus. Assim como Deus é livre, também o homem é livre. E, sendo livre, cada ser humano percebe a imagem divina dentro de si mesmo de maneira distinta. Os seres humanos não são fichas que podem ser trocadas umas pelas outras ou peças substituíveis de uma máquina. Cada um, sendo livre, é irrepetível; e cada um, sendo irrepetível, é infinitamente precioso. As pessoas não devem ser medidas quantitativamente: não temos o direito de presumir que uma pessoa em particular é mais valiosa do que qualquer outra, ou que dez pessoas devem necessariamente ter mais valor do que uma. Tais cálculos são uma ofensa à verdadeira personalidade. Cada um é insubstituível e, portanto, cada um deve ser tratado como um fim em si mesmo, e nunca como um meio para algum fim adicional. Cada um deve ser considerado não como objeto, mas como sujeito. Se as pessoas nos parecem chatas e tediosamente previsíveis, é porque não atingimos o nível da verdadeira personalidade, nos outros e em nós mesmos, onde não há estereótipos e cada um é único.

Muitos dos Padres Gregos, embora não todos, fazem uma distinção entre a "imagem" de Deus e a "semelhança" de Deus. A imagem, para aqueles que distinguem os dois termos, denota a potencialidade do homem para a vida em Deus, a semelhança, a  realização dessa potência. A imagem é aquilo que o homem possui desde o início e que o habilita desde o princípio a lançar-se no Caminho espiritual; a semelhança é aquilo que ele espera alcançar no final de sua jornada. Nas palavras de Orígenes, "O homem recebeu a honra da imagem em sua primeira criação, mas a plena perfeição da semelhança de Deus só lhe será conferida na consumação de todas as coisas". Todos os homens são feitos à imagem de Deus e, por mais corrompidas que sejam suas vidas, a imagem divina dentro deles é meramente obscurecida e encoberta, mas nunca completamente perdida. A semelhança, no entanto, é plenamente alcançada apenas pelos bem-aventurados no reino celestial da Era vindoura.

De acordo com Santo Irineu, o homem em sua primeira criação era "como uma criancinha", e precisava "crescer" em sua perfeição. Em outras palavras, o homem em sua primeira criação era inocente e capaz de se desenvolver espiritualmente (a "imagem"), mas esse desenvolvimento não era inevitável nem automático. O homem foi chamado a cooperar com a graça de Deus e, por meio do uso correto de seu livre arbítrio, lentamente e passo a passo, ele se tornaria perfeito em Deus (a "semelhança"). Isso mostra como a noção do homem criado à imagem de Deus pode ser interpretada em um sentido dinâmico e não estático. Não é necessário entendê-la como afirmando que o homem possuísse desde o início uma perfeição totalmente realizada, a mais alta santidade e conhecimento possíveis, mas simplesmente que lhe foi dado a oportunidade de crescer em plena comunhão com Deus. A distinção entre semelhança de imagem não implica, evidentemente, a aceitação de qualquer "teoria da evolução"; mas ela não é incompatível com essa teoria.

A imagem e a semelhança significam orientação, relação. Como observa Philip Sherrard : "O próprio conceito de homem implica uma relação, uma conexão com Deus. Onde se afirma homem, também se afirma Deus." Acreditar que o homem é feito à imagem de Deus é acreditar que ele é criado para a comunhão e a união com Deus, e que, se rejeitar essa comunhão, ele deixa de ser propriamente o homem. Não há um "homem natural", existindo separado de Deus: o homem cortado de Deus encontra-se em um estado altamente antinatural. A doutrina da imagem significa, portanto, que o homem tem Deus como o centro mais íntimo de seu ser. O divino é o elemento determinante da nossa humanidade; ao perdermos o sentido do divino, perdemos também o nosso sentido do humano.

Isso confirmado de forma marcante pelo que aconteceu no Ocidente desde o Renascimento, e mais notavelmente desde a revolução industrial. Um secularismo crescente foi acompanhado de uma crescente desumanização da sociedade. O exemplo mais claro disso pode ser visto na versão leninista-estalinista do comunismo, tal como se encontra na União Soviética. Aqui, a negação de Deus andou de mãos dadas com uma cruel repressão da liberdade pessoal do homem. E isso não é nem um pouco surpreendente. A única base segura para uma doutrina da liberdade e da dignidade humana é a crença de que cada homem é criado à imagem de Deus.

