domingo, 29 de março de 2020

Perguntas frequentes sobre os ícones (Pe. John Whiteford)

1. O que é um Ícone?

Um ícone é uma imagem (normalmente bidimensional) de Cristo, dos santos, anjos, importantes passagens bíblicas ou eventos da história da Igreja.

São Gregório Dialogista (Papa de Roma 590-604), falava dos ícones como sendo a Escritura para os iletrados:
“Pois aquilo que a escrita apresenta ao leitores, esta figura apresenta ao não esclarecido que a contempla, já que nela até mesmo os ignorantes vêem o que devem seguir, nela o iletrado lê” (Epístola ao Bispo Serenus de Marselha, NPNF2, Vol. XIII, pág. 53).
A todos que sugerem que isso não é mais relevante em nossa era iluminada, considerem a taxa de analfabetismo funcional bastante grande que temos e o fato de que mesmo as sociedades mais alfabetizadas sempre têm um segmento iletrado considerável ... seus filhos pequenos.

Os ícones também ascendem nossas mentes das coisas terrenas às celestiais. São João Damasceno escreveu “somos levados por ícones visíveis à contemplação do divino e espiritual” (PG94:1261a). Guardando em nossa memória o que é representado no ícones, somos inspirados a imitar a santidade dos que são representados neles. São Gregório de Nissa (330-395) falava de como ele não conseguia passar diante do ícone de Abraão sacrificando Isaque “sem derramar lágrimas” (PG 46:572). Sobre isto, observou-se no Sétimo Concílio Ecumênico “Se até mesmo a tal Doutor a figura foi útil e o fez derramar lágrimas, quanto mais no caso dos ignorantes e simples trará compunção e benefício"(NPNF2, vol. 14, p. 539).

2. Os Cristãos Ortodoxos oram aos ícones?

Os Cristãos Ortodoxos oram na presença dos ícones (assim como os Israelitas oravam na presença dos ícones no Templo), mas não oramos à imagem.


3. Os ícones operam milagres?

Para colocarmos esta questão numa perspectiva apropriada, consideraremos algumas outras questões: A Arca da Aliança operava milagres (c.f. Josué 3,15; I Samuel 4,6; II Samuel 11,12)? A Serpente de Bronze curou os picados pelas serpentes (Números 21,9)?  Os ossos do Profeta Elias ressuscitaram um homem dentre os mortos (II Reis 13,21)? A sombra de São Pedro curava os doentes (Atos 5,15)? Os lenços e outros panos de São Paulo curaram os doentes e expulsaram os maus espíritos (Atos 19,12)?

A resposta para estas perguntas é, de certa forma, sim. Todavia, para ser preciso, era Deus que escolhia estes objetos para operar milagres através deles. No caso da Arca e da Serpente de Bronze, nós temos imagens usadas para operar milagres. Deus operou milagres através das relíquias do Profeta Elias, através da sombra de um santo, e através de objetos que haviam apenas tocado um santo. Por que? Porque Deus honra a todos aqueles que O honram (I Samuel 2,30), e assim alegrou-se em operar milagres através de Seus santos, até mesmo por meios indiretos. O fato de Deus poder santificar coisas materiais não deveria surpreender os familiarizados com as Escrituras. Por exemplo, não apenas o altar do templo era santo, mas tudo o que o tocava também se tornava santo (Êxodo 29:37). Rejeitar a verdade de que Deus opera através de coisas materiais é cair no gnosticismo.

Então, sim, em termos imprecisos, os ícones podem operar milagres - mas, para ser mais preciso, é Deus quem opera os milagres através dos ícones, porque Ele honra aqueles que O honraram.

4. Os Cristãos Ortodoxos adoram os ícones? Qual é a diferença entre “adoração” e “veneração”?

Os Cristãos Ortodoxos não adoram os ícones no sentido de como a palavra “adoração” é usada normalmente no inglês moderno [1] . Em traduções antigas (e também em algumas traduções recentes em que os tradutores insistem em usar a palavra em seu sentido original), encontra-se a palavra “adoração” como tradução para a palavra grega proskyneo (literalmente, reverenciar). No entanto, deve-se entender que o antigo uso de “adoração” no inglês era muito mais amplo do que o utilizado hoje em dia, e era muito comum para se referir ao ato de honrar, venerar ou reverenciar. Por exemplo, no antigo Livro de Oração Comum, nos votos de casamento pode-se ler: “com meu corpo eu te adoro”, mas isso nunca teve a intenção de sugerir que a noiva adoraria seu marido no sentido em que "adoração" é comumente usada agora.

