quinta-feira, 9 de fevereiro de 2017

Atitude Ortodoxa em relação aos Cristãos Não-ortodoxos (Pe. Seraphim Rose)

Alguns anos antes de falecer, Pe. Seraphim recebeu uma carta de uma mulher afro-americana que, como catecúmena aprendendo sobre a Ortodoxia, estava lutando para entender a atitude pouco caridosa que alguns Cristãos Ortodoxos mostravam àqueles que estavam fora da Igreja, uma atitude que lhe lembrava de como seu próprio povo tinha sido tratado. "Estou bastante preocupada", esta mulher escreveu, "sobre a forma de como a Ortodoxia vê os Cristãos Ocidentais, isto é, Protestantes e Católicos Romanos. Eu li muitos artigos de muitos escritores Ortodoxos, e alguns usam palavras como "papistas", etc. que eu acho profundamente preocupante e bastante ofensivas. Eu acho ofensiva porque, como uma pessoa de uma raça que já foi submetida a muitos insultos, eu desprezo e não desejo adotar o hábito de xingar. Até mesmo o termo "herético" me perturba...

"Como fico com meus amigos e parentes? Eles não sabem sobre a Ortodoxia e eles não entendem isso. No entanto, eles acreditam e louvam Cristo... Devo tratar meus amigos e parentes como se eles não tivessem Deus, sem Cristo? Ou devo chamá-los de Cristãos, mas que não conhecem a verdadeira Igreja?

"Quando fiz essa pergunta, não posso deixar de pensar em São Inocêncio do Alasca quando visitou os mosteiros franciscanos na Califórnia. Ele permaneceu completamente ortodoxo, mesmo tratando os padres que encontrou lá com bondade, caridade e não com xingamentos. Isso, espero, é o que a Ortodoxia diz sobre como se deve tratar os outros Cristãos."

O dilema dessa mulher era bastante comum às pessoas que entram na Fé Ortodoxa. Aproximando-se do fim de sua curta vida e tendo abandonado sua amargura juvenil, Pe. Serafim respondeu o seguinte:
Fiquei feliz em receber sua carta - feliz, não porque você está confusa sobre a questão que lhe incomoda, mas porque sua atitude revela que na verdade da Ortodoxia pela qual você é atraída, você deseja encontrar uma espaço para uma atitude amorosa e compassiva para aqueles que estão fora da Fé Ortodoxa.

Eu acredito firmemente que realmente é isto o que a ortodoxia ensina ...

Explicarei brevemente o que acredito ser a atitude ortodoxa em relação aos cristãos não-ortodoxos.

1. A Ortodoxia é a Igreja fundada por Cristo para a salvação da humanidade e, portanto, devemos guardar com a nossa vida a pureza de sua doutrina e a nossa fidelidade a ela. Na Igreja Ortodoxa, apenas, a graça é dada através dos sacramentos (a maioria das outras igrejas nem sequer afirmam ter sacramentos em qualquer sentido sério). Só a Igreja Ortodoxa é o Corpo de Cristo, e se a salvação é suficientemente difícil dentro da Igreja Ortodoxa, quanto mais difícil deve ser fora da Igreja!

 2. No entanto, não cabe a nós definir o estado daqueles que estão fora da Igreja Ortodoxa. Se Deus deseja conceder a salvação a alguns que são cristãos na melhor maneira que eles conhecem, mas sem nunca conhecer a Igreja Ortodoxa - isso depende dEle, não de nós. Mas quando Ele faz isso, é algo que está fora do caminho normal que Ele estabeleceu para a salvação - que está na Igreja, como parte do Corpo de Cristo. Eu mesmo posso aceitar a experiência dos protestantes como "nascidos de novo" em Cristo; conheci pessoas que mudaram suas vidas inteiramente por meio do encontro com Cristo, e eu não posso negar sua experiência apenas porque elas não são ortodoxas. Eu chamo essas pessoas de cristãos "subjetivos" ou "iniciantes". Mas, enquanto não estiverem unidos à Igreja Ortodoxa, não podem ter a plenitude do cristianismo, não podem ser objetivamente cristãos como pertencentes ao Corpo de Cristo e receber a graça dos sacramentos. Penso que é por isso que existem tantas seitas entre eles - eles começam a vida cristã com uma genuína conversão a Cristo, mas não podem continuar a vida cristã de maneira correta até que estejam unidos à Igreja Ortodoxa e, portanto, eles substituem suas próprias opiniões e experiências subjetivas pelos ensinamentos e sacramentos da Igreja.

Sobre aqueles cristãos que estão fora da Igreja Ortodoxa, portanto, eu diria: eles ainda não têm toda a verdade - talvez ainda não tenha sido revelada a eles, ou talvez seja nossa culpa por não viver e ensinar a Fé Ortodoxa em uma maneira que eles possam entender. Com tais pessoas não podemos ser um na Fé, mas não há razão para que os consideremos totalmente estranhos ou iguais aos pagãos (embora também não devemos ser hostis aos pagãos - eles também não viram a verdade!). É verdade que muitos dos hinos não-ortodoxos contêm um ensinamento ou pelo menos alguma ênfase que é errado - especialmente a ideia de que quando alguém é "salvo", não é necessário fazer nada mais porque Cristo fez tudo. Essa ideia impede que as pessoas vejam a verdade da Ortodoxia, que enfatiza a idéia de lutar pela salvação mesmo depois de Cristo nos ter dado, como diz São Paulo: "Trabalhai vossa salvação com temor e tremor". [Filip. 2:12]. Mas quase todos os cânticos religiosos de Natal estão corretos, e eles são cantados por cristãos ortodoxos na América (alguns deles mesmo nos monastérios mais rigorosos!).
A palavra "herege" (como dizemos em nosso artigo sobre Pe. Dimitry Dudko) é, de fato, utilizada com muita frequência hoje em dia. Ela tem um significado e uma função definida para distinguir os novos ensinamentos do ensinamento Ortodoxo; mas poucos dos cristãos não-ortodoxos hoje são conscientemente "hereges", e realmente não faz bem chamá-los assim.

No final, acho que a atitude do Pe. Dimitry Dudko é a correta: devemos ver as pessoas não-ortodoxas como pessoas a quem a Ortodoxia ainda não foi revelada, como pessoas que são potencialmente ortodoxas (se pelo menos nós mesmos lhes déssemos um melhor exemplo!). Não há razão para que não possamos chamá-los cristãos e estar em bons termos com eles, reconhecer que temos pelo menos nossa fé em Cristo em comum, e vivermos em paz especialmente com nossas famílias. A atitude de São Inocêncio aos católicos romanos na Califórnia é um bom exemplo para nós. Uma atitude severa e polêmica é exigida apenas quando os não-ortodoxos estão tentando afastar nosso rebanho ou mudar nosso ensino...

Quanto aos preconceitos - estes pertencem às pessoas, não à Igreja. A ortodoxia não exige que você aceite quaisquer preconceitos ou opiniões sobre outras raças, nações, etc.

Do livro Father Seraphim Rose: His Life and pelo Hieromonge Damasceno

quarta-feira, 1 de fevereiro de 2017

V. Lossky e a Teologia Mística do Oriente (N. O. Lossky)

Vladimir Nicolaevich Lossky, filho do filósofo N. O. Lossky, nasceu em 1903. Estudou na Faculdade de Artes da Universidade de Petrogrado, prosseguiu os seus estudos em Praga e finalmente se formou em Sorbonne, Paris, onde se especializou na filosofia medieval. Seus trabalhos principais são Essai sur la theologie mystique de l'Eglised'Orient, Aubier, Paris 1944; e Meister Eckehardt.




A obra sobre a teologia mística da Igreja Oriental é do tipo "síntese neo-patrística", utilizando o termo do Padre George Florovsky. Lossky confirma todas as suas principais afirmações de seu livro fazendo referências a escritos patrísticos. A teologia e o misticismo, diz ele, estão intimamente interligados na tradição da Igreja Oriental. O objetivo dessa teologia não é algo teórico, mas é prático: conduz àquilo que está acima do conhecimento, "à união com Deus, isto é, à deificação dos Padres gregos". A parte central do livro consiste em mostrar que a teologia apofática interpenetra todas as doutrinas fundamentais dos Padres Orientais. Ele fala longamente sobre o misticismo de Dionísio o Areopagita e a doutrina de São Gregório Palamas sobre as "energias" divinas. A teologia apofática de Dionísio, o Areopagita, difere profundamente daquela de Plotino. De acordo com Plotino, Deus é incognoscível porque Ele é simples; portanto, ele considera o êxtase como apolosis (simplificação) no qual a unidade ontológica original da alma humana e de Deus é manifestada; segundo Dionísio, Deus é incognoscível porque Ele é ontologicamente superior ao mundo, e a união com Deus é a deificação; isto é, um novo estado nunca antes atingido pelo homem natural (36).

A teologia catafática não difere essencialmente da apofática. "Pode até ser dito que é um só caminho trilhado em duas diferentes direções: Deus vem até nós em Suas energias que O manifesta para nós, e nós ascendemos a Ele através de uma série de uniões, enquanto Ele permanece incognoscível em Sua natureza. Até a mais elevada teofania, a manifestação perfeita de Deus no mundo através da encarnação do Verbo, retém para nós seu caráter apofático". A incognoscibilidade de Deus não conduz ao agnosticismo; exige "uma teologia contemplativa conduzindo o espírito para realidades acima razão. Por isso os dogmas da Igreja aparecem muitas vezes à razão humana sob a forma de antinomias". Isto é particularmente verdadeiro no dogma trinitário. Plotino tem uma doutrina da Trindade (o Uno, o Espírito e a Alma do Mundo), e até usa a expressão "ser consubstancial". Mas a Trindade de Plotino é uma hierarquia descendente de três princípios, enquanto a doutrina cristã da Santíssima Trindade é a contemplação da unidade e da diferença das Três Pessoas que são co-iguais.

