A publicação do artigo do padre Juan-Miguel Garrigues, L'énergie divine et la grâce chez Maxime le Confesseur (publicado na revista Istina, vol. 19, nº 3 [1974] pp. 272-296) é uma ocasião interessante para se provar como verdade sobre a distinção entre essência e energias continua a ser extremamente importante no domínio da teologia. A aceitação ou rejeição desta distinção determinará o caráter abstrato ou real do conhecimento teológico, a atribuição de verdades teológicas tanto à certeza racional quanto à experiência existencial.
O estudo de Pe. Garrigues apresenta os tradicionais argumentos católicos romanos, um pouco remodelado. Ele rejeita a distinção entre essência e energia. Ao mesmo tempo, ele tenta sustentar a sua posição no domínio da cristologia e, em particular, nos ensinamentos que São Máximo Confessor desenvolveu para combater a heresia do monoenergismo. A apresentação do Pe. Garrigues segue uma espécie de análise histórico-literária com base nos textos extraídos principalmente de São Máximo. Eu digo uma "espécie de análise" porque na tentativa do Pe. Garrigues não é possível discernir prontamente uma adesão consistente ao método literário-histórico. Suas conclusões sistemáticas não são extraídas da análise histórica e literária, mas, ao contrário, seu uso das fontes é a posteriori, para defender um determinado sistema de argumentação.
Um estudo extenso seria necessário para comprovar as omissões hermenêuticas e os saltos intelectuais criados pelo Pe. Garrigues no uso posteriori das fontes na elaboração de suas conclusões. Devo mencionar, muito brevemente, vários exemplos característicos:
(1) Uma tentativa é feita para defender a visão tomista sobre a essência divina energética (isto é, ativa), referindo-se à definição doutrinária do Sexto Concílio Ecumênico. Pe. Garrigues observa que a definição deste concílio em lugar algum implica que as duas energias de Cristo - a divina e a humana - sejam "realmente" ou formalmente distinguidas das naturezas correspondentes. Por esta razão, ele considera consistente com o espírito da definição do concílio a expressão tomista: a natureza divina não tem uma energia, mas é ativa (energética) (pp. 272-273).
(2) Referindo-se a uma passagem de São Máximo (Amb. 26, PG 91: 1265CD) em que os nomes das hipóstases são definidos como expressões do fato existencial da relação pessoal, ou seja, o modo de existência (τρόπος ὑπάρξεως) da natureza que é a alteridade hipostática, Pe. Garrigues atribui a São Máximo a compreensão escolástica das hipóstases como relações internas da essência (p. 277). Com interpretações arbitrárias semelhantes, São Máximo torna-se um proponente da visão da energia divina como um ato de causalidade criativa ("acte de causalité créatrice", p. 277) e da graça divina como pressuposição causal do habitus intencional ("causalité de la Grâce", "habitus intentionnel de la grâce", p. 286f).
(3) É atribuído a São Gregório Palamas a definição das energias divinas como accidentals ("Palamas s'enferme in une definition des énergies divines comme acidentes", pág. 278), embora a passagem de Palamas citada (Capítulos Físicos e Teológicos 135, PG 150: 1216CD) significa precisamente o contrário.
(4) O santo autor dos escritos areopagíticos é, em princípio, rejeitado como neoplatonista; aos Padres Capadócios é atribuído uma espécie de Eunomianismo (p. 281); etc.
Preocupar-se com essas interpretações arbitrárias poderia desenvolver-se numa crítica estritamente acadêmica da solidez científica do estudo em questão, mas esse não é o objetivo deste trabalho. A preocupação aqui é sobre os pressupostos sistemáticos do Pe. Garrigues, os quais ele tenta defender com esse uso fragmentário e a posteriori das fontes. Eu acredito que se poderia resumir esses pressupostos sistemáticos nas seguintes afirmações:
(1) A essência divina não tem energias, seja criada ou incriada, mas é ativa.
(2) Existem duas possibilidades de participação em Deus: participação na causa existencial (participation dans la causalité de l'acte d'être) e participação em Deus pela intenção (participation intentionnelle).
(3) A graça divina não é criada nem incriada, mas sim o pressuposto causal para a eficácia da salvação divina ("la causalité de grâce est l'efficacité salvifique"), isto é, o pressuposto para a criação no homem de um habitus, uma tendência ou "estado" que coordena o homem com a vontade divina.
(4) Consequentemente, a deificação do homem é meramente uma união de vontade ou intenção (union intentionnelle).
