quinta-feira, 1 de junho de 2017

Os Falsos Decretos de Isidoro, o Alicerce do Papado (Abbe Guette)

"Os  Falsos Decretos são como se fosse o ponto de divisão entre o Papado dos oito primeiros e o dos séculos seguintes. Nessa data as pretensões dos Papas começam a se desenvolver e a tomar cada dia um caráter mais distinto".

Chegamos agora aos últimos anos do século VIII. O império do Oriente, livre de Copronymus e seu filho Leo IV, respirou novamente sob o reinado de Constantino e Irene.

Carlos Magno reinava na França, Adriano I era bispo de Roma; Tarasius, grande e santo Patriarca, governava em Constantinopla. Antes de consentir sua eleição, Tarasius dirigiu-se ao tribunal e ao povo de Constantinopla, discurso do qual citamos a seguinte passagem: "É isso que eu temo principalmente (ao aceitar o episcopado), eu vejo a Igreja dividida no Oriente; diferentes línguas entre nós, e muitos concordam com o Ocidente, que nos anatematiza diariamente. Separação (anátema) é algo terrível, nos afasta do reino dos céus e conduz à escuridão exterior. Nada é mais agradável a Deus do que a união, que nos faz uma Igreja Católica una, como nós confessamos no credo. Eu vos peço, irmãos, aquilo que creio ser também a vossa vontade, visto que tendes o temor de Deus: peço que o imperador e a imperatriz reúnam um concílio ecumênico, para que possamos compor apenas um só corpo sob um único chefe, que é Jesus Cristo. Se o imperador e a imperatriz me conceder este pedido, me submeterei a suas ordens e seus votos, se não, eu não posso consentir. Me dê, irmãos, as respostas que desejam." [1]


Todos (exceto alguns fanáticos) aplaudiram o projeto de um concílio, e então Tarasius consentiu em ser ordenado e instituído bispo. Ele imediatamente dirigiu suas cartas de comunhão às igrejas de Roma, Alexandria, Antioquia e Jerusalém. [2] Nestas cartas fez como sempre sua profissão de fé, e convidou aquelas igrejas para o concílio que o imperador estava prestes a reunir. A imperatriz-regente e seu filho escreveram ao papa Adriano que tinham resolvido reunir um concílio ecumênico; pediram-lhe que viesse, prometendo recebê-lo com honras; ou para que enviasse representantes se ele não pudesse aceitar pessoalmente o convite.

A resposta de Adriano ao imperador e à imperatriz é um documento muito importante, no que diz respeito à questão que estamos examinando. Encontramos nela um estilo que os Bispos de Roma não haviam, até então, adotado em relação aos imperadores.

Roma, com ciúmes de Constantinopla, logo iria coroar o Carlos Magno, o Imperador do Ocidente, e assim romper todos os laços políticos com o Oriente. O papa gozava de grande autoridade temporal naquela cidade sob a proteção dos reis francos; ele era rico e ambicioso para cercar sua sé com ainda maior magnificência e esplendor. Adriano respondeu arrogantemente à respeitosa carta que recebeu do tribunal de Constantinopla. Ele insistiu em certas condições, como um poder lidando com outro, e particularmente sobre este ponto: que o patrimônio de São Pedro no Oriente, confiscado pelos imperadores iconoclastas, fossem recuperados completamente. Citaremos de sua carta o que ele diz sobre o Patriarca de Constantinopla: "Estamos muito surpresos ao ver que em sua carta você dá a Tarasius o título de Patriarca Ecumênico.O Patriarca de Constantinopla não teria sequer a segunda classe sem o CONSENTIMENTO DE NOSSA SÉ. Se ele é ecumênico, ele não deve ter também o primado sobre a nossa igreja? Todos os cristãos sabem que esta é uma suposição ridícula ".

