sexta-feira, 10 de agosto de 2018

Ortodoxia e Heterodoxia (Pe. Victor Potapov) [Parte 1/3]


O que é ortodoxia?

Primeiro de tudo, a ortodoxia é a fé correta em Deus; é esse poderoso poder que faz com que cada cristão ortodoxo verdadeiramente crente, seja inabalável no caminho justo e piedoso de sua vida. Ser ortodoxo significa saber corretamente com a mente, crer corretamente com o coração e confessar corretamente com os lábios tudo o que o próprio Deus nos revelou sobre si mesmo, sobre o mundo e o homem, e sobre as tarefas e objetivos de nossa vida no ensino sobre a obtenção de nossa união espiritual com Ele e nossa salvação eterna. Sem essa fé correta, de acordo com a palavra do apóstolo Paulo, é impossível agradar a Deus. [1]

A ortodoxia não é apenas uma fé correta e uma confissão correta das verdades e dogmas fundamentais da Igreja de Cristo, mas também uma vida correta e virtuosa, fundamentada em uma lei inabalável: o cumprimento dos mandamentos de Deus, o permeio do coração com humildade, mansidão e amor pelo próximo, a prestação de ajuda aos necessitados e desafortunados e o serviço da igreja. O apóstolo Tiago ensina: “Fé sem obras é morta”. [2] O próprio Senhor Jesus Cristo, futuro Juiz do mundo inteiro, promete “recompensar todo homem segundo as suas obras” [3]. O apóstolo Paulo testifica que “todo homem receberá a sua recompensa segundo o seu próprio trabalho” [4]. Aqui está o ponto de vista ortodoxo. A fé correta deve ser expressa em ações e os atos devem servir como manifestação de fé. É preciso estar intimamente unido com o outro indissoluvelmente, como alma e corpo. Este apenas, então, é o ortodoxo, o caminho correto que nos leva a Deus.

A ortodoxia não é apenas uma fé correta e uma vida de acordo com a fé, mas também um serviço correto a Deus. Nosso Senhor Jesus Cristo expressou a essência da adoração correta de Deus nestas breves mas profundas palavras: “Deus é Espírito, e aqueles que O adoram devem adorar em espírito e verdade” [5]. Somente o inspirado serviço divino da Santa Igreja Ortodoxa, que é permeado pela oração, tem realizado esta adoração sagrada de Deus em verdade.

Além disso, a ortodoxia é estrita proporcionalidade e retidão nas manifestações de todos os poderes da alma e do corpo. Na ortodoxia, um lugar apropriado é atribuído a tudo: ao intelecto, para os desejos e necessidades do coração, às manifestações do livre arbítrio do homem, ao trabalho e à oração, à abstinência e vigilância, em uma palavra, a tudo o que a vida do homem consiste.

Teologia Ocidental

Na última vez, em uma forma condensada, tentamos responder à questão - o que é ortodoxia. Agora cabe a nós iniciar nossa investigação das diferenças doutrinárias entre o Oriente cristão e o Ocidente.

Em primeiro lugar, é essencial que compreendamos as principais peculiaridades culturais e psicológicas nas quais a teologia do Ocidente se desenvolveu. Isso nos ajudará a avaliar melhor a extensão dos erros das confissões católicas e protestantes em comparação com o ensino apostólico e patrístico da Igreja Ortodoxa.

Pediremos ajuda ao famoso escritor da Igreja Grega, Doutor Alexander Kalomiros, e nos voltaremos para seu notável trabalho, "O Rio de Fogo".

No início de seu artigo, Kalomiros coloca tais questões: “... qual foi o instrumento da calúnia do diabo contra Deus? Que meios ele usou para convencer a humanidade, a fim de perverter o pensamento humano?” O autor responde: “Ele usou 'teologia'. Ele introduziu uma ligeira alteração na teologia que, uma vez aceita, ele conseguiu aumentar mais e mais até o ponto em que o Cristianismo se tornasse completamente irreconhecível. É isto que chamamos de 'teologia ocidental'"

Mais adiante, no artigo “O Rio de Fogo”, o Doutor Kalomiros escreve que a “principal característica da teologia ocidental é que considera Deus como a causa real de todo mal”. O autor observa que “todos os católicos romanos e a maioria dos protestantes consideram a morte como um castigo de Deus”. Segundo esse ensinamento, “Deus considerava todos os homens culpados do pecado de Adão e punia-os pela morte, isto é, cortando-os de si mesmos; privando-os de sua energia vital, e matando-os espiritualmente no início e depois corporalmente, por algum tipo de fome espiritual.

Doutor Kalomiros escreve ainda que

"alguns protestantes não consideram a morte como uma punição, mas como algo natural. Mas não é Deus o Criador de todas as coisas naturais? Então em ambos os casos Deus é - para eles - a verdadeira causa da morte. (...)

"O "Deus" do Ocidente é um Deus ofendido e raivoso, cheio de ira pela desobediência do homem, que deseja em sua paixão destrutiva atormentar toda a humanidade pela eternidade por causa de seus pecados, a não ser que receba uma satisfação infinita por seu orgulho ofendido.

"Qual é o dogma ocidental da salvação? Não é que Deus matou Deus para satisfazer seu orgulho ofendido, o que os ocidentais eufemisticamente chamam de justiça?"

A teologia ocidental ensina que “a salvação ...é salvar-se das mãos de Deus! (...)

"Essa concepção jurídica de Deus, essa interpretação completamente distorcida da justiça de Deus, não era senão a projeção das paixões humanas na teologia. Era um retorno ao processo pagão de humanização de Deus e deificação do homem. Os homens se sentem envergonhados e com raiva quando não são levados a sério e consideram tal fato uma humilhação que apenas a vingança pode remover, seja por crime ou duelo. Tal era concepção passional e mundana de justiça...

"Os cristãos ocidentais pensavam sobre a justiça de Deus da mesma forma: Deus, o Ser Infinito, estava infinitamente insultado pela desobediência de Adão. Ele decidiu que a culpa pela desobediência de Adão se estendia igualmente a todos os descendentes dele e que todos seriam sentenciados à morte pelo pecado de Adão, que eles não cometeram. A justiça de Deus para os ocidentais operava como uma vendeta. Não apenas o homem que te ofendeu deve morrer, mas toda a família dele também. E o que era trágico para todo ser humano, a ponto do desespero, é que nenhum homem e nem mesmo toda a humanidade, poderiam apazigüar a dignidade insultada deste Deus. Então, para salvar tanto a dignidade ofendida de Deus quanto a humanidade, não havia outra solução que não a Encarnação do Filho Dele, para que um homem de dignidade divina pudesse ser sacrificado para salvar a honra de Deus."