Essas posições sistemáticas, que são também os pressupostos e as conclusões das problemáticas do Pe. Garrigues, não exibem, naturalmente, as formulações racionalistas dos argumentos anti-palamitas tradicionais. Mas tampouco abandonam a problemática tomista clássica, que é uma problemática da essência em si mesma, da essência enquanto ser, onde toda relação com essa essência ôntica só pode ser meramente externa, uma relação ou experiência de acordo com a lei de causa e efeito.
Esta problemática da essência em si implica um status definido do homem contrário a verdade sobre Deus: o primeiro fundamento da verdade de Deus não é alcançado através da experiência da Igreja, que é uma experiência de relacionamento pessoal com a pessoa do Logos encarnado, um relacionamento que se realiza no Espírito Santo e que revela o Logos como testemunho do Pai. Em vez disso, este primeiro fundamento é inteiramente antropocêntrico, com um salto intelectual buscando compreender a essência divina em si, seus atributos e suas relações objetivas. E esta concepção racionalista da essência não só obriga a uma compreensão ôntica da essência que negligencia o modo de ser da essência, mas também leva pela necessidade lógica, quer à identificação da essência e da energia, quer à separação essencial da natureza das energias . A problemática da energia é reduzida a um procedimento de prova lógica que remete o mistério da existência divina à ideia silogisticamente necessária de uma causa criadora e móvel da criação ou de uma graça causal (causalité de Grâce) que contribui para o "aperfeiçoamento" moral do homem.
Na teologia Ortodoxa, por outro lado, o problema das energias é posto exclusivamente em termos de experiência existencial. A experiência da Igreja é o conhecimento de Deus enquanto um evento de relacionamento pessoal, e a questão levantada é de testemunha e defesa desse evento, a questão de "como conhecemos a Deus, que não é inteligível nem sensível, nem tampouco um ser entre os outros seres".[1] O conhecimento de Deus como um evento de relacionamento pessoal revela a prioridade da verdade da pessoa no domínio do conhecimento teológico. Não há espaço para ignorar a realidade da pessoa por meio de um salto intelectual direto à essência: "a verdade para nós está em realidades, não em nomes".[2] A pessoa recapitula o modo de existência da natureza; nós conhecemos a essência ou a natureza apenas como conteúdo da pessoa. Esta possibilidade única de conhecer a natureza pressupõe a sua recapitulação extática em termos de uma referência pessoal, ou seja, a possibilidade da natureza "permanecer fora de si", tornar-se acessível e transmissível não como uma ideia, mas como singularidade e dissimilaridade pessoal . O ecstasis da natureza, no entanto, não pode ser identificado com a própria natureza, uma vez que a experiência da relação é em si mesma uma experiência de não-identificação: o êxtase é o modo, a maneira pela qual a natureza se torna acessível e conhecida em termos de alteridade pessoal; é a energia da natureza que não é identificada nem com o seu portador nem com seu resultado: "a energia não é a causa ativa nem o efeito resultante".[3]
Não é possível, é claro, conhecer a energia, exceto através daquele que age; e, mais uma vez, apenas através da energia natural pode-se conhecer aquele que atua como alteridade pessoal, bem como a natureza e a essência. A vontade, por exemplo, é uma energia da natureza. No entanto, ela é acessível a nós apenas através do seu portador pessoal; nos referimos ao 'que' da vontade somente porque conhecemos o 'como' de sua expressão pessoal.[4] O 'que' da vontade nos revela a natureza que tem a possibilidade de vontade, ao passo que o 'como' da vontade revela a alteridade pessoal do seu portador. [5] A vontade em si, no entanto, não é identificada nem com a natureza que tem a possibilidade de vontade nem com a pessoa que quer, sempre de uma maneira única, dessemelhante e irrepetível. Por esta razão, reconhecemos na vontade uma energia da natureza, ontologicamente (mas não ônticamente), distinguível da natureza e também da pessoa.
Embora distinguamos a energia da natureza e a natureza das pessoas, não atribuímos nenhum caráter sintético à própria natureza; não dividimos e não fragmentamos a natureza em pessoas e energias: as pessoas e as energias não são "partes" nem "componentes" nem "paixões" nem "acidentes" da natureza, mas o modo de ser da natureza. A expressão pessoal de cada energia recapitula de forma "imparcial" e "completa" a natureza inteira; é a existência da natureza. O 'como' da energia da vontade (ou a energia da criatividade ou do amor ou qualquer outra energia) recapitula o 'que' da energia natural da vontade; a possibilidade da natureza querer existe e é expressa apenas através da alteridade da vontade pessoal. A pintura, a música e a escultura são energias criativas da natureza humana, mas elas não existem exceto como expressões de alteridade pessoal: como a música de Mozart, como a pintura de Van Gogh, como a escultura de Rodin. Também não existe outra forma de expressar e definir a essência ou a natureza fora do seu ecstasis ativo em termos de alteridade pessoal. A única maneira que podemos nomear a natureza é na energia da natureza pessoalmente expressa; energia "significa" a natureza: "Essência e energia podem receber o mesmo nome (λόγος)".[6]
As energias, no entanto, não são a única e exclusiva maneira de 'nomear' a natureza, ao indicar o "ator" através de suas "atividades". A energia natural que se expressa pessoalmente representa essa possibilidade de conhecimento empírico que vem de uma "participação" pessoal e de uma "comunhão" na essência ou natureza - sem que essa comunhão se torne uma identificação com a natureza ou com uma "parte" da natureza. De acordo com os Padres Ortodoxos do Oriente, a comunhão pessoal possibilita a plenitude do conhecimento e não possui nenhuma relação com as categorias racionais de participation entitative, participation intentionnelle, participation dans la causalité de l'acte d'être do Pe. Garrigues.