Adriano coloca diante do imperador o exemplo de Carlos, rei dos francos. "Seguindo nosso conselho", ele diz, "e cumprindo nossos desejos, ele submeteu todas as nações bárbaras do Ocidente, deu à igreja romana, de posse perpétua, cidades, castelos e patrimônios que foram retidos pelos lombardos, e que por direito pertencem a São Pedro, ele não cessa diariamente de oferecer ouro e prata para esta luz e sustento dos pobres ".

Aqui está uma linguagem completamente nova por parte dos bispos romanos, mas, doravante, destinada a tornar-se habitual entre eles. Data de 785; ou seja, do mesmo ano em que Adriano entregou a Ingelramn, Bispo de Metz, a coleção dos  Falsos Decretos.[3] Há algo altamente significativo nesta coincidência. Foi o próprio Adriano quem autorizou este trabalho de falsificação? Nós não sabemos; mas é um fato incontestável que foi na própria Roma sob o pontificado de Adriano e no ano em que escreveu tão arrogantemente ao Imperador do Oriente, que este novo código do Papado é mencionado pela primeira vez na história. Adriano é o verdadeiro criador do Papado moderno. Não encontrando nas tradições da Igreja os documentos necessários para sustentar seus ambiciosos pontos de vista, apoiou-se em documentos apócrifos escritos que se adequavam a situação e legalizou todas as futuras usurpações da Sé Romana. Adriano sabia que os Decretos contidos no código de Ingelramn eram falsos. Porque ele já havia dado, dez anos antes, a Charles, rei dos francos, um código dos antigos cânones, idêntico à coleção geralmente recebida de Dionysius Exiguus. Foi, portanto, entre os anos 775 e 785 que os Falsos Decretos foram criados. 

O tempo era favorável a tais invenções. Nas invasões estrangeiras que haviam inundado todo o Ocidente com sangue e o cobriram de ruínas, as bibliotecas das igrejas e mosteiros foram destruídas; o clero estava mergulhado na mais profunda ignorância; o Oriente, invadido pelos muçulmanos, não tinha agora qualquer relação com o Ocidente. O papado aproveitou estas desgraças e construiu um poder meio político e meio religioso sobre estas ruínas, não faltando bajuladores que não se envergonhassem em inventar e propagar secretamente suas falsificações para dar um caráter divino a uma instituição que tem a ambição como sua única fonte.

Os  Falsos Decretos são como se fosse o ponto de divisão entre o Papado dos oito primeiros e o dos séculos seguintes. Nessa data as pretensões dos Papas começam a se desenvolver e a tomar cada dia um caráter mais distinto. A resposta de Adriano a Constantino e Irene foi o ponto de partida.

Os legados do Papa e os das igrejas patriarcais de Alexandria, Antioquia e Jerusalém, tendo ido a Constantinopla, Nicea foi nomeada como o lugar da reunião do concílio. A primeira sessão ocorreu em 24 de setembro de 787. Este segundo Concílio de Nicea é considerado o sétimo ecumênico, tanto pelas igrejas orientais como ocidentais. [4] Adriano foi representado pelo Arcipreste Pedro, e por outro Pedro, Abade do mosteiro de São Sabas em Roma. Os Bispos da Sicília foram os primeiros a falar e disseram: "Consideramos conveniente que o mais sagrado Arcebispo de Constantinopla abra o Concílio". Todos os membros concordaram com esta proposição, e Tarasius fez-lhes uma alocução sobre o dever de seguir as antigas tradições da Igreja nas decisões que estavam prestes a fazer. Então os que se opuseram a essas tradições foram introduzidos, para que o conselho pudesse ouvir uma declaração de sua doutrina. Depois foram lidas as cartas trazidas pelos legados dos Bispos de Roma, Alexandria, Antioquia e Jerusalém, com o propósito de determinar o que poderia ser a fé do Oriente e do Ocidente. O bispo de Ancyra tinha compartilhado o erro dos iconoclastas. Ele agora apareceu diante do concílio para fazer sua confissão de fé, e começou com as seguintes palavras, dignas de ser citadas: "É a lei da Igreja, que os que são convertidos de uma heresia, deve-se renunciá-la por escrito, e confessar a Fé Católica. Portanto, eu, Basílio, bispo de Ancyra, desejando unir-me com a Igreja, com o Papa Adriano, com o Patriarca Tarasius, com as Sés Apostólicas de Alexandria, Antioquia e Jerusalém, e com todos os bispos católicos e os sacerdotes, faço esta confissão por escrito, e apresento a vocês, que têm o poder pela autoridade apostólica ".