Os teólogos ocidentais ao lidarem com o dogma trinitário geralmente começam com a concepção da natureza divina passando dela para a concepção das Três Pessoas, enquanto os gregos seguem a ordem inversa, das Três Pessoas para a natureza única; mas não há nenhuma questão da superioridade ou prioridade da natureza sobre a personalidade ou vice-versa. O caso é diferente com a doutrina ocidental da processão do Espírito Santo do Pai e do Filho (Filioque), que levou ao cisma entre as igrejas ocidental e oriental. Os gregos detectam nessa fórmula uma tendência em colocar em primeiro plano "a unidade da natureza à custa da diferença real entre as Pessoas: as relações de processão, não conectando diretamente tanto o Filho e o Espírito Santo com uma única fonte, o Pai, tornam-se um sistema de relações em uma natureza e prova ser logicamente posterior à natureza." O Espírito Santo é para os teólogos ocidentais "o vínculo entre o Pai e o Filho". A natureza "torna-se na Trindade um princípio de unidade diferenciado pelas relações. As relações, ao invés de serem as características das Pessoas, se identificam com elas." São Tomás de Aquino diz que "o nome de uma pessoa significa relação". Ensinamentos que colocam a natureza de Deus em primeiro plano "colocam o universal acima do indivíduo"; isto conduz ao misticismo apofático impessoal, por exemplo, a doutrina de Gottheit de Mestre Eckhart. "Ao insistir na monarquia do Pai como única fonte e princípio da unidade das Três Pessoas, os teólogos orientais defendiam, pensavam, uma concepção mais concreta e pessoal da Trindade".

Pode-se perguntar se, de acordo com tal triadologia, a concepção da Pessoa é mais elevada que a Natureza Divina. V. Lossky pensa que esta é a falácia do sofianismo de Sergius Bulgakov, pois segundo ele a Natureza Divina é a manifestação das Três Pessoas da Santíssima Trindade. Os Padres Orientais não caem em nenhum dos extremos: eles sustentam que na Santíssima Trindade, a natureza e personalidade são apofáticamente equivalentes. A concepção deles da monarquia do Pai não é subordinacionismo. A diferença é refletida até mesmo na doutrina da beatitude: para o Ocidente, a bem-aventurança é contemplação da Natureza Divina, e para o Oriente é participação na vida divina da Santíssima Trindade. 

V. Lossky dedica especial atenção à doutrina das "energias" Divinas, que foi elaborada em detalhe por São Gregório de Palamas, prefigurada por Atenágoras, São Basílio, São Gregório o Divino, Dionísio e São João Damasceno. Deus habita "na luz a qual nenhum homem pode se aproximar", mas em Suas "energias" Ele vem ao exterior, Se manifesta e Se entrega. "A graça Divina que concede a deificação", diz São Gregório Palamas, "não é a natureza de Deus, mas a Sua energia"; são "os raios da Divindade" que penetram o mundo, "a luz incriada" ou "graça": Deus não está limitado em Suas energias: Ele está inteiramente presente em cada raio de Sua Divindade; esta manifestação dEle é "a glória de Deus"... A união com Deus em Suas energias, ou seja, por meio da graça, nos permite participar da natureza de Deus, mas nossa natureza não se torna, assim, a natureza de Deus". Na deificação, a criatura "permanece criatura, tornando-se Deus pela graça".

Os teólogos ocidentais negam a distinção entre a natureza e as energias de Deus, mas admitem outras distinções, como a luz criada da graça, os dons sobrenaturais criados e assim por diante. "A teologia oriental reconhece nenhuma ordem sobrenatural entre Deus e o mundo criado, adicionada à criatura como uma nova criação." A diferença reside no fato de que a concepção ocidental da graça contém a idéia de causalidade - a graça é entendida como o efeito de uma causa divina, "mas para a teologia oriental a graça é a radiação da natureza Divina, isto é, das "energias". É "a presença da luz eterna e incriada" no mundo criado, "a real onipresença de Deus em todas as coisas, maior do que Sua presença causal". No mundo, a natureza e graça "estão mutuamente interpenetradas, uma existe dentro da outra".

O "nada" a que devemos descender ao pensar na criação do mundo por Deus é, segundo V. Lossky, tanto mistério quanto o Nada Divino ao qual devemos ascender na teologia apófatica. A criação do mundo por Deus é um ato de criação de um ser absolutamente novo, não contido na natureza de Deus. "A criação é obra da vontade de Deus e não de Sua natureza". As idéias de acordo com as quais o mundo é criado não  estão cósmos noetós dentro da natureza de Deus: nas palavras de Dionísio elas não estão na Natureza Divina (como o Padre Sergius Bulgakov ensina), mas "naquilo que vem depois da natureza", nas energias Divinas. Contendo dentro delas a vontade de Deus, as idéias são dinâmicas: são idéias-volições externas à criatura e predeterminam os diferentes estágios da participação da criatura nas energias Divinas. O mundo é "uma hierarquia de analogias reais" chamada à deificação através da "sinergia"; Ou seja, através da cooperação livre da vontade criada com as idéias-volições Divinas.

A teologia oriental é sempre soteriológica. Inclinada sobre o problema da união com Deus, não entra em aliança com a filosofia como faz o escolasticismo. O homem é, por natureza, ligado ao mundo inteiro. Se Adão tivesse sido guiado pelo amor de Deus e se tivesse entregado-se inteiramente a Deus, ele teria unido o mundo inteiro e o conduzido a Deus, enquanto que Deus, por Sua vez, teria Se entregado ao homem, que então teria recebido pela graça tudo o que Deus tem por natureza (São Máximo). Mas Adão falhou em sua tarefa cósmica e essa foi retomada pelo Filho de Deus, o Deus-homem, o Segundo Adão. O pensamento oriental está sempre preocupado com o mundo como um todo. "Isto encontra expressão na teologia, na poesia litúrgica, na iconografia e, talvez, sobretudo, nas obras dos mestres ascéticos da vida espiritual da Igreja Oriental". Toda a história do mundo é considerada como "a história da Igreja que é o fundamento místico do mundo".

As palavras do Gênesis nas quais ao criar o homem Deus "soprou" nele o sopro da vida não devem ser entendidas como significando que o espírito do homem é uma partícula da Deidade. Isso implicaria que o homem é "Deus preso em um corpo" ou "uma combinação de Deus e animal"; assim a origem do mal seria incompreensível e "o próprio Deus teria pecado em Adão." As palavras da Bíblia devem ser interpretadas como significando que "o espírito do homem está intimamente ligado à graça de Deus".

No homem, como em Deus, a distinção deve ser feita entre natureza e personalidade. A natureza é a mesma em todos os homens. Adão antes da queda era um homem universal, mas devido à queda a natureza humana foi quebrada e dividida em muitos indivíduos. Cada personalidade é única, e é indefinível e incognoscível em sua perfeição como a imagem de Deus, de acordo com São Gregório de Nissa. "A personalidade não é uma parte do todo, ela contém o todo"; é capaz de ser livre de sua própria natureza e de subordiná-la a si mesma. Por causa da Queda, o homem perde sua verdadeira liberdade - e age de acordo com suas qualidades naturais ou seu "caráter"; ele se torna menos pessoal, uma "mistura de personalidade e natureza". Essa mistura é chamada na literatura ascética oriental de "individualidade" (NT: selfhood). O restabelecimento da personalidade é alcançado através da renúncia à individualidade, através do livre sacrifício da vontade individual. Ao deixar de existir por si, a personalidade "expande-se infinitamente e é enriquecida por tudo o que pertence a todos". Torna-se a imagem perfeita de Deus e adquire a semelhança Divina; isto é, torna-se "um deus criado" ou "deus pela graça". Esta deificação é alcançada através da cooperação de duas vontades - a vontade do Espírito Santo concedendo graça, e a vontade do homem recebendo a graça.

O pecado, a natureza e a morte devem ser conquistados para que a deificação possa ser alcançada. Esses três obstáculos foram superados pelo Deus-homem Jesus Cristo, o Novo Adão que uniu o ser criado e o não-criado. Seu corpo é a Igreja na qual devem ser distinguidos dois aspectos: o cristológico e o pneumatológico, o orgânico e o pessoal. No seu aspecto cristológico, a Igreja é um organismo teo-andrico "com duas naturezas, duas vontades, duas atividades, inseparáveis, mas distintas uma da outra".  Portanto, na história do dogma, todas as heresias cristológicas são repetidas na eclesiologia. A obra de Cristo é direcionada à natureza humana, a qual está unificada em Sua Pessoa. O aspecto pneumatológico da Igreja consiste no fato de que o Espírito Santo dá a cada personalidade a plenitude da divindade de acordo com seu caráter individual único. A unicidade da natureza humana está conectada com a Pessoa de Cristo, a multiplicidade das pessoas humanas - com a graça do Espírito Santo. A obra de Cristo e a obra do Espírito Santo são inseparáveis uma da outra. A "catolicidade" da Igreja consiste na harmonia ou, em certa medida, na identidade da unidade e da multiplicidade: a plenitude do todo não é a soma das partes, pois cada parte possui a mesma plenitude que o todo. A Santíssima Trindade é o ideal desta catolicidade, "o cânone de todos os cânones da Igreja". A Igreja com seus sacramentos é a condição objetiva de nossa união com Deus e as condições subjetivas dependem de nós mesmos.