São Máximo, o Confessor usa como uma imagem e exemplo de tal comunhão a voz humana, que "sendo uma é participada por muitos e não é engolida pela multidão".[7] Se, ao tomar este exemplo, podemos arbitrariamente considerar a razão humana como essência, então podemos dizer que a voz representa a energia da essência da razão, a possibilidade de participar da essência do raciocínio assim como a voz revela e a comunica, de participar, todos nós que ouvimos a mesma voz, na mesma essência da única razão - sem essa comunhão tornar-se nossa identificação com a essência da razão, e sem a fragmentação da essência em tantas partes quanto há participantes na razão através da voz. A razão, expressa pessoalmente, permanece unificada e indivisível, enquanto ao mesmo tempo é "participada singularmente por todos"
Se insistirmos nesse exemplo da voz e da razão, podemos esclarecer mais uma observação relativa às possibilidades de participar na essência através das energias. A voz certamente representa uma revelação da energia da razão "homogênea" em relação à essência da razão e possibilita uma participação direta na razão, mas uma revelação da energia da razão também pode ocorrer desde essências "heterogêneas" em relação à razão: é possível formular na razão outras "essências", como a escrita, colorir, música e esculpir.
Este exemplo indica que podemos falar (juntamente com São Máximo) sobre duas formas de energia da mesma essência ou natureza: uma forma que, como a chamamos, é "homogênea" em relação a natureza daquele que causa a energia (uma auto-oferta extática da natureza em termos de alteridade pessoal); e a outra forma que se revela a partir de essências "heterogêneas" em relação a natureza de quem causa a energia, "uma energia que é efetiva em coisas externas, segundo a qual o ator age em objetos exteriores a si e heterogêneos, e obtém um resultado, que é constituído por uma matéria preexistente e é estranho à sua própria substância".[8]
Assim, a energia "homogênea" de Deus (utilizando a distinção de S. Máximo) é revelada na experiência da graça divina na Igreja, que é incriada ("heterogênea" às criaturas e "homogênea" em relação a Deus) e através da qual Deus é "inteiramente participável"[9] e "participado singularmente por todos"[10], permanecendo simples e indivisível, oferecendo ao comungante o que Ele (Deus) possui "por natureza" - exceto "identidade essencial"[11] - e elevando o homem ao posto de comungante da natureza divina, de acordo com a palavra das Escrituras (II Pedro 1: 4). Por outro lado, a revelação da energia de Deus em essências "heterogêneas" a Deus é vista no caráter dos seres enquanto "criaturas", criados pela energia divina. O logos pessoal dessas criaturas (um logos de poder, sabedoria e arte)[12], embora seja característico de cada uma dessas criaturas, em termos da infinita variedade de essências, revela a "totalidade singular" da energia divina e testemunha o Deus único, simples e indivisível.[13]
Quanto ao homem, provavelmente podemos dizer que o conceito de energia homogênea é aplicável ao poder do amor e ao êxtase erótico entregar-se em termos dos quais a verdade existencial sobre o homem é "conhecida". Este é o mistério da natureza humana e da pessoa humana enquanto alteridade singular - quando o homem pertence "totalmente a quem ama e é voluntariamente plenamente abraçado".[14] Essa energia "homogênea", no entanto, interpreta também a realidade do corpo humano em termos da alteridade singular de cada pessoa: o corpo é, por excelência, a diferenciação pessoal das energias físicas [15], a possibilidade de um encontro e uma comunhão entre a energia criada da essência humana e a energia incriada da Graça de Deus.[16] Quanto à revelação da energia do homem através das essências "heterogêneas" do homem, diz respeito à variedade de "criações" humanas, nas obras da arte, sabedoria e poder.[17]
O fato fundamental observado e verificado na distinção de São Máximo entre a energia "homogênea" de uma essência ou natureza e sua aparência "heterogênea" é que ambas as formas de expressar a energia revelam a natureza ou essência como o conteúdo "singular" e "unificado" da pessoa . A diferenciação pessoal das energias físicas (a singularidade e a dissimilaridade de cada corpo humano, bem como a alteridade absoluta de cada evento erótico e a diferenciação de expressões "criativas", por exemplo, a música de Bach comparada a música de Mozart ou a pintura de Van Gogh daquela de Goya) distingue a natureza sem dividi-la, revela a maneira pela qual a natureza é - e esta maneira é a sua singularidade pessoal e alteridade. As energias ou distinções expõem e revelam a catolicidade da natureza, como conteúdo da pessoa.