Esta linguagem bastante ortodoxa prova claramente que naquela época o Papa de Roma não era considerado o único centro da unidade, a fonte da autoridade católica; que a unidade e a autoridade só eram reconhecidas na unanimidade do corpo sacerdotal.

A carta de Adriano ao Imperador e à Imperatriz, e a que foi escrita a Tarasius, foi então lida, mas apenas na medida em que tratavam de questões dogmáticas. Suas queixas contra o título de ecumênico e suas exigências relativas ao patrimônio de São Pedro, foram deixadas em silêncio. Nem os legados de Roma insistiram. O Concílio declarou aprovar a doutrina do Papa. Em seguida foram lidas as cartas dos Patriarcas do Oriente cuja doutrina concordava com a do Ocidente. Essa doutrina foi comparada com o ensino dos Padres da Igreja, a fim de verificar não só a unanimidade presente, mas a perpetuidade da doutrina; e também foi examinada a questão se os iconoclastas tinham ao seu lado qualquer verdadeira tradição católica. Depois deste duplo exame preparatório, o concílio fez a sua profissão de fé, decidindo que segundo a doutrina perpétua da Igreja, as imagens devem ser veneradas, reservando para Deus somente a Latria ou adoração propriamente dita.

Os membros do concílio, em seguida, partiram para Constantinopla, onde a última sessão ocorreu na presença de Irene e Constantino e todo o povo.

Os Atos do sétimo Concílio Ecumênico, como os precedentes, provam claramente que o Bispo de Roma só era o primeiro em honra na Igreja; que seu testemunho não tinha peso doutrinal, exceto na medida em que poderia ser considerado como o da Igreja Ocidental; que ainda não havia autoridade individual na Igreja, mas apenas uma autoridade coletiva, da qual o corpo sacerdotal era o eco e o intérprete.

Esta doutrina é diametralmente oposta ao sistema romano. Acrescentemos que o sétimo Concílio Ecumênico, como os seis que o precederam, não foi convocado, presidido nem confirmado pelo Papa. Ele concordou por seus legados, e o Ocidente concordou da mesma maneira, pelo qual adquiriu seu caráter ecumênico.

Mas esta concordância do Ocidente não foi, no princípio, unânime, pelo menos em aparência, não obstante a conhecida concordância do Papa; o que prova que mesmo no Ocidente tal autoridade doutrinária não era então concedida ao Papa, como seus partidários reivindicam hoje para ele. Sete anos depois do Concílio de Nicea, isto é, em 794, Carlos Magno reuniu em Frankfurt todos os bispos dos reinos conquistados. Neste concílio, foram discutidas várias questões dogmáticas, e particularmente as relativas às imagens. Pelas decisões ali proferidas, o Concílio pretendia rejeitar aquelas do segundo concílio de Nicea, que não tinha sido completamente compreendidas pelos Bispos Francos. Esses Bispos repreendiam o Papa com a sua concordância nessa decisão, e Adriano, de certa forma, pediu desculpas por isso.

Ele reconheceu, é verdade, a ortodoxia das doutrinas professadas pelo concílio, mas alegou que outros motivos o teriam impelido a rejeitar esse conselho, se não tivesse temido que sua oposição pudesse ser interpretada como uma adesão à heresia condenada. "Aceitamos o concílio", escreveu Adrian, "porque sua decisão está de acordo com a doutrina de São Gregório, temendo que, se não a recebêssemos, os gregos pudessem retornar ao seu erro e seríamos responsáveis ​​pela perda de tantas almas. No entanto, ainda não demos qualquer resposta ao Imperador sobre o assunto do concílio. Enquanto exortando-os a restabelecer imagens, nós os advertimos para restaurar para a Igreja Romana sua jurisdição sobre certos bispados e arcebispados e os patrimônios dos quais fomos privados no momento em que as imagens foram abolidas, mas não recebemos nenhuma resposta, o que mostra que se converteram em um ponto, mas não nos outros dois. Agradeceremos ao Imperador o restabelecimento das imagens, o pressionaremos ainda mais sobre o assunto da restituição dos patrimônios e da jurisdição e, se ele se recusar, o declararemos herege".

