sexta-feira, 10 de junho de 2016

A Luz nas Trevas: Origem e Natureza do Paganismo (Sergei Bulgakov)

A queda foi a suprema catástrofe religiosa. A comunhão direta e imediata com Deus, que era a parcela dos primogênitos no paraíso, foi quebrada. Deus se tornou distante tanto para o mundo como para a humanidade (transcendente) e a humanidade foi deixada sozinha - como seu próprio senhor: "vocês serão como deuses." Incipit religio.  Este início da religião está conectado com a pecaminosa deficiência da consciência de Deus em uma humanidade doente e decaída. Embora os primogênitos, ao experimentarem a comunhão com Deus no paraíso, conhecessem o imenso abismo que separa o Criador da criação, o subterrâneo não foi revelado nessa consciência. Eles trataram o Criador como filhos amados e queridos, com uma confiança límpida de qualquer coisa e com intimidade. O sentimento agudo e doloroso de criaturidade, a ofensa e inveja foram despertados por Satanás, que convocou neles a rebelião do subterrâneo, o levante da criação contra seu próprio fundamento. Entre Deus e a humanidade naquele tempo estava a escuridão da criaturidade subterrânea. O esforço da humanidade para romper esta escuridão em direção à luz do conhecimento de Deus é expressa na religião. A luz resplandeceu nas trevas, e as trevas não a compreenderam. No paraíso, a humanidade não sentia nenhuma distância entre Deus e ela mesma, e assim não conhecia nenhuma sede de unir-se a Ele. Mas o pathos da religião é o pathos da distância, e seu grito é o grito de abandono por Deus. "Eli, Eli lama sabachthani - meu Deus, meu Deus, por que me abandonastes?" - esta é sua expressão final. No paraíso, se houvesse mesmo religião, ela era qualitativamente diferente daquela que nos é familiar, pois não havia nela nenhuma busca, nenhum esforço, nem suor. No paraíso não havia templo ou altar, pois todo o paraíso era um templo. Correspondendo a isto, na "nova Jerusalém que virá do céu, não haverá templo, mas o próprio Deus estará lá, porque o Senhor Deus Todo-Poderoso é o seu templo e o Cordeiro" (Ap 21.22; : 3).

Com a expulsão do paraíso cessou a alegria da comunhão imediata com Deus. "As vestes de couro" tornavam o brilho da Divindade imperceptível para os humanos; a escuridão engrossava a natureza humana. Eles estavam cientes de estar no mundo, enquanto Deus havia se tornado transcendente, deixando este "mundo", a terra da expulsão, à sua disposição. Em virtude de sua própria inércia e peso, o mundo aparentemente se afasta de Deus, sofre uma "involução", se retira em si mesmo e, gradualmente, os raios do conhecimento paradisíaco de Deus se apagam e as canções do paraíso desaparecem. Parecia que Lúcifer tinha razão em comemorar, porque seu propósito - tornar-se o príncipe do mundo, um anti-deus, possuir a criação de Deus - foi evidentemente realizado. A remoção da Divindade do mundo, sua transcendência além dos limites familiares, torna-se equivalente à sua negação prática; o sentimento da separação dos seres humanos de Deus os leva a divinizar o cosmos. A religião, que expressa a tensão mútua de ambos os pólos - é o que restava aos seres humanos do conhecimento paradisíaco de Deus, como lembrança e esperança. E o tentador teve de extingui-la para dominar plenamente a humanidade, imergindo-a nos elementos de contentamento com o mundo. Mas o invejoso amante de si mesmo não conseguiu compreender a incomensurabilidade do amor - da humildade divina, do rebaixamento de Deus por amor à criatura, pois não sabia valorizar a gratidão do espírito humano em que a imagem de Deus brilha com beleza imortal. E Deus não deixou sua criação vítima do êxtase solipsista, mas veio para a salvação da humanidade - através da religião. A revelação religiosa começou. E a terra ficou atenta, ouvindo o chamado do céu; a humanidade sentiu a pátria celestial interiormente. Satanás estava envergonhado, pois nunca conseguiu esvaziar o ser humano até a vileza completa da irreligiosidade e ateísmo, e até mesmo os "tempos modernos", os mais ímpios e pesados ​​na "involução", não conseguiram esse suicídio espiritual. 