Os Cristãos Ortodoxos veneram os ícones, isto é, nós prestamos respeito a eles pois são objetos sagrados e por isso nós reverenciamos o que eles representam.  Nós não adoramos ícones assim como os americanos não adoram a bandeira americana. Saudar a bandeira não é exatamente o mesmo tipo de veneração que prestamos ao ícone, mas é de fato um tipo de veneração. E assim como não veneramos madeira e tinta, mas sim as pessoas representadas no ícone, os americanos patrióticos não veneram tecidos e tintas, mas o país que a bandeira representa.

Esta foi a razão do Sétimo Sínodo Ecumênico, que decretou em seu Oros o seguinte:

 “Sendo assim, seguindo o nobre caminho e o ensinamento divinamente inspirado dos nossos Santos Padres e da Tradição da Igreja católica – que sabemos que é inspirada pelo Espírito Santo que nela habita – decidimos corretamente após um profundo exame que, assim como a santa e vivificante Cruz, também os santos e preciosos ícones pintados com cores, feitos de pequenas pedras ou qualquer outro material com este propósito (epitedeios), devem ser colocados nas santas igrejas de Deus, nos jarros, vestes sagradas, paredes, tábuas, em casas e estradas, sejam estes ícones de nosso Senhor Deus e Salvador, Jesus Cristo, ou de nossa Senhora Soberana imaculada, a santa Mãe de Deus, ou dos santos anjos e dos homens santos e venerados. Pois toda vez que os vemos representados em uma imagem, quando os contemplamos, somos levados a recordar seus protótipos. Por isso, é apropriado prestar-lhes uma veneração (proskenesin) fervorosa e reverente, não, porém, a verdadeira adoração (latreian) que, segundo a nossa fé, é próprio apenas à única natureza divina, mas da mesma forma que veneramos a imagem da cruz preciosa e vivificante, o santo Evangelho e outros objetos sagrados que honramos com incenso e velas, segundo o costume piedoso dos nossos antepassados. Pois a honra prestada à imagem vai para o seu protótipo, e a pessoa que venera um Ícone venera a pessoa nele representada. Com efeito, tal é o ensinamento dos nossos santos Padres e a Tradição da santa Igreja católica que propagou o Evangelho por todo o mundo".
Quanto mais eles são contemplados, mais eles se movem para a memória fervorosa de seus protótipos. Portanto, é apropriado conceder-lhes uma veneração fervorosa e reverente, não, no entanto, a verdadeira adoração que, de acordo com nossa fé, pertence somente ao Ser Divino - pois a honra conferida à imagem passa para o seu protótipo, e quem venerar a imagem venera nela a realidade do que está ali representado.[3]

Os judeus entendem a diferença entre veneração e adoração. Um judeu piedoso beija a Mezuza de sua porta, beija seu manto de oração antes de colocá-lo, beija o tallenin antes de amarrá-lo em sua testa e braço. Ele beija a Torah antes da leitura na Sinagoga. Sem dúvida, Cristo fez o mesmo, ao ler as Escrituras na Sinagoga.

Os primeiros Cristãos entendiam esta distinção. No Martírio de  Policarpo (que era discípulo de São João o Apóstolo, e teve seu martírio registrado pelos fiéis da Igreja que testemunharam todos os fatos relatados), nos é dito como alguns procuraram que o magistrado romano impedisse que os cristãos recuperassem o corpo do Santo Mártir:
Ele disse: “Não aconteça que eles, abandonando o crucificado, passem a cultuar esse aí.” Dizia essas coisas por sugestão insistente dos judeus, que nos tinham vigiado quando queríamos retirar o corpo do fogo. Ignoravam eles que não poderíamos jamais abandonar Cristo, que sofreu pela salvação de todos aqueles que são salvos no mundo, como inocente em favor dos pecadores, nem prestarmos culto a outro. Nós o adoramos, porque é o Filho de Deus. Quanto aos mártires, nós os amamos justamente como discípulos e imitadores do Senhor, por causa da incomparável devoção que tinham para com o rei e mestre. Pudéssemos nós também ser seus companheiros e condiscípulos! Vendo a rixa suscitada pelos judeus, o centurião colocou o corpo no meio e o fez queimar, como era de costume. Desse modo, pudemos mais tarde recolher seus ossos, mais preciosos do que pedras preciosas e mais valiosos do que o ouro, para colocá-los em lugar conveniente.Quando possível, é aí que o Senhor nos permitirá reunir-nos, na alegria e contentamento, para celebrar o aniversário de seu martírio, em memória daqueles que combateram antes de nós, e para exercitar e preparar aqueles que deverão combater no futuro.  (O Martírio de Policarpo 17:2-3; 18:1-3).