Cristo é a cabeça da Igreja no mesmo sentido em que o marido é a cabeça do corpo único dos dois parceiros no casamento: a Igreja é Sua Esposa, e o coração da Igreja é a Mãe de Deus. São Gregório Palamas diz que na Virgem Maria "Deus uniu todos os aspectos parciais da beleza distribuídos entre outras criaturas e fez dela o adorno comum do reino de todos os seres, visíveis e invisíveis. Através dela homens e anjos adquirem a graça". 

A deificação deve começar na Terra com nosso preparo para a vida eterna, e por mais que possamos ter sucesso nisso, não podemos fazer disso um mérito. "A concepção de mérito é estranha à tradição da Igreja Oriental". Para começar a vida espiritual devemos dirigir nossa vontade para Deus, renunciar o mundo e alcançar uma harmonia entre a razão e o coração. "Sem a razão, o coração é cego, sem o coração - que é o centro de toda atividade - a razão é impotente". A consciência razoável, a "vocação", é a condição necessária da vida ascética. 

A alma não pode ser curada a menos que o homem direcione sua vontade a Deus com fé perfeita na oração, que é "um encontro pessoal com Deus" e que nos treina no amor de Deus. Primeiramente a oração encontra expressão nas palavras, mas nos estágios mais elevados, quando a vontade é plenamente entregue a Deus, a oração espiritual acontece sem palavras: é a contemplação, "descanso absoluto e paz, participação nas energias do Espírito Santo" diz São Isaque o Sírio. A oração deve tornar-se contínua. Os ascetas da Igreja Oriental fazem uso da prática da oração espiritual ou interna, conhecida como ἡσυχασμός. A curta oração a Jesus, "Senhor Jesus Cristo, Filho de Deus, tem piedade de mim, pecador" é repetida o tempo todo e se torna a segunda natureza do monge. O propósito dessa oração é alcançar um contínuo estado "diante de Deus". A oração não deve ser acompanhada do desejo de experimentar o êxtase ou de ter imagens sensíveis dos anjos, de Cristo ou da Nossa Senhora. Nilus, o Sinaíta, advertiu contra esse erro já no século IV.

A livre renúncia à própria natureza e a união com Deus leva a uma perfeita realização da personalidade humana com a ajuda da graça, à plena consciência ou "gnosis", e faz do homem um "filho da luz" (Efés. -14). A Santa Escritura está cheia de expressões relacionadas com a luz, e o próprio Deus é chamado Luz. São Simeão, o Novo Teólogo, diz que "a luz da glória de Deus precede a Sua face". No século XIV houve discussões sobre essa luz entre os tomistas orientais e os adeptos da tradição da Igreja Oriental. Eles discutiram "a realidade da experiência mística, a possibilidade de conscientemente contemplar Deus, a natureza criada ou incriada da graça". São Gregório Palamas diz que "Deus é chamado Luz não em Sua natureza, mas em Suas energias". Essa luz é "o caráter visível da Divindade, das energias ou da graça pela qual Deus Se faz conhecido. Essa luz preenche simultaneamente os sentidos e o intelecto, revelando-se a todo o homem e não apenas a alguma de suas faculdades". Portanto, São Simeão, o Novo Teólogo, chama essa luz de invisível e, ao mesmo tempo, afirma que ela pode ser vista. É a luz imaterial incriada da glória de Deus. Essa luz sempre esteve no corpo de Cristo, invisível aos homens, mas no Monte Tabor a natureza dos Apóstolos sofreu uma mudança graciosa necessária para a experiência mística e para a visão daquela luz". No final escatológico da história esta transfiguração da personalidade e sua união com Deus "se manifestará de maneira diferente em cada ser humano que tenha adquirido a graça do Espírito Santo na Igreja. Mas os limites da Igreja no outro lado da morte e a possibilidade de salvação para aqueles que não viram a luz nesta vida permanecem para nós um mistério da misericórdia de Deus, sobre o qual não ousamos concluir, mas que não podemos limitar em conformidade com as normas humanas".


Na conclusão de seu livro V. Lossky afirma que a teologia apofática da Igreja Oriental ao buscar a perfeita plenitude do ser eleva-se dos conceitos à contemplação e transforma dogmas na experiência dos mistérios divinos inexprimíveis. Cristo aparece sempre na Igreja "na plenitude de Sua divindade, triunfante e glorificado mesmo em Sua paixão, mesmo no sepulcro". A adoração da humanidade de Cristo é estranha à tradição oriental, ou melhor, Sua humanidade deificada aparece nela na mesma forma glorificada a qual os Apóstolos viram no Monte Tabor. Os santos da Igreja Oriental nunca tiveram estigmas mas eles "foram muitas vezes transfigurados pela luz interior da graça incriada e apareceram radiante como Cristo na Transfiguração". "A consciência da plenitude do Espírito Santo, dada a cada membro da Igreja, em proporção ao seu crescimento espiritual, expulsa as trevas da morte, o medo do Juízo, o abismo do inferno, e direciona nosso olhar unicamente para o Senhor aproximando-se em Sua glória. Esta alegria da ressurreição e da vida eterna faz da noite de Páscoa a festa da fé, quando todos participam em pequena medida, mesmo que por alguns momentos, na plenitude do oitavo dia em que não haverá fim". Por isso, todos os anos, nas Matinas de Páscoa, é lido em voz alta o sermão de São João Crisóstomo, no qual ele diz que o Senhor Deus recebe com igual amor aqueles que vêm na décima primeira hora e aqueles que vêm no início.


N. O. Lossky em History of Russian Philosophy

quarta-feira, 25 de janeiro de 2017

O Comprimento e a Altura da Cruz é Igual ao Céu (S.N. Trubetskoy)

"Ó milagre glorioso! O comprimento e a altura da cruz é igual ao céu!" (3ª estiquério para o final das matinas). Ao louvar a Cruz Vivificante do Senhor com essas palavras em um de seus hinos para a festa da Elevação da Cruz, a Santa Igreja nos apresenta um de seus aspectos de seu ensinamento sobre a Cruz, a saber: que o comprimento e a altura da cruz é igual ao céu; em outras palavras, que a cruz protege todo o universo, toda a criação, o mundo físico e o metafísico por completo.

Encontramos uma exposição única deste ensinamento em um livro maravilhoso do proeminente filósofo russo religioso Príncipe Yevgeniy Trubetskoy, que trata da questão que se reflete em seu título - "O Sentido da Vida." O livro foi escrito em 1918, precisamente em uma época em que o velho mundo cristão estava sendo demolido, e uma era pós-cristã, apóstata, apocalíptica - a chamada Nova Era - estava sendo estabelecida na Terra.

Ao analisar a profunda e complexa questão do sentido da vida, particularmente no contexto de caos circundante e a falta de sentido evidente daquela época, o Príncipie Trubetskoy analisa de forma maravilhosamente espiritual a estrutura fundamental da vida, explicando sua linha horizontal (comprimento) e sua linha vertical (altura), e mostra que somente na interseção dessas duas linhas (uma cruz) está o verdadeiro significado da vida revelada para nós. Eis o que este grande escritor espiritual diz (extraído do livro "O Sentido da Vida", p. 53-65):


"Um argumento eterno de dois conceitos opostos da vida se trava em torno da questão do propósito e sentido da vida - um conceito naturalista, que se volta para a vida real e seu significado no plano deste mundo, e um conceito sobrenatural, que afirma que a verdadeira vida e seu significado está concentrada em um plano de existência superior, diferente e fora deste mundo. Um exame dessas duas resoluções nos leva a concluir que ambas são igualmente unilaterais e, portanto, igualmente inválidas.

Para o naturalismo - tanto religioso quanto filosófico - a vida real é precisamente esta vida, que se desdobra neste plano particular de existência; O mundo real é o que ocorre diante de nós neste plano, morrendo e renascendo periodicamente. Um exemplo vívido de tal conceito de vida são os gregos antigos com seu culto da natureza e seus deuses solares - Olímpicos. Todos esses deuses do trovão e do relâmpago, as ondas do mar, o luar e a luz ofuscante do céu do meio-dia são personificações humanas da alegria da vida na terra. A religião grega também conhece o além, mas não é tanto o outro mundo mas o submundo, onde tudo é sombrio e estéril; a sombra de Aquiles fala disso a Ulisses, dizendo que é melhor ser escravo na terra do que reinar sobre os mortos no reino das sombras.

Falando do outro mundo, olhemos para aquelas religiões que representam uma antítese direta à visão de mundo alegre dos gregos antigos. Estou falando daquelas religiões da Índia que não só não acreditam na autenticidade deste mundo, mas até mesmo parcialmente rejeitam sua realidade. A profundidade da busca religiosa da Índia é expressa no fato de que ela transforma todos os julgamentos do senso comum em seu oposto. O que chamamos de realidade é na verdade um sonho, enquanto o que chamamos de sonho é uma realidade genuína e verdadeiramente valiosa - assim somos ensinados pela sabedoria ascética do bramanismo e do budismo. A palavra "Buda" até mesmo literalmente significa "o despertado". Assim, todo o ensinamento de ambas religiões não é mais do que uma tentativa de alcançar esse despertar, de se elevar acima da agitação que é chamada realidade; para o budismo, assim como para o bramanismo, a verdadeira expressão da vida real não é esta realidade, mas as asas que podem nos elevar e nos afastar dela...