No processo religioso, que constitui a essência da história do mundo, é uma questão de salvação do mundo, a recuperação de Deus pela humanidade (das profundezas clamei a Ti, Senhor), mas também da salvação do mundo. Mas o último só pode ser realizado por Deus; com seu próprio poder, a humanidade não pode ser libertada do mundo, pois é ela mesma o mundo. Portanto, na religião, pode-se distinguir duas tarefas: a revelação divina e a operação divina. A primeira tarefa esgota por si só o conteúdo positivo do "paganismo" (entendendo por isto as religiões "naturais", isto é, todas menos o judaísmo-cristianismo), e ambas as tarefas simultaneamente são resolvidas na religião revelada do Antigo e do Novo Testamento.


      Banido do paraíso, o ser humano procura a Deus, pois "não está longe de cada um de nós". Tal busca é o paganismo, que contém ou pelo menos pode conter um conhecimento positivo de Deus, algo revelado a seu respeito. A sede de um encontro com Deus no paganismo arde ainda mais fortemente do que na religião revelada; a busca é mais ardente, mais frenética, mais agonizante. Não é por nada que a névoa de tristeza, desespero e falta de recompensa se situa acima do Olimpo límpido, e assim o paganismo cede facilmente ao frenesi orgiástico. O aparente "imanentismo" ou panteísmo - divinização das forças da natureza, dos animais e do ser humano - não deve enganar aqui, ao instilar a noção de algum tipo de contentamento e equilíbrio do mundo. A religião revelada não podia conhecer tal horror do abandono do Deus como o paganismo experimentou em contorções convulsivas, exatamente nos momentos de suas ascensões religiosas. O esforço da humanidade para romper até Deus foi mais intenso aqui e, acima de tudo, mais desesperado do que no judaísmo-cristianismo onde a escada de Jacob foi erguida. Não é por acaso que foi revelado na plenitude dos tempos que os pagãos se mostraram mais prontos a receber a Cristo do que os judeus, porque eles tinham sede e esperavam-no mais intensamente: o filho pródigo tinha ficado nostálgico e abatido há muito tempo. O paganismo em sua essência mais profunda é acima de tudo essa melancolia do banimento, um grito para o céu: ah, venha! Por isso, a concentração trágica e a maior seriedade são próprias dele. Mas, de uma maneira fatídica, seu pathos religioso é transformado em substituto religioso, em toda forma de idolatria, apesar de sua própria aspiração interior. Nenhuma das religiões sérias pode se contentar com a idolatria, isto é, com aplicação de poderes divinos e da natureza em ídolos. Em todos esses objetos de adoração, o pagão só vê ícones vivos da Divindade; para ele o mundo inteiro é preenchido pelo poder divino: panta plērē theōn. E os próprios deuses eram como raios separados e estilhaçados, multidões de hipóstases da Divindade transcendente. Em geral, o politeísmo no paganismo não é evidência da falta de um desejo de ser elevado até a Divindade que permanece transcendente, mas sim da impotência para fazer isso, e é um símbolo da transcendência e da inexpressibilidade da Divindade. Como resultado de sua falta de face, uma multiplicidade involuntária de faces é obtida. O politeísmo puro é meramente a degeneração do paganismo, e até certo ponto sua perversão. Dito de maneira diferente, tanto na autoconsciência religiosa do paganismo quanto na sua piedade, o NÃO da teologia negativa é vitalmente sentido, constituindo-lhe o fundo religioso geral e lhe dando um aroma, profundidade e sublimidade definidos.

 Se é impossível considerar o paganismo ao longo de toda sua existência como uma mentira desvelada e demonolatria, então como se deve definir suas verdades, ou a natureza de suas revelações originais? Pode-se dizer esquematicamente que no paganismo o transcendente é revelado apenas no - e através do - imamente (theocosmismo), enquanto que na Revelação o transcendente desce ao humano: no primeiro caso, uma brecha através da espessa crosta da natureza; no segundo, a descida da Divindade, o seu encontro com a humanidade. No paganismo, a humanidade é deixada ao seus próprios poderes - há uma busca por Deus por meio da "contemplação da criação," o invisível através do visível. Mesmo a queda só pôde escurecer, mas não paralisar a revelação de Deus no mundo. A humanidade, possuindo realmente a imagem de Deus, tem, assim, em si mesma, um órgão de cognição divina em sua profunda auto-cognição: por isso gnōthi seauton [conhecer a si mesmo] também significa gnōthi theon [conhecer deus]. E toda a natureza tem a mesma imagem, na medida em que é humanidade; toda a criação em sua sofianicidade está repleta de revelações da Divindade. Estas luzes sofianicasjuntamente com a imagem de Deus no ser humano, compreendem a base objetiva do conhecimento pagão de Deus.