5. O segundo mandamento proíbe os ícones?

A questão em relação ao 2° mandamento é: o que significa a palavra traduzida como “imagens de escultura”? Se ela significa apenas imagem de escultura, as imagens no templo também seriam uma violação deste mandamento. Nosso melhor guia, no entanto, sobre o significado das palavras hebraicas, é o que elas significavam para os hebreus – e quando os hebreus traduziram a Bíblia para o grego, eles traduziram essa palavra como “eidoloi”, i.e. “ídolos”.  Além disso, a palavra hebraica pesel nunca é usada em referência a qualquer uma das imagens do templo. Portanto, a referência aqui é claramente a imagens pagãs e não a imagens em geral.

Analisemos mais de perto a passagem bíblica em questão:
“Não farás para ti escultura, nem figura alguma do que está em cima, nos céus, ou embaixo, sobre a terra, ou nas águas, debaixo da terra. Não te prostrarás [encurvarás] diante delas e não as servirás...” (Êxodo 20,4-5a).
Agora, se tomarmos isto como referência a imagens de qualquer tipo, então claramente os querubins do Templo violam este mandamento.

Se limitamos sua aplicação apenas aos ídolos, não há qualquer contradição. Além de que, se isso for aplicado a todas as imagens -  até mesmo a foto nas carteiras de motorista violam isto, são ídolos.  Portanto, ou todo Protestante com uma carteira de motorista é um idólatra, ou os ícones não são ídolos., ou todo Protestante com uma carteira de motorista é um idólatra ou os ícones não são ídolos.

Deixando de lado, por um momento, o significado de “imagens de escultura” analisemos apenas o que este texto diz atualmente sobre isso. Não farás x, não te prostrarás diante de x, não servirás x. Se x = imagem, então o próprio Templo violava o mandamento. Se x = ídolos e não todas as imagens, este trecho não contradiz nenhum dos Ícones do Templo, nem os ícones Ortodoxos.

6. Deuteronômio 4,14-19 não proíbe qualquer imagem de Deus? Então como você pode ter ícones de Cristo?


A passagem instrui os judeus a não fazer uma (falsa) imagem de Deus, pois eles não tinham visto a Deus, mas, como Cristãos, nós acreditamos que Deus se fez carne na pessoa de Jesus Cristo, e assim podemos retratar aquilo "o que vimos com os nossos olhos" (1 João 1:1).  Como disse São João de Damasco:

“Antigamente, Deus, o incorpóreo e não circunscrito, nunca era representado. Agora, porém, quando Deus é visto em carne, e conversando com os homens, eu faço uma imagem do Deus que eu vejo. Eu não adoro a matéria, eu adoro o Criador da matéria, que se tornou matéria por minha causa, e se dignou a habitar a matéria, que operou a minha salvação através da matéria. Não cessarei de honrar aquela matéria que opera a minha salvação. Eu a venero, embora não como Deus. Como poderia Deus nascer de coisas sem vida? E se o corpo de Deus é Deus pela união, ele é imutável. A natureza de Deus permanece a mesma de antes, a carne criada no tempo é vivificada por uma alma lógica e racional".

7. Mas considerando a violenta oposição que os judeus tinham às imagens, como poderiam os primeiros cristãos ter aceitado os ícones?


A iconografia não foi encontrada apenas nas catacumbas cristãs, mas também em catacumbas judaicas do mesmo período. Também temos os ícones judaicos bem preservados de Dura-Europos, que estavam numa cidade destruída pelos persas na metade do século III (o que, claro, limita o quão recentes estes ícones poderiam ter sido feitos.).

Muitas vezes as opiniões de Josefo sobre Iconografia são erroneamente consideradas como a opinião judaica padrão sobre o assunto, mas isto claramente não é o caso. O texto especificamente citado é um que se refere a revolta causada quando os Romanos colocaram a águia imperial nos portões do Templo.