Na distinção da natureza e das energias, a teologia Ortodoxa vê o próprio pressuposto para o conhecimento de Deus, bem como do homem e do mundo. Se rejeitarmos essa distinção e se aceitarmos, com os Católicos Romanos, o salto intelectual para a própria essência - uma essência divina ativa - então a única relação possível do mundo com Deus é a conexão racional entre causa e efeito, uma conexão que deixa inexplicável a realidade ontológica do mundo, a formação da matéria e seu caráter essencial.
Para a teologia Ortodoxa, a matéria não é uma realidade que simplesmente tem sua causa em Deus. A matéria é a substanciação da vontade de Deus, o resultado da energia pessoal de Deus; e ela permanece "ativa" como a razão reveladora da energia divina. São Gregório de Nissa diz que "todas as coisas não foram reformuladas de alguma matéria subsistente em fenômenos, mas a vontade divina tornou-se a matéria e a essência da criação".[18] A vontade de Deus é um ato e o ato de Deus é a Sua palavra, "pois em Deus o ato é palavra".[19] A palavra de Deus que expressa Sua vontade "é substanciada diretamente como uma substância e uma formulação de criação".[20]
A matéria, portanto, constitui a substanciação da vontade divina. Os logoi da matéria, isto é, seus "tipos" ou "formas", reflete so logoi criativos das concepções e volições divinas.[21] No seu próprio conteúdo orgânico, a matéria é o resultado da união de qualidades "racionais" cuja convergência e união definem a substância das coisas sensíveis.[22] A formulação "racional" da matéria refuta desde o início o caráter ôntico autônomo das "coisas"; a matéria não é o 'que' da realidade física, o material que recebe "contorno" e "forma" para revelar a essência, mas a convergência das qualidades "racionais", sua coordenação no 'como' de uma harmonia única que constitui o "tipo" ou a "forma" das coisas. Toda a realidade cósmica, a infinita variedade de essências não são o 'que' da observação objetiva e da concepção racional; não são o efeito abstrato de uma causa ativa racionalmente concebida, mas o 'como' da harmonia "pessoal" das qualidades "racionais", uma "harmonia musical que constitui um hino controlado e sublime ao poder que controla o universo".[23]
Essa harmonia pessoal continuamente ativa do mundo revela a presença direta e enérgica de Deus no mundo enquanto vontade e energia "pessoais" (e não como essência). É um convite infinitamente ativo para um relacionamento pessoal com Deus-Logos através dos logoi das coisas. Este convite ativo não é essencialmente identificado com aquele que convida nem com a energia daquele que chama; a razão e a vontade de Deus não se identifica com as próprias coisas criadas, assim como a vontade do artista não se identifica com o produto de sua arte, com o resultado de sua energia pessoal criativa. Mas a obra de arte é a substanciação e encarnação da razão e da vontade pessoal do artista; é o chamado ativo e a possibilidade de um relacionamento pessoal com o criador através do logos de suas criações. A obra de arte é em essência e em energia diferente do artista (a "arte no artístico" é uma coisa, e outra é a "arte na pessoa que a empreende", como salienta São Basílio).[24] Portanto, a obra de arte representa e revela o logos pessoal único, dissimilar e irrepetível do artista. Sem relação pessoal, sem uma aceitação pessoal do logos incorporado na obra de arte, esta permanece um objeto neutro e não interpretado: o logos do artista permanece inacessível, a verdade da "coisa" não interpretada e a experiência da presença pessoal, a singularidade pessoal e dissimilaridade do artista, inatingível.