O pathos do bramanismo também está ligado com a exigência prática onde a pessoa deve rejeitar toda individualidade, todos desejos egoístas, todo esforço por uma recompensa aqui ou no além. Este mundo inteiro é uma mentira - portanto, o sentido da vida é alcançado apenas em uma total desassociação do mundo. Para o bramanismo, o ideal da vida é a completa dissolução de tudo o que é individual e concreto dentro da unidade impessoal de um espírito universal.

Esta dissociação ascética de tudo é cristalizada no budismo, cujo ideal consiste em elevar-se não só acima de uma vida individual finita, mas acima de toda a vida em geral, acima de todo esforço em relação à vida, acima de todo desejo de imortalidade. O budismo deixa sem resposta a própria questão da vida eterna do indivíduo, a fim de não despertar no homem esse desejo vago pela vida que está na raiz de todo sofrimento na terra. Uma imersão pacífica no "nirvana" pregado pelo budismo é alcançado através da completa desassociação da vida.

Em última análise, no entanto, a busca religiosa aqui também permanece sem solução. A auto-abnegação ascética da índia acaba por ser uma meia verdade, assim como a cosmovisão religiosa dos gregos antigos. Vemos aqui duas aspirações opostas em relação a vida, duas linhas de vida que se cruzam. Uma se estabelece aqui na terra, tem ambas extremidades firmemente enraizadas neste mundo. A outra, pelo contrário, anseia para longe da terra, aspira para o além. Mas, de uma maneira fatal, essas duas linhas conduzem a uma e a mesma coisa. Tanto a alegria transitória da vida dos olímpicos como o elevado vôo do ascetismo hindu terminam na morte. Pois o que é considerado felicidade no bramanismo e no budismo não é, em verdade, a vitória da vida, mas o contrário - a vitória sobre a vida e, consequentemente, a vitória da morte.

A religiosidade hindu essencialmente não acredita no sentido, mas na falta de sentido da vida. Os hindus engajam-se em uma ascensão espiritual, mas terminam no fracasso fatal, pois em sua religião o espírito não anima o mundo, não transforma-o desde dentro, não vence a força do mal nele, mas apenas entrega a si mesmo a essa força.  A atitude do espírito hindu em relação à terra é exclusivamente negativa: desassocia-se da terra para sempre e assim entrega a terra e todos os seres vivos nela ao poder do sofrimento, do mal e da futilidade. O sofrimento de toda a criação viva é fútil e suas esperanças são em vão, pois não tem lugar na salvação proclamada pelos ascetas da Índia: sua "salvação" não é a salvação da vida, mas a salvação para longe da vida; a "salvação" dos ascetas reside precisamente na destruição de todas as formas concretas, de toda a variedade da criação... Assim, a ascensão ao além, que constitui a essência da aspiração religiosa da Índia, se transforma em nada, pois esta ascensão não conduz ao seu objetivo, e o próprio céu permanece para sempre fechado para eles, para sempre além de seu alcance.

Tanto as soluções hindu como as gregas para a questão do sentido da vida se tornam igualmente inválidas. Ao afirmar o mundo, a religiosidade grega encontra o caos em vez do cosmos, encontra uma multidão de forças lutando entre si, não unidas pela unidade de um sentido comum, ao passo que a religiosidade hindu rejeita completamente o mundo como inexistente e absurdo, isto é, encontra sentido somente em sua destruição. Assim, se o homem busca o sentido da vida no plano horizontal terrestre ou na ascensão vertical a um plano diferente de existência, o resultado desses dois movimentos é o mesmo: o sofrimento em relação ao sentido não alcançado e o retorno do círculo da vida de volta a Terra, à futilidade.

Ambas as linhas, que expressam as duas direções básicas da aspiração da vida - a linha plana ou horizontal e a linha ascendente ou vertical - se cruzam. E tendo em vista o fato de que essas duas linhas representam uma descrição abrangente de todas as possíveis direções da vida, sua interseção - a formação de uma cruz - é a representação esquemática mais universal e exata do caminho da vida. Em todas as formas de vida há uma interseção inevitável desses dois caminhos e direções - o movimento ascendente e o movimento para a frente.

Nesse sentido, a cruz está na base de toda a vida. O esboço da própria vida é cruciforme por natureza, e há uma cruz cósmica, que expressa o fundamento arquitetônico de todo o universo.

Toda a questão do sentido da vida resume-se à questão da cruz, uma vez que fora dessas duas linhas da vida que se cruzam não pode haver outras linhas ou caminhos. No entanto, para cada pessoa o significado da cruz pode ser diferente, dependendo se esses caminhos da vida levam para o objetivo preciso ou não. Se alguém acredita que o resultado final de toda vida é a morte, então o cruzamento das linhas da vida representa apenas uma expressão extrema de tristeza, sofrimento, humilhação - e, nesse caso, a cruz é simplesmente um símbolo de tormento universal: de tal modo era conhecida pela humanidade pré-cristã. É uma questão totalmente diferente se na interseção das duas linhas a vida alcança sua plenitude, seu sentido eterno, belo e imortal. Então a cruz torna-se o símbolo desta elevada vitória, a cruz torna-se vivificante, o que constitui a única formulação correta da questão sobre o sentido da vida ...

Nem a auto-afirmação da mundanidade, personificada pelos olímpicos gregos, nem o ascetismo direto da Índia antiga e a fuga do mundo levaram ao sucesso. Esta dupla falha mostra que ambos os caminhos da vida que se cruzam no mundo são inválidos por si mesmos; Assim, o homem é levado a uma nova revelação do mistério do mundo. Se nem a terra, nem o céu, nem o alto, nem o baixo por si só compreendem a revelação do sentido da vida, isto significa que o sentido está em algum lugar mais profundo. Não é só maior do que a terra, mas também maior do que o céu e, portanto, todas as tentativas de encontrá-lo somente na terra ou apenas no céu estão igualmente condenadas ao fracasso. Não pode ser contido em qualquer plano finito da existência, pois engloba todos os planos, o mundo inteiro em geral, enquanto em si mesmo está acima do mundo...

Em outras palavras, devemos buscar o sentido da vida não em uma direção horizontal ou vertical tomada separadamente, mas na unificação dessas duas linhas da vida, no lugar onde elas se cruzam. No verdadeiro sentido da vida, todo sofrimento deve ser derrotado e transformado em alegria - tanto o sofrimento físico da criação terrena como o sofrimento espiritual de uma subida mal sucedida ao céu. O sentido da vida é testado pela cruz, porque, em última análise, a questão do sentido da vida é a questão se a cruz - um símbolo da morte - pode se tornar a fonte e o símbolo da vida?

De todas as religiões só o cristianismo fornece e afirma uma resolução positiva deste problema, pois prega a abolição da morte, prega a transformação da própria cruz de um caminho que leva à morte para um caminho que leva à vida. Além disso, esta é a única solução positiva possível, pois o cristianismo mostrou ao mundo a vitória total na cruz e na crença em Cristo como Deus perfeito e ao mesmo tempo homem perfeito, ao mundo revelado a unidade indivisível e integral do divino e do humano... A paixão voluntária do Filho de Deus e a ressurreição como consequência - tal é a única revelação do sentido no mundo por meio de qual é possível ser realizado e confirmado".

Príncipe Yevgeniy Trubetskoy

original: http://www.holy-transfiguration.org/library_en/lord_cross_equal.html

domingo, 20 de novembro de 2016

As diferenças entre o pensamento religioso do Oriente e do Ocidente (Arquimandrita Rafael [Karelin])

O poeta inglês Kipling começou seu poema com as palavras: "Oh, o Ocidente é o Ocidente e o Oriente é o Oriente, e eles nunca se moverão de seus lugares, até que o céu e a terra apareçam no Juízo Final de Deus". Aqui por Oriente e Ocidente não devemos entender as partes do mundo, que são divididas geograficamente pelas Montanhas dos Urais e do Cáucaso. Em vez disso, pelo Oriente deve-se entender a extensa região, que foi ocupada pela parte oriental do Império Romano, e depois por Bizâncio e os países do Oriente Próximo (aqui é possível incluir o Egito e a Etiópia), e pelo Ocidente entende-se as potências da Europa Ocidental e, em geral, todos os países de cultura da Europa Ocidental.

Os Santos Padres disseram metaforicamente: "A luz começou a brilhar do Oriente"; o Oriente representava simbolicamente o Paraíso, o Éden, um país de eterna Luz Divina. O Ocidente é jovem em um sentido cultural-histórico. O Ocidente é jovem. O Oriente é velho. O Ocidente é ativo. O Oriente é contemplativo. O Ocidente estão as emoções, tudo em movimento, tudo muito dinâmico.


No entanto, o Oriente é profundo em si mesmo; parece que não quer remover de sua vista os tesouros que possui. O Ocidente é impulsivo, está em busca, é ousado. O Oriente mantém o que tem. O Ocidente devaneia e fantasia. O Oriente procura por toda parte as idéias eternas sob o que está visivelmente coberto. O Ocidente veste seus santos com roupas brancas, coroam suas cabeças com grinaldas de rosas, mas o Oriente vê a santidade igualmente tanto debaixo de trapos quanto debaixo de ouro. Não santifica os trapos dos pobres, nem a simples vestes do monge, nem as vestes ricas dos czares - é como se não vissem o que é externo.

O Ocidente envia regimentos de cruzados para libertar o túmulo de Cristo. O Oriente envia monges aos desertos do Egito e para as moradias do Monte Athos. O Ocidente põe à mostra a espada contra os inimigos da fé. O Oriente fornece guerreiros espirituais para o combate invisível com os demônios. O Ocidente, para suprimir o mal, cria instituições como a Inquisição, e o Oriente - grandes sistemas filosóficos.