O homem é criado não apenas à imagem de Deus, mas, mais especificamente, à imagem da Trindade Divina. Tudo o que foi dito anteriormente sobre "viver a Trindade" adquire força adicional quando explicado em termos da doutrina da imagem. Como a imagem de Deus no homem é uma imagem trinitária, segue-se que o homem, como Deus, realiza sua verdadeira natureza por meio da vida mútua. A imagem significa relacionamento não só com Deus, mas com outros homens. Assim como as três pessoas divinas vivem umas nas outras e umas para as outras,  da mesma maneira o  o homem — criado à imagem trinitária — torna-se uma pessoa real ao ver o mundo através dos olhos dos outros, fazendo as alegrias e as dores dos outros sua. Cada ser humano é único, mas cada um em sua singularidade é criado para a comunhão com os outros.

"Nós, que pertencemos à fé, devemos ver todos os fiéis como uma única pessoa ... e estarmos prontos para oferecer nossas vidas pela do próximo" (São Simeão, o Novo Teólogo). "Não há outra maneira de ser salvo, exceto pelo nosso próximo ... Esta é a pureza do coração: ao ver o pecador ou o doente, sentir compaixão por eles e ser compassivo com eles" (As Homilias de São Macário). "Os anciões costumavam dizer que devemos olhar para as experiências do próximo como se fossem nossas. Devemos sofrer com o próximo em tudo e chorar com ele, e devemos nos comportar como se estivéssemos dentro de seu corpo; e se algum problema lhe acontecer, devemos sentir aflição como se fossemos nós mesmos" (Os Ditos dos Padres do Deserto). Tudo isso é verdade, precisamente porque o homem é feito à imagem de Deus, a Trindade.

Sacerdote e Rei

Feito à imagem divina, microcosmo e mediador, o homem é sacerdote e rei da criação. De maneira consciente e deliberada, ele pode fazer duas coisas que os animais só pode fazer de maneira inconsciente e instintivamente. Primeiro, o homem é capaz de abençoar e louvar a Deus pelo mundo. O homem é melhor definido não como um animal "lógico", mas como um animal "eucarístico". Ele não vive simplesmente no mundo, pensa nele e faz uso dele, mas é capaz de enxergar o mundo como um dom de Deus, como um sacramento da presença de Deus e como meio de comunhão com Ele. Assim, ele é capaz de oferecer o mundo de volta a Deus em ação de graças: "O que é teu, recebendo-o de Ti, nós te oferecemos em tudo e por tudo."  (Liturgia de São João Crisóstomo). 

Segundo, além de abençoar e louvar a Deus pelo mundo, o homem também pode remodelar e alterar o mundo; dotando-o assim de um novo significado. Nas palavras do Pe. Dumitru Staniloae, "O homem coloca o selo de sua compreensão e de seu trabalho inteligente na criação. O mundo não é apenas uma dádiva, mas uma tarefa para o homem." Cooperar com Deus é o nosso chamado; nós somos, na frase de São Paulo, "cooperadores de Deus" (1 Cor. 3: 9). O homem não é apenas um animal lógico e eucarístico, mas também um animal criativo: o fato do homem ser feito à imagem de Deus significa que o homem é um criador segundo a imagem de Deus, o Criador. Este papel criativo ele cumpre, não pela força bruta, mas pela clareza de sua visão espiritual; sua vocação não é dominar e explorar a natureza, mas transfigurá-la e santificá-la.

De várias maneiras — por meio do cultivo da terra, por meio do artesanato, por meio da escrita de livros e da pintura de ícones — o homem dá uma voz às coisas materiais e articula a criação em louvor a Deus. É significativo que a primeira tarefa de Adão recém-criado tenha sido dar nomes aos animais (Gn 2: 19-20). O ato de dar nomes é, por si só, um ato criativo: até encontrarmos um nome para algum objeto ou experiência, uma "palavra inevitável" para indicar seu verdadeiro caráter, não podemos começar a entendê-los e usá-los. É igualmente significativo que, quando, na Eucaristia, oferecemos de volta a Deus as primícias da terra, não as oferecemos na sua forma original, mas remodeladas pelas mãos do homem: nós trazemos ao altar, não feixes de trigo, mas pães, não uvas, mas vinho.