É claro que a inferência da harmonia pessoal e da beleza da criação em relação à presença pessoal do criador Deus-Logos não é auto-evidente nem automática nem simplesmente racional; é um movimento moral-dinâmico de participação na energia "benevolente" divina pessoal, uma aceitação do convite que substancia a beleza da natureza - um movimento moral de catarse, uma iluminação gradual e dinâmica da mente, "se surpreender e entender. ... ser elevado de conhecimento em conhecimento, e de visão em visão e de entendimento em entendimento".[25] O fim (sempre infinito) desta visão dinâmica do mundo é uma revelação, através da beleza, do caráter triuno da energia divina, "embelezando a criação triunamente".[26] A beleza da criação não é o logos uni-dimensional de uma causa criativa, mas a revelação do modo de energia divina unificado e, ao mesmo tempo, triuno que reflete o mistério do modo singular e triuno da existência da vida divina.[27]
O problema do conhecimento de Deus, mas também do homem e do mundo - do conhecimento como relação pessoal direta e experiência existencial ou conhecimento como aproximação intelectual abstrata - depende da aceitação ou da rejeição da distinção entre essência e energia. A aceitação e a rejeição desta distinção representa duas visões fundamentalmente diferentes da verdade, duas "ontologias" não-coincidentes. Isso não significa meramente duas visões ou interpretações teóricas diferentes, mas duas formas de vida diametralmente opostas, com conseqüências espirituais, históricas e culturais concretas.
A aceitação desta distinção entre essência e energia significa uma compreensão da verdade como relacionamento pessoal, isto é, como uma experiência de vida e de conhecimento como participação na verdade e não como uma compreensão de significados que resultam da abstração intelectual. Envolve a prioridade da realidade da pessoa a toda definição racional. Nos termos infinitos desta prioridade, Deus é conhecido e comunicável através de Suas incompreensíveis energias incriadas, permanecendo em essência desconhecido e incomunicável. Ou seja, Deus é conhecido apenas como uma revelação pessoal (e não como uma idéia de essência "ativa"), apenas como uma comunhão trinitária de pessoas, como uma auto-oferta extática de bondade amorosa. O mundo também é o resultado das energias pessoais de Deus, uma "criação" que revela a pessoa do Logos, testemunhando o Pai através da graça do Espírito, o convite substanciado de Deus à relação e à comunhão, um convite que é pessoal e, portanto, substanciado "heteroessencialmente".
Ao contrário, a rejeição da distinção entre essência e energia significa a exclusão da experiência católica-pessoal e a prioridade do intelecto como forma de conhecimento, reduzindo a verdade a uma coincidência do pensamento com o objeto de pensamento (adaequatio rei et intellectus), [28] uma compreensão da natureza e da pessoa como definições resultantes da abstração racional: as pessoas têm o caráter das relações dentro da essência, relações essas que não caracterizam as pessoas, mas são identificadas com as pessoas para atender a necessidade lógica da simplicidade da essência. Assim, por fim, Deus é acessível apenas como essência, ou seja, apenas como um objeto de busca racional, como o "primeiro motor" necessário que é "imóvel", que é "energia pura" e cuja existência deve ser identificada com a auto-realização da essência. O mundo é o resultado do "primeiro motor", assim como a graça de Deus é o resultado da essência divina. A única relação do mundo com Deus é a conexão da causa e efeito, uma "conexão" que desencadeia organicamente Deus do mundo: o mundo é autônomo e submetido à objetificação intelectual e à conveniência (utilidade).
O problema da distinção entre essência e energia determinou definitivamente e, finalmente, a diferenciação do Ocidente latino do Oriente Ortodoxo. O Ocidente rejeitou a distinção, desejando proteger a idéia de simplicidade na essência divina, já que o pensamento racional não pode aceitar a antinomia de uma identidade existencial e alteridade simultânea, uma distinção que não significa divisão e fragmentação. Para a mente ocidental (expressada com o rigor do racionalismo tomista ou com a subordinação dos textos patristicos a interpretações a priori, como no caso do Pe. Garrigues), Deus é definido apenas em termos de Sua essência; o que não é essência não pertence a Deus; é uma criatura de Deus, resultado da essência divina. Conseqüentemente, as energias de Deus são identificadas com a essência, que é ativa (actus purus), ou então qualquer manifestação externa delas é considerada necessariamente "heteroessencial", ou seja, um resultado criado da causa divina.[29]
Isso significa que, em última análise, a theosis do homem, sua participação na vida divina, [30] é impossível, já que a graça, "santificador" dos santos, é em si mesma um efeito, resultado da essência divina. É criada, apesar de "sobrenatural", como os teólogos ocidentais a definiram arbitrariamente desde o século IX.[31]
É característico que o Pe. Garrigues evite definir a graça divina como criada, mas insiste no caráter efetivo da graça (na causalité de grâce) que provoca o "estado" (habitus) da virtude. No texto do Pe. Garrigues, o estado de graça é privado de qualquer aparência de participação pessoal ativa na graça divina pessoalmente ativa. O "estado" é simplesmente o efeito do caráter causal da graça e é realizado como uma mudança objetiva da intenção humana.[32] O "realismo" da theosis para o Pe. Garrigues é apenas um realismo de intenção; [33] é entendido em termos de categorias moralistas, [34] um "aperfeiçoamento" racionalista do caráter humano que possui conteúdo cristológico apenas como um padrão de obediência de Cristo.
