quarta-feira, 29 de março de 2017

A Terrível Guerra travada em nossas Mentes e Corações

Mesmo antes de encontrar o ancião, instintivamente sabia que uma tremenda e terrível guerra estava sendo travada na Terra, em todos os cantos do planeta. O campo de batalha onde esta guerra ocorre é a mente humana e o coração humano. Nossas escolhas e a maneira como lidamos com os eventos de nossas vidas nos apontam para a vida, o conhecimento e a alegria, caso contrário seguimos em erro para a morte, a ignorância, a dor e a tristeza.

O ódio de nossos inimigos por nós é ardente. Seu desejo é destruir-nos completamente, e assim, friamente, eles traçam pérfidas conspirações para nos conduzir à ruína, à miséria e, finalmente, à morte. Eles tentam capturar a mente humana, bloqueando qualquer janela capaz de admitir a luz do conhecimento real - o que permitiria a pessoa apreciar sua própria grandeza e valor. Eles persuadem a mente a para entregar-se por um baixo preço, por exemplo, por uma ninharia brilhosa, por assim dizer. Esses inimigos não são entidades impessoais. Eles têm rostos e nomes, pertencendo ao mesmo gênero e espécie. Eles são astutos, inescrupulosos, e trabalham incessantemente para alcançar seu objetivo. Eles lutam com a raça humana como um todo e com cada pessoa individualmente. Estamos quase sendo conquistados por eles: a humanidade está sob seu jugo, se não completamente, ao menos em grande parte.

Ao longo dos séculos, um número considerável de pessoas passaram para o lado desses nossos inimigos, voluntariamente ou porque foram enganados por eles. Alguma dessas agora encontram-se sob o poder direto desses inimigos, servindo-os, fazendo seu trabalho, e apressando seus esquemas. Em troca eles são muitas vezes ajudados materialmente nesta vida. Por exemplo, eles podem encontrar empregos facilmente, ou adquirir poder sobre os outros ou riqueza. Mas, embora tenham coisas materiais, eles não possuem a paz, de modo que não podem realmente se alegrar com o que têm e encontrar satisfação. Na verdade, eles vivem em perigo, num estado profundo e permanente de medo. Pois seus mestres têm um ódio por eles enquanto seres humanos, e para esses mestres eles existem para serem usados - e descartados, como costumam ser, depois de terem cumprido seu propósito.




Por Dionysios Farasiotis, no livro "The Gurus, the Young Man, and Elder Paisios"

quinta-feira, 23 de março de 2017

Uma nova Virgem Maria para uma "Nova Era"?

Uma edição recente da revista "Life" (Dezembro de 1996) publicou um artigo de capa intitulado "O mistério de Maria". Um leitor ortodoxo não pode deixar de se perguntar que tipo de "Maria". O artigo é muito revelador pela maneira particular em que a Theotokos é exposta, e também pela intenção da autora em influenciar a compreensão do público americano sobre a pessoa e o papel da Theotokos.

Antes de iniciar o texto, a autora nos apresenta uma montagem de imagens (ícones, estátuas e "arte sacra") que representa a Virgem Maria em várias maneiras: desde a Theotokos de Vladimir às Madonnas italianas, passando por pinturas japonesas e estatuetas africanas do tipo animista. A mensagem é clara, mas para esclarecer a autora cita a historiadora Karen Armstrong (ex-freira católica): "Maria é continuamente reinventada... Em todas as épocas, as pessoas modificaram sua definição para se adaptar as suas circunstâncias"

Em outras palavras, dizem que "Maria" nada mais é do que um produto de cada cultura e época. Qualquer sociedade tem o direito, na opinião dele, de criá-la "à sua imagem". Na cultura ocidental pluralista, não é permitido proclamar uma opinião como verdade absoluta. Portanto, qualquer opinião é considerada válida, desde que não seja afirmado nada além do que uma mera opinião. Qualquer ponto de vista é tolerado, exceto aquele que diz: "Esse é a Verdade".