 Esforçando-se em direção à luz da Divindade que percorre o universo, o pagão quer romper além dos limites do mundo, para realizar um transcensus religioso. Devido a deste esforço, uma vida religiosa ramificada e intensa é desenvolvida, o dogma é fixado, o culto surge e todas as suas características substanciais: tempos e lugares sagrados, imagens, cultos divinos, rituais, sacrifícios e mistérios. A sede por mistério, pelo encontro com a Divindade, por uma união, que é evidenciada pela seriedade e intensidade das buscas religiosas, naturalmente, é bastante apropriada também para as religiões pagãs. Não há qualquer dúvida de que esses mistérios não permaneceram somente em um simbolismo exterior, mas havia uma certa ação mística, experimentada religiosamente - fora deste pressuposto toda a história da religião se transforma num absurdo ou paradoxo. A "iniciação" nos mistérios, de acordo com as poucas evidências que chegaram até nós, era acompanhada por tais experiências que separavam os humanos de seu passado com um novo limite, o significado dessas experiências e o terror sagrado inspirado por elas é atestada pela severa disciplina do arcani que as envolviam com um sigilo impenetrável.

Mas no que eles participavam e no que eram iniciados nos mistérios? Que tipo de "graça" era comunicada aos iniciados? É muito mais fácil para dar resposta negativa do que uma positiva: não era, é claro, uma verdadeira participação do Corpo e Sangue de Cristo para a remissão dos pecados, pois esta participação absoluta não existe fora da Igreja de Cristo, da encarnação divina e do Gólgota. No entanto, os participantes nos mistérios recebiam alguma coisa - uma espécie de graça natural, mas é difícil expressar o que seria em categorias do pensamento religioso Cristão, e não estamos estabelecendo esta tarefa para nós mesmos. Mas acreditamos que a graça de Deus é multiforme; "Deus não dá o Espírito por medida." A partir do fato indiscutível de que os mistérios pagãos tinham um caráter natural, ainda é impossível concluir que eles eram apenas um excesso orgástico natural. Se se admite que uma certa objetividade do conhecimento de Deus era inerente ao paganismo, em seguida, deve-se reconhecer isto com toda seriedade e até o fim, isto é, acima de tudo quando aplicado precisamente ao culto religioso, o culto divino, os sacrifícios e os mistérios. Mas, obviamente, a sua eficácia permanecia limitada de forma fatídica; não fornecia o renascimento, apenas prometia. A divindade permanecia transcendente de qualquer maneira, e a graça operava como se do exterior (semelhante à forma como ela operou na jumenta de Balaão). Graças a um entusiasmo forçado, como um roubo de graça, a possessão mística e seus excessos, a condição de intoxicação religiosa a qual aspiravam por vários meios surgiu tão facilmente no paganismo. Por esta razão a "sobriedade" Cristã não é, em geral, característica do paganismo, mesmo uma simples sobriedade religiosa que pode, naturalmente, ser combinada com uma elevada inspiração religiosa.