O Doutor Kalomiros considera que tal conceito pagão da justiça de Deus faz de Deus a fonte de todos os nossos infortúnios. Mas tal justiça não é de todo justiça, considera o autor, uma vez que pune os homens que são completamente inocentes do pecado de seus antepassados. “... o que os ocidentais chamam de justiça deveria antes ser chamado de ressentimento e vingança do pior tipo. Até mesmo o amor e sacrifício de Cristo perdem seu significado e sua lógica nesta noção esquizóide de um Deus que mata Deus para satisfazer uma assim chamada justiça de Deus.”

Além disso, Kalomiros volta-se para a compreensão da justiça de Deus, tal como é apresentada na Sagrada Escritura e sua interpretação pelos Santos Padres da Igreja. Na língua grega, na qual a Bíblia chegou até nós, a justiça é chamada de dikaiosune. Dikaiosune é uma tradução da palavra hebraica, tsedaka. Significa “a energia divina que realiza a salvação do homem”. Ela corresponde “à outra palavra hebraica, besed, que significa 'misericórdia', 'compaixão', 'amor' e à palavra emeth, que significa 'fidelidade', 'verdade.'" Este é um conceito completamente diferente do que costumamos chamar de justiça. Kalomiros escreve que no Ocidente a palavra dikaiosune foi entendida da maneira como os homens da civilização grega pagã e humanista da antiguidade a entenderam - “a justiça humana, aquela que ocorre nos tribunais”.

Kalomiros escreve que

"Então veja que Deus não é justo no sentido humano da palavra, mas vemos que Sua justiça significa Sua bondade e amor, que nos são dadas de forma injusta, isto é, Deus sempre doa sem pedir nada em troca e Ele doa para pessoas como nós que não somos merecedoras de receber. (...)

"Deus é bom, amoroso e terno para com os que O desconsideram, desobedecem e O ignoram. Ele nunca paga o mal com o mal, Ele nunca se vinga. Suas punições são para correção, por amor, naquilo que pode ser corrigido e curado nesta vida. (...) O mal eterno nada tem a ver com Deus. Ele provém, na verdade, da vontade de suas criaturas livres e lógicas, e tal vontade Ele respeita.

"A morte não nos foi infligida por Deus. Nós caímos nela por nossa revolta. Deus é a Vida e a Vida é Deus. Nós nos revoltamos contra Deus, fechamos nossos portões para sua Graça vivificante. Escreveu São Basílio: "Pois o tanto que ele se afastou da vida foi o tanto que ele se aproximou da morte. Pois Deus é Vida, e privação da Vida é morte." "Deus não criou a morte mas nós mesmos fizemos isto conosco." (...)  Como Santo Irineus coloca: "O afastamento de Deus é morte, afastamento da luz é escuridão... e não é a luz que nos pune com a cegueira"."

""A morte", diz São Máximo, o confessor, "é principalmente a separação de Deus, da qual segue-se necessariamente a morte do corpo. A vida é principalmente Aquele que disse 'Eu sou A Vida'"

"E por que a morte sobreveio a toda a humanidade? Por que aqueles que não pecaram com Adão morrem como Adão morreu? O responde com as palavras de Santo Atanásio, o Sinaíta: "Nos tornamos herdeiros da maldição de Adão. Não fomos punidos como se tivéssemos desobedecido ao mandamento divino com Adão; mas porque Adão se tornou mortal, transmitiu o pecado para sua posteridade. Nos tornamos mortais porque nascemos de mortais"."

O autor escreve ainda que Bem-Aventurado Agostinho, Anselmo de Cantuária, Tomás de Aquino e os outros fundadores da teologia ocidental são culpados dessa calúnia contra Deus. Claro, eles não afirmaram "direta e claramente que Deus é um ser perverso e compulsivo. Eles antes consideram que Deus está acorrentado por uma força superior, por uma obscura e implacável Necessidade como a que governava os deuses pagãos. Esta necessidade O obriga a retribuir o mal com o mal e não O permite perdoar e esquecer o mal feito contra Sua vontade, a não ser que uma satisfação infinita seja dada a ele."

Mais adiante, no artigo “O Rio de Fogo”, o autor escreve sobre a influência do paganismo grego no cristianismo ocidental:

"A mentalidade pagã é o fundamento de todas as heresias. Era muito forte no Oriente, porque lá ocorria o cruzamento de todas as correntes filosóficas e religiosas. Mas, como lemos no Novo Testamento, "onde havia abundância de pecado, havia muito maior abundância da Graça". Então, onde as heresias cresciam, crescia também a Ortodoxia, e embora tenha sido perseguida pelo poder deste mundo, ela sempre sobreviveu vitoriosa. No Ocidente, ao contrário, a mentalidade pagã grega entrou sem obstruções, e sem tomar a aparência de heresia. Entrou através de inúmeros textos latinos ditados por Agostinho, Bispo de Hipona. (...) No Ocidente, pouco a pouco se perdia o conhecimento da língua grega, e os textos de Agostinho eram os únicos livros disponíveis datados dos tempos antigos em um língua que fosse compreendida. Assim, o Ocidente recebeu como cristão um ensinamento que era, em muitos dos seus aspectos, pagão. Eventos cesaropapistas em Roma não permitiram nenhuma reação saudável a tal estado de coisas. Assim, o Ocidente afogou-se em pensamento humanista pagão, o que prevalece até hoje."

" Então, temos o Oriente de um lado que, falando e escrevendo em grego, permaneceu essencialmente a Nova Israel, com pensamento israelita e uma tradição sagrada, e o Ocidente do outro lado que, tendo esquecido a língua grega e tendo sido cortado do estado oriental, herdou o pensamento grego pagão e sua mentalidade, e com ele formou um ensinamento cristão adulterado."

"Na realidade, a oposição entre a Ortodoxia e o Cristianismo ocidental não é outra senão a continuidade da oposição entre Israel e Hellas.