No último século, testemunhamos como se manifestou esse tipo de "tolerância" em relação à pessoa de Cristo. Autores modernos escreveram suas próprias "biografias" de Jesus, como Renan e Schweitzer ou Tolstoi, tão popular no século XIX. Na verdade, cada um deles remodelou Cristo para atender seus próprios propósitos, para criar um deus a seu gosto e, muitas vezes, acabam por criar um reflexo de si mesmos. Assim, os eruditos liberais vêem Jesus como um rabino, os socialistas o retratam como revolucionário e os místicos da Nova Era veem nele um tipo de guru treinado no Tibete.

Outra forma em que Cristo foi reinterpretado tem sido os resultados de estudos realizados por antropólogos das religiões do Oriente Médio onde eles traçaram paralelos entre o Deus cristão e os falsos deuses da antiguidade, como o Mitra persa, o Osiris egípcio e o Tamuz babilônico (veja Ezequiel 8:14, onde as mulheres de Jerusalém são representadas de luto pela morte de anual de Tamuz antecipando sua ressurreição). Notando que as mitologias, muitas vezes, apresentam elementos como um herói que ressuscitou ou como um bebê ou escapou de ser morto por um tirano, esses estudiosos concluem que Jesus Cristo é nada mais do que um outro herói. No entanto, Jesus Cristo não é uma figura mitológica, mas uma pessoa real que andou nesta terra em um determinado momento na história cuja existência foi testemunhada até mesmo por autores não-cristãos, como o historiador judeu Flavio Josefo. Cristo não pode ser reduzido a um mero "arquétipo junguiano" (segundo os parâmetros do psiquiatra, psicólogo e ensaísta Carl Gustav Jung, nota do tradutor). Pelo contrário, a presença de um herói ressuscitado em muitas culturas pré-cristã pode ser entendida como uma expressão do clamor universal da alma humana pela antecipação da chegada de seu Redentor. A imagem distorcida de um herói sendo concebido como inferior ao Deus cristão é, naturalmente, uma consequência natural do homem que perdeu a imagem do Criador, tentando imaginar a vinda do Messias: a natureza decaída produz uma imagem distorcida.

Assim, o homem moderno acredita que não há apenas um Cristo, mas que cada um de nós estamos livres para criar o seu próprio. Mas Paulo disse aos Gálatas: "Mas, ainda que nós mesmos ou um anjo do céu vos anuncie outro evangelho além do que já vos tenho anunciado, seja anátema." (Gálatas 1: 8) O mesmo pode ser aplicado sobre "outra Maria", porque os mesmos métodos usados ​​para reinventar Cristo estão agora sendo usados com Sua mãe. Isso não deveria nos surpreender. São João de Xangai e São Francisco (São João Maximovitch) em seu tratado "A veneração Ortodoxa da Theotokos," sabiamente disse que "todos os que odiavam a Jesus Cristo, e não acreditavam nele, que não entenderam Seu ensinamento, ou, para ser mais exato, aqueles que não quiseram entender como a Igreja entendeu, que queriam substituir a pregação de Cristo com o seu próprio raciocínio humano, todos esses transferiram seu ódio a Cristo, ao Evangelho e a Igreja para a Puríssima Theotokos. Desejavam menosprezar a Mãe, para também destruir a fé em Seu Filho, para criar uma falsa representação dela entre os homens, a fim de ter a oportunidade de reconstruir toda a doutrina cristã sobre um fundamento diferente. No ventre de Maria, Deus e homem se uniram. Ela foi a Única que serviu como uma escada para o Filho de Deus, que desceu do céu. Atacar sua veneração significa atacar o cristianismo em sua raiz, destruindo-o em sua verdadeira fundação" (pp. 25-26).