Esta história não é simples e clara como alguns gostariam que fosse.  Estes eram zelotes. Josefo, que também era um rebelde, embora tenha trocado de lado e depois ajudado os romanos, registra esses eventos.

Josefo registra que os romanos montaram uma águia sobre a entrada do Templo, que o povo derrubou como um sacrílego - mas eram imagens de animais per se que estavam em questão, ou eram as águias romanas na entrada do Templo que estavam em questão. A posição de Josefo sobre este assunto era tão extrema que ele pensava que as estátuas de animais em conexão com o Mar Fundido no Templo de Salomão eram um pecado (Antiguidades VIII,7,5).

Em geral, a atitude dos judeus em relação à arte religiosa não era tão Iconoclástica.  O Talmud palestino registra (em Abodah Zarah 48d) "Nos dias do rabino Jochanan os homens começaram a pintar figuras nas paredes, e ele não os impedia" e "Nos dias do rabino Abbun os homens começaram a fazer pinturas em mosaicos, e ele não os impedia".

Também, o Targum Pseudo-Jonatã repete a ordem contra os ídolos, mas depois diz "mas uma coluna de pedra esculpida com imagens e semelhanças você pode fazer nas instalações de seus santuários, mas não para adorá-la".

Além disso, os livros sagrados judaicos foram ilustrados há tanto tempo quanto nós os temos. Eles contêm ilustrações de cenas bíblicas, muito parecidas com as encontradas na Sinagoga de Dura-Europos (e como a Igreja encontrada nas proximidades) que foi enterrada em meados do século III quando os persas destruíram aquela cidade (Veja"The excavations at Dura-Europos conducted by Yale University and the French Academy of Inscriptions and Letters," Relatório Final VII, Parte I, A Sinagoga, de Carl H. Kraeling).

É digno de nota que os primeiros ícones das catacumbas eram na sua maioria cenas do Antigo Testamento, e ícones de Cristo.  A predominância de cenas do Antigo Testamento mostra que esta não era uma prática pagã cristianizada por convertidos, mas uma prática judaica, adotada pelos cristãos.

Ilustração de uma parte das pinturas das paredes da antiga sinagoga em Dura-Europos.
Cenas do Livro de Ester.

Pinturas das paredes da antiga sinagoga em Dura-Europos.

8. Se os ícones são tão importantes, por que não os encontramos nas Escrituras?

Ah, mas nós os encontramos nas Escrituras - muitos deles! Considere como eles eram predominantes no Tabernáculo e depois no Templo. Havia imagens de querubins:

 ·        Na Arca – Êxodo 25,18

·        Nas cortinas do Tabernáculo – Êxodo 26,1

·        No véu do Santo dos Santos – Êxodo 26,31

·        Dois grandes querubins no Santuário – I Reis 6,23

·        Nas paredes – I Reis 6,29

·        Nas portas  - I Reis 6,32

·        E nas mobílias – I Reis 7,29-36

Em resumo, havia ícones por todo o lado.

