sexta-feira, 14 de junho de 2019

O misticismo do asceta (John D. Zizioulas)


Se olharmos para o fenômeno do ascetismo cristão do ponto de vista de suas origens históricas e seu desenvolvimento no período patrístico, notamos que esse fenômeno fez sua aparição na história como uma forma de enfatizar a natureza escatológica da Igreja em suas extremas exigências do apocalipticismo bíblico. O monge era o membro da Igreja que levou tão a sério a afirmação bíblica de que o Reino entrará na história, julgando-a e acabando com este mundo, que se comprometeu a romper todos os laços com este mundo e a viver como cidadão do Reino por vir. A crença de que não temos "cidade permanente" aqui, mas "nós procuramos a que está por vir" formou o ponto de partida do ascetismo na história. A escatologia, a expectativa e a visão do Reino, está no pano de fundo do monaquismo, e isso nunca deve ser esquecido quando tentamos entender seu "misticismo".

Por causa dessa ruptura com o mundo e a história, o monge teve que experimentar não apenas uma morte "histórica", como uma "saída do mundo", mas também a morte de seu "eu". Aqui o modelo foi Cristo e sua cruz, uma realidade já presente na experiência do batismo. Isto implicava uma espécie de experiência mística que pode ser chamada de kenótica e que consiste nos seguintes elementos:

(a) O rompimento da vontade própria. Assim como o Filho em sua kenosis obedeceu ao Pai e esvaziou-se de tudo o que foi propriamente considerado como seu (Phil. 2) alcançando a decisão crucial em Getsêmani ao dizer "não seja como eu quero, mas sim como tu queres", da mesma forma o monge teve que encontrar um ancião, um pai espiritual, a quem ele ofereceria sua total obediência. É interessante notar que tudo isso envolvia um relacionamento horizontal e não um relacionamento individual com Deus. O evento de comunhão que caracteriza toda a vida carismática está no cerne do ascetismo. Não há desvalorização do corpo ou qualquer tipo de dualismo maniqueísta que possa explicar a intenção original do monaquismo. Há basicamente uma aplicação do modelo kenótico da cristologia à existência carismática, ocorrendo através de um relacionamento com os outros e não como uma experiência individual.

(b) Esse rompimento da própria vontade significou a conquista da liberdade, por excelência. Estar livre da vontade própria é a mais alta forma de liberdade, pois a paixão da autopreservação é a mais forte de todas as necessidades que ligam o homem. No contexto de adquirir essa liberdade, o monge experimenta a morte e alcança o abismo do nada. Isso faz dele um comunicador místico com as profundezas da condição humana ou criada, com sua queda e as conseqüências que ela teve para a existência. O misticismo do asceta é, portanto, em primeiro lugar, uma descida ao Hades, uma participação na ansiedade, nos medos e na morte de todos os homens. Ninguém, portanto, sabe melhor o que significa ser humano; ninguém tem uma comunhão mais profunda com a humanidade e com a criação como um todo, do que o asceta. Se o misticismo eucarístico oferece um sabor do Reino, o misticismo ascético começa oferecendo um sabor do Inferno. Os Padres do deserto são descritos como os seres mais sensíveis da história, aqueles que choram até mesmo quando vêem um pássaro morrendo, aqueles que entendem todas as formas de pecado e fraqueza humana, para quem não há pecador que não possa ser perdoado ou pelo menos amado. Este misticismo de participação na situação humana caída percebe a Igreja como o corpo místico do Cristo crucificado. Mas deve-se notar que esta não é uma experiência individualista; ela está baseada em libertar-se do ego.

(c) Este libertar-se do ego leva a um movimento de encontrar a identidade não através da auto-afirmação, mas através do outro. Isso torna o misticismo agapético ou erótico de certa forma, no entanto, isso distingue-o acentuadamente do eros platônico da Antiguidade, pois, no segundo caso, o amor não é livre; está ligado pela lei da atração exercida pelo belo e pelo bom. Não se pode amar o feio ou o pecador porque o homem não pode ser atraído senão pelo Bom. Na experiência ascética, baseada na cristologia kenótica, ama-se precisamente o que é depreciado e feio e isto significa que se ama livre de toda necessidade racional ou moral e causalidade. O misticismo aqui é diferente das formas que implicam uma atração irresistível da alma por Deus como o Bom maior. O asceta ama antes de tudo e acima de tudo o pecador, não por condescendência e compaixão, mas por um livre envolvimento existencial na condição humana caída. O misticismo ascético não se baseia na atração, pois a atração implica necessidade; baseia-se na livre kenosis do que quer que seja atraente, através de uma descida às fronteiras da criatura a que a queda nos trouxe todos. 

(d) É somente através desta livre kenosis que o asceta é levado à luz da ressurreição. A luz do Monte Tabor, a luz da Transfiguração, que os hesicastas afirmaram ver, foi dada como resultado da participação nos sofrimentos, a kenosis de Cristo. A narrativa da Transfiguração contém essa referência ao sofrimento (Mt 16.24; 17.12). Ver a luz incriada de Deus é uma experiência mística que pressupõe a participação na kenosis de Cristo. Não é, como se costuma pensar, uma questão de orar e exercitar técnicas de um tipo de yoga. Trata-se de uma participação no corpo místico de Cristo em sua forma crucificada, uma comunhão nos sofrimentos de Cristo, que os ascetas experimentam através de sua luta contra as paixões, acima de tudo contra o amor de si mesmo.

Isso leva a uma observação final que diz respeito ao aspecto epistemológico do misticismo ascético. Sabemos da história que o origenismo, que exerceu forte influência no monasticismo oriental (e ocidental), operava com a visão de que o que o homem precisa para obter conhecimento divino é a purificação da mente de todas as coisas sensíveis e a própria concentração em si ou em Deus por meio da contemplação ascendente. Isso é essencialmente misticismo neoplatônico e, como tal, foi rejeitado pela tradição patrística. Mas o que é interessante é o modo como essa rejeição aconteceu. Máximo, o Confessor, parece ser a figura decisiva neste caso também. Ao adaptar os princípios já presentes em uma tendência de monasticismo conhecida como o tipo "macariano", o monasticismo oriental até - e incluindo - os hesicastas corrigiu o evagrianismo, que foi responsável pela disseminação das visões Origenistas acima mencionadas. A correção envolveu a adoção do princípio macariano de que o órgão do conhecimento e o centro do ser humano é o coração (uma idéia bíblica - kardia) e não o nous; e que, portanto, o nous tinha que descer ao coração e se unir a ele. Esse princípio foi aplicado mais tarde pelos hesicastas do Monte Athos através da conhecida técnica controversa. Visto à luz desse contexto, tudo isso equivale, em última análise, a uma experiência mística baseada no amor. Conhecemos a Deus somente quando purificamos o coração ('os puros de coração verão a Deus') porque o coração não é a fonte do sentimento, mas o local da obediência à vontade do 'outro' e, ultimamente, do 'Outro' por excelência, Deus. O amor como princípio epistemológico do misticismo ascético é mais uma vez uma questão de esvaziar-se do próprio egocentrismo, um movimento ek-estático que nada tem a ver com a autoconsciência humana, mas com a comunhão e o relacionamento.

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