O pico da teologia ocidental é o abençoado Agostinho, um poeta e pensador brilhante; mas ele é completamente orientado para o psicológico. Os teólogos Orientais: Santo Gregório, o Teólogo, Basílio, o Grande, Gregório de Nissa - são místicos. Agostinho, em sua escola mostrou brilhantemente o homem em sua queda e agonia em sua busca, e os teólogos orientais mostraram o homem em sua transfiguração. O Ocidente, pela boca de seus santos, cantaram um hino majestoso a Deus; o Oriente, num silêncio místico, contemplava Deus. O Ocidente buscava nos céus azuis, e o Oriente procurava encontrar Deus nas profundezas do coração. 



Os ascetas ocidentais tentaram imitar Cristo externamente; os orientais consideraram que há apenas uma maneira de imitar Cristo - adquirindo a graça do Espírito Santo: o homem, tendo adquirido o Espírito Santo, apenas pela graça, invisivelmente, torna-se comparável a Cristo. Os ascetas ocidentais com canções em seus lábios foram para o Gólgota; Os orientais fizeram da vida um Gólgota, invisível para o mundo.

Alguns dos ascetas ocidentais imaginaram Cristo de forma tão vívida que eles identificaram-se com Ele; em suas mãos e solas de seus pés apareceram feridas, das quais corriam sangue. Os estigmas eram reverenciados pelos católicos como um sinal de santidade. Mas os santos ascetas do Oriente tentavam enxergar apenas uma coisa - o mar de seus pecados e consideravam um orgulho terrível comparar-se a Cristo.

O Ocidente se assemelhava ao jovem soldado que mostrava sua espada, o Oriente - o velho, esbranquiçados como seus cabelos grisalhos de sabedoria. O Ocidente queria trazer o Reino do Céu para a terra, para construir um paraíso na terra por meios terrestres. O Oriente sempre pagou tributo - a César o que é de César - e preparou o caminho para o Reino dos Céus no coração do homem, não a passagem para o Reino terrestre, mas para o Reino eterno.

Para o Ocidente a batalha com o mal estava a terra, esta vida temporária com todos os seus eventos e problemas, enquanto que para o Oriente estava no coração humano, que via como sendo mais profundo do que todo o mundo visível.

O Ocidente é ativo, mas toda sua atividade está voltada ao exterior. O Oriente voltou-se a dinâmica do espírito em si mesmo. A civilização ocidental é como uma onda larga de luz, mas luz dispersa, luz que é refratada através de prismas terrestres de cores diferentes. Mas o Oriente é a concentração de luz em um ponto, e isso porque esta luz tem uma qualidade especial (energia, força) para ser convertida em uma chama. O Ocidente amou a terra, e no céu ele via o terreno (terra). O Oriente amou o céu e no terreno (terra) ele viu os símbolos do céu; no temporal ele buscou os sinais do eterno.

Já o terceiro bispo de Roma - São Clemente, sucessor do santo apóstolo Pedro, comparou a Igreja com o exército e chamou os cristãos a uma disciplina rigorosa, para que este exército fosse vitorioso. Mas no Oriente, os Padres disseram: "Conquiste a si mesmo  - esta é a mais elevada de todas as vitórias". O ensinamento ascético dos Padres Orientais é uma estratégia dessa luta espiritual - luta com os demônios, com as próprias paixões. Para que o exército seja vitorioso, é necessário ter um controle centralizado, é necessário uma autoridade forte e uma subordinação incondicional, por isso o Ocidente criou a estrutura da Igreja, semelhante a uma monarquia. Para a luta com o velho inimigo da humanidade, o Oriente procurou outra força - a força da humildade, na qual o verdadeiro poder do espírito se manifesta.

O Ocidente está orientado ao poder externo: por meios externos criou várias organizações, afetou a influência na cultura, em todos os lugares procurou aliados - no mundo das artes, na literatura, na política, na sociedade. Mas o Oriente disse: "O verdadeiro bem só pode ser criado com a graça de Deus" e, portanto, sempre rejeitou aliados questionáveis; exteriormente parecia mais pobre, mais impotente, mais fraco do que o Ocidente; Contudo, não procurou força nem o poder do mundo, mas buscou por Cristo, que conquistou este mundo.

O ascetismo do Ocidente enche as almas dos ascetas com entusiasmo e com admiração, o ascetismo do Oriente - com arrependimento. O Ocidente, na beleza do mundo, deseja contemplar a beleza de Deus. Para o Oriente, Deus é Indizível, Incognoscível e Inexpressível. Deus, para o Oriente, não é como qualquer um ou qualquer coisa de Sua criação - Ele é um segredo eterno. O asceta ocidental quer abraçar a Deus, e o Oriente pede apenas por uma coisa - o perdão dos pecados; procurando em oração por qualquer tipo de estados exaltados - isso para ele já é um esforço pecaminoso.

O asceta ocidental vê a luz, que desce sobre ele do exterior (esta é a visão de Francisco de Assis e de outros), e o Oriente vê a Luz, que ilumina o seu coração a partir do interior; e como tal, ele treme, perante a benevolência de Deus, sentindo-se indigno Dele.

Os ascetas ocidentais, demonstrando (!) arrependimento, andavam em cidades em grupos, sociedades inteiras, chamadas de "arrependidos (penitentes)"; em ruas e praças, eles tiravam a roupa e, na presença de uma enorme multidão, açoitavam-se com cordas e cintos até sangrarem, e a multidão extática os glorificava como grandes santos de Deus, heróis da fé. O Oriente - no silêncio dos desertos oferecia arrependimento, invisível para o mundo; certa vez, um dos grandes Padres egípcios suspirou alto na igreja durante as orações, mas imediatamente ele se repreendeu e, depois de se virar para os monges vizinhos, disse: "Perdoe-me, irmãos, ainda não sou um monge" - porque o arrependimento, como todas as virtudes, deve ser secreto.

Para o Ocidente a coisa principal são as obras (ações). As obras, para ele, são de valor: assim, a boa ação e também o pecado possuem uma estrutura clara especifica e um valor. Para o Oriente a coisa principal é o estado espiritual, e as obras são apenas sua manifestação. Portanto, para o Oriente, até mesmo uma pequena ação pode ser grandiosa, se procede de um coração puro; e um grande podvig (esforço espiritual) é insignificante, se não é dedicado a Deus ou feito por meios indignos. A moral dos ascetas ocidentais baseia-se no "princípio da quantidade": naquele que, externamente, fez mais boas ações; a moral do Oriente se baseia na pureza do coração, conhecida apenas pelo Deus Único.

O Ocidente tentou realizar a ideia do Reino de Deus na terra, mas com os métodos de governo: incentivos, sanções, intrigas e similares, transferidos para a Igreja, profanando a sua própria finalidade. "O fim justifica os meios" - este lema não-escrito jesuíta com grande clareza e certeza expressa a disposição daqueles que estão verdadeiramente prontos para construir um "paraíso terrestre" por qualquer meio, a qualquer preço. No entanto, a Igreja Oriental ensinou: um propósito puro, métodos puros, uma exposição pura, assim foi formulado por São Dionísio.

O Ocidente diz: "Ame e faça obras de auto-sacrifício" e o Oriente, em primeiro lugar, purifica o coração com o temor de Deus na luta contra as paixões, para a aquisição da graça do Espírito Santo. No Oriente há apenas uma regra monástica, uma ideia: o monge renuncia o mundo e torna-se uma pessoa que reza por ele; o monge é como uma estrela que eleva-se da terra aos céus - ele está longe de todos e brilha por todos.

Os monges ocidentais servem as pessoas e a sociedade. Durante muitos anos, os hospitalários cuidaram dos viajantes e os monges da ordem de Francisco, "franciscanos", educaram as crianças. Os jesuítas estavam envolvidos na política, na instrução de jovens e em obras semelhantes.


Uma vez, alguns monges católicos foram perguntados se eles liam literatura ascética. Eles ficaram surpresos e responderam que tais livros eram usados apenas por professores de história e que seu dever era obedecer ao padre superior. O estudo da Oração de Jesus e da contemplação espiritual, no Ocidente, é quase inexistente. A Cultura, a ciência, a sociedade em si estão em constante mudança; é por isso que a face do cristianismo ocidental está em constante mudança: onde os princípios do modernismo, onde os ensinamentos eclesiásticos sobre a evolução são aceitos, novos dogmas nascem e novas revelações são esperadas.

terça-feira, 18 de outubro de 2016

Livros, textos e vídeos sobre o Cristianismo Ortodoxo




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Canais no youtube:

Legendas Ortodoxas

Instagram:

Luso Ortodoxia
Resposta Ortodoxa

Biblioteca Ortodoxa Virtual: (link)

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INTRODUÇÃO AO CRISTIANISMO ORTODOXO
(todos os livros em formato digital e podem ser encontrados aqui)

1) Bispo Kallistos Ware – A Igreja Ortodoxa

2) Bispo Kallistos Ware – O Caminho Ortodoxo

3) Tito Colliander - Caminho dos Ascetas

4) São Serafim de Sarov - Vida e Instruções

5) Relatos de um Peregrino Russo

6) A Arte da Prece - Compilado por Hegúmeno Chariton

7) Pe. M. Pomazansky - Teologia Dogmática Ortodoxa

8) Vladimir Lossky - Ensaios sobre a Teologia Mística da Igreja do Oriente

9) Pe. Georges Florovsky - Criação e Redenção

10) Metropolita Hierotheos Vlachos - Psicoterapia Ortodoxa

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Caso prefira adquirir livros impressos (físicos):