Assim, o homem é sacerdote da criação por meio do seu poder de dar graças e oferecer a criação de volta a Deus; e ele é o rei da criação por meio do seu poder de moldar e adaptar, para se conectar e diversificar. Esta função hierática e real é muito bem descrita por São Leôncio de Chipre:

Pelo o céu, pela da terra e pelo mar,  pela madeira e a pedra, por toda a criação visível e invisível, ofereço veneração ao Criador e Mestre e Fazedor de todas as coisas. Pois a criação não venera o Criador diretamente e por si só, mas é através de mim que os céus declaram a glória de Deus, através de mim a lua adora a Deus, através de mim as estrelas o glorificam, através de mim as águas e a chuva, o orvalho e toda a criação, venera Deus e dá-lhe a glória.

Ideias semelhantes são expressas pelo mestre hasídico Abraham Yaakov de Sadagora:

Todas as criaturas, plantas e animais trazem e se oferecem ao homem, mas através do homem são todas trazidas e oferecidas a Deus. Quando o homem purifica e se santifica em todos os seus membros como uma oferta a Deus, ele purifica e santifica todas as criaturas.

O Reino Interior

"Bem-aventurados os puros de coração, pois verão a Deus" (Mateus 5: 8). Feito à imagem de Deus, o homem é um espelho do divino. Ele conhece Deus ao se conhecer: entrando dentro de si mesmo, ele vê Deus refletido na pureza de seu próprio coração. A doutrina da criação do homem segundo a imagem significa que dentro de cada pessoa - dentro de seu eu mais verdadeiro e interior, muitas vezes chamado de "coração profundo" ou "fundo da alma" - há um ponto de encontro direto e união com o Incriado. ‘O reino de Deus está dentro de vós’ (Lucas 17:21).

Essa busca pelo reino interior é um dos principais temas dos escritos dos Padres. "A maior de todas as lições", diz São Clemente de Alexandria, "é conhecer a si mesmo; pois se alguém conhece a si, ele conhece a Deus; e se ele conhece a Deus, ele se tornará como Deus". São Basílio, o Grande, escreve: "Quando o intelecto não está mais dissipado entre coisas externas ou disperso em todo o mundo através dos sentidos, ele retorna a si mesmo; e por meio de si ascende ao pensamento de Deus." "Aquele que conhece a si mesmo conhece tudo’, diz São Isaac, o Sírio; e em outro lugar ele escreve:

Esteja em paz com sua própria alma; então o céu e a terra estarão em paz com você. Entre com entusiasmo na casa do tesouro que está dentro de você, e assim você verá as coisas que estão no céu; pois há apenas uma entrada para ambas. A escada que leva ao reino está escondida dentro de sua alma. Fuja do pecado, mergulhe em si mesmo, e em sua alma você descobrirá as escadas para ascender.

A essas passagens, podemos adicionar o depoimento de uma testemunha ocidental em nossos dias, Thomas Merton:

No centro de nosso ser há um ponto de nada, intocado pelo pecado e pela ilusão, um ponto de pura verdade, um ponto ou uma centelha que pertence inteiramente a Deus, que nunca está à nossa disposição, por meio do qual Deus dispõe de nossas vidas, que é inacessível às fantasias de nossa própria mente ou às brutalidades de nossa própria vontade. Este pequeno ponto de nada e de pobreza absoluta é a pura glória de Deus em nós. É, por assim dizer, seu nome escrito em nós, como nossa pobreza, como nossa indigência, como nossa dependência, como nossa filiação. É como um diamante puro, ardendo com a luz invisível do céu. Está em todos, e se pudéssemos vê-lo, veríamos esses bilhões de pontos de luz se reunirem na face e no fulgor de um sol que faria desaparecer completamente a escuridão e a crueldade da vida ... A porta do céu está em toda parte.