Os ataques dos bispos francos contra Adriano, embora injustos, provam abundantemente que não reconheciam no papado a autoridade que reivindica hoje. Os Falsos Decretos ainda não tinham sido capazes de prevalecer completamente sobre os costumes antigos. Adriano respondeu a esses ataques com uma modéstia que é fácil de explicar, quando refletimos o quanto ele precisava dos francos e do seu rei Carlos Magno para estabelecer a base do novo papado. Longe de mencionar a alegada autoridade que tão orgulhosamente se esforçava impor ao Oriente, estava disposto, em relação aos francos, a fazer parte de prisioneiro no tribunal. Ele avançou ao ponto de propor declarar o imperador de Constantinopla herege por uma mera questão de posses temporais, ou de uma jurisdição disputada. Mas encontramos em Adriano, sob essa humilde demonstração de submissão, uma astúcia prodigiosa em criar ocasiões para aumentar seu poder. Se os francos lhe tivessem pedido que declarasse o imperador de Constantinopla herege, reconhecer-lhe-iam assim uma jurisdição soberana e universal, estabelecendo assim um precedente que não haveria sido negligenciado pelo papado.

Adriano I morreu em 796, e foi sucedido por Leão III, que seguiu a mesma política que seu antecessor. Imediatamente após a sua eleição, foi enviado a Carlos Magno o estandarte da cidade de Roma e a chave da confissão de São Pedro. Em troca, o rei franco enviou-lhe presentes dispendiosos por um embaixador, que iria chegar a um acordo com ele sobre tudo o que dizia respeito "à glória da Igreja e ao fortalecimento da dignidade papal e do patriciado romano dado ao Rei franco". [6]

Leo teve algumas relações com o oriente na ocasião do divórcio do imperador Constantino. Dois santos monges, Platão e Teodoro Studites, declararam-se com especial energia contra a conduta adúltera do Imperador. Teodoro solicitou de vários bispos ajuda contra as perseguições que sua oposição ao Imperador tinha atraído sobre eles. As cartas de Teodoro Studites [7] estão repletas de elogios exagerados para aqueles a quem ele escreve. Os teólogos romanos escolheram observar apenas os elogios dirigidos ao bispo de Roma. Com um pouco mais de honestidade eles poderiam muito facilmente ter notado os elogios, muitas vezes ainda mais enfáticos, que se encontram em suas outras cartas; e então deveriam ter concluído que nenhuma força dogmática podia ser dada à linguagem esbanjada sem distinção das sés, de acordo com as circunstâncias, e com o propósito evidente de lisonjear aqueles a quem as cartas foram dirigidas, a fim de torná-los favoráveis ​​à causa que Teodoro defendia. Os romanistas não estavam dispostos a perceber um fato tão óbvio. Eles citaram os elogios exagerados de Teodoro como testemunho dogmático em favor da autoridade papal, e escolheram não ver que, se tiverem um valor tão dogmático no caso do bispo de Roma, também devem tê-lo não menos em nome do bispo de Jerusalém, por exemplo, a quem ele chama de "o primeiro dos cinco Patriarcas", ou outros, com quem ele se dirige com tanta extravagância. Nestes termos teríamos na Igreja vários Papas gozando, cada um deles, de autoridade suprema e universal. Esta conclusão não seria adequada aos teólogos romanos; mas segue-se necessariamente se as cartas de Teodoro Studites têm o valor dogmático que Roma lhes daria para sua própria vantagem. Além disso, se Teodoro Studites ocasionalmente fez louvores pomposos ao bispo de Roma, também poderia falar dele com muito pouco respeito, como podemos ver em sua carta a Basílio, abade de S. Sabas de Roma. [8]

No início de seu pontificado, Leão III teve que suportar uma oposição violenta por parte dos parentes de seu antecessor, Adriano. Eles acumularam acusações atrozes sobre ele.