Pe Serafim Rose - Revelação de Deus ao Coração Humano (Editora Theotokos)
São Serafim de Sarov - Uma Maravilhosa Revelação (Editora Theotokos)
Metropolita Hilarion Alfeyev - O Mistério da Fé (Editora Vozes)
São Filareto de Moscou - Catequese Ortodoxa (Editora Casa Sophia)
Pe. Thomas Hopko – A Fé Ortodoxa (Editora Kelps)
Pe. Michel Najim - Compreendendo a Liturgia Ortodoxa (Editora Kelps)
Relatos de um Peregrino Russo (Editora Vozes)
Pequena Filocalia (Editora Paulinas)
Pe. James Bernstein - Surpreendido por Cristo (Editora São Savas)

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Material em inglês:



Info
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Atualizado em 26/10/2021

A insuficiência dos conhecimentos científicos na vida espiritual, segundo Ancião Sofrônio

Para as pessoas espirituais que esforçam-se para adquirir e conservar o conhecimento de Deus, compreendido como a entrada na energia da eternidade divina, a aprendizagem intelectual-científica é insuficiente, não importa o quanto aparentemente irrefutável e empírico seja seu caráter. A ciência humana fornece os meios para expressar a experiência do conhecimento existencial, mas é incapaz de transmitir esse conhecimento de maneira autêntica, sem a co-ação da graça. Se assim não fosse, então nossas 'ascensões' para as esferas da existência Divina - da Verdade - dependeria da educação secular e da capacidade intelectual, o que não é o caso. Neste ponto, torna-se claro o que o Ancião Sofrônio está em acordo com o pensamento Ortodoxo Patrístico atual, que rejeita a possibilidade que o Ser Divino seja compreendido através de categorias de lógica.

O Ancião, no entanto, aceita a possibilidade de detectar o caráter inconcebível da divindade através do processo natural da reflexão filosófica. O intelecto, assim, alcança o estado onde ele caí 'no silêncio'. Isso, no entanto, é muito inferior ao conhecimento verdadeiro de Deus. Esse processo pode ser encontrado nos livros ascéticos dos místicos católicos romanos. Apesar de não subestimar ou rejeitar de antemão, o Ancião Sofrônio não classifica-o entre os mais altos graus do Espírito, onde o intelecto não é silencioso, mas é preenchido com a iluminação das Energias Divinas e participa na vida de Deus. O 'silêncio do intelecto', que é encontrado como 'escuridão' e 'noite', demonstra que o intelecto pode ter uma contemplação autêntica, mas nunca se estiver separado do coração, que é o centro da pessoa humana.

Quanto ao envolvimento da ciência sobre conhecimento existencial de Deus, a visão do Ancião sobre o uso da psicanálise como uma interpretação de experiências a partir de cima é incisiva. A psicanálise científica tenta persuadir-nos a não dar crédito às nossas experiências. Mas quando estamos falando de uma manifestação pessoal de Deus a uma pessoa, onde não pode haver qualquer dúvida sobre a manifestação, porque Ele é o Verdadeiro Princípio de tudo aquilo que existe, então qualquer tentativa de psicanálise é equivocada, uma vez que, quando Deus age, a ciência é inútil. A psicanálise coloca a relação empírica entre as pessoas e Deus no nível da imaginação. Isto simplesmente não é verdade, devido ao fato de que conhecimento empírico de Deus, que é chamado de "contemplação" no pensamento patrístico, vai muito além das possibilidades da imaginação humana.  

O Ancião chega à mesma conclusão quando ele lida com o temor Divino. O temor de Deus como consequência da iluminação espiritual não tem nada em comum com o instinto animal correspondente. Portanto, a sua natureza está além do domínio da psicologia.

Os trechos são de livro Nikolaos Koios 'Θεολογία και Εμπειρία κατά τον Γέροντα Σωφρόνιο, H.G.M. de Vatopaidi, a Montanha Santa, 2007.


sexta-feira, 10 de junho de 2016

A Luz nas Trevas: Origem e Natureza do Paganismo (Sergei Bulgakov)

A queda foi a suprema catástrofe religiosa. A comunhão direta e imediata com Deus, que era a parcela dos primogênitos no paraíso, foi quebrada. Deus se tornou distante tanto para o mundo como para a humanidade (transcendente) e a humanidade foi deixada sozinha - como seu próprio senhor: "vocês serão como deuses." Incipit religio.  Este início da religião está conectado com a pecaminosa deficiência da consciência de Deus em uma humanidade doente e decaída. Embora os primogênitos, ao experimentarem a comunhão com Deus no paraíso, conhecessem o imenso abismo que separa o Criador da criação, o subterrâneo não foi revelado nessa consciência. Eles trataram o Criador como filhos amados e queridos, com uma confiança límpida de qualquer coisa e com intimidade. O sentimento agudo e doloroso de criaturidade, a ofensa e inveja foram despertados por Satanás, que convocou neles a rebelião do subterrâneo, o levante da criação contra seu próprio fundamento. Entre Deus e a humanidade naquele tempo estava a escuridão da criaturidade subterrânea. O esforço da humanidade para romper esta escuridão em direção à luz do conhecimento de Deus é expressa na religião. A luz resplandeceu nas trevas, e as trevas não a compreenderam. No paraíso, a humanidade não sentia nenhuma distância entre Deus e ela mesma, e assim não conhecia nenhuma sede de unir-se a Ele. Mas o pathos da religião é o pathos da distância, e seu grito é o grito de abandono por Deus. "Eli, Eli lama sabachthani - meu Deus, meu Deus, por que me abandonastes?" - esta é sua expressão final. No paraíso, se houvesse mesmo religião, ela era qualitativamente diferente daquela que nos é familiar, pois não havia nela nenhuma busca, nenhum esforço, nem suor. No paraíso não havia templo ou altar, pois todo o paraíso era um templo. Correspondendo a isto, na "nova Jerusalém que virá do céu, não haverá templo, mas o próprio Deus estará lá, porque o Senhor Deus Todo-Poderoso é o seu templo e o Cordeiro" (Ap 21.22; : 3).

Com a expulsão do paraíso cessou a alegria da comunhão imediata com Deus. "As vestes de couro" tornavam o brilho da Divindade imperceptível para os humanos; a escuridão engrossava a natureza humana. Eles estavam cientes de estar no mundo, enquanto Deus havia se tornado transcendente, deixando este "mundo", a terra da expulsão, à sua disposição. Em virtude de sua própria inércia e peso, o mundo aparentemente se afasta de Deus, sofre uma "involução", se retira em si mesmo e, gradualmente, os raios do conhecimento paradisíaco de Deus se apagam e as canções do paraíso desaparecem. Parecia que Lúcifer tinha razão em comemorar, porque seu propósito - tornar-se o príncipe do mundo, um anti-deus, possuir a criação de Deus - foi evidentemente realizado. A remoção da Divindade do mundo, sua transcendência além dos limites familiares, torna-se equivalente à sua negação prática; o sentimento da separação dos seres humanos de Deus os leva a divinizar o cosmos. A religião, que expressa a tensão mútua de ambos os pólos - é o que restava aos seres humanos do conhecimento paradisíaco de Deus, como lembrança e esperança. E o tentador teve de extingui-la para dominar plenamente a humanidade, imergindo-a nos elementos de contentamento com o mundo. Mas o invejoso amante de si mesmo não conseguiu compreender a incomensurabilidade do amor - da humildade divina, do rebaixamento de Deus por amor à criatura, pois não sabia valorizar a gratidão do espírito humano em que a imagem de Deus brilha com beleza imortal. E Deus não deixou sua criação vítima do êxtase solipsista, mas veio para a salvação da humanidade - através da religião. A revelação religiosa começou. E a terra ficou atenta, ouvindo o chamado do céu; a humanidade sentiu a pátria celestial interiormente. Satanás estava envergonhado, pois nunca conseguiu esvaziar o ser humano até a vileza completa da irreligiosidade e ateísmo, e até mesmo os "tempos modernos", os mais ímpios e pesados ​​na "involução", não conseguiram esse suicídio espiritual. 

No processo religioso, que constitui a essência da história do mundo, é uma questão de salvação do mundo, a recuperação de Deus pela humanidade (das profundezas clamei a Ti, Senhor), mas também da salvação do mundo. Mas o último só pode ser realizado por Deus; com seu próprio poder, a humanidade não pode ser libertada do mundo, pois é ela mesma o mundo. Portanto, na religião, pode-se distinguir duas tarefas: a revelação divina e a operação divina. A primeira tarefa esgota por si só o conteúdo positivo do "paganismo" (entendendo por isto as religiões "naturais", isto é, todas menos o judaísmo-cristianismo), e ambas as tarefas simultaneamente são resolvidas na religião revelada do Antigo e do Novo Testamento.