Fuja do pecado, insiste São Isaque; e estas três palavras devem ser particularmente observadas. Se quisermos ver o rosto de Deus refletido dentro de nós, o espelho precisa ser limpo. Sem arrependimento, não pode haver autoconhecimento e nem descoberta do reino interior. Quando me dizem: "Retorne para dentro de si: conheça a si mesmo", é necessário indagar: qual "eu" devo descobrir? Qual é o meu verdadeiro eu? A psicanálise revela-nos um tipo de "eu"; muitas vezes, no entanto, ela nos guia, não para a "escada que leva ao reino", mas para escada que leva ao porão, frio e úmido, infestado de cobras. "Conheça a si mesmo" significa "conheça a si mesmo como vindo de Deus, enraizado em Deus; conheça a si mesmo em Deus." Do ponto de vista da tradição espiritual ortodoxa, deve-se enfatizar que não devemos descobrir isso, nosso verdadeiro eu "de segundo a imagem", exceto através de uma morte para o nosso eu falso e caído. "Aquele que perder a sua vida por amor de mim, achá-la-á." (Mateus 16:25): somente aquele que vê o seu falso eu pelo que ele é e o rejeita, poderá discernir o seu verdadeiro eu, o eu que Deus vê. Sublinhando essa distinção entre o falso eu e o verdadeiro, São Varsanuphius ordena: "Esquece-te a ti mesmo e conhece-te a ti mesmo."

Mal, Sofrimento e a Queda do Homem


No maior romance de Dostoiévski, Os Irmãos Karamazov, Ivan desafia seu irmão: "Imagina que os destinos da humanidade estejam entre tuas mãos e que, para tornar as pessoas definitivamente felizes, proporcionar-lhes afinal a paz e o repouso, seja indispensável torturar um único bebê.... e basear sobre as suas lágrimas a felicidade futura. Consentirias tu, nestas condições, em edificar semelhante felicidade?" "Não, eu não consentiria", responde Alyosha. E se nós não concordaríamos com isso, por que então, aparentemente, Deus o faz?

Somerset Maugham nos diz que, depois de ver uma pequena criança morrer lentamente por meningite, ele não podia mais acreditar em um Deus de amor. Outros tiveram que assistir a um marido ou esposa, um filho ou pai, cair em depressão total: em todo o reino de sofrimento talvez nada seja tão terrível quanto contemplar um ser humano com melancolia crónica. Qual é a nossa resposta? Como reconciliar a fé em um Deus amoroso, que criou todas as coisas e viu que elas eram "muito boas", com a existência da dor, do pecado e do mal?

De imediato, deve-se admitir que não é possível uma resposta fácil ou uma reconciliação óbvia. A dor e o mal enfrentam-nos como algo irracional. O sofrimento, o nosso e o dos outros, é uma experiência que temos de atravessar, não um problema teórico que podemos explicar.  Se houver uma explicação, ela está em um nível mais profundo do que as palavras. O sofrimento não pode ser "justificado"; mas pode ser usado, aceito - e, por meio dessa aceitação, transfigurado. "O paradoxo do sofrimento e do mal", diz Nicolas Berdyaev, "é resolvido na experiência da compaixão e do amor".

Mas, embora possamos desconfiar de qualquer resolução fácil do "problema do mal", podemos encontrar no relato da queda do homem, no terceiro capítulo do Gênesis - quer seja interpretado literalmente ou simbolicamente - duas indicações vitais, a serem lidas com cuidado.

Primeiro, o relato do Gênesis começa falando da "serpente" (3:1), isto é, o diabo - o primeiro entre aqueles anjos que se afastaram de Deus para o inferno da vontade própria. Houve uma queda dupla: primeiro dos anjos, depois do homem. Para a ortodoxia, a queda dos anjos não é um conto de fadas pitoresco, mas uma verdade espiritual. Antes da criação do homem, já havia ocorrido uma separação dos caminhos dentro do domínio noético: alguns dos anjos permaneceram firmes em obediência a Deus, outros o rejeitaram. No que diz respeito a esta "guerra no céu" (Apocalipse 12: 7), temos apenas referências crípticas na Escritura; não nos é dito em detalhes o que aconteceu, e menos ainda sabemos quais são os planos de Deus para uma possível reconciliação dentro do reino noético, ou como o diabo poderá (se é que poderá), ser finalmente redimido. Talvez, como o primeiro capítulo do Livro de Jó sugere, Satanás não seja tão negro como é normalmente pintado. Para nós, neste estágio atual de nossa existência terrena, Satanás é o inimigo; mas Satanás também tem uma relação direta com Deus, da qual não conhecemos nada e sobre a qual não é sábio especular. Cuidemos de nossos próprios problemas.