"Nunca devemos esquecer que os Pais da Igreja se consideravam os verdadeiros filhos espirituais de Abraão, que a Igreja se considerava a Nova Israel, e que os povos ortodoxos, fossem gregos, russos, búlgaros, sérvios, romenos etc., eram cônscios de serem como Natanael, verdadeiros israelitas, o Povo de Deus. E embora esta fosse a consciência real da Cristandade oriental, o Ocidente se tornou mais e mais um filho da Grécia e de Roma, humanistas e pagãos."

A Igreja Ocidental e a Cultura de Roma

A Igreja Romana foi formada e desenvolvida sobre os fundamentos da cultura latina, que surgiu da religião pagã romana. A religião pagã de Roma baseava-se no culto das almas dos mortos, e o medo diante de seu poder sobrenatural era o principal motivo de adoração. Esse medo religioso imprimiu um tom sério e até sombrio à religião romana e levou à instilação do formalismo no culto pagão romano.

As peculiaridades do sistema estatal romano exerceram uma influência ainda maior sobre a Igreja Romana. O estado tinha um enorme e esmagador significado na psique e na vida dos romanos: a principal virtude era o patriotismo. Os romanos foram capazes de subordinar todas as forças do homem à disciplina do Estado e de lhes dar um fim a exaltação do estado. Na grandeza e prosperidade do estado romano, o cidadão romano via a garantia do bem-estar e da prosperidade dos cidadãos romanos e dos povos de todo o mundo. Daí a convicção de que os romanos deveriam ser os senhores e mestres do mundo. Todos os povos devem se submeter e entrar na composição do estado romano, a fim de fazer uso das coisas boas da “Pax Romana” e do governo romano. Os requisitos para a construção de um estado e organização mundial, uma união de numerosos povos, levaram ao desenvolvimento do pensamento jurídico nos romanos. A fusão da religião romana e do sistema de estado romano alcançou seu grau mais alto quando o imperador Augusto e seus sucessores foram deificados: honras divinas lhes foram prestadas durante sua vida, templos foram construídos em sua honra e depois de sua morte foram contados na assembléia dos deuses.

O espírito do povo romano, que foi formado com base nas peculiaridades de sua religião e seu sistema de Estado, definiu o caráter da direção da vida da Igreja no Ocidente após a aceitação do cristianismo. Aqui eles estavam pouco interessados em questões dogmáticas sobre a Santíssima Trindade e a Pessoa de Jesus Cristo que agitavam o Oriente. O povo cristão ocidental, em conformidade com o molde de sua mente, estava ocupado com o lado prático e externo do ritual e do legislativo da vida da Igreja. Voltou sua atenção para a disciplina e governança na Igreja, para as relações entre Igreja e Estado. Os representantes da Igreja Ocidental não eram grandes teólogos, mas eram bons políticos e administradores. Em particular, as tradições nacionais ligadas ao poder da Roma antiga inevitavelmente permaneceram com os romanos mesmo após a aceitação do cristianismo. Sob a influência dessas tradições, os romanos chegaram a pensar que a poderosa Roma deveria ter a mesma importância nos assuntos da Igreja que ela tinha em questões de estado.

Especialmente poderosa e vital no povo romano era a idéia do absolutismo monárquico dos imperadores romanos, que chegou até a sua deificação no sentido literal dessa palavra. Essa idéia da supremacia ilimitada de uma pessoa sobre todo o mundo tornou-se uma idéia da Igreja no Ocidente. Foi transferido do imperador para o papa romano. Até mesmo o título “Pontifex Maximus”, que os imperadores romanos traziam, foi tomado pelos papas. Assim, com o tempo, um esforço pela autoexaltação tomou posse dos papas romanos.

No entanto, no que diz respeito aos primeiros oito séculos da existência da Igreja Universal, pode-se falar de todos esses fenômenos na Igreja Romana apenas como tendências, como disposições, como um molde psicológico, como manifestações esporádicas. Em geral, então, as diferenças de interesses, esforços e manifestações psicológicas entre as Igrejas do Oriente e do Ocidente durante os primeiros oito séculos foram benéficas para a Igreja como um todo, em vez de prejudiciais, pois promoveram a plenitude da elucidação e encarnação em vida dos princípios do cristianismo, deixando a Igreja uma. De fato, em conformidade com suas próprias peculiaridades nacionais, os cristãos do Oriente, como já foi mencionado, descobriram em pleno um lado o ensinamento dogmático do cristianismo. E os cristãos ocidentais, em conformidade com suas próprias peculiaridades, desenvolveram um outro lado da organização eclesiástica do cristianismo. Era exigido das Igrejas do Oriente e do Ocidente apenas que permanecessem em mútua comunhão eclesiástica entre si e que não abandonassem o seio da única Igreja Universal.

Infelizmente, a Igreja Ocidental rompeu essa comunhão e, nessa fratura, está contida a causa de sua entrada no caminho do erro.

A respeito de como isso aconteceu, vamos contar na próxima vez.

O Grande Cisma de 1054

A ruptura da Igreja Romana da Igreja Universal ocorreu da seguinte maneira.

No ano 752, o papa Zacarias ungiu Pepino, o Breve, o administrador-chefe dos reis francos, para ser rei, e por isso deu, por assim dizer, a bênção da Igreja à derrubada realizada por Pepino no reino franco que removeu a rei franco legal do poder. Para isso, Pepino, no ano 755, tirou da tribo germânica dos lombardos as terras conquistadas por eles na Itália e entregou às mãos do papa as chaves de vinte e duas cidades e o Exarcado de Ravena, que anteriormente pertencia à Império Bizantino. Assim, o papa transformou-se de um sujeito do imperador romano oriental (Constantino-politan) em um soberano secular independente, não dependente de nenhum outro soberano, com um território independente e com a posse da autoridade suprema do estado neste território.

Isso rapidamente desmoralizou o papado. A contradição interna entre o ideal ascético e a autoridade secular apareceu como um inimigo perigoso da pureza moral dos papas. Isso implicou uma mudança radical não apenas no status, mas também no comportamento, nas intenções, nas aspirações e no modi-operandi dos papas romanos. A vaidade, o orgulho, o desejo de poder e a aspiração de subordinar todas as igrejas locais à sua autoridade, que anteriormente aparecia no comportamento dos papas romanos apenas como tendências, como fenômenos esporádicos agora completamente tomavam posse dos papas.