Se se reconhece a autenticidade religiosa do paganismo, então, deve-se também aceitar que ali um processo religioso positivo estava ocorrendo, uma "plenitude dos tempos" histórico estava amadurecendo, ou, dizendo de outra forma, o Cristianismo estava preparado não só no Judaísmo, mas também no paganismo. Nele o Cristianismo tem seu próprio aspecto natural, ao que parece, que se veria mais cedo ou mais tarde (até agora, no entanto, isto aconteceu em uma medida totalmente inadequada). A diferença fundamental entre Revelação e paganismo, naquilo que refere-se a cognição de Deus, está na pureza e na qualidade imaculada, que é adequada apenas a revelação. O paganismo não conhece Deus face a face, mas apenas seu ícone natural, embora mesmo este ícone é milagroso e vivificante dentro de limites razoáveis de piedade pagã. Como parte do pan-organismo sofianico do cosmos, a humanidade é o raio "noético" de Sofia, e possui uma natureza definida; a sua ideia é o prisma através do qual o mundo é refratado. Conectado com isto está a concretude e a limitação desta percepção do mundo. Na Sofia divina não há necessidade de limite, pois tudo existe em tudo, mas no mundo escravizado pelo pecado, esta concretude está sempre com a presença da unilateralidade. Por esta razão, cada revelação religiosa no paganismo é sempre uma refração da verdade religiosa através de um prisma definido; seu raio passa através do vidro manchado de maneira familiar. A partir disto surge a pluralidade inescapável de religiões pagãs, e também o seu caráter nacional, essencialmente inerente e conduzindo-as para próximo de uma linguagem nacional, folclore, e várias formas de criatividade nacional (o fato do sincretismo religioso, como um fenômeno tardio, decadente e derivado disso não contradiz isso). Paganismo, como a religião dos povos, carrega em si o selo da torre de babel e a confusão das línguas, onde foi expresso um estranhamento recíproco interior no espírito da humanidade.  Cada povo, correspondendo ao seu próprio aspecto inteligível, refrata ao seu modo a centelha do Pleroma divino, e deixado ao seus próprios poderes, molda-se sua própria religião e piedade. Somente o Cristianismo, como verdade incondicional, revelado a humanidade pelo próprio Verbo encarnado, é livre de nacionalidade e nisto é ontologicamente diferente do paganismo. 
Em consonância com a sua natureza, o paganismo sofre de psicologismo, e precisamente tal característica faz com que seja inevitavelmente plural. Não se trata daquele psicologismo normal, que está conectado com a individualidade que coloca seu selo sobre o caráter geral da percepção do mundo. Aqui ele penetra nas profundezas e se torna base da cognição religiosa. O psicologismo, quando se torna mais profundo desta maneira, torna-se cosmismo, e toma o ser humano um ser microcósmico. No entanto, permanece sempre submerso de forma decisiva em sua própria subjetividade precisamente quando deveria elevar-se acima do mundo e de si mesmo - o ato, transcendente em propósito e significado, permanece encerrado na imanência.  Pois o imanentismo na religião, que o paganismo está condenado a permanecer, é precisamente o psicologismo, involuntário e inescapável subjetivismo. Mas, tendo sido aprofundado até o cosmismo, o psicologismo não é definitivamente encerrado; os raios da verdade objetiva podem rompe-lo e são translúcidos através dele. Toda religião séria possui um certo grau de verdade, e contém alguns dos seus aspectos. Mas juntamente com a veracidade, a falsidade também lhe é própria, a distorção deste aspecto. A dualidade penetra na própria consciência do paganismo e dá-lhe um elemento inerentemente trágico, que flui do conhecimento de sua inconclusividade e relatividade. Os iniciados nos mistérios vieram a saber que os deuses do Olímpo não eram eternos (Schelling); assim também os alemães passaram a ver claramente o "crepúsculo dos deuses" e a conflagração do Valhalla. Somente o Cristianismo, que pode continuar a ser desenvolvido em sua revelação - mas nunca passível abolição - é livre desta fratura trágica. 