Três pontos, porém, devem ser levados em conta e que dizem respeito aos nossos esforços para enfrentarmos o problema da dor. Em primeiro lugar, além do mal pelo qual nós humanos somos pessoalmente responsáveis, existem no universo forças de potência imensa, cuja vontade é voltada para o mal. Essas forças, embora não humanas, são, no entanto, pessoais. A existência de tais poderes demoníacos não é uma hipótese ou lenda, mas - para muitos de nós, infelizmente! - uma questão de experiência direta. Segundo, a existência de poderes espirituais caídos nos ajuda a entender por que, em certo momento no tempo, aparentemente antes da criação do homem, puderam ser encontrados na natureza a desordem, a perda e a crueldade. Terceiro, a rebelião dos anjos torna bem claro que o mal não se origina de baixo, mas de cima, não da matéria, mas do espírito. O mal, como já foi enfatizado, é um "nada"; não é um ser ou substância existente, mas uma atitude incorreta em relação ao que em si é bom. A fonte do mal está, portanto, na livre vontade dos seres espirituais dotados de escolha moral, que usam esse poder de escolha incorretamente.

Isso é o bastante com relação ao nosso primeiro ponto, a alusão à "serpente". Mas (e isso pode servir como segundo ponto), o relato do Gênesis deixa claro que, embora o homem venha a existir em um mundo já maculado pela queda dos anjos, ao mesmo tempo, nada obrigou-o a pecar. Eva foi tentada pela ‘serpente’, mas ela estava livre para rejeitar suas sugestões. O seu "pecado original", juntamente com o de Adão, consistiu em um ato consciente de desobediência, uma rejeição deliberada do amor de Deus, um afastamento livremente escolhido de Deus em direção a si mesma (Gênesis 3: 2,3,11). 

Na posse e no exercício do livre arbítrio pelo homem, não encontramos uma explicação completa, mas ao menos o começo de uma resposta ao nosso problema. Por que Deus permitiu que os anjos e os homens pecassem? Por que Deus permite o mal e o sofrimento? Nós respondemos: porque ele é um Deus de amor. O amor implica compartilhar, e o amor também implica liberdade. Como uma Trindade de amor, Deus desejou compartilhar sua vida com pessoas criadas feitas à sua imagem, que seriam capazes de responder a ele livremente e voluntariamente em uma relação de amor. Onde não há liberdade, não pode haver amor. A compulsão exclui o amor; como Paul Evdokimov costumava dizer, Deus pode fazer tudo, exceto obrigar-nos a amá-lo. Deus, portanto - desejando compartilhar seu amor - criou, não robôs que o obedeceriam mecanicamente, mas anjos e seres humanos dotados de livre arbítrio. E, assim, colocando a questão de forma antropomórfica, Deus correu um risco: pois com este dom de liberdade também havia a possibilidade do pecado. Mas aquele que não assume riscos não ama.

Sem liberdade, não haveria pecado. Mas sem liberdade, o homem não seria feito à imagem de Deus; sem liberdade, o homem não seria capaz de entrar em comunhão com Deus em uma relação de amor.

Consequências da Queda

Criado para a comunhão com a Santíssima Trindade, chamado para avançar no amor, da imagem à semelhança divina, o homem preferiu um caminho que não conduz para cima, mas para baixo. Ele repudiou o relacionamento de Deus que é a sua verdadeira essência. Em lugar de atuar como mediador e centro unificador, ele produziu divisão: divisão interior, divisão entre si mesmo e outros homens, divisão entre si e o mundo da natureza. Agraciado por Deus com o dom da liberdade, ele sistematicamente negou a liberdade aos seus semelhantes. Abençoado com o poder de mudar o mundo e dotá-lo de um novo sentido, ele malgastou esse poder, a fim de criar instrumentos de feiura e destruição. As conseqüências desse mau uso, mais particularmente desde a revolução industrial, tornaram-se horrivelmente evidentes na poluição do meio-ambiente.