No início, os papas se propuseram a tarefa de fortalecer sua autoridade nas igrejas ocidentais, igrejas africanas, espanholas e gaulesas que não faziam parte da Igreja Romana. Apesar de uma certa resistência por parte da Igreja Africana, os papas conseguiram com relativa facilidade assegurar a subordinação a si mesmos destas igrejas: grande era a autoridade de Roma nestas suas antigas províncias.

Quanto às igrejas na Grã-Bretanha, na Alemanha e nos outros países da Europa Ocidental recém-fundadas pelos missionários do bispo romano, os papas conseguiram subordiná-los à sua autoridade mais facilmente, na medida em que a idéia da supremacia do Papa na Igreja foi inculcado neles simultaneamente com a pregação do cristianismo.

Enquanto subordinavam a si mesmos as igrejas ocidentais, os papas estavam simultaneamente tomando medidas para substanciar sua autoridade, se não dogmaticamente, pelo menos juridicamente. Para isso, uma coleção de atos jurídicos eclesiásticos foi compilada no Ocidente no início do século IX em nome de Isidoro, um ministro oficial espanhol. Como o nome do compilador e o conteúdo da coleção, como foi estabelecido mais tarde, eram falsos, recebeu o nome de “Decretos Pseudo-Isidorianos”. A coleção é composta de três partes. Na primeira parte, há cinquenta Cânones Apostólicos e sessenta decretos dos papas romanos. Destes sessenta decretos, dois são parcialmente falsificados, enquanto cinquenta e oito são totalmente falsos. Na segunda parte, entre outros materiais falsos, há a doação falsa da cidade de Roma pelo Imperador Constantino, o Grande, ao Papa Romano Silvestre.

A coleção foi publicada pela primeira vez apenas no final do século XVI, e então os estudiosos provaram sem dificuldade a falsidade dos documentos que estavam nela. Atualmente, até os estudiosos católicos não reconhecem sua autenticidade. Mas, naquela época, a coleção servia como base de autoridade para o desenvolvimento das relações eclesiásticas no Ocidente, na medida em que era aceita pela fé e, no curso de toda a Idade Média, gozava da autoridade da autenticidade. Os papas começaram categoricamente a citar os decretos da coleção em substanciação de seus direitos à supremacia em toda a Igreja.

O Papa Nicolau o Primeiro (858-876) começou por citar primeiro os “Decretos Pseudo-Isidorianos”, desde que formulou de forma clara e decisiva a ideia da onipotência papal na Igreja. Mas o Oriente, naturalmente, não reconheceu essa onipotência. O Papa Nicolau o Primeiro tentou subordinar o Oriente a si mesmo de uma só vez. Mas ele não conseguiu isso. Como conseqüência desse fracasso, surgiu o cisma da Igreja: pela primeira vez no século IX e definitivamente no século XI (1054).

A história externa da queda da Igreja Romana é tal. Por causa da menoridade do imperador Miguel III, o império bizantino (oriental) foi governado a partir de 842 por sua mãe, Teodora, e pelo tio do imperador, Bardas. O patriarca em Constantinopla era Inácio (a partir do ano de 847). Por instigação de Bardas, o imperador confinou sua mãe em um convento; mas o Patriarca, que antes disso censurara Bardas por coabitar com sua nora, se opunha a isso. Bardas assegurou a deposição de Inácio (no ano 852) e a elevação de Fócio, um homem instruído e digno ao trono patriarcal. A inimizade entre os partidários de Inácio e Fócio começou. Seguindo o conselho de Bardas, o Imperador Miguel decidiu convocar um grande concílio, ao qual ele também convidou o Papa Nicolau o Primeiro. Este último decidiu aproveitar a ocasião e sair como juiz da Igreja do Oriente. Ele despachou dois de seus legados para o concílio com uma carta ao imperador.

Nela, ele escreveu que o imperador havia agido incorretamente, contrariamente aos cânones da Igreja, por ter nomeado um patriarca e por ter deposto outro sem o conhecimento do papa. O Concílio Constantinopolitano (no ano de 861), reconheceu Inácio como deposto, e Fócio como legalmente instalado como patriarca. O Papa Nicolau o Primeiro poderia muito bem ter reconhecido Fócio como patriarca, se ele não tivesse visto nele um firme oponente de suas pretensões à supremacia na Igreja. Ele escreveu uma carta ao imperador que declarou Fócio como privado do posto de patriarca e Inácio restabelecido. No ano 862, o papa convocou um concílio em Roma, que declarou Fócio deposto. Em Constantinopla, essa promulgação não foi reconhecida, e uma brecha entre as igrejas começou.

A questão do governo da Igreja búlgara intensificou as relações hostis entre as igrejas. Em resposta às ações arbitrárias do papa e do seu clero na Bulgária, Fócio reuniu um Concílio Local, no qual condenou todos os erros romanos. No ano de 867, um novo concílio reuniu-se em Constantinopla, com representantes dos patriarcas orientais, que novamente condenaram os erros romanos e as pretensões do papa Nicolau o Primeiro no Oriente.

Nessa época, o imperador Miguel foi morto pelas intrigas de seu co-regente, Basílio, o Macedônio, que ocupou o trono imperial e buscou apoio do papa. Em Constantinopla, no ano de 869, na presença de legados papais, realizou-se um concílio, que depôs Fócio e reconheceu a supremacia do papa e a subordinação da Igreja Oriental a ele. Mas no ano de 879, Inácio morreu, e o imperador Basílio, que na época não precisava mais do papa, restaurou Fócio. No mesmo ano de 879, um concílio reuniu-se em Constantinopla com legados do papa João VIII. Nenhuma das condições do papa foi aceita pelo concílio; e o papa não reconheceu os decretos do concílio.

