quinta-feira, 17 de junho de 2021

A Imaculada Conceição a partir de uma perspectiva Ortodoxa (Pe. John [Patrick] Ramsey)



Há muitas obras sobre este tema e muitas coleções de ditos patrísticos em torno do tema. Este artigo não será uma tentativa de considerar todos estes escritos em si, mas sim de apresentar uma posição teológica sobre o tópico que assume um testemunho geral de que a Mãe de Deus foi purificada no momento da Encarnação e que o processo de purificação começou desde o nascimento e até mesmo desde a concepção.

A doutrina da Imaculada Conceição, como definida pelo Papado da Velha Roma, é:

Latim:

Declaramus, pronuntiamus et definimus doctrinam quae tenet beatissimam Virginem Mariam in primo instanti suae conceptionis fuisse singulari Omnipotentis Dei gratia et privilegio, intuitu meritorum Christi Jesu Salvatoris humani generis, ab omni originalis culpae labe praeservatam immunem, esse a Deo revelatam, atque idcirco ab omnibus fidelibus firmiter constanterque credendam.

Tradução:

Declaramos, pronunciamos e definimos a doutrina que afirma que a mais bem-aventurada Virgem Maria, no primeiro instante de sua concepção, foi, por uma graça e privilégio singular de Deus Todo-Poderoso, em vista dos méritos de Cristo Jesus, Salvador da raça humana, preservada imune de toda mancha de culpa original (pecado), [essa doutrina] foi revelada por Deus, e assim, por essa razão, deve-se crer firme e constantemente por todos os fiéis.

Mais uma vez, há muito escrito sobre esta definição do ponto de vista Católico Romano e muito também de outros pontos de vista. Este artigo focará esta definição de um ponto de vista Ortodoxo e talvez estabeleça algumas questões ao invés de pronunciar julgamentos definitivos sobre ela.

Os pontos particulares da formulação que são pertinentes a uma crítica Ortodoxa são: "no primeiro instante", e: "de toda mancha de culpa original (pecado)". Há outras frases que estão em questão, embora não tão pertinentes à possibilidade de a doutrina ser algo a que os Ortodoxos possam concordar, dada sua formulação. Há toda variedade de outras questões sobre todo o processo de definição de tal doutrina e de sua fonte que podem, de certa forma, invalidar a doutrina para os Ortodoxos por motivos processuais, deixando de lado a questão da doutrina em si mesma. Estas questões não serão abordadas profundamente aqui, exceto por uma breve menção. O foco será o significado teológico ou antropológico das frases mencionadas.

A primeira frase que será abordada aqui é: "de toda mancha de culpa original (pecado)". A primeira pergunta aqui é o que se entende por "toda mancha". Em particular, é se isto inclui a morte como uma mancha do pecado original. A posição recebida pelos Ortodoxos é que a Mãe de Deus morreu. Esta morte foi uma morte natural, o que significa que a razão de sua morte foi a herança da morte proveniente de Adão e esta herança é unicamente atribuível ao pecado original de Adão, através do qual a morte entrou na humanidade. Por este motivo, a Mãe de Deus deve ter herdado o pecado ancestral (original) de Adão. Assim, se "toda mancha" inclui a morte, a doutrina da Imaculada Conceição é inconsistente com a Tradição Ortodoxa sobre o tópico. Considerando a variação geral do pensamento Católico Romano sobre o assunto, parece que a morte não é definitivamente considerada como uma "mancha" do pecado original.  A doutrina, porém, não declara explicitamente que o pecado original em si não é herdado, mas "toda mancha de". No entanto, pode significar que o pecado original não é herdado de forma alguma. Este entendimento da doutrina é inaceitável para os Ortodoxos, mesmo que de outra forma possa estar afirmando algo que pode ser aceitável, porque a Mãe de Deus herdou claramente a morte de Adão. Isto levanta outro ponto de questão é o que exatamente é herdado. Para muitos teólogos Ortodoxos, o que é herdado é simplesmente a morte como consequência do pecado de Adão e pela herança da morte o homem encontra-se como pecador porque ao estar sujeito à morte em si separa-se da Vida, na qual não pode haver contradição, e essa separação nega a participação no poder da Vida a fim de evitar o pecado. Teria então que se ler "preservada imaculada de toda mancha do pecado original" como afirmando a herança da morte, mas que a Mãe de Deus é preservada da consequência de se tornar uma pecadora que é preservada de pecar de fato. Este pensamento levanta outra questão sobre qual "mancha" pode ser dita como derivada do pecado original, além da morte. É difícil ver que "mancha" pode ser. Outra questão é o que se entende por "culpa original (pecado)". O latim parece aqui se concentrar na culpabilidade do pecado original do que no pecado em si. Para a pergunta anterior, assumi que significasse o mesmo que "pecado original", mas isto provavelmente não é estritamente correto e algo mais específico pode ser pretendido pela formulação. Herdar a morte não requer nenhum sentimento de culpa associado com esta herança, portanto a ideia de "culpa ou culpabilidade original" é estranha aos Ortodoxos e não algo que seria aceito na definição de uma doutrina. Se "culpa original" é uma referência à culpa de Adão que não é transmitida, então o que é herdado só pode ser dito ser a morte, deixando a mesma questão de antes, que a Mãe de Deus morreu por causa da morte herdada de Adão. Esta frase levanta demasiadas questões para os Ortodoxos para que seja aceitável como uma definição de doutrina. Ela reflete algum tipo de compreensão do pecado original que é estranho ou mesmo desconhecido para a compreensão Ortodoxa do Evangelho e da Tradição Apostólica.