Esse psicologismo religioso condena as religiões pagãs à degeneração através da imersão no naturalismo e no excesso orgiástico. Um pagão místico sensível compreende, a partir do coro polifônico dos espíritos naturais, dos batimentos do coração do mundo, o esforço da criatura para exceder seu estado dado, para sair de si e ser infectada com esse frenesi, o êxtase da natureza. Ele nem sempre resistiu essa pressão mística: ao se render ao excesso natural orgiástico, caiu sob o feitiço dos espíritos da natureza. Enfeitiçado por eles, perdeu a capacidade de distinguir o êxtase natural do religioso, excesso orgiástico da inspiração, e então se tornou "pagão" no mau sentido da palavra. O paganismo em certa medida é este tipo de possessão, e o apóstolo Paulo advertiu os coríntios contra esta "escravidão aos elementos vazios e vãos do mundo". Há um grande abismo entre o êxtase cristão (como é descrito pelo apóstolo Paulo em 1 Coríntios 14) e o excesso orgiástico pagão. Mas, ao mesmo tempo, é necessário enfatizar que na fenomenologia do culto religioso, no ritual do culto divino, nos sacrifícios, na oferta de incenso, nas vestimentas sagradas, na veneração de santos e heróis, nos lugares sagrados e imagens, em geral tudo o que toca a organização da vida religiosa, o paganismo não está tão longe do cristianismo como se gosta de pensar. Entre algumas pessoas (sobretudo entre os representantes contemporâneos da escola "religioso-histórica" no protestantismo), este quadro é feito de forma muito externa e tendenciosa, e por outros é tendenciosamente dissimulado; um estudo religioso comparado de cultos é uma das tarefas que persistentemente emerge de uma compreensão correta da natureza do processo religioso no paganismo.

Em vista da dualidade trágica que condenou o paganismo à ambiguidade e à degeneração, é compreensível por que tornou-se vítima da possessão demoníaca: o excesso orgiástico é substituído pelo delírio e os espíritos elementais são transformados em demônios. Isso se dá em conjunto com a visão religiosa que chega ao mundo com a encarnação do Verbo. "Grande Pan" morreu, mas simultaneamente um novo, transfigurado Pan nasceu. O antigo naturalismo torna-se impossível, e o paganismo moribundo assume traços cada vez mais sinistros. Os deuses pagãos após Cristo já são demônios para aqueles que passaram a crer Nele; os prefiguramentos e os avisos anteriores perderam seu antigo significado após o cumprimento. Mas os próprios pagãos permanecem até certo ponto inocentes do pecado básico do paganismo, que pesava sobre eles como uma maldição do repúdio divino e o peso da expulsão do paraíso. A piedade pagã, embora conheça Deus no mundo, não é capaz de compreender plenamente as imagens e as figuras através das quais Ele é visto. Enfraquece-se sob o peso do naturalismo, é ensurdecido pelas vozes do mundo, um joguete de seus elementos. Também se enfraquece em seu politeísmo, sendo condenado a criar sempre novos e mais novos deuses, máscaras do "Deus desconhecido". O tema do panteão, que ressoa mais claro no declínio do paganismo, no esforço para recolher ali todos os deuses venerados e não omitir nenhum deus (e é por isso que uma reserva, um altar para o theōi agnōstōi - para o deus ainda desconhecido - era construído), claramente testemunha a perda de fé em deuses separados, e a impossibilidade de sentir-se à vontade no politeísmo, que se transforma em uma má pluralidade ou num mau infinito. Desta forma, toda a grosseira do antropomorfismo que lhe é próprio é desnudado, e assim extrai mais forças numa atmosfera de superstição e decadência. Mas em sua base encontra-se uma idéia profunda; ali está contido a revelação da hipostesidade da Divindade, o panteísmo sem rosto é superado.  

Essa hipostesidade subdivide e multiplica, como se repetisse reflexos de um espelho, e para o exemplo dado, é possível, talvez, concordar com Feuerbach, que a humanidade criou deuses em sua própria imagem portadora de Deus (embora isto não signifique que isso os inventou). Além da revelação sobre a hipostesidade da Divindade, o politeísmo também contém uma revelação da soficianidade da natureza e da humanidade. Sua linguagem é audível para o ouvido atento; sob a crosta da natureza é perceptível o pórfiro divino. O paganismo, graças à sua visão mística, vê "deuses" onde apenas "forças da natureza" mortas são acessíveis à nossa consciência "científica". O mundo, tomado em si mesmo, é uma hierarquia de "deuses", ou uma concórdia em que suas muitas vozes se fundem sonora e harmoniosamente em um único acorde. Com isso se define a profundidade mística e a autenticidade do paganismo, como também a verdade relativa de seu politeísmo. Mas disso também brota a sua mentira, e a repugnância religiosa que os portadores do monoteísmo, os profetas de Israel, sentiram tão ardentemente. Aqui a criatura ofusca Deus e fica entre Deus e a humanidade.