Portanto, da mesma maneira que sempre existiu falsos cristos, também sempre existiu falsas Marias. O demônio sabe que para promover uma deve vender a outra. Assim, no antigo paganismo, Tammuz era acompanhado por sua mãe Semiramis, Isis e Osiris. O protestantismo está sempre pronto para identificar a veneração a Maria com a adoração de deusas pagãs, mesmo se, por uma questão de coerência, a adoração de Cristo deva ser associada com a de suas falsificações pagãs. Se os cristãos podem discernir entre o verdadeiro Cristo e os falsos, então também devem ser capazes de distinguir entre a Theotokos e as antigas deusas pagãs que reivindicaram o título de "Rainha do Céu" (cf. Jeremias 44).

"As deusas mãe" do tipo conhecido no mundo antigo não se limitam ao Oriente Médio e Mediterrâneo, mas são universais. Os índios Kogi, que viviam em Columbia, adoravam um espírito chamado Nabubi, a "Velha Mãe". Quando os missionários católicos romanos tentaram evangelizar os Cogi no século passado, eles usaram uma estratégia incomum para conduzir os pagãos ao redil de Roma: em vez de explicar as diferenças entre a mitologia pagã e a verdade cristã, encontram uma "equivalência". Cristo, sob sua visão sincrética, correspondia a Sejukukui (um deus trapaceiro que engana a sua própria morte, escondendo-se em uma caverna), ao passo que a Virgem Maria correspondia Nabubi. Esta confusão levou aos Kogi chamar seus templos pagãos de "cansamaria", uma corruptela de "Casa de Maria".

Tendo em conta estes "métodos evangelísticos" católicos romanos há mais de um século, é de admirar que as "aparições" contemporâneas de Maria sejam invariavelmente acompanhadas de mensagens ecumênicas que promovam a ideia de que todas as religiões são igualmente válidas e que o cristianismo ortodoxo é apenas um "caminho " entre muitos? Uma edição recente da Tradição Ortodoxa (1996) contém o relato da viagem de Matushka Katherine Swanson a Medjugorje, Croácia, para investigar o mais famoso dos recentes casos de aparições de Maria no mundo católico romano. Ela conta um episódio contundente:

Nosso guia levou o nosso grupo para uma audiência com os "videntes". Durante esta audiência, um peregrino perguntou a uma das crianças a seguinte questão: "A Virgem diz que a Igreja Católica é a verdadeira igreja?" A resposta dada pela criança fornece evidências claras do conteúdo ecumênico e do relativismo religioso que, curiosamente, cada vez mais marcam as "revelações" em Medjugorje: "Nossa Mãe Santíssima diz que todas as religiões são igualmente agradáveis ​​a Deus".
O artigo da revista "Life", então, é mais uma contribuição para essa linha de pensamento. Dada a ideia de que todos os caminhos são igualmente válidos, então todas as "Marias" são igualmente válidas, também. A autora descreve várias das Marias dos nossos tempos: a Maria Milagrosa (como em Medjugorje), a Maria Mediadora (que, como cita o Padre Andrew Greeley, deixa as pessoas no Céu através da "porta dos fundos"), a Maria Moderna das feministas e Mãe Maria. Esta última, Mãe Maria, é o papel que a autora considera mais atraente para os não-católicos: "A necessidade emocional por ela é tão irresistível para um mundo problemático que pessoas sem um vínculo óbvio com a Virgem estão sendo atraídas por ela. Sabe-se que os muçulmanos reverenciam Maria como santa e pura... Grupos de oração interdenominacionais marianos estão surgindo em todo o mundo. Muitos protestantes, mesmo alguns que ainda rejeitam noções de uma Virgem sobrenatural, sentem falta de Maria."

Para qual Maria os muçulmanos e protestantes estão sendo atraídos? A Reforma Protestante rejeitou a visão distorcida de Maria, que se desenvolveu no Ocidente desde o Cisma de 1054, e que acabaria por resultar na proclamação do dogma da Imaculada Conceição pela Igreja Romana. Mas o protestantismo não rejeitou apenas a visão ocidental de Maria; ignorou Ela completamente, negando de fato Seu papel na Encarnação e, consequentemente, a parte que Ela desempenha em nossa salvação. Como Roma começou a vê-la cada vez mais como uma "deusa", uma quarta Hipóstase da Trindade, por assim dizer, os protestantes reagiram por minimizar Sua posição e recusando-se a honrá-la, isto apesar das palavras do Evangelho: "Todas as gerações me chamarão bem-aventurada ".