 9. Por que lá havia apenas ícones de Querubins e não dos Santos?

O Templo era uma imagem do Paraíso, como São Paulo disse claramente:
"[Os sacerdotes que servem no Templo em Jerusalém] servem de exemplo e sombra das coisas celestiais, como Moisés divinamente foi avisado, estando já para acabar o tabernáculo; porque foi dito: Olha, faze tudo conforme o modelo que no monte se te mostrou." (Hebreus 8:5; cf. Êxodo 25:40).
Antes de Cristo vir em carne e triunfar sobre a morte por Sua Ressurreição, os santos do Antigo Testamento não estavam na presença de Deus no Céu, mas estavam no Sheol (muitas vezes traduzido como "o túmulo", e traduzido como "hades" em grego).   Antes da Ressurreição de Cristo, o Sheol era o destino tanto dos justos quanto dos injustos (Gênesis 37:35; Isaías 38:10), embora o destino deles não fosse de forma alguma a mesma.  Como vemos na parábola de Cristo sobre o homem rico e Lázaro (Lc 16, 19-31; cf. Enoque 22, 8-15 [embora o livro de Enoque não esteja incluído na Sagrada Escritura, é uma parte venerável da Sagrada Tradição e é citado na Epístola de São Judas, assim como em muitos dos escritos dos Santos Padres]), havia um abismo que separava o justo do injusto, e enquanto os justos estavam em estado de bem-aventurança, os ímpios estavam (e estão) em estado de tormento - os justos esperavam sua libertação através da Ressurreição de Cristo, enquanto os ímpios esperavam com temor seu julgamento.  Assim, sob a antiga aliança, só se orava pelos defuntos, porque ainda não estavam no céu para interceder por nós.  Porque, como disse São Paulo aos Hebreus ao falar dos santos do Antigo Testamento: "E todos estes, tendo tido testemunho pela fé, não alcançaram a promessa, provendo Deus alguma coisa melhor a nosso respeito, para que eles sem nós não fossem aperfeiçoados." (Hebreus 11:39-40). Em Hebreus 12, São Paulo prossegue a contrastar a natureza da Antiga Aliança (12:18ss) com a da Nova (12:22ss) - e entre as distinções que ele faz, ele diz que na Nova Aliança nós "chegamos... aos espíritos dos justos aperfeiçoados" (12:22-23).  Como nos dizem tanto as Escrituras como também o resto da Sagrada Tradição, enquanto o corpo de Cristo jazia no túmulo, Seu Espírito desceu ao Sheol e proclamou liberdade aos cativos (Efésios 4:8-10; I Pedro 3:19, 4:6; cf. Mateus 27:52-53). E estes santos que triunfaram sobre este mundo, agora reinam com Cristo em Glória (2 Timóteo 2,12), e continuamente oferecem orações por nós perante o Senhor (Apocalipse 5,8; o Martírio de Santo Inácio, Ch. 7 [Santo Inácio era um dos discípulos do apóstolo João, e foi por ele constituído Bispo de Antioquia]).

Assim, enquanto no Antigo Pacto, o Templo representava o céu apenas com os querubins presentes, na Nova Aliança, os nossos Templos representam o céu com a grande nuvem de testemunhas que agora residem lá em glória.

10. Está bem, admitindo que há uma espécie de ícones nas Escrituras, mas onde é que os israelitas disseram que os deviam venerar?

As Escrituras ordenam aos israelitas que se curvem diante da Arca, que tinha duas imagens proeminentes de querubins nela.  No Salmo 99:5, ela ordena: "prostrai-vos diante do escabelo de seus pés..." Devemos notar primeiro que a palavra para "prostrar" aqui, é a mesma palavra usada em Êxodo 20:5, quando nos é dito para não nos prostrarmos diante de ídolos.

E o que é o "escabelo dos pés dele"?  Em I Crônicas 28:2, Davi usa esta frase em referência à Arca da Aliança.  No Salmo 99 [98 na Septuaginta], começa falando do Senhor que "habita entre os Querubins" (99:1), e termina com um chamado para "prostrar-se ao seu santo monte" - o que torna ainda mais claro que, no contexto, se fala da Arca da Aliança. Esta frase ocorre novamente no Salmo 132:7, onde é precedida pela declaração "Entraremos em seus tabernáculos..." e é seguida pela declaração "Levanta-te, Senhor, ao teu repouso, tu e a arca da tua força."

Interessantemente, esta frase é aplicada à Cruz nos serviços da Igreja, e a conexão não é acidental - porque sobre a Arca, entre os Querubins estava o Propiciatório, sobre o qual o sangue sacrificial era aspergido pelos pecados do povo (Êxodo 25:22, Levítico 16:15).

11. Mas e a Serpente de Bronze? Não foi destruída precisamente porque o povo começou a venerá-la?
Se você analisar a passagem em questão (II Reis 18,4), verá que a Serpente de Bronze não foi destruída simplesmente porque as pessoas a honraram, mas porque a transformaram em um Deus serpente, chamado "Neustã."

12. Não existiam iconoclastas na Igreja, muito antes do aparecimento dos Protestantes?

É importante ter em mente, ao considerar a questão dos ícones (e portanto também do iconoclasmo), que há duas questões distintas que são muitas vezes confundidas:

1)  É permitido fazer ou ter ícones?

2)  É permissível venerá-los?

É claro a partir do Antigo Testamento que a resposta a ambas as perguntas é: Sim.   Embora os Protestantes, no entanto, se oponham à veneração dos ícones, eles normalmente não se opõem a fazer ou possuir imagens.  Se o fizessem, eles não teriam ilustrado folhetos evangélicos, televisões ou imagens... mas, exceto os Amish, seria difícil encontrar outro grupo de Protestantes que consistentemente evita imagens.  Os Protestantes costumam se opor à veneração das imagens, mas curiosamente os argumentos e evidências que eles usam quase sempre se opõem a quaisquer imagens de qualquer tipo, se a lógica de suas argumentações fosse consistentemente observada.