Carlos Magno tendo vindo a Roma (800) como patrício daquela cidade, reuniu um concílio para julgar o Papa. Mas Leão estava certo de antemão que ele iria prevalecer. Ele havia recebido Carlos Magno em triunfo, e o poderoso rei não foi ingrato pelas atenções do pontífice. [9] Os membros do Concílio declararam com uma só voz: "Não nos atrevemos a julgar a sé apostólica, que é a cabeça de todas as igrejas, tal é o costume antigo!" Naqueles dias, os homens não eram precisos em questões de erudição. Pelo costume antigo o bispo de Roma devia ser julgado como qualquer outro bispo; mas as doutrinas dos Falsos Decretos tinham, sem dúvida, começado a se espalhar. Ingelramn de Metz, que os tinha usado em seu processo em Roma, era o capelão de Carlos Magno, e um de seus primeiros conselheiros. De acordo com este novo código de um novo Papado, a Sé Apostólica, que podia julgar tudo, não podia ser julgada por ninguém. Roma não negligenciou nenhuma possibilidade de estabelecer este princípio fundamental de seu poder, cuja consequência inevitável é a infalibilidade papal e até a impecabilidade. Essas conseqüências não foram desenvolvidas de uma só vez, mas o princípio desde então foi habilmente insinuado na ocasião favorável. Leão III justificou-se sob juramento. Alguns dias depois, no dia de Natal, 800 dC, Carlos Magno tendo ido a sé de São Pedro, o Papa colocou sobre sua cabeça uma rica coroa, e o povo exclamou: "Longa vida e vitória ao augusto Carlos, coroado pela mão de Deus, grande e pacífico Imperador dos Romanos!" Estas aclamações foram três vezes repetidas com entusiasmo; após disso o Papa ajoelhou-se diante do novo Imperador e ungiu ele e seu filho Pepin com o óleo sagrado.

Assim foi restabelecido o império romano do Ocidente. Roma, que sempre tinha visto com inveja a remoção da sede do governo para Constantinopla, estava em êxtase de alegria; o Papado, aliciando-se com seus secretos desejos, agora estava investido de poder como nunca antes possuiu. A idéia de Adriano foi alcançada por seu sucessor. O Papado moderno, uma instituição mista meio política e meio religiosa, foi estabelecida; uma nova era estava começando para a Igreja de Jesus Cristo - uma era de intrigas e lutas, despotismo, revoluções, inovações e escândalos.

Notas

1. Theoph. Annal. Coleção de Labbe dos Concílios, vol. vii., Vit. Taras. ap. Bolland. 15 Februar.

2. Ver todos documentos na Coleção de Labbe, vol. 7.

3. Alguns detalhes sobre os Falsos Decretos:

Depreende-se dos atos do Concílio de Calcedônia, em 451, que a Igreja já tinha um Canonum Codex, ou uma coleção de leis da Igreja. Várias dessas leis são consideradas como tendo origem dos próprios Apóstolos. O que eles tinham começado os concílios continuaram, e, assim que a Igreja começou a desfrutar de alguma breve tranqüilidade, essas leis veneráveis foram recolhidas e formaram a base da disciplina eclesiástica; e, como eram na maior parte em grego, foram traduzidos para o latim para o uso das igrejas ocidentais.

No início do século VI, Dionísio, de sobrenome de Exiguus, monge de Roma, achando essa tradução incorreta, fez outra a pedido de Juliano, pároco de Santa Anastasia em Roma, e discípulo do Papa Gelasio. Dionísio recolheu, além disso, quaisquer cartas dos papas que ele pudesse descobrir nos arquivos e publicou em sua coleção as de Stricius, Inocente, Zosimus, Bonifácio, Celestino, Leão, Gelasius e Anastastius, o último o qual ele viveu. Os arquivos de Roma naquela época não possuíam nada anterior de Sirício, isto é, até o final do século IV.

