quinta-feira, 23 de março de 2017

Uma nova Virgem Maria para uma "Nova Era"?

Uma edição recente da revista "Life" (Dezembro de 1996) publicou um artigo de capa intitulado "O mistério de Maria". Um leitor ortodoxo não pode deixar de se perguntar que tipo de "Maria". O artigo é muito revelador pela maneira particular em que a Theotokos é exposta, e também pela intenção da autora em influenciar a compreensão do público americano sobre a pessoa e o papel da Theotokos.

Antes de iniciar o texto, a autora nos apresenta uma montagem de imagens (ícones, estátuas e "arte sacra") que representa a Virgem Maria em várias maneiras: desde a Theotokos de Vladimir às Madonnas italianas, passando por pinturas japonesas e estatuetas africanas do tipo animista. A mensagem é clara, mas para esclarecer a autora cita a historiadora Karen Armstrong (ex-freira católica): "Maria é continuamente reinventada... Em todas as épocas, as pessoas modificaram sua definição para se adaptar as suas circunstâncias"

Em outras palavras, dizem que "Maria" nada mais é do que um produto de cada cultura e época. Qualquer sociedade tem o direito, na opinião dele, de criá-la "à sua imagem". Na cultura ocidental pluralista, não é permitido proclamar uma opinião como verdade absoluta. Portanto, qualquer opinião é considerada válida, desde que não seja afirmado nada além do que uma mera opinião. Qualquer ponto de vista é tolerado, exceto aquele que diz: "Esse é a Verdade".

No último século, testemunhamos como se manifestou esse tipo de "tolerância" em relação à pessoa de Cristo. Autores modernos escreveram suas próprias "biografias" de Jesus, como Renan e Schweitzer ou Tolstoi, tão popular no século XIX. Na verdade, cada um deles remodelou Cristo para atender seus próprios propósitos, para criar um deus a seu gosto e, muitas vezes, acabam por criar um reflexo de si mesmos. Assim, os eruditos liberais vêem Jesus como um rabino, os socialistas o retratam como revolucionário e os místicos da Nova Era veem nele um tipo de guru treinado no Tibete.

Outra forma em que Cristo foi reinterpretado tem sido os resultados de estudos realizados por antropólogos das religiões do Oriente Médio onde eles traçaram paralelos entre o Deus cristão e os falsos deuses da antiguidade, como o Mitra persa, o Osiris egípcio e o Tamuz babilônico (veja Ezequiel 8:14, onde as mulheres de Jerusalém são representadas de luto pela morte de anual de Tamuz antecipando sua ressurreição). Notando que as mitologias, muitas vezes, apresentam elementos como um herói que ressuscitou ou como um bebê ou escapou de ser morto por um tirano, esses estudiosos concluem que Jesus Cristo é nada mais do que um outro herói. No entanto, Jesus Cristo não é uma figura mitológica, mas uma pessoa real que andou nesta terra em um determinado momento na história cuja existência foi testemunhada até mesmo por autores não-cristãos, como o historiador judeu Flavio Josefo. Cristo não pode ser reduzido a um mero "arquétipo junguiano" (segundo os parâmetros do psiquiatra, psicólogo e ensaísta Carl Gustav Jung, nota do tradutor). Pelo contrário, a presença de um herói ressuscitado em muitas culturas pré-cristã pode ser entendida como uma expressão do clamor universal da alma humana pela antecipação da chegada de seu Redentor. A imagem distorcida de um herói sendo concebido como inferior ao Deus cristão é, naturalmente, uma consequência natural do homem que perdeu a imagem do Criador, tentando imaginar a vinda do Messias: a natureza decaída produz uma imagem distorcida.

Assim, o homem moderno acredita que não há apenas um Cristo, mas que cada um de nós estamos livres para criar o seu próprio. Mas Paulo disse aos Gálatas: "Mas, ainda que nós mesmos ou um anjo do céu vos anuncie outro evangelho além do que já vos tenho anunciado, seja anátema." (Gálatas 1: 8) O mesmo pode ser aplicado sobre "outra Maria", porque os mesmos métodos usados ​​para reinventar Cristo estão agora sendo usados com Sua mãe. Isso não deveria nos surpreender. São João de Xangai e São Francisco (São João Maximovitch) em seu tratado "A veneração Ortodoxa da Theotokos," sabiamente disse que "todos os que odiavam a Jesus Cristo, e não acreditavam nele, que não entenderam Seu ensinamento, ou, para ser mais exato, aqueles que não quiseram entender como a Igreja entendeu, que queriam substituir a pregação de Cristo com o seu próprio raciocínio humano, todos esses transferiram seu ódio a Cristo, ao Evangelho e a Igreja para a Puríssima Theotokos. Desejavam menosprezar a Mãe, para também destruir a fé em Seu Filho, para criar uma falsa representação dela entre os homens, a fim de ter a oportunidade de reconstruir toda a doutrina cristã sobre um fundamento diferente. No ventre de Maria, Deus e homem se uniram. Ela foi a Única que serviu como uma escada para o Filho de Deus, que desceu do céu. Atacar sua veneração significa atacar o cristianismo em sua raiz, destruindo-o em sua verdadeira fundação" (pp. 25-26).