      Banido do paraíso, o ser humano procura a Deus, pois "não está longe de cada um de nós". Tal busca é o paganismo, que contém ou pelo menos pode conter um conhecimento positivo de Deus, algo revelado a seu respeito. A sede de um encontro com Deus no paganismo arde ainda mais fortemente do que na religião revelada; a busca é mais ardente, mais frenética, mais agonizante. Não é por nada que a névoa de tristeza, desespero e falta de recompensa se situa acima do Olimpo límpido, e assim o paganismo cede facilmente ao frenesi orgiástico. O aparente "imanentismo" ou panteísmo - divinização das forças da natureza, dos animais e do ser humano - não deve enganar aqui, ao instilar a noção de algum tipo de contentamento e equilíbrio do mundo. A religião revelada não podia conhecer tal horror do abandono do Deus como o paganismo experimentou em contorções convulsivas, exatamente nos momentos de suas ascensões religiosas. O esforço da humanidade para romper até Deus foi mais intenso aqui e, acima de tudo, mais desesperado do que no judaísmo-cristianismo onde a escada de Jacob foi erguida. Não é por acaso que foi revelado na plenitude dos tempos que os pagãos se mostraram mais prontos a receber a Cristo do que os judeus, porque eles tinham sede e esperavam-no mais intensamente: o filho pródigo tinha ficado nostálgico e abatido há muito tempo. O paganismo em sua essência mais profunda é acima de tudo essa melancolia do banimento, um grito para o céu: ah, venha! Por isso, a concentração trágica e a maior seriedade são próprias dele. Mas, de uma maneira fatídica, seu pathos religioso é transformado em substituto religioso, em toda forma de idolatria, apesar de sua própria aspiração interior. Nenhuma das religiões sérias pode se contentar com a idolatria, isto é, com aplicação de poderes divinos e da natureza em ídolos. Em todos esses objetos de adoração, o pagão só vê ícones vivos da Divindade; para ele o mundo inteiro é preenchido pelo poder divino: panta plērē theōn. E os próprios deuses eram como raios separados e estilhaçados, multidões de hipóstases da Divindade transcendente. Em geral, o politeísmo no paganismo não é evidência da falta de um desejo de ser elevado até a Divindade que permanece transcendente, mas sim da impotência para fazer isso, e é um símbolo da transcendência e da inexpressibilidade da Divindade. Como resultado de sua falta de face, uma multiplicidade involuntária de faces é obtida. O politeísmo puro é meramente a degeneração do paganismo, e até certo ponto sua perversão. Dito de maneira diferente, tanto na autoconsciência religiosa do paganismo quanto na sua piedade, o NÃO da teologia negativa é vitalmente sentido, constituindo-lhe o fundo religioso geral e lhe dando um aroma, profundidade e sublimidade definidos.

 Se é impossível considerar o paganismo ao longo de toda sua existência como uma mentira desvelada e demonolatria, então como se deve definir suas verdades, ou a natureza de suas revelações originais? Pode-se dizer esquematicamente que no paganismo o transcendente é revelado apenas no - e através do - imamente (theocosmismo), enquanto que na Revelação o transcendente desce ao humano: no primeiro caso, uma brecha através da espessa crosta da natureza; no segundo, a descida da Divindade, o seu encontro com a humanidade. No paganismo, a humanidade é deixada ao seus próprios poderes - há uma busca por Deus por meio da "contemplação da criação," o invisível através do visível. Mesmo a queda só pôde escurecer, mas não paralisar a revelação de Deus no mundo. A humanidade, possuindo realmente a imagem de Deus, tem, assim, em si mesma, um órgão de cognição divina em sua profunda auto-cognição: por isso gnōthi seauton [conhecer a si mesmo] também significa gnōthi theon [conhecer deus]. E toda a natureza tem a mesma imagem, na medida em que é humanidade; toda a criação em sua sofianicidade está repleta de revelações da Divindade. Estas luzes sofianicasjuntamente com a imagem de Deus no ser humano, compreendem a base objetiva do conhecimento pagão de Deus.

 Esforçando-se em direção à luz da Divindade que percorre o universo, o pagão quer romper além dos limites do mundo, para realizar um transcensus religioso. Devido a deste esforço, uma vida religiosa ramificada e intensa é desenvolvida, o dogma é fixado, o culto surge e todas as suas características substanciais: tempos e lugares sagrados, imagens, cultos divinos, rituais, sacrifícios e mistérios. A sede por mistério, pelo encontro com a Divindade, por uma união, que é evidenciada pela seriedade e intensidade das buscas religiosas, naturalmente, é bastante apropriada também para as religiões pagãs. Não há qualquer dúvida de que esses mistérios não permaneceram somente em um simbolismo exterior, mas havia uma certa ação mística, experimentada religiosamente - fora deste pressuposto toda a história da religião se transforma num absurdo ou paradoxo. A "iniciação" nos mistérios, de acordo com as poucas evidências que chegaram até nós, era acompanhada por tais experiências que separavam os humanos de seu passado com um novo limite, o significado dessas experiências e o terror sagrado inspirado por elas é atestada pela severa disciplina do arcani que as envolviam com um sigilo impenetrável.

Mas no que eles participavam e no que eram iniciados nos mistérios? Que tipo de "graça" era comunicada aos iniciados? É muito mais fácil para dar resposta negativa do que uma positiva: não era, é claro, uma verdadeira participação do Corpo e Sangue de Cristo para a remissão dos pecados, pois esta participação absoluta não existe fora da Igreja de Cristo, da encarnação divina e do Gólgota. No entanto, os participantes nos mistérios recebiam alguma coisa - uma espécie de graça natural, mas é difícil expressar o que seria em categorias do pensamento religioso Cristão, e não estamos estabelecendo esta tarefa para nós mesmos. Mas acreditamos que a graça de Deus é multiforme; "Deus não dá o Espírito por medida." A partir do fato indiscutível de que os mistérios pagãos tinham um caráter natural, ainda é impossível concluir que eles eram apenas um excesso orgástico natural. Se se admite que uma certa objetividade do conhecimento de Deus era inerente ao paganismo, em seguida, deve-se reconhecer isto com toda seriedade e até o fim, isto é, acima de tudo quando aplicado precisamente ao culto religioso, o culto divino, os sacrifícios e os mistérios. Mas, obviamente, a sua eficácia permanecia limitada de forma fatídica; não fornecia o renascimento, apenas prometia. A divindade permanecia transcendente de qualquer maneira, e a graça operava como se do exterior (semelhante à forma como ela operou na jumenta de Balaão). Graças a um entusiasmo forçado, como um roubo de graça, a possessão mística e seus excessos, a condição de intoxicação religiosa a qual aspiravam por vários meios surgiu tão facilmente no paganismo. Por esta razão a "sobriedade" Cristã não é, em geral, característica do paganismo, mesmo uma simples sobriedade religiosa que pode, naturalmente, ser combinada com uma elevada inspiração religiosa.


Se se reconhece a autenticidade religiosa do paganismo, então, deve-se também aceitar que ali um processo religioso positivo estava ocorrendo, uma "plenitude dos tempos" histórico estava amadurecendo, ou, dizendo de outra forma, o Cristianismo estava preparado não só no Judaísmo, mas também no paganismo. Nele o Cristianismo tem seu próprio aspecto natural, ao que parece, que se veria mais cedo ou mais tarde (até agora, no entanto, isto aconteceu em uma medida totalmente inadequada). A diferença fundamental entre Revelação e paganismo, naquilo que refere-se a cognição de Deus, está na pureza e na qualidade imaculada, que é adequada apenas a revelação. O paganismo não conhece Deus face a face, mas apenas seu ícone natural, embora mesmo este ícone é milagroso e vivificante dentro de limites razoáveis de piedade pagã. Como parte do pan-organismo sofianico do cosmos, a humanidade é o raio "noético" de Sofia, e possui uma natureza definida; a sua ideia é o prisma através do qual o mundo é refratado. Conectado com isto está a concretude e a limitação desta percepção do mundo. Na Sofia divina não há necessidade de limite, pois tudo existe em tudo, mas no mundo escravizado pelo pecado, esta concretude está sempre com a presença da unilateralidade. Por esta razão, cada revelação religiosa no paganismo é sempre uma refração da verdade religiosa através de um prisma definido; seu raio passa através do vidro manchado de maneira familiar. A partir disto surge a pluralidade inescapável de religiões pagãs, e também o seu caráter nacional, essencialmente inerente e conduzindo-as para próximo de uma linguagem nacional, folclore, e várias formas de criatividade nacional (o fato do sincretismo religioso, como um fenômeno tardio, decadente e derivado disso não contradiz isso). Paganismo, como a religião dos povos, carrega em si o selo da torre de babel e a confusão das línguas, onde foi expresso um estranhamento recíproco interior no espírito da humanidade.  Cada povo, correspondendo ao seu próprio aspecto inteligível, refrata ao seu modo a centelha do Pleroma divino, e deixado ao seus próprios poderes, molda-se sua própria religião e piedade. Somente o Cristianismo, como verdade incondicional, revelado a humanidade pelo próprio Verbo encarnado, é livre de nacionalidade e nisto é ontologicamente diferente do paganismo. 
Em consonância com a sua natureza, o paganismo sofre de psicologismo, e precisamente tal característica faz com que seja inevitavelmente plural. Não se trata daquele psicologismo normal, que está conectado com a individualidade que coloca seu selo sobre o caráter geral da percepção do mundo. Aqui ele penetra nas profundezas e se torna base da cognição religiosa. O psicologismo, quando se torna mais profundo desta maneira, torna-se cosmismo, e toma o ser humano um ser microcósmico. No entanto, permanece sempre submerso de forma decisiva em sua própria subjetividade precisamente quando deveria elevar-se acima do mundo e de si mesmo - o ato, transcendente em propósito e significado, permanece encerrado na imanência.  Pois o imanentismo na religião, que o paganismo está condenado a permanecer, é precisamente o psicologismo, involuntário e inescapável subjetivismo. Mas, tendo sido aprofundado até o cosmismo, o psicologismo não é definitivamente encerrado; os raios da verdade objetiva podem rompe-lo e são translúcidos através dele. Toda religião séria possui um certo grau de verdade, e contém alguns dos seus aspectos. Mas juntamente com a veracidade, a falsidade também lhe é própria, a distorção deste aspecto. A dualidade penetra na própria consciência do paganismo e dá-lhe um elemento inerentemente trágico, que flui do conhecimento de sua inconclusividade e relatividade. Os iniciados nos mistérios vieram a saber que os deuses do Olímpo não eram eternos (Schelling); assim também os alemães passaram a ver claramente o "crepúsculo dos deuses" e a conflagração do Valhalla. Somente o Cristianismo, que pode continuar a ser desenvolvido em sua revelação - mas nunca passível abolição - é livre desta fratura trágica. 