A partir de meados do século IX até meados do século XI, as relações entre as igrejas eram indeterminadas, e os contatos ausentes, exceto por raros casos de correspondência dos imperadores com os papas. Em meados do século XI, as relações foram renovadas, mas apenas para terminar em uma brecha definitiva. Leão IX era o papa na época, e Michael Cerularius era o patriarca em Constantinopla. O papa procurou subordinar a si mesmo certas igrejas no sul da Itália que eram subordinadas ao Patriarca de Constantinopla, enquanto a última fechavam os mosteiros e igrejas latinas localizadas em Constantinopla. Para a regularização das relações mútuas, o papa enviou seus legados a Constantinopla, que se comportaram de maneira rude e arrogante em relação ao patriarca. O Bispo Arsênio, em “A Crônica dos Eventos da Igreja”, descreve a ação dos legados papais assim:

“E assim, os legados papais, 'tendo ficado entediado com a posição oposta do patriarca', como eles disseram, decidiram uma ação mais insolente. No dia 15 de julho, eles entraram na Igreja de Hagia Sophia e, enquanto o clero se preparava para o serviço na terceira hora do dia no sábado, eles colocaram uma bula de excomunhão no altar principal à vista do clero e pessoas presentes. Saindo dali, eles sacudiram até o pó dos seus pés como testemunho contra eles, de acordo com as palavras do Evangelho [6], exclamando: "Deixe Deus ver e julgar."

Assim, o próprio Cardeal Humbert descreve a ação. Na bula da excomunhão, dizia-se incidentalmente: "Quanto aos pilares do Império e aos honrados e sábios cidadãos, a cidade (isto é, Constantinopla) é cristã e ortodoxa. Mas quanto a Michael, que é ilegalmente chamado de patriarca, e os defensores de sua estupidez, inúmeras ervas daninhas de heresias estão espalhadas... Que sejam anátemas, sejam anátemas maranatha [7]. Amém." Depois disso, e na presença do imperador e seus oficiais, pronunciaram oralmente: 'quem obstinadamente começar a se opor à fé do santo trono romano e apostólico e sua oferta de sacrifício, seja anátema, seja anátema maranatha (ou seja, que ele seja excomungado e deixe-o perecer na vinda do Senhor) e que ele não seja considerado um cristão católico, mas um herético prozymite (isto é, aqueles que não aceitam pães ázimos e preferem pão levedado). Assim seja, assim seja, assim seja.” A insolência dos legados papais incitou toda a população da capital contra eles; só graças ao imperador, que considerava sua posição como emissários, eles foram capazes de se afastar livremente”.

Em resposta, um concílio Constantinopolitano deu aos legados papais um anátema. A partir desse momento, o papa deixou de ser comemorado em todas as igrejas orientais nos serviços divinos.

Assim, as causas do cisma da Igreja nos séculos IX e XI eram uma e a mesma: as pretensões ilegais dos papas de subordinar à sua autoridade todas as igrejas locais, com o simultâneo, como veremos a seguir, desvios dos papas romanos da ortodoxia nas questões dogmáticas, canônicas e rituais. Nisto consiste a essência dos acontecimentos, ao passo que aqueles eventos factuais que serviram de motivo concreto para a brecha aconteceram por simples acaso. Não se tratava de fatos individuais, mas de todo o conjunto de idéias e aspirações dos papas romanos da época. O espírito de desejo de poder gerou a idéia de uma grande e perigosa inverdade da soberania ilimitada dos papas sobre toda a Igreja Universal.

Essa subordinação do papado a um princípio pecaminoso só ocorreu a partir do século IX. Mas quando os papas romanos no século IX primeiro formularam suas pretensões, eles não as apresentaram como inovações, mas, ao contrário, eles naturalmente se esforçaram para provar que sua autoridade era um direito, em todo lugar e sempre reconhecido na Igreja Universal.

Assim, a partir do século IX, as Igrejas orientais e ocidentais percorreram caminhos diferentes. Os nomes que elas próprias apropriaram para si falam dos objetivos perseguidos por elas: a Igreja Oriental começou a se chamar Ortodoxa, ressaltando que seu principal objetivo é preservar a fé cristã inalterada. A Igreja Ocidental começou a chamar-se Católica (universal), ressaltando que seu objetivo principal é a unificação de todo o mundo cristão sob a autoridade do papa romano.

Ortodoxia e Heterodoxia - a Veneração da Mãe de Deus

A Ortodoxia é a correta veneração da Santíssima e Santíssima Virgem Maria, a Theotokos, que, com a assembléia dos profetas, apóstolos, mártires e todos os santos, é nossa mediadora incansável diante de Deus. Em relação à veneração da Mãe de Deus, a Igreja Católica Romana também diverge bastante do antigo ensinamento ortodoxo eclesiástico. Temos em mente o ensinamento católico conhecido como o dogma da “Imaculada Conceição da Mãe de Deus”.

Na promulgação oficial do trono romano sobre este dogma, é dito: “A Santíssima Virgem Maria, no primeiro momento de sua concepção, por uma graça especial do Deus onipotente e por um privilégio especial, por causa dos futuros méritos de Jesus Cristo, o Salvador da raça humana, foi preservada livre de toda a mancha da culpa original ”[8]. Em outras palavras, a Mãe de Deus, em sua concepção, por um ato especial da Divina Providência, foi libertada do pecado original, que por herança de nosso antepassado se espalhou para toda a humanidade.

O primeiro milênio cristão não conhecia tal ensinamento. A partir do século XII, ou seja, já após o afastamento da Igreja ocidental da Igreja Universal, a idéia da Imaculada Conceição começou a se espalhar entre os clérigos e leigos. O novo ensino provocou uma infinidade de disputas. Teólogos renomados do Ocidente, como Tomás de Aquino, Bernardo de Claraval e outros o rejeitaram. 

A Igreja Ortodoxa reconhece o nascimento da Mãe de Deus como santo, imaculado e abençoado no sentido de que este nascimento foi de pais idosos, que foi anunciado por um anjo de Deus, que serviu para a salvação da humanidade, mas ocorreu dentro das leis usuais da vida humana, tanto no aspecto espiritual quanto no físico. A Mãe de Deus também é querida para nós porque ela tem a mesma natureza que todos nós temos; mas ela, pela luta ascética de sua vida, começando desde a infância, derrotou em si mesma sua natureza pecaminosa e ascendeu às alturas mais honrosa do que os querubins e incomparavelmente mais gloriosa do que os serafins. Mas se uma natureza espiritual diferente fosse dada a ela, à parte sua vontade, então ela não seria mais nossa e não poderia constituir nossa glória. Não poderíamos, então, dizer a Deus: "Nós a entregamos a Ti", como a Igreja diz a respeito na festa da Natividade de Cristo.