Portanto, da mesma maneira que sempre existiu falsos cristos, também sempre existiu falsas Marias. O demônio sabe que para promover uma deve vender a outra. Assim, no antigo paganismo, Tammuz era acompanhado por sua mãe Semiramis, Isis e Osiris. O protestantismo está sempre pronto para identificar a veneração a Maria com a adoração de deusas pagãs, mesmo se, por uma questão de coerência, a adoração de Cristo deva ser associada com a de suas falsificações pagãs. Se os cristãos podem discernir entre o verdadeiro Cristo e os falsos, então também devem ser capazes de distinguir entre a Theotokos e as antigas deusas pagãs que reivindicaram o título de "Rainha do Céu" (cf. Jeremias 44).

"As deusas mãe" do tipo conhecido no mundo antigo não se limitam ao Oriente Médio e Mediterrâneo, mas são universais. Os índios Kogi, que viviam em Columbia, adoravam um espírito chamado Nabubi, a "Velha Mãe". Quando os missionários católicos romanos tentaram evangelizar os Cogi no século passado, eles usaram uma estratégia incomum para conduzir os pagãos ao redil de Roma: em vez de explicar as diferenças entre a mitologia pagã e a verdade cristã, encontram uma "equivalência". Cristo, sob sua visão sincrética, correspondia a Sejukukui (um deus trapaceiro que engana a sua própria morte, escondendo-se em uma caverna), ao passo que a Virgem Maria correspondia Nabubi. Esta confusão levou aos Kogi chamar seus templos pagãos de "cansamaria", uma corruptela de "Casa de Maria".

Tendo em conta estes "métodos evangelísticos" católicos romanos há mais de um século, é de admirar que as "aparições" contemporâneas de Maria sejam invariavelmente acompanhadas de mensagens ecumênicas que promovam a ideia de que todas as religiões são igualmente válidas e que o cristianismo ortodoxo é apenas um "caminho " entre muitos? Uma edição recente da Tradição Ortodoxa (1996) contém o relato da viagem de Matushka Katherine Swanson a Medjugorje, Croácia, para investigar o mais famoso dos recentes casos de aparições de Maria no mundo católico romano. Ela conta um episódio contundente:

Nosso guia levou o nosso grupo para uma audiência com os "videntes". Durante esta audiência, um peregrino perguntou a uma das crianças a seguinte questão: "A Virgem diz que a Igreja Católica é a verdadeira igreja?" A resposta dada pela criança fornece evidências claras do conteúdo ecumênico e do relativismo religioso que, curiosamente, cada vez mais marcam as "revelações" em Medjugorje: "Nossa Mãe Santíssima diz que todas as religiões são igualmente agradáveis ​​a Deus".
O artigo da revista "Life", então, é mais uma contribuição para essa linha de pensamento. Dada a ideia de que todos os caminhos são igualmente válidos, então todas as "Marias" são igualmente válidas, também. A autora descreve várias das Marias dos nossos tempos: a Maria Milagrosa (como em Medjugorje), a Maria Mediadora (que, como cita o Padre Andrew Greeley, deixa as pessoas no Céu através da "porta dos fundos"), a Maria Moderna das feministas e Mãe Maria. Esta última, Mãe Maria, é o papel que a autora considera mais atraente para os não-católicos: "A necessidade emocional por ela é tão irresistível para um mundo problemático que pessoas sem um vínculo óbvio com a Virgem estão sendo atraídas por ela. Sabe-se que os muçulmanos reverenciam Maria como santa e pura... Grupos de oração interdenominacionais marianos estão surgindo em todo o mundo. Muitos protestantes, mesmo alguns que ainda rejeitam noções de uma Virgem sobrenatural, sentem falta de Maria."