No início do século VII, Isidoro de Sevilha se comprometeu a completar a coleção de Dionísio. Ele acrescentou cânones alguns nacionais ou provinciais de alguns dos Papas, regressando não mais longe do que Damasus, que morreu em 844, antecessor de Siricius. Esta coleção de Isidoro de Sevilha começa com os cânones do Concílio de Nicea. Ele usou a antiga tradução e não a de Dionísio para os cânones gregos.

Sua coleção era pouco conhecida, e na história não a encontramos até 785, e depois desfigurada e interpolada por um forjador desconhecido, que dá seu nome de Isidoro Mercator. Esta coleção continha, além das partes contidas na coleção Isidoro de Sevilha, certos Decretos que ele atribuiu aos Papas dos três primeiros séculos. Vários estudiosos consideram Isidoro Mercator e Isidoro de Sevilha escritores distintos, enquanto outros pensam que este último tinha acrescentado, por humildade, a palavra Peccator ao seu nome, que foi corrompido para Mercator. Seja como for, os melhores críticos ultramontanos, bem como os galicanos, concordam que os Decretos atribuídos aos Papas dos primeiros séculos na coleção de Isidoro Mercator, são falsos. O próprio Marchetti admite sua falsidade. "Homens instruídos de grande piedade", acrescenta, "declararam-se contra esta falsa coleção, que o Cardeal Bona chama francamente de fraude piedosa". "Baronius não os considera francamente como fraude, no entanto, não os usava em seus Anais Eclesiásticos, para que não se acreditasse que a Igreja Romana precisava de documentos suspeitos para estabelecer seus direitos".

Os ultramontanos não podem defender abertamente estes Decretos como verdadeiros, porque foi provado abundantemente que foram manufaturados em parte dos cânones antigos, com extratos das cartas dos papas dos séculos IV e V. Passagens inteiras, particularmente de São Leão e Gregório Magno, são encontradas neles. O conjunto todo é amarrado num Latim inferior, que até mesmo para o estudioso menos críticos tem todas as características do estilo dos séculos oitavo e nono.

A coleção de Isidoro Mercator foi difundida principalmente por Riculf, arcebispo de Mayence, que tomou a Sé em 787. Vários críticos concluíram que esta coleção apareceu pela primeira vez em Mayence, e até mesmo que Riculf foi seu autor.

Esses falsos Decretos foram fabricados na Espanha, Alemanha ou Roma? Nós não temos certeza sobre o assunto. As cópias mais antigas nos dizem que foi Ingelramn quem trouxe esta coleção para Roma de Metz, quando ele teve um processo lá em 785; mas outras cópias nos dizem que foi o Papa Adriano que, naquela ocasião, entregou-o a Ingelramn em 785. É certo que em Roma encontramos a primeira menção a ele. No entanto, Adriano sabia que esses Decretos eram falsos, uma vez que, dez anos antes, ele havia dado a Carlos Magno uma CÓPIA dos cânones, que não era outra senão a de Dionísio Exiguus.

Os Falsos Decretos foram tão amplamente divulgados no Ocidente, que foram recebidos em todos os lugares, e particularmente em Roma, como autênticos.

Os ultramontanos, embora não se atrevam a manter a autoridade dos escritos atribuídos aos Papas dos primeiros três séculos, ainda assim indiretamente os defendem. Várias obras foram escritas com esta objeção contra Fleury, que afirmou com justiça e demonstrou abundantemente que os Decretos mudaram a disciplina antiga. Citaremos entre esses trabalhos ultramontanos os de Marchetti, do Padre de Housta e do Padre Honore de Sainte-Marie:

"Podemos conjecturar", diz Marchetti, "que Isidoro reuniu os Decretos de Papas antigos os quais as perseguições dos primeiros séculos não permitiram ser coletados, e que animado pelo desejo de transmitir a Coleção à posteridade, teve tanta pressa que negligenciou algumas falhas e erros cronológicos que depois foram corrigidos por críticas mais exatas ".