Os católicos, desejando ostensivamente magnificar a Mãe de Deus, a separam da humanidade e atribuem a ela uma natureza espiritual diferente. O dogma católico romano da Imaculada Conceição não eleva, mas humilha a Mãe de Deus, uma vez que, se ela nasceu livre do pecado e santa, então na consecução da santidade não há mérito próprio. Esse dogma também rebaixa o trabalho da redenção dos homens pela morte de Cristo, pois permite a possibilidade - embora somente para uma pessoa - de alcançar a santidade à parte dessa redenção.

Ortodoxia e Heterodoxia - Pecado Original

O dogma católico romano da Imaculada Conceição, do qual falamos na última discussão, contradiz o claro ensinamento da Sagrada Escritura sobre a universalidade do pecado original [9].

O pecado cometido por nossos progenitores no paraíso, com todas as suas consequências, passou e passa deles para toda a sua posteridade. O que as primeiras pessoas se tornaram depois da Queda, tal também até agora são seus descendentes no mundo. “Adão gerou um filho à sua semelhança, segundo a sua imagem” [10]. Afastamento de Deus, a perda da graça, a distorção da imagem de Deus, a perversão e enfraquecimento do organismo corporal, que termina com a morte - aqui está o triste legado de Adão, recebido por cada um de nós em nossa aparição no mundo. "A partir de uma fonte infectada, naturalmente flui uma corrente infectada", ensina o catecismo ortodoxo, "assim, de um ancestral infectado pelo pecado e, portanto, mortal, naturalmente procede uma posteridade infectada pelo pecado e, portanto, mortal".

Portanto, cada um de nós pode repetir seguindo o rei Davi: “Eis que fui nascido em iniqüidade, E em pecado me concebeu minha mãe” [11]. O apóstolo Paulo expressa esse pensamento ainda mais claramente: “Portanto, como por um homem entrou o pecado no mundo, e pelo pecado a morte, assim também a morte passou a todos os homens por isso que todos pecaram.”[12].

O pecado hereditário não contradiz leis psicológicas ou fisiológicas, mas, ao contrário, encontra confirmação nessas e em outras leis. A transmissão de certos atributos psíquicos e morais, certas inclinações depravadas e também defeitos fisiológicos (por exemplo, predisposição para certas doenças) de pais para filhos e gerações posteriores é um fenômeno completamente comum. Do ponto de vista puramente psicológico, não teria sido natural se os danos à natureza moral dos progenitores da raça humana pelo pecado tivessem permanecido apenas com eles e tivessem desaparecido sem deixar vestígios em sua posteridade, sem tocá-la.

O pecado original é o dano à natureza humana [causado] pelo pecado, o que a torna incapaz de cumprir o plano de Deus, o projeto de Deus para o homem como a coroa da criação de todo o mundo visível”, escreve o Arcebispo Nathaniel [13].

Segundo o ensinamento dos católicos romanos, a essência da natureza humana não mudou depois da queda; o homem permaneceu como ele foi criado por Deus, apenas ele foi privado dos dons sobrenaturais da graça (imortalidade do corpo, a justiça primordial e domínio sobre a natureza), em conseqüência do qual ele começou a mudar para pior na alma e no corpo. Nesta privação de graça sobrenatural consistiu a punição de nossos progenitores, e depois deles de todos os homens também. O homem caído, de acordo com o ensinamento dos teólogos católicos, é um ex-cortesão, que outrora foi elevado e exaltado por uma especial misericórdia do rei, e depois por sua culpa foi expulso de seu posto mais elevado e retornou à sua condição anterior.

Os católicos excluem a mais pura virgem Maria desta noção. “De acordo com a noção católica romana”, escreve Vladyka Nathaniel, “o pecado original está na retirada por Deus do dom da 'justiça original' (justitia originalis) - das primeiras pessoas que pecaram -, que as pessoas tinham antes do Queda, que foi tirada deles após a comissão do pecado por eles, mas, uma exceção à lei geral, foi dada à alma da Virgem Maria em sua introdução no corpo. Portanto, a Virgem Maria é completamente semelhante a Eva antes da queda, que possuía o dom da justitia originalis “[14].

De acordo com o ensinamento da Igreja Ortodoxa (desde os primeiros séculos até nossos dias), todos os homens estão sujeitos ao pecado original - todos, inclusive a Mãe de Deus. E todos têm que ser redimidos pelo sacrifício do Filho de Deus. A Santíssima Virgem se apresenta entre os salvos, chamando a Deus seu Salvador: “e meu espírito se alegra em Deus meu Salvador” [15]. A Sagrada Escritura conhece apenas um homem que não participou do pecado original - o Deus-Homem Cristo Jesus, que foi concebido de uma maneira sobrenatural - pelo Espírito Santo.

A visão católica sobre o pecado original e suas conseqüências contradiz os claros testemunhos da palavra de Deus que apontam o dano causado à própria natureza do homem através do pecado de nossos progenitores e as conseqüências desse pecado, que mostram a violação da ordem natural da vida humana. O apóstolo Paulo diz: "Pois o que faço não é o bem que desejo, mas o mal que não quero fazer, esse eu continuo fazendo. Ora, se faço o que não quero, já não sou eu quem o faz, mas o pecado que habita em mim. Assim, encontro esta lei que atua em mim: Quando quero fazer o bem, o mal está junto a mim. Pois, no íntimo do meu ser tenho prazer na lei de Deus; mas vejo outra lei atuando nos membros do meu corpo, guerreando contra a lei da minha mente, tornando-me prisioneiro da lei do pecado que atua em meus membros." [16]

A grandeza infinita do sacrifício redentor do Senhor Jesus Cristo é diminuída pelo ensinamento católico sobre a Queda, e um significado muito grande é atribuído à participação do próprio homem na obra da salvação. Aqui, a abordagem jurídica característica dos católicos é novamente expressa: o homem não só recebe a salvação como algo devido e merecido, mas pode até realizar mais boas obras do que necessita para adquirir a salvação eterna.