Esse psicologismo religioso condena as religiões pagãs à degeneração através da imersão no naturalismo e no excesso orgiástico. Um pagão místico sensível compreende, a partir do coro polifônico dos espíritos naturais, dos batimentos do coração do mundo, o esforço da criatura para exceder seu estado dado, para sair de si e ser infectada com esse frenesi, o êxtase da natureza. Ele nem sempre resistiu essa pressão mística: ao se render ao excesso natural orgiástico, caiu sob o feitiço dos espíritos da natureza. Enfeitiçado por eles, perdeu a capacidade de distinguir o êxtase natural do religioso, excesso orgiástico da inspiração, e então se tornou "pagão" no mau sentido da palavra. O paganismo em certa medida é este tipo de possessão, e o apóstolo Paulo advertiu os coríntios contra esta "escravidão aos elementos vazios e vãos do mundo". Há um grande abismo entre o êxtase cristão (como é descrito pelo apóstolo Paulo em 1 Coríntios 14) e o excesso orgiástico pagão. Mas, ao mesmo tempo, é necessário enfatizar que na fenomenologia do culto religioso, no ritual do culto divino, nos sacrifícios, na oferta de incenso, nas vestimentas sagradas, na veneração de santos e heróis, nos lugares sagrados e imagens, em geral tudo o que toca a organização da vida religiosa, o paganismo não está tão longe do cristianismo como se gosta de pensar. Entre algumas pessoas (sobretudo entre os representantes contemporâneos da escola "religioso-histórica" no protestantismo), este quadro é feito de forma muito externa e tendenciosa, e por outros é tendenciosamente dissimulado; um estudo religioso comparado de cultos é uma das tarefas que persistentemente emerge de uma compreensão correta da natureza do processo religioso no paganismo.

Em vista da dualidade trágica que condenou o paganismo à ambiguidade e à degeneração, é compreensível por que tornou-se vítima da possessão demoníaca: o excesso orgiástico é substituído pelo delírio e os espíritos elementais são transformados em demônios. Isso se dá em conjunto com a visão religiosa que chega ao mundo com a encarnação do Verbo. "Grande Pan" morreu, mas simultaneamente um novo, transfigurado Pan nasceu. O antigo naturalismo torna-se impossível, e o paganismo moribundo assume traços cada vez mais sinistros. Os deuses pagãos após Cristo já são demônios para aqueles que passaram a crer Nele; os prefiguramentos e os avisos anteriores perderam seu antigo significado após o cumprimento. Mas os próprios pagãos permanecem até certo ponto inocentes do pecado básico do paganismo, que pesava sobre eles como uma maldição do repúdio divino e o peso da expulsão do paraíso. A piedade pagã, embora conheça Deus no mundo, não é capaz de compreender plenamente as imagens e as figuras através das quais Ele é visto. Enfraquece-se sob o peso do naturalismo, é ensurdecido pelas vozes do mundo, um joguete de seus elementos. Também se enfraquece em seu politeísmo, sendo condenado a criar sempre novos e mais novos deuses, máscaras do "Deus desconhecido". O tema do panteão, que ressoa mais claro no declínio do paganismo, no esforço para recolher ali todos os deuses venerados e não omitir nenhum deus (e é por isso que uma reserva, um altar para o theōi agnōstōi - para o deus ainda desconhecido - era construído), claramente testemunha a perda de fé em deuses separados, e a impossibilidade de sentir-se à vontade no politeísmo, que se transforma em uma má pluralidade ou num mau infinito. Desta forma, toda a grosseira do antropomorfismo que lhe é próprio é desnudado, e assim extrai mais forças numa atmosfera de superstição e decadência. Mas em sua base encontra-se uma idéia profunda; ali está contido a revelação da hipostesidade da Divindade, o panteísmo sem rosto é superado.  

Essa hipostesidade subdivide e multiplica, como se repetisse reflexos de um espelho, e para o exemplo dado, é possível, talvez, concordar com Feuerbach, que a humanidade criou deuses em sua própria imagem portadora de Deus (embora isto não signifique que isso os inventou). Além da revelação sobre a hipostesidade da Divindade, o politeísmo também contém uma revelação da soficianidade da natureza e da humanidade. Sua linguagem é audível para o ouvido atento; sob a crosta da natureza é perceptível o pórfiro divino. O paganismo, graças à sua visão mística, vê "deuses" onde apenas "forças da natureza" mortas são acessíveis à nossa consciência "científica". O mundo, tomado em si mesmo, é uma hierarquia de "deuses", ou uma concórdia em que suas muitas vozes se fundem sonora e harmoniosamente em um único acorde. Com isso se define a profundidade mística e a autenticidade do paganismo, como também a verdade relativa de seu politeísmo. Mas disso também brota a sua mentira, e a repugnância religiosa que os portadores do monoteísmo, os profetas de Israel, sentiram tão ardentemente. Aqui a criatura ofusca Deus e fica entre Deus e a humanidade.

O paganismo como naturalismo religioso foi para sempre abolido pela Cruz, e assim a história do paganismo depois de Cristo é a lenta - mas inevitável - agonia de morte. A melhor evidência disto são as tentativas de sua restauração, começando com os filósofos neoplatônicos ou Juliano o Apóstata que, por muito mais que não quisesse ser simplesmente um pagão, permaneceu, no entanto, apenas um apóstata do cristianismo. Deve-se dizer, ainda mais, o mesmo com respeito à idade da Renascença que, ainda com toda sinceridade em sua atração pela antiguidade em seus aspectos estéticos, filosóficos, científicos e filosóficos, permaneceu espiritualmente estranha a ela, senão hostil. A antiguidade na era cristã em geral não pode ser compreendida interiormente fora do cristianismo, mas somente através dele e por ele, ao passo que os representantes do Renascimento procuravam se libertar do Cristianismo com a sua ajuda - de fato, de todas as religiões. A antiguidade clássica não conhecia o "humanismo" naquele sentido, e é inteiramente inocente dele. Em geral, o paganismo, com exceção de épocas e grupos sociais separados e limitados, se distingue por uma religiosidade intensa que perturba e se assusta aquele que se aproxima. Chamar de pagã a civilização materialista europeia moderna com seu racionalismo "científico" dominante, como às vezes ocorre, é insultar o paganismo. É inferior ao paganismo, e inferior à religião em geral, e ainda precisa aprender muito de antemão para que compreenda a alma do paganismo. 

Mas, fora dessas tentativas de restauração imaginária do paganismo, as religiões não-cristãs existem lado a lado com o cristianismo. Algumas delas se desenvolveram ao lado do cristianismo e em conflito com ele, e assim elas têm, em maior ou menor grau, um caráter hostil ao cristianismo - como o judaísmo talmúdico e o islamismo. Outras desenvolveram-se fora de sua influência visível e eram suficientemente autodeterminantes com respeito a ele, embora seja natural supor que rivalidade e antipatia hostis estejam presentes em suas atitudes em relação ao Cristianismo - Brahmanismo, Budismo, Confucionismo, etc. Como se deve tratar essas religiões, que, se não forem anti-cristãs, são, em todo caso, não-cristãs? É necessário procurar o que é comum em cada uma delas, para que, colocando este elemento comum entre parênteses, possa-se declarar a quintessência da verdade religiosa, como faz o racionalismo reducionista sob várias formas (a teosofia, o tolstoísmo)? Ou, tendo reconhecido o fato da pluralidade de religiões em toda a sua incompreensibilidade para nós, devemos resignar-nos diante do mistério? Toda religião é ciumenta e exclusiva por natureza, e ainda mais impossível é qualquer recuo da verdade absoluta do cristianismo para agradar o não-cristianismo. Pode-se e deve-se respeitar toda oração sincera, e mesmo assim um Cristão não começará a orar com um muçulmano em sua mesquita ou com um brâmane em sua pagoda - tal oração será sentida como blasfêmia imediatamente, sem qualquer discussão. Os limites das crenças não são estabelecidos pela vontade humana e não devem ser transgredidos arbitrariamente. Aqui está o mistério da Providência: a verdade do cristianismo não é revelada a todas as pessoas nesta vida. Alguns tentam lidar com a dificuldade da questão pelas teorias da reencarnação; outros declaram: nulla salus sine ecclesia [fora da Igreja não há salvação], supondo que os limites místicos da Igreja lhes são conhecidos com toda precisão. Mas o fato permanece em toda a sua incompreensibilidade: a pregação do evangelho até hoje não se espalhou por todo o globo, e dezenove séculos depois de Cristo, a maioria da humanidade ainda pertence como se fosse uma época pré-cristã. E se não podemos negar o conteúdo religioso positivo no paganismo, ainda menos temos alguma base em relação às grandes religiões mundiais que, à sua maneira, procuram Deus e confortam espiritualmente o seu rebanho. [...]

À luz da fé cristã, as verdades que estão presentes nos ensinamentos dogmáticos das religiões não-cristãs e os traços de piedade autêntica inerentes ao seu culto podem receber uma avaliação correta. Mas, para tal reconhecimento, não há necessidade de se esforçar para construir algum tipo de Volapük religioso ou estabelecer um esperanto inter-religioso.