Hoje, à medida que os cristãos heterodoxos se tornam cada vez mais ecumenistas e trabalham para a criação de uma "Igreja Mundial Única", iniciou-se a busca de uma Maria de reconhecimento universal, que apelará não apenas aos que carregam o nome de cristão, mas aparentemente aos muçulmanos e outros também, assim como também estão sendo feitas tentativas de identificar o "novo Cristo" com o conceito muçulmano do vindouro Mahdi e com o Messias ainda aguardado pelos judeus. Isto, naturalmente, não será Cristo, mas o anticristo. Aparentemente, o caminho também está sendo pavimentado para uma "anti-Maria". O artigo da revista "Life" termina com o caso de um ministro unitário que "tem um sonho - de uma Maria meio-termo, uma Sempre-Maria que pode transcender ideologias e dar a este mundo tumultuado a mãe que precisa. 'Eu gosto de pensar que ela poderia ser uma ponte entre as religiões', diz ele."

Que tais palavras sejam uma advertência para todos os cristãos ortodoxos, que podem estar intrigados por aparições como as de Fátima, Lourdes ou Medjugorje. Estas ocorreram fora da Igreja e como tal são suspeitas.

Outro aspecto perturbador do artigo é o uso degradante de frases jornalísticas cativantes comuns em referência à Mãe de Deus, por exemplo: "... a noção de que Maria permaneceu virgem durante toda a sua vida não estava no ar". "Isto impulsionou Maria para ser ... uma celebridade principal," e "como a mulher a mais famosa da Bíblia, Maria transformou-se uma peça simbólica na luta para a ordenação das mulheres..." Nossa posição é que a Theotokos não é uma "Sempre-Maria" abstrata que somos livres para reinventar e moldar a nosso gosto. Ela é uma pessoa real que andou nesta terra, e para entender quem Ela é, nós não precisamos buscar mais longe do que as Escrituras e a Sagrada Tradição de nossa Igreja, que permaneceu inalterada desde os tempos apostólicos. Ela não é nem a criatura super-humana inventada pelos católicos romanos, nascida sem uma natureza humana decaída, nem é meramente humana como os protestantes pensam. O ocidente, ao perder seus laços com a Ortodoxia, esqueceu o ensinamento patrístico da theosis ou "divinização". Ninguém nasce perfeito, mas tampouco somos humanos condenados a ser meras criaturas decaídas. Estas parecem ser as únicas alternativas que o cristianismo heterodoxo pode compreender. Mas nossos Pais da Igreja sempre ensinaram que "Deus se fez homem para que o homem possa tornar-se divino", isto é, que pudéssemos partilhar de Sua natureza (II Pedro 1: 4) e ser conformado à imagem divina na qual o homem foi originalmente criado. A salvação é um processo que começa com nossa natureza decaída e pecaminosa e conduz à participação na própria Vida da Trindade.


A Theotokos, a Igreja nos ensina, é a primeira e maior exemplo desse processo. Ela submeteu Sua vontade a Deus, concordando em ter Seu Filho. Sem Ela não teria havido nenhuma Encarnação e consequentemente nenhuma Redenção. Através da oração e do jejum, cresceu em santidade para se tornar um vaso puro para conter o Ilimitado. Depois do nascimento de Cristo, ela permaneceu sempre virgem e continuou Seu podvig [esforço espiritual, ascese, nota do tradutor] para tornar-se "mais  venerável que os Querubins e incomparavelmente mais gloriosa que os Serafins". Essa visão, Ortodoxa, evita os extremos ocidentais que consideram a Theotokos como quem nasceu perfeita ou como quem nunca tornou-se perfeita.