Os iconoclastas, que são frequentemente citados pelos Protestantes como apoiantes da sua posição sobre esta questão, na verdade, argumentam contra os Protestantes. Por um lado, os iconoclastas anatematizaram todos aqueles que "se aventuram a representar...com cores materiais..." Cristo ou os santos - algo que quase todos os Protestantes fazem.  Por outro lado, também anatematizaram todos aqueles que "não confessam a santa e sempre-virgem Maria, verdadeira e propriamente a Mãe de Deus, como sendo superior a toda criatura, visível ou invisível, e não buscam com fé sincera as intercessões dela como alguém que tem confiança no acesso dela ao nosso Deus visto que ela O deu à luz..." e também anatematizaram todos aqueles que "negam o benefício da invocação dos santos...". (NPNF2, Vol. 14, p. 545f). Assim, na realidade, os Protestantes se encontram sob mais anátemas do iconoclastas do que os Ortodoxos.

Os Protestantes podem querer se contentar de que pelo menos os iconoclastas se opuseram à veneração das imagens, mas a veneração nunca foi um problema em si mesma em relação aos iconoclastas.  Eles só se opuseram à veneração dos ícones, porque eles se opuseram aos ícones.  Eles não se opuseram à veneração de coisas sagradas - os iconoclastas veneravam a Cruz, e não tinham nenhuma objeção quanto a ela (Jaroslav Pelikan, The Spirit of Eastern Christendom (600-1700), Chicago: University of Chicago Press, 1974, p. 110).

Os Protestantes também citam alguns outros Padres e escritores dos primeiros séculos da Igreja para apoiar a sua posição.  A maioria dessas citações simplesmente denuncia a idolatria, e não tem nada a ver com ícones. Nos poucos casos em que as citações poderiam plausivelmente ser interpretadas como condenando ícones ( algumas das quais são indiscutivelmente interpolações iconoclastas posteriores) uma interpretação consistente exigiria que nenhuma imagem fosse feita... porque novamente, a objeção encontrada nestes textos é a fazer e possuir imagens.  Nenhum destes textos aborda sequer a questão da veneração.

O Cânon do Sínodo de Elvira é frequentemente citado em apoio a uma posição iconoclasta.   No seu 36º Cânon, o Concílio decretou: "É ordenado que as imagens não estejam nas igrejas, de modo que aquilo que é adorado e cultuado não seja pintado nas paredes". Mesmo os estudiosos Protestantes reconhecem que o significado deste cânon não é tão claro como os apologistas Protestantes muitas vezes sugerem.  Em primeiro lugar, não se sabe qual foi a ocasião para este cânon, e não está claro o que ele estava tentando impedir, fato que até mesmo os estudiosos Protestantes reconhecem:
"...nenhum grande peso pode ser atribuído a isto [o cânon 36 do concílio de Elvira], sendo desconhecido o exato significado do cânon" [Edward James Martin, A History of the Iconoclastic Controversy (London: Society for the Promotion of Christian Knowledge, 1930), p. 19, fn 4].
Tendo em conta a formulação deste cânone, é quase certo que não se trata de uma proibição geral das imagens. O que não está claro é o que está sendo proibido, e mais especificamente com que objetivo. Interpretações plausíveis vão desde uma mera proibição de imagens na Igreja, até a uma medida de precaução para proteger os ícones contra os pagãos (uma vez que o cânon foi composto durante um tempo de perseguição, isto é certamente possível). Em qualquer caso, o fato é que os ícones estavam em uso nas Igrejas espanholas antes deste Sínodo, e continuaram a ser usados depois deste Sínodo, sem qualquer outra evidência de controvérsia. Além disso, este Sínodo era de caráter puramente local, e nunca foi afirmado em nível ecumênico.

3) Como você sabe que os iconoclastas não foram os que preservaram a mais antiga posição cristã sobre os ícones?