O "pecado original" do homem, a passagem de estar centrado em Deus para estar centrado em si mesmo — o egoísmo — , significou, antes de tudo, que ele não mais enxergava o mundo e outros seres humanos de forma eucarística, como um sacramento de comunhão com Deus. Ele deixou de considerá-los como um dom, para ser oferecido de volta em ação de graças ao Doador, e começou a tratá-los como sua própria posse, para serem tomados, explorados e devorados. Assim ele não mais enxergava as outras pessoas e coisas como elas são em si mesmas e em Deus, enxergando-as apenas em termos de prazer e satisfação que poderiam retirar delas. E o resultado disso foi  a queda no círculo vicioso de sua própria concupiscência, que cresceu à medida em que era cada vez mais gratificadaO mundo deixou de ser transparente — uma janela através da qual o homem olhava para Deus — e tornou-se opaco; deixou de ser vivificante e tornou-se sujeito a corrupção e mortalidade. ‘Pois tu és pó, e ao pó retornarás’ (Gn 3:19). Isso é verdade para o homem caído e para todas as coisas criadas tão logo são cortadas da única fonte da vida, o próprio Deus.

Os efeitos da queda do homem foram físicos e morais. No nível físico, os seres humanos ficaram sujeitos a dor e doenças, à debilidade e à desintegração corporal da velhice. A alegria da mulher em trazer ao mundo uma nova vida misturou-se às dores do parto (Gênesis 3:16). Nada disso fazia parte do plano inicial de Deus para a humanidade. Em consequência da queda, homens e mulheres também ficaram sujeitos à separação entre alma e corpo na morte física. No entanto, a morte física deve ser vista primariamente não como uma punição, mas como um meio de libertação oferecido por um Deus amoroso. Em sua misericórdia, Deus não queria que os homens vivessem indefinidamente em um mundo caído, presos para sempre no círculo vicioso por eles urdido; e assim, Ele forneceu uma maneira de escapar. Pois a morte não é o fim da vida, mas o início da sua renovação. Observamos, para além da morte física, a futura reunião do corpo e da alma na ressurreição geral no Último Dia. Ao separar nosso corpo e alma na morte, portanto, Deus age como o oleiro: quando o vaso em cima de sua roda se torna defeituoso e retorcido, ele quebra a argila em pedaços de modo a moldá-la de novo (compare com Jeremias 18:16) . Isso é enfatizado no serviço funerário ortodoxo:

Há muito, Tu me criaste do nada,

E me honraste com a tua imagem divina;

Mas quando desobedeci o teu mandamento,

Tu me retornaste à terra de onde vim.

Guia-me de volta para a tua semelhança,

Remodelando minha antiga beleza.

No plano moral, em consequência da queda, os seres humanos ficaram sujeitos à frustração, ao tédio e à depressão. O trabalho, destinado a ser uma fonte de alegria para o homem e um meio de comunhão com Deus, passou a ser realizado quase sempre de má vontade, "com o suor do rosto" (Gênesis 3:19). E isso não foi tudo. O homem tornou-se sujeito à alienação interior: enfraquecido em sua vontade, dividido contra si mesmo, tornou-se seu próprio inimigo e carrasco. Como diz São Paulo: "Porque eu sei que em mim, isto é, na minha carne, não habita bem algum; e com efeito o querer está em mim, mas não consigo realizar o bem. Porque não faço o bem que quero, mas o mal que não quero esse faço ... Miserável homem que eu sou! quem me livrará do corpo desta morte?" (Romanos 7: 18,19,24). Aqui, São Paulo não está apenas dizendo que existe um conflito dentro de nós entre o bem e o mal. Ele está afirmando que, muitas vezes, nos encontramos moralmente paralisados: desejamos sinceramente escolher o bem, mas nos encontramos presos em uma situação em que todas as nossas escolhas resultam em maldade. E cada um de nós sabe, por experiência própria, exatamente o que São Paulo quer dizer.