Os cristãos ortodoxos devem seguir o exemplo da verdadeira Mãe de Deus, "a própria Theotokos", e chamando-a à lembrança "comprometei-nos, uns aos outros e toda a nossa vida, a Cristo, nosso Deus".


A "New Mary" for a New Age? por Peter Jackson, revista Orthodox Life, No. 1, 1997, pp. 18-22.

quarta-feira, 8 de março de 2017

A Oração Cristã e as Meditações Orientais (Arquimandrita Sofrônio de Essex)

O caminho de nossos Pais requer uma forte fé e longanimidade, ao passo que nossos contemporâneos tentam adquirir dons espirituais, incluindo até a contemplação direta do Deus Absoluto, através da força em um breve espaço de tempo.

Muitas vezes, pode-se notar neles uma disposição em traçar um paralelo entre a oração do Nome de Jesus e yoga ou "meditação transcendental" e semelhantes.

Penso que é necessário apontar os perigos desta ilusão, o perigo de encarar a oração como um meio "técnico" muito simples e fácil de conduzir à união direta com Deus.

Considero essencial enfatizar a diferença radical entre a Oração de Jesus e todas as outras teorias ascéticas.

São iludidos aqueles que se esforçam mentalmente para se despojar de tudo que é transitório, relativo, a fim de que assim possam atravessar algum limiar invisível, para realizar seu ser "sem começo", sua "identidade" com a Fonte de tudo que é; a fim de retornar a Ele, se imergir Nele, no Absoluto transpessoal sem nome; a fim de - na vasta extensão daquilo que está além do pensamento - unificar a própria individualidade com a forma individualizada da existência natural. Esforços deste tipo permitiram alguns daqueles que se esforçam a elevarem-se, até certo ponto, à contemplação metalógica do ser; a experimentar um certo temor; a conhecer o estado quando a mente é silenciada, quando se vai além dos limites do tempo e espaço. Em semelhantes estados, o homem pode sentir a paz ao livrar-se das manifestações em constante mutação do mundo visível: podem descobrir neles mesmos a liberdade de espírito e contemplar a beleza mental.

O desenvolvimento último desse ascetismo impessoal levou muitos ascetas a perceber a origem divina na própria natureza do homem; a uma tendência à auto-divinização que está na raiz da grande Queda; ao ver no homem uma certa "absolutidade" que, em essência, nada mais é do que o reflexo da Divina Absolutidade na criatura criada à Sua semelhança; a sentir-se atraído para retornar ao estado de paz que o homem conhecia antes de sua aparição neste mundo.

Em alguns casos depois de tais experiências algumas formas de anomalias mentais podem surgir na mente. Não estou me impondo a tarefa de listar todos os tipos de intuição mental, mas direi, por experiência própria, que o Verdadeiro Deus Vivo, o EU SOU, não se encontra aqui. Aqui está o gênio natural do espírito humano em seus impulsos sublimados em direção ao Absoluto.

Toda contemplação alcançada por tal meio é uma contemplação de si mesmo, não uma contemplação de Deus. Nessas circunstâncias, abrimos para nós mesmos a beleza criada, não o Ser Primeiro. E em tudo isso não há salvação para o homem.

A fonte da libertação verdadeira reside na inquestionável aceitação - de todo o coração - da Revelação, "Eu sou o que sou ... Eu sou o Alfa e o Ômega, o primeiro e o último." Deus é o Pessoal Absoluto, Trindade Una e Indivisível.

Toda a nossa vida cristã é baseada nesta Revelação. Este Deus nos chamou do não-ser para a vida. O conhecimento deste Deus Vivo e o discernimento da maneira de Sua criação nos liberta da obscuridade de nossas próprias ideias, vindas de baixo, sobre o Absoluto; resgata-nos da nossa atração inconsciente de tudo o que prejudicial para nós mesmos.