O protestantismo, em seu ensinamento sobre o pecado original, como em muitos outros pontos, caiu no extremo oposto. Em sua noção, a Queda do homem perverteu a natureza humana a tal ponto que nem mesmo um traço dos poderes e habilidades concedidos pelo Criador permaneceu nele, e todos os seus desejos são dirigidos unicamente para o que é mau e pecaminoso. O homem, de acordo com a expressão de Lutero, foi transformado, por assim dizer, em um pilar de sal, como a esposa de Lot; ele se tornou um bloco sem alma e, ainda pior, porque um bloco não age e não se opõe, enquanto o homem se opõe à ação da graça divina. É verdade que muitos protestantes mais tarde reconheceram seu caráter extremista nesse ensinamento e alguns se aproximaram até da visão ortodoxa, mas outros, infelizmente, caíram no racionalismo e chegaram a rejeitar completamente o pecado original e até mesmo o próprio fato histórico da queda de nossos progenitores.

A visão protestante do pecado original contradiz todos os lugares na Sagrada Escritura onde um apelo ao livre arbítrio do homem é contido para correção e salvação, e, conseqüentemente, é confirmado que o homem não perverteu tanto sua natureza que ele não pode tomar parte no trabalho de sua salvação. [17]

Obras Supererrogatórias

Do ensinamento católico sobre a Queda, surge mais alguns ensinamentos errôneos - o dogma sobre obras supererrogatórias e o tesouro dos santos. Como já dissemos, de acordo com o ensinamento católico romano, a essência da Queda não reside tanto no dano aos poderes espirituais e corporais do homem, mas no fato de que o homem ofendeu a Deus, provocou a Sua ira justa e foi privado da justiça primordial. Graças à redenção realizada por Jesus Cristo, a justiça primordial é devolvida ao homem e, para justificação e salvação, resta aos homens assimilar os méritos do Salvador e fazer uso da graça dada nos sacramentos. E desde que os poderes naturais do homem foram preservados quase em uma condição não danificada, ele pode, através da fé e, em particular, através de suas boas obras, merecer por si mesmo de Deus e adquirir para si o direito de receber uma recompensa de Deus e bem-aventurança eterna.

Deste modo, as obras no catolicismo são transformadas em algo valioso em si mesmas, em mérito aos olhos de Deus; o homem espera receber a salvação não tanto pela misericórdia de Deus, mas como o devido de seus esforços. Nisto se expressa o legado da antiga Roma pagã, onde todos os conceitos e atitudes se baseavam na lei insensível e sem alma. O católico vê suas atitudes em relação a Deus de um ponto de vista exclusivamente legal, externo e judicial também. Boas obras para ele não são o fruto de uma certa disposição da alma, não uma expressão de amor por Cristo [18], não um indicador do crescimento espiritual e moral do homem, mas simplesmente um pagamento à justiça de Deus; elas estão sujeitas a uma contagem e avaliação exata: quanto mais boas obras o homem realizar, maior será a medida de bem-aventurança que ele receberá na vida futura, e quanto menos ele tiver dessas obras, menor será seu direito à bem-aventurança.

De acordo com o ensinamento católico, muitos dos santos de Deus, especialmente a Santíssima Virgem Maria, esforçando-se para realizar em sua vida não somente a lei ou os mandamentos de Deus (præcepta), ofereceram satisfação superabundante e supererrogatória à justiça divina e realizaram boas obras supererrogatórias (opera supererogationis). Delas, uma certa quantidade permanece, por assim dizer, em excesso, boas obras supererrogatórias. Esse excesso compõe o chamado tesouro de méritos supererrogatórios (thesaurus meritorium), que está à disposição total e incondicional do papa. Quem não tem tantos atos seus necessários para satisfazer a justiça de Deus por seus pecados, pode, pela misericórdia do papa, fazer uso dos méritos supererrogatórios dos santos no tesouro da igreja. Este ensinamento foi confirmado em 1343 pelo papa Clemente VI.

Este ensinamento absurdo e até blasfemo é explicado exclusivamente pela avareza dos papas e do clero católico e contradiz totalmente o claro ensinamento da Sagrada Escritura sobre a salvação do homem. O ideal da perfeição cristã é tão alto, tão inatingível que não só o homem nunca pode realizar algo supererrogatório, mas ele não pode sequer atingir esse ideal. O Senhor disse aos Seus discípulos: "Assim também vós, quando fizerdes tudo o que vos for mandado, dizei: Somos servos inúteis, porque fizemos somente o que devíamos fazer." [19] O apóstolo Paulo diz: "Porque pela graça sois salvos, por meio da fé; e isto não vem de vós, é dom de Deus. Não vem das obras, para que ninguém se glorie; Porque somos feitura sua, criados em Cristo Jesus para as boas obras, as quais Deus preparou para que andássemos nelas." [20]


Purgatório e Indulgências

O ensinamento sobre o purgatório é uma das diferenças características que distinguem a confissão Católica Romana da Igreja Ortodoxa. De acordo com o ensinamento dos católicos, as almas dos cristãos que morreram, se o Senhor as considera puras, são enviadas diretamente para o paraíso, enquanto as almas dos homens que estão sobrecarregadas pelos pecados mortais são enviadas ao Hades. Mas os católicos também acreditam que na vida além-túmulo existe também o chamado “purgatório” (do latim, purgatorium) - um estado especial entre o paraíso e o Hades, onde são encontradas as almas daqueles que morreram com arrependimento por seus pecados, mas que não tiveram sucesso na terra em oferecer satisfação a Deus por seus pecados, e também daqueles que por alguma razão ou outra não arrependeram-se de seus pecados de pouca importância, pelos quais seria cruel enviá-los para a eternidade no Hades, mas também impossível deixá-los ir direto para o paraíso.

No purgatório, as almas queimam em um fogo purificador; quando seus pecados são expiados, eles podem receber acesso ao paraíso. Aqui, no decorrer de um certo período, dependendo da importância e quantidade de seus pecados, as almas dos mortos sofrem várias torturas, e por esses tormentos pagam por seus pecados cometidos na terra, mas ainda não pagos. Quando o período de tormentos termina, quando a dívida para com a justiça de Deus é paga integralmente, a alma passa do purgatório para o paraíso. O purgatório existirá até a Segunda Vinda de Cristo; mas as almas dos pecadores que vão para lá não aguardarão o Julgamento Terrível lá. Cada alma permanecerá no purgatório pelo tempo necessário para expiar seus pecados. O destino da alma no purgatório depende não apenas do seu arrependimento, mas também das orações feitas por ela na terra. Com a ajuda de missas, orações e boas obras realizadas em memória dos mortos pelos fiéis na terra, o lote da alma no purgatório pode ser aliviado e o período de sua permanência ali pode ser encurtado.

