segunda-feira, 30 de maio de 2016

Prelest e o Mundo Intermediário (Pavel Florensky)


Como é tentador chamar de "espirituais" estas imagens - aqueles devaneios que confundem, absorvem a alma, consomem a alma - que aparecem quando nossa alma encontra seu caminho para o outro mundo. Essas imagens são, na verdade, os espíritos da era presente que procuram aprisionar nossa consciência no reino deles. Estes espíritos habitam a fronteira entre os mundos; e, embora sejam terrenos em natureza, eles assumem aparências do reino espiritual. Quando alcançamos os limites do mundo comum, nos entramos em condições que são continuamente novas, mas que possuem padrões que diferem totalmente daqueles da existência comum. Aqui, então, está a área do nosso maior perigo espiritual: aproximarmo-nos dessa fronteira enquanto ainda desejamos apegos terrenos; ou aproximarmo-nos dela sem uma mente espiritual - seja a nossa ou a de um diretor espiritual; ou de nos aproximarmos dela antes de sermos, no sentido espiritual, verdadeiramente maduros. O que acontece, em tal encontro de fronteira, é que o buscador se envolve em mentiras e auto-enganos. O mundo então enlaça o buscador nessa teia de tentações na qual - concedendo-lhe uma aparente entrada no reino espiritual - na verdade o escraviza ao mundo. Pois não é de todo verdade que todo espírito que guarda esses pontos de entrada é um verdadeiro Guardião do Limiar, ou seja, um bom defensor dos reinos sagrados; pois um espírito pode muito bem não ser um ser genuíno do reino superior, mas sim um cúmplice (na frase do Apóstolo) do "príncipe do poder do ar"; pois tais espíritos são os que mantêm a alma na fronteira dos mundos, emaranhada nas seduções da intoxicação espiritual. 

Um dia de sobriedade espiritual, quando mantém a nossa alma em seu poder, é tão bruscamente diferente do reino espiritual que não pode sequer pretender ser sedutor, e a sua materialidade é experienciada não só como um fardo, mas também como um jugo bom para nós na forma como a gravidade é boa para a terra, um jugo que restringe os nossos movimentos mas nos dá um fulcro, um jugo que reina na rapidez com que a nossa vontade age em autodeterminação (tanto para o bem como para o mal) e, em geral, estendendo-se na vontade o seu instante do eterno, ou seja, a autodeterminação angélica da vontade para este lado ou aquele, um instante que dura toda a nossa vida e torna a nossa vida terrena não uma existência vazia, manifestando passivamente todas as possibilidades, mas sim, o exercício ascético da auto-organização autêntica, a arte de esculpir e "buscar" a nossa essência. Este lote, ou tara, ou destino, ou seja, o que foi decidido de cima, fatum de fari - este destino de nossa simultânea fraqueza e força, este dom de nossa criatividade divina, é o tempo-espaço.

A sobriedade do tempo-espaço na terra nunca é sedutora, então; nem é o reino angélico, quando a alma vem a ter contato direto com ele. Mas no meio, na fronteira deste mundo, estão concentradas todas as tentações e seduções: estes são os fantasmas que Tasso retrata ao descrever o Bosque Encantado. Se se possui uma firmeza espiritual da vontade para passar por ali, então eles perderão totalmente seu poder sobre a alma, tornando-se meras sombras de sensualidades, devaneios vazios sem qualquer valor. Mas se, em vez disso, a fé em Deus enfraquece no meio de tal cerco espiritual, então se olha para esses fantasmas e, ao fazê-lo, se despeja a realidade da própria alma neles. Em seguida, os fantasmas obterão grande poder, agarrando a alma e sugando dela o poder para materializar ainda mais, assim enfraquecendo a alma em mais medo e mais submissão. Em tal estado, é extremamente difícil - quase impossível - quebrar o controle deles sem a intervenção de outro poder espiritual. Assim, então, são os pântanos elementais na fronteira dos mundos.


Pavel Florensky - Iconostasis

Esta escravização desastrosa é chamada na tradição ascética de prelest: significa orgulho espiritual ou vaidade [presunção], e é o estado espiritual mais terrível que uma pessoa pode se encontrar. Ao cometer qualquer outro pecado, a pessoa age de tal forma que entra numa relação com o mundo externo - com suas propriedades objetivas e leis - dentro da qual ele está trabalhando contra a ordem sagrada da criação de Deus, golpeando-a, esforçando-se para quebrá-la. Assim, um pecador comum pode descobrir nesta relação o fulcro para mudar sua consciência e se arrepender (arrepender-se em grego, metanoia, é uma mudança da totalidade da consciência no nível mais profundo do ser).

Prelest, no entanto, é completamente diferente. Aqui, o ser iludido não procura satisfação superficial dessa ou daquela paixão; mas - muito mais perigoso - ele imagina a si mesmo movendo-se ao longo de uma perpendicular ao mundo sensível, afastando-se dele. Assim, completamente insatisfeita, a alma do ser absorto em prelest é detida pelos espíritos que habitam a fronteira e que são, assim, alimentados pelas próprias paixões inquietas e insatisfeitas da alma - aquela alma já ardendo com o fogo do Inferno. A alma se fecha em si mesma, e então todas as oportunidades desaparecem onde a alma poderia - com uma intensa agonia - despertar mais uma vez para a consciência: o encontro com o mundo objetivo da criação de Deus.