Somos criados a fim de ser comunicantes no Ser Divino daquele que realmente é. Cristo indicou este caminho prodigioso: "Porque estreita é a porta e difícil o caminho que conduz à vida."

Apreendendo as profundezas da sabedoria do Criador, embarcamos no sofrimento pelo qual a eternidade Divina é alcançada. E quando Sua Luz brilha para nós, unimos em nós a contemplação dos dois extremos do abismo: de um lado, a escuridão do inferno e, do outro, o triunfo da vitória. Estamos existencialmente introduzidos na província da Vida Divina Incriada.

E o inferno perde poder sobre nós. É-nos dada a graça de viver o estado do Logos encarnado Cristo, que desceu ao inferno como Conquistador. Assim, pelo poder de Seu amor, abraçaremos toda a criação na oração: "Ó Jesus, Gracioso Todo-Poderoso, tem piedade de nós e do Teu mundo".

A Revelação deste Deus Pessoal transmite um caráter maravilhoso a todas as coisas. O Ser não é um processo cósmico determinado, mas a Luz do amor indescritível entre as pessoas Divinas e as criadas. É o movimento livre de espíritos plenos de sabedoria de tudo o que existe, e a consciência de si mesmo.

Sem isso não há sentido em qualquer coisa, mas só morte. Mas nossa oração se torna um contato vivo de nossa pessoa criada e da Pessoa Divina, isto é, algo absoluto.

E isso é expresso quando nos dirigimos ao Verbo do Pai: "Ó Senhor Jesus Cristo, Verbo de Deus Pai, tem piedade de nós. Salva a nós e Teu mundo."

Do livro "On Prayer" pelo Arquimandrita Sofrônio (Sakharov) p.168-170

sexta-feira, 3 de março de 2017

O Pecado não é um problema moral (Pe. Stephen Freeman)

Muitos leitores nunca antes ouviram dizer que não existe tal coisa como progresso moral - portanto não estou surpreso por terem pedido que eu escrevesse com mais profundidade sobre o tema. Começarei por focar na questão do pecado em si. Se entendermos corretamente a natureza do pecado e seu verdadeiro caráter, a noção de progresso moral será vista com mais clareza. Começarei por esclarecer a diferença entre a noção de moralidade e a compreensão teológica do pecado. São dois mundos muito diferentes.

Moralidade (na forma que utilizo a palavra) é um termo amplo que geralmente descreve a adesão (ou falta de adesão) a um conjunto de padrões ou normas de comportamento. Nesse entendimento, todo mundo pratica alguma forma de moralidade. Um ateu pode não acreditar em Deus, mas ainda terá um sentido interiorizado de certo ou errado, bem como um conjunto de expectativas para si mesmo e para os outros. Nunca houve um conjunto de padrões morais aceitos universalmente. Pessoas diferentes, culturas diferentes, têm uma variedade de entendimentos morais e formas de discutir o que significa ser "moral".

Tenho observado e escrito que a maioria das pessoas não irão progredir moralmente. Isto quer dizer que geralmente não conseguimos melhorar observando quaisquer normas e práticas que consideramos moralmente corretas. Em geral, estamos tão moralmente corretos como sempre seremos.


Isto difere fundamentalmente do que se chama "pecado" em termos teológicos. A falha em aderir a certos padrões morais pode ter certos aspectos de "pecado" por trás dela, mas as falhas morais não são a mesma coisa que o pecado. Da mesma forma, a correção moral não é de modo algum a mesma coisa que a "retidão". Uma pessoa poderia ter sido moralmente correta durante toda sua vida (teoricamente) e ainda estar enterrada no pecado. Entender o pecado tornará isso claro.