Como prova da existência do purgatório e da possibilidade de perdão de alguns pecados na vida além da sepultura, os católicos citam principalmente duas passagens da Sagrada Escritura: 1) “Todo aquele que disser uma palavra contra o Filho do homem será perdoado, mas quem falar contra o Espírito Santo não será perdoado, nem nesta era nem na era que há de vir." [21] 2) “A obra de cada um se manifestará; na verdade o dia a declarará, porque pelo fogo será descoberta; e o fogo provará qual seja a obra de cada um." [22] Na primeira passagem, os católicos vêem uma distinção entre os pecados perdoados durante a vida terrena e os pecados perdoados na vida além do túmulo. Eles entendem a segunda citação, sobre o fogo que prova as obras de todos os homens, num sentido literal e não figurado. A Igreja Ortodoxa compreende as palavras do apóstolo Paulo: “o fogo provará”, no sentido em que os Padres da Igreja da era pós-apostólica as explicam, isto é, no sentido de experiência ou prova, mas não no sentido de tormentos de fogo. [23]

O ensinamento sobre o purgatório foi elaborado e desenvolvido em detalhes por Tomás de Aquino e finalmente aceito como dogma no Concílio de Florença em 1439.

Alguns confundem o ensinamento latino sobre o purgatório com o ensino ortodoxo sobre as casas de pedágio. As casas de pedágio são apenas as representações figurativas do juízo particular, que é inescapável para cada homem; o caminho do purgatório é para o paraíso, enquanto o caminho das casas de pedágio é para o paraíso ou para o Hades. No entanto, em sua idéia básica, o ensinamento do paraíso em latim tem alguma semelhança com o ensinamento ortodoxo sobre o estado das almas dos mortos até a ressurreição geral. Essa semelhança está no ensinamento comum de que as almas de alguns dos mortos, tendo sofrido tormentos por seus pecados, podem, no entanto, receber o perdão dos pecados e aliviar seus tormentos, ou mesmo a completa liberação deles. De acordo com o ensinamento da Igreja Ortodoxa, este alívio dos tormentos ou mesmo a completa liberação deles é recebido pela alma de alguém que adormeceu em virtude das orações e obras beneficentes dos membros da Igreja de Cristo, ao passo que, de acordo com o ensinamento latim, as almas dos homens mortos recebem o perdão dos pecados no purgatório em virtude dos próprios tormentos purgatoriais, pelos quais eles pessoalmente oferecem satisfação à justiça de Deus e, através dela, purificam seus pecados.

O período de tormentos no purgatório pode ser encurtado, segundo o ensinamento dos católicos, por meio de indulgências papais. Uma indulgência é o perdão ou a redução do castigo temporal que um pecador deve sofrer para a satisfação da justiça de Deus, depois que a sua culpa e o castigo eterno pelos pecados são absolvidos, através da sua assimilação, por meio do bispo romano, dos méritos excedentes do Salvador e das boas obras supererrogatórias da Theotokos e dos santos, fora do sacramento do arrependimento. Estas indulgências são dadas aos homens vivos, que são liberados por elas da obrigação de oferecer satisfações e cumprir penitências por certos pecados, e aos mortos, para quem o período de tormento no purgatório é encurtado. Essas indulgências, de acordo com a grande misericórdia de Deus e de acordo com a condescendência do papa, podem ser distribuídas gratuitamente por alguma ação piedosa - uma jornada a lugares santos (para Roma, por exemplo), por empreendimentos sociais benéficos, por algum serviço e doação em nome do papa. As indulgências são plenárias, que se estendem a toda a vida e a todos os pecados, e parciais - a vários dias ou anos. Além disso, há grandes indulgências, que são dadas em determinado momento a todo o mundo católico, ou a todo um país, ou a todos os cristãos que estão em Roma em algumas ocasiões especiais: por exemplo, durante a solene celebração dos jubileus na Igreja Romana ou durante a eleição de um novo papa. Estas indulgências são dadas pessoalmente pelo próprio papa, ou através da penitenciária cardeal ou através de bispos e outros membros da hierarquia eclesiástica. Nos países católicos existem igrejas especiais, privilegiadas, capelas, altares, ícones e estátuas, diante das quais todos que desejam podem orar e receber uma indulgência para vários dias. A graça das indulgências pode ser adquirida em certos tipos de medalhas, rosários e cruzes consagradas em Roma.

A lucratividade das indulgências levou a um crescimento cada vez maior e à busca de novas ocasiões para concedê-las. Não sem a influência de motivos financeiros, a própria teoria das indulgências também funcionou - francamente, seus defensores e vendedores eram guiados por interesses monetários. Já há muito tempo, tudo isso evocava um protesto contra as próprias indulgências e contra o negócio do papado nelas. Os ataques às indulgências foram algumas das primeiras características do movimento de reforma. Escusado será dizer que este ensinamento medieval sobre as indulgências era completamente desconhecido na Igreja antiga e indivisível e é inaceitável para nós, uma vez que contradiz todo o espírito da Ortodoxia.

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Notas
[1] Hb 11: 6
[2] Tiago 2: 26
[3] Mat. 16:27
[4] 1 Cor. 3: 8
[5] João 4:24
[6] Lucas 9: 5
[7] I Coríntios 16: 22
[8] Bula do Papa Pio IX sobre o novo dogma, 1854
[9] Jó 14: 4-5, João 3: 6 e muitos outros
[10] Gênesis 5: 3
[11] Salmos 50: 7
[12] Romanos 5: 12
[13] “Discussões sobre a Sagrada Escritura e sobre a Fé”, Volume 1, página 96 [em russo]
[14] “Discussões sobre a Sagrada Escritura e sobre a Fé”, Volume 1, página 98 [em russo]
[15] Lucas 1: 47
[16] Romanos 7: 19-23
[17] veja Mateus 16: 24; 19: 17-21
[18] João 14: 15
[19] Lucas 17: 10
[20] Efésios 2: 8-10
[21] Mateus 12: 32
[22] I Coríntios 3: 13
[23] Veja, por exemplo, “O Ensinamento dos Doze Apóstolos”

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