São Paulo, no entanto, tem o cuidado de acrescentar: "eu sei que em mim, isto é, na minha carne, não habita bem algum". Nossa guerra ascética é contra a carne, não contra o corpo como tal. ‘Carne’ não é o mesmo que ‘corpo’. O termo carne, tal como usado na passagem citada, significa aquilo dentro de nós que seja pecaminoso e contrário a Deus; assim, não foi apenas o corpo, mas a alma do homem caído que se tornou  carnal. Devemos odiar a carne, mas não o corpo, que é obra de Deus e Templo do Espírito Santo. A auto-negação ascética é, portanto, uma luta contra a carne, mas não é uma luta contra o corpo, e sim a favor dele. Como o padre Sergei Bulgakov costumava dizer: "Mate a carne, a fim de adquirir um corpo". O ascetismo não é a servidão de si, mas o caminho para a liberdade. O homem é um emaranhado de auto-contradições: somente por meio do ascetismo ele pode ganhar espontaneidade.

O ascetismo, entendido nesse sentido como uma luta contra a carne, contra o aspecto pecaminoso e caído do eu, é algo claramente é exigido de todos os cristãos, e não apenas daqueles sob votos monásticos. A vocação monástica e a vocação do casamento — o caminho da negação e o caminho da afirmação — devem ser vistas como paralelas e complementares. O monge (ou a freira) não é um dualista, mas, na mesma medida que o cristão casado, procura proclamar a bondade intrínseca da criação material e do corpo humano; e, da mesma forma, o cristão casado é chamado ao ascetismo. A diferença reside exclusivamente nas condições externas em que a guerra ascética é realizada. Ambos são ascetas, ambos são materialistas (usando a palavra em seu verdadeiro sentido cristão). Ambos negam o pecado e afirmam o mundo.

A tradição ortodoxa, sem minimizar os efeitos da queda, não acredita que ela resultou em uma "depravação total", como afirmam os calvinistas em seus momentos mais pessimistas. A imagem divina no homem foi obscurecida, mas não obliterada. Sua livre-arbítrio teve seu exercício restringido, mas não destruída. Mesmo em um mundo caído, o homem ainda é capaz de um sacrifício generoso e de uma compaixão amorosa. Mesmo em um mundo caído, o homem ainda conserva algum conhecimento de Deus e pode entrar, pela graça, em comunhão com ele. Há muitos santos nas páginas do Antigo Testamento, homens e mulheres, como Abraão e Sara, José e Moisés, Elias e Jeremias; e fora do povo escolhido de Israel, há figuras como Sócrates que não só ensinou a verdade, mas a viveu. No entanto, continua a ser verdade que o pecado humano — o pecado original de Adão, agravado pelos pecados pessoais de cada geração subseqüente — estabeleceu tal fosso entre Deus e o homem, que o homem só, seus próprios esforços, não é capaz de transpor.

Ninguém cai sozinho

Para a tradição ortodoxa, então, o pecado original de Adão afeta a raça humana na sua totalidade, e tem conseqüências físicas e morais: ele resulta não apenas na doença e na morte física, mas na fraqueza moral e paralisia. Mas isso implica também uma culpa herdada? Aqui ortodoxia é mais cautelosa. O pecado original não deve ser interpretado em termos jurídicos ou quase biológicos, como se fosse uma "mancha" física de culpa, transmitida através de relações sexuais. Esta imagem, que normalmente ocorre na perspectiva agostiniana, é inaceitável para a ortodoxia. A doutrina do pecado original significa, antes, que nascemos em um ambiente onde é fácil fazer o mal e difícil fazer o bem; fácil de magoar os outros, e difícil de curar suas feridas; fácil despertar as suspeitas dos homens e difícil ganhar sua confiança. Isso quer dizer que somos, cada um de nós, condicionado pela solidariedade da raça humana em seus erros acumulados, em seus maus pensamentos acumulados, e, portanto, em sua "má-existência" acumulada. E a esse acumulo de erros, nós mesmo acrescentamos outros tantos por nossos atos pecaminosos deliberados. O abismo cresce mais e mais.