Assim, então, os Decretos dos três primeiros séculos são falsos; no entanto, eles são substancialmente verdadeiros. Tal é o sistema ultramontano. Só resta dizer, para completar o negócio, que os textos de São Leão e São Gregório Magno, que se encontram nesses Decretos, não pertencem a esses pais, que, nesse caso, devem ter sido copiado dos Decretos de seus predecessores. Seria tão razoável manter essa opinião quanto dizer que só encontramos nos Falsos Decretos algumas falhas e erros cronológicos.

Para este primeiro sistema de defesa, os ultramontanos adicionam um segundo. Eles fazem uma ótima demonstração de eloqüência para provar que uma pessoa desconhecida sem qualquer autoridade nunca poderia ter introduzido um novo código na Igreja. Nós pensamos assim também. Mas há um fato da grande importância que nossos ultramontanos deixaram de lado, que, no momento em que apareciam os Falsos Decretos, a Sé de Roma havia aproveitado durante dois séculos de cada ocorrência para aumentar sua influência e para pôr em prática o que os Falsos Decretos estabeleceram como a lei. Todos sabem que após a queda do império romano, a maioria das nações ocidentais foram essencialmente modificadas pela invasão de novas raças; que a Igreja sentiu seriamente essa mudança; que a busca do aprendizado foi abandonada e que, após o século VII, reinava a ignorância mais deplorável nas igrejas ocidentais. A partir desse momento, os Bispos de Roma começaram a participar diretamente do governo de igrejas individuais, que muitas vezes se debruçavam nas mãos de conquistadores apenas meio-cristianizados. Eles enviaram missionários para trabalhar na conversão das tribos invasoras; e estes missionários, como São Bonifácio de Mayence, guardavam pelos Papas que os enviaram, sentimentos de discípulos pelos seus senhores. As igrejas recém-fundadas por eles, permaneceram fiéis a esses sentimentos. Não seria, portanto, surpreendente se o fabricante dos Falsos Decretos vivesse em ou perto de Mayence. Ele compôs aquele trabalho de fragmentos dos concílios e dos Padres, e acrescentou regulamentos que estavam em perfeita harmonia com os usos da Sé de Roma no final do século VIII e que Roma, sem dúvida, o inspirou.

Esta coincidência, unida à ignorância que então prevalecia, explica suficientemente como os Falos Decretos poderiam ser aceitos sem protestos - a Sé de Roma usando toda a sua influência para espalhá-los. Como a maioria das igrejas haviam se acostumado por dois séculos a sentir a autoridade dos Bispos de Roma, elas aceitaram sem exame documentos que pareciam ser apenas a sanção desta autoridade. Os Falsos Decretos não criaram, portanto, um novo código para as igrejas ocidentais; eles apenas vieram em auxílio de um regime que, devido a distúrbios políticos, os próprios Papas criaram.

Assim, os romanistas têm seu trabalho por suas dores, quando procuram defender os Decretos dizendo que um autor desconhecido sem autoridade não poderia ter estabelecido um novo código.

Aqui estão as objeções que Fleury faz aos Falsos Decretos: "O assunto dessas cartas [Hist. Eccl. Liv. Xliv.] revelam sua falsificação. Elas falam de arcebispos, primatas, patriarcas, como se esses títulos existissem desde o nascimento da Igreja. Elas proíbem a realização de qualquer concílio, mesmo provinciano, sem a permissão do Papa e representam os apelos a Roma como habituais. Queixas freqüentes são feitas por usurpações das temporalidades da Igreja. Encontramos aí o máximo, que os bispos que caem no pecado podem, depois de penitências, exercitarem suas funções como antes. Finalmente, o assunto principal desses Decretos é aquele de reclamações contra bispos; quase não há falas sobre isso e é dado regras para que se torne mais difícil. E Isidoro deixa muito aparente em seu prefácio que ele tinha esse assunto profundamente no coração".