"Pecado" é uma palavra que é usada frequentemente de forma incorreta. Popularmente é utilizada para denotar infrações morais (violação das regras), ou, religiosamente, violação das regras de Deus. Assim, quando alguém pergunta: "É pecado fazer x, y, z?", o que eles querem dizer é: "É contra as regras de Deus fazer x, y, z?", mas isso é incorreto. Propriamente, o pecado é algo completamente distinto da violação das regras - São Paulo fala disso de maneira bem diferente:
Sei que nada de bom habita em mim, isto é, em minha carne. Porque tenho o desejo de fazer o que é bom, mas não consigo realizá-lo. Pois o que faço não é o bem que desejo, mas o mal que não quero fazer esse eu continuo fazendo. Ora, se faço o que não quero, já não sou eu quem o faz, mas o pecado que habita em mim. (Romanos 7:18-20)
"Pecado que habita em mim?" Obviamente "violar as regras" não é um significado que se encaixa neste uso em qualquer maneira possível. O pecado tem um significado completamente diferente. Podemos retomar seu sentido por São Paulo:
Porque, quando éreis servos do pecado, estáveis livres da justiça. E que fruto tínheis então das coisas de que agora vos envergonhais? Porque o fim delas é a morte.Mas agora, libertados do pecado, e feitos servos de Deus, tendes o vosso fruto para santificação, e por fim a vida eterna.Porque o salário do pecado é a morte, mas o dom gratuito de Deus é a vida eterna, por Cristo Jesus nosso Senhor. (Romanos 6:20-23)
Aqui o pecado é algo em que podemos ser escravos, e cujo fim é a morte. Então o que é pecado?

O pecado é uma palavra que descreve um estado de ser - ou, mais propriamente, um estado ou processo de não-ser. É um movimento para longe da nossa própria existência - do dom de Deus para Sua criação. Somente Deus tem o Verdeiro Ser - Só Ele é auto-existente. Todo o resto que existe é contingente - totalmente dependente em cada momento de Deus, que é a existência. Quando Deus nos criou, segundo os Padres, Ele nos deu existência. À medida que aumentamos nossa comunhão com Ele, avançamos para o ser. Seu dom final para nós, e é para essa união que devemos nos mover adequadamente, é o ser eterno.

Mas há um oposto a esta vida de graça. Trata-se de um movimento em direção à não-existência, um movimento para longe de Deus e uma rejeição do ser. É este movimento que é chamado de "pecado". Podemos ser escravos dele, como uma folha presa em um redemoinho na água. O pecado não é algo em si (pois o não-ser não tem existência). Mas é descrito nas Escrituras por palavras como "morte" e "corrupção". Corrupção ou "putrefação" (φθορά) é uma excelente palavra para descrever o pecado. Pois é a dissolução gradual (um movimento ou processo dinâmico) de uma coisa anteriormente viva - sua decadência gradual ao pó.

Isso difere notoriamente da idéia de pecado como a violação das regras morais. A ruptura de uma regra implica apenas um erro externo, uma infração meramente legal ou forense. Nada de substância é alterado. Mas as Escrituras tratam o pecado muito mais profundamente - é em si uma mudança na substância, uma decadência de nosso próprio ser.

E aqui é onde um re-pensar criativo torna-se necessário. O hábito de nossa cultura é pensar no pecado em termos morais. É simples, requer muito pouco esforço, e coincide com o que todos ao seu redor pensam. Mas é teologicamente incorreto. Isso não quer dizer que você não pode encontrar tais tratamentos moralistas dentro dos escritos da Igreja - particularmente dos escritos ao longo dos últimos séculos. Mas a captura da teologia da Igreja pelo moralismo é um verdadeiro cativeiro e não uma expressão da mente ortodoxa.

Então, como pensamos o certo e errado, o crescimento espiritual, a própria salvação, se o pecado não é um problema moral? Não ignoramos nossas falsas escolhas e paixões desordenadas (hábitos de comportamento). Mas nós os vemos como sintomas, como manifestações de um processo mais profundo em funcionamento. O cheiro de um cadáver não é o verdadeiro problema e tratar o cheiro não é de modo algum a mesma coisa que a ressurreição.