Isto nos leva à frase: "no primeiro instante". Esta afirmação se refere a algo que está sendo feito e completado em um instante, especialmente com a preposição "em" junto com "o primeira instante". O latim "in" é melhor traduzido como "naquele momento" e, por isso, não em nenhum outro momento, portanto, não é o início de um processo, mas um evento concluído (embora com conseqüência permanente). Isso levanta a questão sobre o que pode ser tão concluído? Do ponto de vista Ortodoxo, é a herança da morte que impulsiona o pecado e não uma herança de pecado que impulsiona a morte. É praticamente uma ideia sem sentido falar da herança de pecado porque o pecado pertence à operação e não à essência do homem; somos julgados pelas ações, operações, feitas no corpo e não simplesmente por sermos humanos. (Podemos ser julgados no sentido de que nossas obras em si mesmas, devido aos limites de nossa natureza, são incapazes da perfeição das obras de Deus e, portanto, ficam aquém da retidão e, assim, são contadas como pecado, mesmo que não tenhamos feito intencionalmente atos pecaminosos. No entanto, o julgamento do pecado é relativo aos atos ou à falta deles e não à nossa natureza ou essência em si). Portanto, dado que o pecado é uma questão de ações ou limites das mesmas, a única coisa da qual a Mãe de Deus pode ser preservada no instante de sua concepção é a herança da morte, que nós declaramos ser algo que ela herda. Pode-se afirmar que as operações da Mãe de Deus são auxiliadas pela graça de Deus de tal forma a evitar pecados de intenção ou de omissão ou falta, mas isto só se aplicaria uma vez que ela começasse a agir, o que não seria no primeiro instante de sua concepção, mas desde o primeiro instante de sua concepção. Assim, pode-se dizer que um processo pode ser iniciado desde o primeiro instante de sua concepção para manter suas operações como livres do pecado, mas que tal processo não pode ser dito como algo feito e concluído no primeiro instante de sua concepção. Assim, a frase "no primeiro instante" da doutrina é inconsistente com o pensamento Ortodoxo e não é algo que possa ser aceito como foi declarado.

Assim, para resumir esta breve consideração de uma perspectiva Ortodoxa, a doutrina da Imaculada Conceição, como é definida, é inaceitável para os Ortodoxos como sendo enquadrada em uma estrutura estranha da Queda e da condição humana. Ela falha não pelo desejo de honrar a Mãe de Deus e reconhecer sua pureza, mas mais pelo fato de ser realmente enquadrada de uma maneira que não faz sentido para os Ortodoxos e simplesmente não é algo que possa ser aceito como doutrina como declaração de definição.

A ideia que muitos estão tentando defender sobre a Mãe de Deus, que esta doutrina pode estar tentando captar, é que a Mãe de Deus era totalmente pura e sem pecado na Encarnação de Cristo. Embora haja alguma variação de opinião, os Ortodoxos também afirmam que um processo de purificação e também o estado de pureza começou desde a concepção da Mãe de Deus. Para os Ortodoxos, porém, a Mãe de Deus herdou de Adão a condição humana comum de morte, como testemunhado por sua morte natural e nesse estado ela era "uma pecadora" em potencial e precisava ser salva por Cristo assumindo a morte e derrotando a morte, como qualquer outro ser humano. A Mãe de Deus é conhecida por sofrer outros limites da condição humana, tais como os limites do conhecimento. Os Ortodoxos podem, de certa forma, ter opiniões aparentemente diferentes sobre se a Mãe de Deus era pecadora e estas podem ser consistentes dependendo do contexto e da perspectiva tomada. Os Ortodoxos podem, e muitos Padres o fizeram, afirmar que a Mãe de Deus foi mantida livre do pecado desde a concepção, de uma maneira muito semelhante ao que muitos veem a doutrina da Imaculada Conceição como afirmando. Assim, pode-se ver alguns Ortodoxos concordando com a doutrina a esse nível. Entretanto, devido à doutrina ser expressa de uma maneira estranha aos Ortodoxos e com significado confuso, também é algo que pode ser condenado e rejeitado como uma doutrina. É preciso ter cuidado para não julgar uma opinião Ortodoxa que rejeita a doutrina como significando que se afirma que a Mãe de Deus pecou em ato ou deve pecar em ato, nem que um Ortodoxo que aceita a Imaculada Conceição está negando assim que a Mãe de Deus morreu ou negando que herdamos a morte de Adão e assim somos feitos pecadores. Muitos que falam em nome da opinião Ortodoxa também podem estar fazendo isso de forma limitada e imperfeita, e por isso não se deve julgar todos os Ortodoxos como tendo exatamente essa opinião.

Para os Ortodoxos, o que importa em relação à Mãe de Deus é como uma questão de fé afirmar que ela é verdadeira e corretamente chamada: "Mãe de Deus", e que ela foi realmente uma virgem na concepção de Cristo. Junto com isto, como uma questão de manter uma só mente com os Padres que: a Mãe de Deus é sempre virgem; ela é devidamente honrada como "toda santa" e é "maior que os Querubins"; ela morreu; e seu corpo não viu corrupção porque ela era a Mãe da Vida. Estas não estão abertas a opiniões contrárias, mesmo que não expressas formalmente como doutrinas nos Concílios Ecumênicos. A Mãe de Deus também deve ser considerada como a Mãe de todos os fiéis, a nova Eva. Todas as coisas ditas sobre ela nos serviços comuns das igrejas devem ser afirmadas como verdadeiras e adequadas. Sobre outros tópicos, uma variedade de opiniões não é proibida nem uma opinião específica exigida para ser Ortodoxo. A questão do que aconteceu precisamente na sua concepção não é algo considerado como tendo sido transmitido pelos Apóstolos e, portanto, não faz parte da Tradição em si.

Texto original: https://reasonandtheology.com/2021/06/10/the-immaculate-conception-from-an-eastern-orthodox-perspective-rev-dr-john-patrick-ramsey

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