A noção de energia divina como um ato causal-criativo (acte de causalité créatrice), bem como a noção de graça divina como pressuposição causal do hábito de intenção (causalité de la grâce - habitus intentionnel de la grâce), esgota, no estudo de Fr . Garrigues, a relação de Deus com o mundo e de Deus com o homem em uma conexão etiológica inteiramente externa e apenas racionalmente concebida. A partir dessas relações objetivadas e deterministas surge, para o cristão Ortodoxo, o perigo aterrorizante de uma aceitação impessoal de Deus, uma essência absoluta e ativa que move o mecanismo de uma "filantropia" determinista, que destrói a verdade da pessoa.
Depois de ler o estudo de Garrigues, permanece-se com uma questão simples: como é possível, especialmente hoje, que um erudito Católico Romano ignore as conseqüências históricas da cristandade ocidental da rejeição da distinção entre essência e energia? Como é possível descobrir novos argumentos para a defesa de uma posição teológica para a qual o Ocidente pagou um preço tão trágico? Não é meu desejo referir-me a eventos históricos, como o drama da Idade Média no Ocidente, centrado na desacralização do mundo por meio da teologia tomista, a trágica oposição de uma multidão de heresias místicas e "subterrâneas" que procuravam desesperadamente redescobrir a santidade no mundo criado, o processo austero e consistente que levou do tomismo a Descartes e de Descartes ao estupro tecnológico contemporâneo da realidade física e histórica. A transferência do conhecimento de Deus do domínio da manifestação pessoal direta através das energias naturais para o nível de aproximação intelectual e racional de uma essência divina "ativa" teve como resultados inevitáveis a separação antitética rigorosa entre o transcendente e o imanente, o "banimento" de Deus para o reino do empiricamente inacessível, o divórcio esquizofrênico da fé do conhecimento, as sucessivas ondas de rebelião no homem ocidental contra os pressupostos teológicos de sua própria civilização, o rápido desvanecimento da religião no Ocidente e a aparência do niilismo e do irracionalismo como categorias existenciais fundamentais do homem ocidental.
Mas todo esse drama histórico - que exigiria estudos longos para serem analisados sistematicamente e que foi previsto pelos teólogos ortodoxos do Oriente no século XIV com uma lucidez surpreendente - está sendo vivido hoje pela Igreja Católica Romana em seu próprio corpo. Durante estas últimas décadas, todos nós seguimos com dor o tremendo enfraquecimento e desintegração da Igreja Católica Romana: sua fragmentação interna, a perda de sua autoridade, sua desorientação teológica. A crise envolve milhões de pessoas em total confusão sobre sua vida pessoal: sem metas e sem uma esperança existencial, sem uma comunidade espiritual que possa servir como equilíbrio psicológico para a solidão das grandes cidades e sem uma visão da vida pessoal como algo além da sobrevivência biológica e do bem-estar econômico.
Com esses fatos, seria de esperar que os teólogos Católicos Romanos voltem sua atenção para esses meios e para aqueles critérios que poderiam revelar uma solução para essa crise torturante. Se o fizerem, eles podem descobrir, particularmente na teologia de São Gregório Palamas e nos Concílios do século XIV, não apenas a interpretação, mas também a solução do drama que os atormenta. Em vez disso, estudos como o do Pe. Garrigues mostra que os teólogos Católicos Romanos devem ser acorrentados a um novo tipo de escolástica estéril que ameaça os teólogos Ortodoxos da chamada escola neo-palamita com os anátemas do Sexto Concílio Ecumênico (ver pág. 296 do estudo do Pe. Garrigues).
Pessoalmente, gosto de acreditar que esse retorno defensivo ao escolasticismo é meramente uma exceção. A maior força de nossa geração teológica é a consciência de que não se pode fazer teologia no nível das categorias abstratas. Agora sabemos bem que a crise de nossa civilização é uma crise nos pressupostos teológicos sobre os quais essa civilização foi fundada; sabemos que nossas "visões" teológicas têm conseqüências diretas e práticas para a ruína ou para a salvação do homem. E essa consciência, por mais dispendiosa que seja, é, de fato, uma "grande lição".
Atenas, Fevereiro de 1975.