O objetivo do falsificador neste último assunto é evidente. Era de diminuir a autoridade dos metropolitas, que, desde tempos imemoriais, gozavam do direito de convocar o concílio da sua província para ouvir denúncias contra um bispo daquela província em particular e julgá-lo. O falsificador, cujo objetivo era concentrar toda autoridade em Roma, naturalmente, primeiro se esforçaria para verificar a autoridade do metropolita, e faz com que os apelos a Roma pareçam oferecer maiores garantias e que estejam mais em consonância com a dignidade episcopal.

É preciso ignorar completamente a história dos três primeiros séculos, para não saber que naquele período a Igreja não tinha organização fixa; que não era dividida em dioceses até o reinado de Constantino e pelo Concílio de Nicea; que foi este concílio que reconheceu nas sés de Roma, Alexandria e Antioquia uma superioridade comum a elas em um certo número de igrejas as quais elas deram a luz, e sobre o qual, de acordo com o costume, exerceram uma supervisão especial. Mas o falsificador não hesita em dispor todos os arcebispos, primatas e patriarcas durante os três primeiros séculos e atribui aos primeiros Bispos de Roma, como direitos, prerrogativas que os concílios nunca haviam reconhecido, e que esses bispos usurparam no Ocidente desde que as invasões dos bárbaros derrubaram a antiga política romana.

Após o nosso estudo profundo da história da Igreja, nos sentimos livres em afirmar que é impossível acumular mais erros do que os ultramontanos fizeram, para defender a alegada força legal dos Falsos Decretos; que os Falsos Decretos estabeleceram no século IX um novo código completamente contrário ao dos primeiros oito séculos cristãos; e que o falsificador não tinha outro objeto senão sancionar as usurpações da corte de Roma durante os dois séculos anteriores à composição de seu trabalho. Nós estudamos cuidadosamente o que foi dito pro e contra este assunto. Os escritos dos romanistas nos convenceram de que este falsificador do século IX nunca foi defendido, mas apenas por argumentos dignos dele; isto é, pelas envergonhadas e falsas declarações. Os trabalhos dos gauleses são mais honestos e mostram pesquisas mais profundas. No entanto, mesmo neles, percebemos uma certa reticência que prejudica sua causa e, de vez em quando, uma atitude forçada e não natural em relação às prerrogativas papais, que eles não se atrevem a negar. (Veja as obras de Hincmar de Reims e os Anais do Padre Lecointe.)

4. Veja suas transações na Coleção de Labbe, vol. viii.

5. Resp. ad. Lib. Carolin. na Coleção de Labbe, vol. viii.

6. Alcuin Ep. 84.

7. Theod. Stud. Ep. 15.

8. Theod. Stud. Ep. 28.

9. Sismondi alega que este simulacro de julgamento e a subsequente pena capital dos acusadores de Leão foram pré-arranjados, juntamente com a coroação mencionada no texto, durante a visita de Leo a Charlemagne pouco tempo antes em Paderborn. Sismondi, Queda do Império Romano, cap. Xvii .- [Editor]

Do livro O Papado por Abbe Guette. (New York, NY: Minos Publishing Co., MDCCCLXVI), pp. 256-269. 

http://orthodoxinfo.com/inquirers/decretals.aspx

3 comentários:

  1. É impressionante o problema que a Sé Romana criou para si. Ao afirmar que o Papa é infalível quando fala Ex Cathedra, está dizendo que a doutrina não é infalível. Ao mesmo tempo está supondo que um homem que visivelmente pode não ser santo (basta vermos a História, onde abundam papas ruins, segundo o próprio escritor católico Roberto di Mattei), pode miraculosamente, ser o portador da Verdade Universal.
    Agora ficam a falar mal do papa Francisco. E se o papa Francisco resolver decretar um novo dogma? Irão ou não aceitá-lo?

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