Prelest, naturalmente, nos apresenta imagens que agitam as paixões em nós. Mas nosso perigo real não está nas paixões, mas em nossa apreciação das mesmas. Pois podemos, se presos ao prelest, interpretar as paixões como algo diretamente oposto ao que elas realmente são. Normalmente, consideraríamos nossas paixões pecaminosas como uma fraqueza perigosa, encontrando assim a humildade que nos cura delas. Nas paixões agitadas em prelest, porém, nós as consideramos como espiritualidade alcançada, como energia sagrada, salvação e santidade. Assim, onde normalmente buscaríamos quebrar o domínio de nossas paixões pecaminosas - mesmo que nossas tentativas fossem débeis e fúteis -, em prelest, impulsionados pela vaidade espiritual, sensualidade espiritual e (acima de tudo) orgulho espiritual, buscamos apertar os nós que nos amarram. Um pecador comum sabe que está se afastando de Deus; uma alma em prelest pensa que está se aproximando cada vez mais dEle, e embora O enfureça ela pensa que está O alegrando.

Tal confusão desastrosa ocorre em nós porque confundimos as imagens de ascensão com as imagens de descenso. Podemos expressar toda a questão desta maneira: a visão que nos aparece na fronteira dos mundos pode ser (1) a ausência da realidade do mundo visível; isto é, um sinal incompreensível do nosso próprio vazio interior, do nosso próprio banimento prelest-apaixonado da realidade objetiva de Deus; e então, habitando o aposento limpo e vazio da nossa alma, encontramos aquelas máscaras de realidade que são a total renúncia do mundo real; ou a visão pode ser (2) a presença da realidade superior do mundo espiritual. Nesse sentido, a auto-purificação ascética também tem para nós o mesmo duplo significado. Quando a limpeza espiritual se torna um fim em si mesma, surge então a autoconsciência farisaica e, inevitavelmente, a auto-admiração. Em tal ascese, a alma torna-se vazia e, libertando-se de todos os apegos terrenos, torna-se ainda mais vazia; então, achando esse vazio crescente cada vez mais intolerável, a própria natureza do homem convida para o vazio aquelas forças espirituais que estimularam toda a prática farisaica da auto-purificação em primeiro lugar, aquelas forças gananciosas, distorcidas e radicalmente impuras. Nosso Salvador fala precisamente deste ascetismo auto-centrado em Sua parábola sobre a casa varrida:
Quando um espírito imundo sai de um homem, passa por lugares áridos procurando descanso e não encontra, e diz: ‘Voltarei para a casa de onde saí’. Chegando, encontra a casa desocupada, varrida e em ordem. Então vai e traz consigo outros sete espíritos piores do que ele, e entrando passam a viver ali. E o estado final daquele homem torna-se pior do que o primeiro (Mateus 12:43-45)
Assim, o que foi conscientemente intencionado acaba por ser seu oposto direto. Isso ocorre porque o homem assegura a si mesmo e aos outros que ele próprio, em seu íntimo, é realmente bom - que todos os seus erros e transgressões são, de alguma forma, acidentes, meros fenômenos e não essencialidades, coisas que, de alguma forma, apenas aconteceram; e que tudo o que ele precisa fazer espiritualmente é arrumar um pouco a casa.  Tal homem é inteiramente dessensibilizado quanto à sua própria vontade radicalmente deficiente, vendo inevitavelmente suas ações como surgindo de fora de Deus e somente a partir de seus próprios esforços; assim, ele exibe a complacência da auto-satisfação espiritual.

Mas, se você continuamente reconhece sua própria pecaminosidade, você nunca tem tempo para pensar se - aos seus próprios olhos - você está ou não "arrumado" espiritualmente: ao invés disso, a sua alma tem fome e sede de Deus, estremecendo de temor da catástrofe espiritual de estar sem Ele; e assim a sua única preocupação real não é mais você mesmo, mas sim aquilo que é o mais objetivo de tudo: Deus; e o que realmente você quer agora não é uma casa interior limpa para felicitar a si mesmo, mas - em lágrimas - que Deus visite o aposento da sua alma, esse lugar ainda apressadamente arranjado, Deus que pode com uma palavra transformar uma pequena cabana, até mesmo um casebre, em uma esplêndida câmara palaciana. Com esta orientação para sua vida interior, uma visão não virá até você quando, por sua própria vontade, você estiver tentando ultrapassar os limites do seu crescimento espiritual, excedendo a medida do que está aberto para você; ao invés disso, ela virá quando - misteriosamente, incompreensivelmente - a sua alma tiver sido elevada ao mundo invisível pelos próprios poderes desse mundo, e então (como o arco-íris após o dilúvio divino, como "o sinal da aliança") a visão celestial aparecerá na sua alma, a imagem visível do mais alto reino, dada a você como lembrança e 'notícia' reveladora da eternidade e como mestre do caminho para encarnar o invisível na consciência diurna de toda a sua vida. Tal visão é mais objetiva do que as objetividades da Terra, muito mais pesada e real do que elas, pois é o fulcro de toda a nossa criatividade terrena, o cristal onde - conformado às suas próprias leis cristalina - é cristalizado nossa experiência terrena, tornando-se assim, em sua estrutura total, um símbolo do mundo espiritual.


Trecho do livro, Pavel Florensky - Iconostasis

Nenhum comentário:

Postar um comentário