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Notas
1. São Dion. Areop., Sobre os Nomes Divinos, III, P.G. 3, 869C.
2. São Máximo o Confessor, Capítulos Teológicos e Polêmicos, P.G. 91, 32BC.
3. São Basílio o Grande, citado por São Gregório Palamás, Capítulos Teológicos e Físicos, P.G. 150, 1220D.
4. "'Querer' e 'como querer' não é o mesmo tampouco 'ver' e 'como ver' é o mesmo. Pois 'querer' e 'ver' pertencer à natureza, e é uma qualificação de todos os que têm a mesma natureza e pertencem à mesma espécie. Mas 'como querer' e 'como ver' ... são maneiras pelas quais a realidade de querer ou ver é usada, é uma qualificação que pertence apenas ao sujeito que quer e vê e o distingue dos outros de acordo com a categoria de diferença comumente aceita". São Máximo o Confessor, Diálogo com Pyrrhus, P.G. 91, 292D.
5. "A vontade de todos pode ser demonstrada como sendo uma em referência à natureza; mas o modo de movimento é diferente". São Máximo o Confessor, Capítulos Teológicos e Polêmicos, P.G. 91, 25A.
6. São Basílio o Grande, Cartas, 189, P.G. 32, 696B; Veja também São Máximo: "enquanto a energia pertence àquele que age, a natureza pertence àquele que existe.", Capitulos Teológicos, P.G. 91, 200D.
7. Scholia sobre os Nomes Divinos, P.G. 4, 332CD.
8. São Máximo o Confessor, Ambigua, P.G. 91, 1268AB.
9. "... (Deus) que é partilhado inteiramente por todos os dignos de maneira benéfica". São Máximo o Confessor, Ambigua, P.G. 91, 1076C.
10. São Dionísio, Sobre os Nomes Divinos, 9, P.G. 3, 825A.
11. "A pessoa deificada pela graça é tudo o que Deus é, exceto a identidade essencial". São Máximo o Confessor, À Thalassios 22, P.G. 90, 320A.
12. "As coisas criadas são indicativos de poder, sabedoria e arte, mas não da própria essência". São Basílio o Grande, Contra Eunomius 2, 32, P.G. 29, 648A.
13. Veja São Máximo o Confessor, Ambigua, P.G. 91, 1257AB.
14. São Máximo o Confessor, Capítulos Teológicos 5, P.G. 90, 1377 AB.
15. Veja São Gregório de Nissa, Sobre a Criação do Homem, VI, P.G. 44, 140.
16. Veja São Gregório de Nissa, Oração Catequética VI, P.G. 45, 27D-28A.
17. Veja São Gregório de Nissa, Contra Eunomius I, P.G. 45, 381B.
18. Homilia em I Corinthians 15, 28, P.G. 44, 1312A.
19. São Gregório de Nissa, Sobre o Hexaemerão, P.G. 44, 73A.
20. São Basílio o Grande, Contra Eunomius, P.G. 29, 736C.
21. São Gregório de Nissa, Sobre o Hexaemerão, P.G. 44, 73C: "Por algum motivo, o poder efetivo de cada produto é transformado em energia".
22. Veja São Gregório de Nissa, Sobre o Hexaemerão, 7, P.G. 44, 69C e Sobre a Alma e Ressurreição, P.G. 46, 124C.
23. São Gregório de Nissa, Sobre as Inscrições dos Salmos, P.G. 44, 441B.
24. Sobre o Espírito Santo, P.G. 32, 180C.
25. São Isaque o Sírio, Escritos Ascéticos, Carta 4 (ed. Spanos), p. 384
26. Dídimo o Cego, Sobre a Santíssima Trindade 2, 1, P.G. 39, 452A.
27. São Máximo o Confessor, Para Thalassios, P.G. 90, 296 aC.
28. São Veja Thomas de Aquino, Quaest. Disp. De veritate, qu. Eu, art. 1.
29. São Veja Thomas de Aquino, Summa Theologica I, 25, 1; Summa contra Gentiles II, 9.
13. Veja São Máximo o Confessor, Ambigua, P.G. 91, 1257AB.
14. São Máximo o Confessor, Capítulos Teológicos 5, P.G. 90, 1377 AB.
15. Veja São Gregório de Nissa, Sobre a Criação do Homem, VI, P.G. 44, 140.
16. Veja São Gregório de Nissa, Oração Catequética VI, P.G. 45, 27D-28A.
17. Veja São Gregório de Nissa, Contra Eunomius I, P.G. 45, 381B.
18. Homilia em I Corinthians 15, 28, P.G. 44, 1312A.
19. São Gregório de Nissa, Sobre o Hexaemerão, P.G. 44, 73A.
20. São Basílio o Grande, Contra Eunomius, P.G. 29, 736C.
21. São Gregório de Nissa, Sobre o Hexaemerão, P.G. 44, 73C: "Por algum motivo, o poder efetivo de cada produto é transformado em energia".