Para começar, o iconoclasmo teria prosperado no território dominado pelo islamismo... mas não prosperou. O primeiro surgimento do iconoclasmo começou em território muçulmano, embora tenha sido cristãos destruindo imagens, mas muçulmanos destruindo imagens cristãs (Pelikan, p. 105).   Há também razões para pensar que a influência muçulmana inspirou os Imperadores iconoclastas (pois todos eles eram de partes do Império nas quais os muçulmanos tinham avançado), mas o fato é que a única parte da Igreja na qual o iconoclasmo prevaleceu foi naquelas áreas nas quais os Imperadores iconoclastas podiam impor a sua heresia ao povo.  Em todas as áreas da Igreja fora do alcance do poder bizantino, a Igreja opôs-se aos iconoclastas e rompeu a comunhão com eles.   Um dos mais importantes opositores dos iconoclastas foi São João de Damasco, que viveu sob o domínio muçulmano e, em consequência disso, sofreu perseguições.  Se a posição dos iconoclastas fosse realmente a visão tradicional, deveríamos esperar ver esta posição prevalecer sobre os cristãos que viviam sob o domínio muçulmano.  No mínimo, esperaríamos que alguns iconoclastas falassem do meio desses cristãos, mas na verdade, o contrário era verdadeiro - não se ouviam vozes iconoclasticas das terras dominadas pelos muçulmanos, apesar das vantagens óbvias que tais cristãos teriam tido com seus governantes muçulmanos.

Além disso, antes da controvérsia iconoclasta, temos muitas evidências arqueológicas de que os ícones eram usados por toda a Igreja, e se isto fosse um afastamento da Tradição Apostólica, deveríamos esperar encontrar uma enorme controvérsia sobre este tópico desde o momento em que os ícones começaram a ser usados, pois só se intensificaria à medida que o seu uso se tornasse mais comum.   Não encontramos, no entanto, nada disso.  Na verdade, trinta anos antes da controvérsia iconoclasta, o concílio quinisexto estabeleceu um cânone sobre o que deveria ser retratado em certos ícones, mas não tem a mínima indicação de qualquer controvérsia sobre os ícones em si:
"Em algumas das pinturas dos veneráveis ícones, um cordeiro é descrito como sendo mostrado ou apontado pelo dedo do Precursor, que era considerado como um tipo de graça, sugerindo antecipadamente através da lei o verdadeiro cordeiro para nós, Cristo nosso Deus.  Portanto, aceitando avidamente os velhos tipos e sombras como símbolos da verdade e das pre-indicações transmitidas à Igreja, preferimos a graça, e a aceitamos como a verdade em cumprimento da lei.   Como, portanto, o que é perfeito, ainda que seja apenas pintado, está impresso no rosto de todos, o Cordeiro que tira o pecado do mundo, Cristo nosso Deus, com respeito ao Seu caráter humano, decretamos que daqui em diante ele será descrito em ícones, em vez do antigo cordeiro: a fim de que todos possam compreender por meio do mesmo a profundidade da humilhação da Palavra de Deus, e para que possamos recordar à nossa memória a sua vida na carne, a sua paixão e morte salvífica, e a sua redenção que foi realizada para o mundo inteiro." (Cânon LXXXII do Concílio Quinisexto).
Além disso, há muitas outras coisas sobre os iconoclastas que mostram a inovação da heresia deles: eles se opuseram ao monasticismo, apesar de este ter sido inquestionavelmente aceito pela Igreja durante séculos, eles roubavam monges, tomavam suas terras e os forçavam a casar, comer carne e assistir a espetáculos públicos (e aqueles que resistiram muitas vezes foram os espetáculos públicos), contrariando a prática monástica bem estabelecida.  Mesmo os historiadores Protestantes se vêem forçados a admitir que os homens e mulheres santos da época eram partidários da veneração dos ícones, e que os iconoclastas eram bastante imorais e impiedosos.
"Muito tem sido escrito, e verdadeiramente escrito, sobre a superioridade dos governantes iconoclastas; mas uma vez dito tudo isso, o fato ainda permanece, que eles eram, a maioria deles, cristãos deploráveis, e o juízo do arcebispo Protestante de Dublin resumindo o assunto não será contestado por nenhum estudante imparcial. Ele diz: "Ninguém negará que, com raras exceções, toda a seriedade religiosa, tudo o que constituía o poder vivificante de uma igreja, estava do outro lado [isto é, do lado Ortodoxo]. Se os iconoclastas tivessem triunfado, quando a obra deles tivesse finalmente se mostrado em suas verdadeiras cores, ter-se-ia provado que era o triunfo, não da fé em um Deus invisível, mas de uma frívola descrença em um Salvador encarnado". (Trench. Mediaeval History, Cap. vii.) The Seven Ecumenical Councils of the Undivided Church, trad. H. R. Percival, in NPNF2, ed. P. Schaff e H. Wace, (repr. Grand Rapids MI: Wm. B. Eerdmans, 1955), XIV, p. 575, cf. 547f.
Uma pessoa só pode ser um iconoclasta se ela acreditar que a Igreja pode deixar de existir - contrariando as Escrituras - porque não há dúvida de que a Igreja rejeitou o iconoclasmo e usou ícones de pelo menos desde o seu uso na época das catacumbas (que estão cheias de ícones cristãos).  Esta é uma opção que os Evangélicos ponderados geralmente rejeitam (veja, por exemplo, A Biblical Guide to Orthodoxy and Heresy, Part Two: Guidlines for Doctrinal Discernment, in the Christian Research Journal, Fall 1990, p. 14, seção 3, "The Orthodox Principle").