A obra de Cristo é obra da ressurreição. Nossa vida em Cristo não é uma questão de aperfeiçoamento moral. Estamos enterrados em Sua morte - e é uma morte real - completa com tudo o que a morte significa. Mas a Sua morte não foi para corrupção. Ele destruiu a corrupção. Nosso Batismo na morte de Cristo é um Batismo na incorrupção, a cura do rompimento fundamental em nossa comunhão com Deus.

Então, como é essa cura? É errado esperar algum tipo de progresso ocorrer?

Minha experiência de vida (34 anos como sacerdote) e a leitura dos Padres e da Tradição sugerem que tais expectativas são, de fato, enganosas. Eu me perguntei sobre isso por muitos anos. Passei a pensar em nossa salvação como sendo semelhante à realidade dos sacramentos. O que você vê na Eucaristia? O Pão e o Vinho sofrem uma mudança progressiva? Vemos uma transformação diante dos nossos olhos?

O que parece ser verdade é que nossa salvação está em grande parte escondida - às vezes até mesmo de nós. A fé cristã é "apocalíptica" em sua própria natureza - é uma "revelação do que está escondido." As parábolas estão repletas de imagens de surpresa: tesouro descoberto, etc A salvação tem um modo do simplesmente aparecer. Muitas vezes penso no drama litúrgico numa liturgia ortodoxa como se isso acontecesse - por isso as portas e a cortina e o "agora você vê - agora você não vê - agora você realmente vê" fluem do serviço.

Encontrar nossa salvação significa afastar-se da aparência das coisas. Requer uma profunda e fundamental reorientação interior de nossas vidas. Requer a obra interior do arrependimento. A vida moral é vivida na superfície - até mesmo os ateus se comportam de maneira moral. Quando nos voltamos para Cristo em nós, nos movemos abaixo da superfície. Começamos a ver como são efêmeras e confusas nossas ações.

Essas ações são em maior parte a obra de um eu falso, um ego que é débil e vergonhoso, que luta freneticamente "para ser melhor". Mas o coração da vida espiritual cristã não é por este caminho do ego aperfeiçoado, mas através do caminho da "morte a si mesmo", em que perdemos uma existência que não é nosso verdadeiro eu, e aprendemos uma existência que é nossa em Cristo. Mas o que vemos é muitas vezes outra coisa. Pois, enquanto estamos encontrando a verdade, o outro ainda se apega à sua falsa existência - e isto é primariamente o que vemos e o que os outros veem. A obra escondida da salvação permanece invisível.

Não é de todo incomum na vida dos santos que a santidade de um indivíduo permaneça escondida até a sua morte. Este foi o caso de São Nectarios de Egina. Ele foi desprezado por muitos, embora visto verdadeiramente por poucos. Mas na sua morte, milagres começaram a fluir dele e, de repente, as histórias começaram a surgir.

E misteriosamente, parece que esta vida escondida é muitas vezes escondida até mesmo do próprio santo (assim como nossa verdadeira vida está escondida de nós). Eu penso que Deus nos preserva do peso deste conhecimento por causa da nossa salvação.

Pensai nas coisas do alto, não nas que são da terra. Pois vocês estão mortos, e sua vida está escondida com Cristo em Deus. Quando Cristo, que é nossa vida, aparecer, então também vocês aparecerão com Ele em glória. (Col 3: 2-4)

Isto, novamente, é o caráter apocalíptico da vida cristã. Estamos mortos e nossas vidas verdadeiras estão escondidas com Cristo em Deus - e elas aparecerão quando Ele aparecer.

Então, o que vemos nesta vida? A resposta simples é clara: Cristo. Não é a nosso próprio aperfeiçoamento que buscamos, mas Cristo. Nosso próprio aperfeiçoamento passa gradativamente a ser algo desimportante quando encontramos Cristo. E quanto mais O encontramos, mais claramente a falsa natureza do ego parece clara para nós, e podemos dizer: "Eu sou o pior de todos os pecadores".