22. Veja São Gregório de Nissa, Sobre o Hexaemerão, 7, P.G. 44, 69C e Sobre a Alma e Ressurreição, P.G. 46, 124C.
23. São Gregório de Nissa, Sobre as Inscrições dos Salmos, P.G. 44, 441B.
24. Sobre o Espírito Santo, P.G. 32, 180C.
25. São Isaque o Sírio, Escritos Ascéticos, Carta 4 (ed. Spanos), p. 384
26. Dídimo o Cego, Sobre a Santíssima Trindade 2, 1, P.G. 39, 452A.
27. São Máximo o Confessor, Para Thalassios, P.G. 90, 296 aC.
28. São Veja Thomas de Aquino, Quaest. Disp. De veritate, qu. Eu, art. 1.
29. São Veja Thomas de Aquino, Summa Theologica I, 25, 1; Summa contra Gentiles II, 9.
30. Veja o texto da Encíclica Mystici Corporis Christi do Papa Pio XII (na publicação La Foi Catholique-Textes doctrinaux du Magistère de l'Église, Paris, 1961, página 364): Ce qu' il faut rejeter: tout mode d'union mystique par lequel les fidèles, de quelque faÕon que ce soit, dépasseraient l'ordre du créé et s'arrogeraient le divin au point que même un seul des attributs du Dieu éternel puisse leur être attribué en propre. Cf. Também a perspectiva oriental registrada por São Gregório de Nissa, Sobre as Bem-aventuranças VII, P.G. 44, 1280C.D .: "O homem escapa de sua própria natureza, tornando-se um imortal de um mortal que ele é, e de alguém que tem um preço na cabeça para um inestimável, e de uma criatura temporal para uma eterna, sendo homem se tornando completamente deus ... Pois, se aquilo que Deus é por natureza, Sua propriedade, é dado pela graça ao homem, então, o que mais que uma certa igualdade de honra é professada em virtude da relação?"
31. Veja M.-D. Chenu, La Théologie au douzième siècle, Paris (ed. Vrin), 1966, p. 294. Veja também La Foi Catholique, p. 321: La grâce est gratuite et surnaturelle, onde se cita a referência relativa às fontes dogmáticas da Igreja Católica Romana. Além disso, J.-H. Nicolas, Dieu connu como inconnu, Paris, 1966, p. 218f.
32. Op. cit., p. 289.
33. Veja p. 294: ...le réalisme de la divinisation: l'être intentionel n'est pas moins réel que l'être entitatif.
34. Veja p. 291: A partir de l'habitus de la grâce, la charité informe de l'intérieur toute la vie vertueuse de l'homme qui manifeste ainsi la ressemblance divine.
31. Veja M.-D. Chenu, La Théologie au douzième siècle, Paris (ed. Vrin), 1966, p. 294. Veja também La Foi Catholique, p. 321: La grâce est gratuite et surnaturelle, onde se cita a referência relativa às fontes dogmáticas da Igreja Católica Romana. Além disso, J.-H. Nicolas, Dieu connu como inconnu, Paris, 1966, p. 218f.
32. Op. cit., p. 289.
33. Veja p. 294: ...le réalisme de la divinisation: l'être intentionel n'est pas moins réel que l'être entitatif.
34. Veja p. 291: A partir de l'habitus de la grâce, la charité informe de l'intérieur toute la vie vertueuse de l'homme qui manifeste ainsi la ressemblance divine.
Muito bom.
ResponderExcluirGostaria de saber mais sobre os mencionados teólogos ortodoxos que previram a atual crise do ocidente "com uma lucidez surpreendente". Onde encontro algum estudo ou citações desses teólogos ?
Quais seriam exemplos de heresias que "que procuravam desesperadamente redescobrir a santidade no mundo criado"?
[ ]s
Cleverson, São Gregório Palamas em seu debate com um escolástico de seu tempo diz:
Excluir"Por isso, ao remover a atividade divina e fundindo-a com essência dizendo que a atividade não é diferente daquela essência, eles fizeram de Deus uma essência sem atividade. E não só isso, mas também aniquilaram completamente o ser de Deus e tornaram-se ateus no universo [um mundo sem deus]; pois o mesmo Máximo diz: "Quando a atividade divina e humana é removida, não há Deus nem homem". [Para Marinus 96B; Cf. 201AB] Pois é absolutamente necessário que a pessoa que diz que a atividade em Deus não é diferente da sua essência cai na armadilha do ateísmo."
St. Gregory Palamas, Dialogue between an Orthodox and a Barlaamite which Invalidates in Detail the Barlaamite Error, XXX-XXXI
Sobre as heresias me vem a mente os ressurgimentos de certas tradições pagãs como o interesse sobre hermetismo, alquimia e da religião grega/egípcia no renascimento ou os movimentos ocultistas modernos
OK, agradecido.
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