Para qual Maria os muçulmanos e protestantes estão sendo atraídos? A Reforma Protestante rejeitou a visão distorcida de Maria, que se desenvolveu no Ocidente desde o Cisma de 1054, e que acabaria por resultar na proclamação do dogma da Imaculada Conceição pela Igreja Romana. Mas o protestantismo não rejeitou apenas a visão ocidental de Maria; ignorou Ela completamente, negando de fato Seu papel na Encarnação e, consequentemente, a parte que Ela desempenha em nossa salvação. Como Roma começou a vê-la cada vez mais como uma "deusa", uma quarta Hipóstase da Trindade, por assim dizer, os protestantes reagiram por minimizar Sua posição e recusando-se a honrá-la, isto apesar das palavras do Evangelho: "Todas as gerações me chamarão bem-aventurada ".

Hoje, à medida que os cristãos heterodoxos se tornam cada vez mais ecumenistas e trabalham para a criação de uma "Igreja Mundial Única", iniciou-se a busca de uma Maria de reconhecimento universal, que apelará não apenas aos que carregam o nome de cristão, mas aparentemente aos muçulmanos e outros também, assim como também estão sendo feitas tentativas de identificar o "novo Cristo" com o conceito muçulmano do vindouro Mahdi e com o Messias ainda aguardado pelos judeus. Isto, naturalmente, não será Cristo, mas o anticristo. Aparentemente, o caminho também está sendo pavimentado para uma "anti-Maria". O artigo da revista "Life" termina com o caso de um ministro unitário que "tem um sonho - de uma Maria meio-termo, uma Sempre-Maria que pode transcender ideologias e dar a este mundo tumultuado a mãe que precisa. 'Eu gosto de pensar que ela poderia ser uma ponte entre as religiões', diz ele."

Que tais palavras sejam uma advertência para todos os cristãos ortodoxos, que podem estar intrigados por aparições como as de Fátima, Lourdes ou Medjugorje. Estas ocorreram fora da Igreja e como tal são suspeitas.

Outro aspecto perturbador do artigo é o uso degradante de frases jornalísticas cativantes comuns em referência à Mãe de Deus, por exemplo: "... a noção de que Maria permaneceu virgem durante toda a sua vida não estava no ar". "Isto impulsionou Maria para ser ... uma celebridade principal," e "como a mulher a mais famosa da Bíblia, Maria transformou-se uma peça simbólica na luta para a ordenação das mulheres..." Nossa posição é que a Theotokos não é uma "Sempre-Maria" abstrata que somos livres para reinventar e moldar a nosso gosto. Ela é uma pessoa real que andou nesta terra, e para entender quem Ela é, nós não precisamos buscar mais longe do que as Escrituras e a Sagrada Tradição de nossa Igreja, que permaneceu inalterada desde os tempos apostólicos. Ela não é nem a criatura super-humana inventada pelos católicos romanos, nascida sem uma natureza humana decaída, nem é meramente humana como os protestantes pensam. O ocidente, ao perder seus laços com a Ortodoxia, esqueceu o ensinamento patrístico da theosis ou "divinização". Ninguém nasce perfeito, mas tampouco somos humanos condenados a ser meras criaturas decaídas. Estas parecem ser as únicas alternativas que o cristianismo heterodoxo pode compreender. Mas nossos Pais da Igreja sempre ensinaram que "Deus se fez homem para que o homem possa tornar-se divino", isto é, que pudéssemos partilhar de Sua natureza (II Pedro 1: 4) e ser conformado à imagem divina na qual o homem foi originalmente criado. A salvação é um processo que começa com nossa natureza decaída e pecaminosa e conduz à participação na própria Vida da Trindade.


A Theotokos, a Igreja nos ensina, é a primeira e maior exemplo desse processo. Ela submeteu Sua vontade a Deus, concordando em ter Seu Filho. Sem Ela não teria havido nenhuma Encarnação e consequentemente nenhuma Redenção. Através da oração e do jejum, cresceu em santidade para se tornar um vaso puro para conter o Ilimitado. Depois do nascimento de Cristo, ela permaneceu sempre virgem e continuou Seu podvig [esforço espiritual, ascese, nota do tradutor] para tornar-se "mais  venerável que os Querubins e incomparavelmente mais gloriosa que os Serafins". Essa visão, Ortodoxa, evita os extremos ocidentais que consideram a Theotokos como quem nasceu perfeita ou como quem nunca tornou-se perfeita.

Os cristãos ortodoxos devem seguir o exemplo da verdadeira Mãe de Deus, "a própria Theotokos", e chamando-a à lembrança "comprometei-nos, uns aos outros e toda a nossa vida, a Cristo, nosso Deus".


A "New Mary" for a New Age? por Peter Jackson, revista Orthodox Life, No. 1, 1997, pp. 18-22.

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