O paganismo como naturalismo religioso foi para sempre abolido pela Cruz, e assim a história do paganismo depois de Cristo é a lenta - mas inevitável - agonia de morte. A melhor evidência disto são as tentativas de sua restauração, começando com os filósofos neoplatônicos ou Juliano o Apóstata que, por muito mais que não quisesse ser simplesmente um pagão, permaneceu, no entanto, apenas um apóstata do cristianismo. Deve-se dizer, ainda mais, o mesmo com respeito à idade da Renascença que, ainda com toda sinceridade em sua atração pela antiguidade em seus aspectos estéticos, filosóficos, científicos e filosóficos, permaneceu espiritualmente estranha a ela, senão hostil. A antiguidade na era cristã em geral não pode ser compreendida interiormente fora do cristianismo, mas somente através dele e por ele, ao passo que os representantes do Renascimento procuravam se libertar do Cristianismo com a sua ajuda - de fato, de todas as religiões. A antiguidade clássica não conhecia o "humanismo" naquele sentido, e é inteiramente inocente dele. Em geral, o paganismo, com exceção de épocas e grupos sociais separados e limitados, se distingue por uma religiosidade intensa que perturba e se assusta aquele que se aproxima. Chamar de pagã a civilização materialista europeia moderna com seu racionalismo "científico" dominante, como às vezes ocorre, é insultar o paganismo. É inferior ao paganismo, e inferior à religião em geral, e ainda precisa aprender muito de antemão para que compreenda a alma do paganismo. 

Mas, fora dessas tentativas de restauração imaginária do paganismo, as religiões não-cristãs existem lado a lado com o cristianismo. Algumas delas se desenvolveram ao lado do cristianismo e em conflito com ele, e assim elas têm, em maior ou menor grau, um caráter hostil ao cristianismo - como o judaísmo talmúdico e o islamismo. Outras desenvolveram-se fora de sua influência visível e eram suficientemente autodeterminantes com respeito a ele, embora seja natural supor que rivalidade e antipatia hostis estejam presentes em suas atitudes em relação ao Cristianismo - Brahmanismo, Budismo, Confucionismo, etc. Como se deve tratar essas religiões, que, se não forem anti-cristãs, são, em todo caso, não-cristãs? É necessário procurar o que é comum em cada uma delas, para que, colocando este elemento comum entre parênteses, possa-se declarar a quintessência da verdade religiosa, como faz o racionalismo reducionista sob várias formas (a teosofia, o tolstoísmo)? Ou, tendo reconhecido o fato da pluralidade de religiões em toda a sua incompreensibilidade para nós, devemos resignar-nos diante do mistério? Toda religião é ciumenta e exclusiva por natureza, e ainda mais impossível é qualquer recuo da verdade absoluta do cristianismo para agradar o não-cristianismo. Pode-se e deve-se respeitar toda oração sincera, e mesmo assim um Cristão não começará a orar com um muçulmano em sua mesquita ou com um brâmane em sua pagoda - tal oração será sentida como blasfêmia imediatamente, sem qualquer discussão. Os limites das crenças não são estabelecidos pela vontade humana e não devem ser transgredidos arbitrariamente. Aqui está o mistério da Providência: a verdade do cristianismo não é revelada a todas as pessoas nesta vida. Alguns tentam lidar com a dificuldade da questão pelas teorias da reencarnação; outros declaram: nulla salus sine ecclesia [fora da Igreja não há salvação], supondo que os limites místicos da Igreja lhes são conhecidos com toda precisão. Mas o fato permanece em toda a sua incompreensibilidade: a pregação do evangelho até hoje não se espalhou por todo o globo, e dezenove séculos depois de Cristo, a maioria da humanidade ainda pertence como se fosse uma época pré-cristã. E se não podemos negar o conteúdo religioso positivo no paganismo, ainda menos temos alguma base em relação às grandes religiões mundiais que, à sua maneira, procuram Deus e confortam espiritualmente o seu rebanho. [...]

À luz da fé cristã, as verdades que estão presentes nos ensinamentos dogmáticos das religiões não-cristãs e os traços de piedade autêntica inerentes ao seu culto podem receber uma avaliação correta. Mas, para tal reconhecimento, não há necessidade de se esforçar para construir algum tipo de Volapük religioso ou estabelecer um esperanto inter-religioso.

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