É aqui, na solidariedade da raça humana, que encontramos uma explicação para a aparente injustiça da doutrina do pecado original. Por que, perguntamos, toda a raça humana deve sofrer por causa da queda de Adão? Por que todos deveriam ser punidos por causa do pecado de um homem? A resposta é que os seres humanos, feitos à imagem do Deus Trinitário, são interdependentes e inerentes uns aos outros.  Nós somos "membros uns dos outros" (Efésios 4:25), e, portanto, qualquer ação realizada por um membro da raça humana inevitavelmente afeta todos os demais. Embora não sejamos, em sentido estrito, culpados pelos pecados dos outros, ainda assim estamos sempre envolvidos.

"Quando alguém cai", afirma Aleksei Khomiakov, "ele cai sozinho; mas ninguém é salvo sozinho." Não deveria ter dito também que ninguém cai sozinho? O Starets Zosima de Dostoiévski em Os Irmãos Karamazov aproxima-se da verdade quando diz que somos, cada um de nós, "responsáveis por todos e tudo":

"Há apenas um caminho para a salvação, que é tornar-se responsável por todos os pecados dos homens. Assim que você se responsabilizar com toda sinceridade por tudo e por todos, você verá de imediato que isso é verdadeiro, e que, de fato, você é culpado por todos e por todas as coisas."

Um Deus que sofre?

Nosso pecado causa tristeza ao coração de Deus? Ele sofre quando sofremos? Temos o direito de dizer ao homem ou mulher que está sofrendo: "Deus mesmo, neste exato momento, está sofrendo o que você sofre e está superando"?

Desejando preservar a transcendência divina, os primeiros Padres, gregos e latinos, insistiram na "impassibilidade" de Deus. Interpretado rigorosamente, isso significa que, enquanto Deus-feito-homem é capaz de sofrer e sofre, Deus em si mesmo não. Sem negar o ensinamento patrístico, não deveríamos também dizer algo mais do que isso? No Antigo Testamento, muito antes da Encarnação de Cristo, encontramos a afirmação de Deus: "Sua alma se entristeceu pela miséria de Israel" (Juízes 10:16). Em outras partes do Antigo Testamento, palavras como estas são colocadas na boca de Deus: "Ephraim, meu querido filho? Ele é meu filho amado? Porque depois que falo contra ele, ainda me lembro dele solicitamente; por isso se comove por ele meu coração" (Jeremias 31:20). "Como posso desistir de você, Efraim? Como posso entregar você nas mãos de outros, Israel? O meu coração está enternecido." (Oséias 11:8)

Se essas passagens significam alguma coisa, devem significar que, mesmo antes da Encarnação, Deus está diretamente envolvido nos sofrimentos de sua criação. Nossa miséria causa tristeza a Deus; as lágrimas de Deus estão unidas às do homem. O respeito devido à abordagem apofática irá, naturalmente, nos deixar desconfiados de atribuir sentimentos humanos a Deus de forma crua ou desqualificada. Mas temos ao menos o direito de afirmar. "O amor torna os sofrimento dos outros o seu próprio", afirma o "Livro dos Pobres em Espírito." Se isso é verdade para o amor humano, muito mais o é para o amor divino. Como Deus é amor e criou o mundo em um ato de amor — e como Deus é pessoal, e personalidade  implica compartilhar — Deus não permanece indiferente às tristezas desse mundo caído. Se eu, como ser humano, permaneço impassível perante angústia de outro, em que sentido eu verdadeiramente o amo? Certamente, então, Deus se identifica com sua criação em sua angústia.

Foi verdadeiramente dito que havia uma cruz no coração de Deus antes que uma fosse plantada fora de Jerusalem; e embora a cruz de madeira tenha sido retirada, a cruz no coração de Deus ainda permanece. É a cruz de dor e triunfo - os dois juntos. E aqueles que podem acreditar nisso descobrirão que a alegria se mistura com a taça de amargura. Eles vão partilhar num nível humano da experiência divina do sofrimento vitorioso. 



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