quarta-feira, 18 de março de 2020

O Dogma do Vaticano (Pe. Sergius Bulgakov)




Introdução
por L. A. Zander

O curso do desenvolvimento espiritual do Pe. Sergius Bulgakov foi bastante complexo e variado. Ele começou com o marxismo teórico, passou à filosofia kantiana e ao idealismo alemão e terminou com a fé viva, o pensamento cristão e o sacerdócio Ortodoxo. Seus numerosos livros e artigos marcam as diferentes etapas de seu caminho. Mas tendo voltado à fé de seus pais, o Pe. Sergius manteve seu julgamento crítico e seu método estritamente objetivo e erudito de abordar os problemas que a vida lhe apresentava. Ele acreditava como uma criança, mas verificava sua fé como um estudioso, um filósofo e um teólogo. Assim, mesmo quando era um cristão fiel (desde 1902 até a sua morte em 1944) ele encontrou e superou muitas provações e tentações. Entre essas tentações estava, primeiro, a interpretação puramente histórica do cristianismo, característica do protestantismo liberal, e, segundo, a concepção Católica Romana da Igreja.

A primeira é tratada numa série de artigos compilados nos dois volumes chamados Duas Cidades (1911) e Pensamentos Silenciosos (1918). Os títulos dos ensaios mostram o que ele tinha em mente: "A religião do homem deificado de L. Feuerbach", "Cristianismo Primitivo (o que continha e o que estava ausente nele)"; "Cristianismo Primitivo e socialismo moderno"; "Apocalípticos e socialismo"; "Ressurreição de Cristo e pensamento moderno"; "A Igreja e cultura" (Duas Cidades, v. I e II); "Arianismo Moderno: 1. Religião dos Professores. 2. A crise do cristianismo no Protestantismo moderno. 3. Hat Jesus gelebt? (Jesus viveu?) 4. O cristianismo e a mitologia".

Outra tentação foi o Catolicismo Romano. Isto é o que o próprio Padre Sergius escreve sobre isso em suas notas autobiográficas:
"Devo falar sobre a tentação pela qual passei durante os dias difíceis na Crimeia sob os bolcheviques, na época da primeira e mais devastadora perseguição da Igreja na Rússia. Ela causou uma terrível destruição na Igreja como instituição, e levou à sua desintegração interior expressa pelo aparecimento da chamada "Igreja Viva"; tudo isso me fez notar quão terrivelmente indefesa e desorganizada a Igreja estava, quão despreparada para a luta (hoje penso que a sua preparação interior, mística, era muito maior do que aparentava, e não sei se o Catolicismo mais centralizado teria resistido a tal perseguição). Mas naquela época, diante do teste histórico da Ortodoxia Russa, eu depositei minhas esperanças em Roma - apesar do meu passado um tanto eslavofilista. Comecei a reconsiderar a atitude geral da Igreja em relação à sua estrutura terrena e à sua supremacia papal. Nessa época vivia em Yalta um certo sacerdote lituano, perseguido pelos poloneses, um bom Católico, um papista convicto e instruído, que tinha recebido a sua formação teológica em Roma. Ele me forneceu os livros que eu precisava... Sob a impressão do que estava acontecendo com a igreja na Rússia e dos meus próprios estudos, comecei interiormente, silenciosamente e sem que ninguém soubesse, a inclinar-me cada vez mais para o Catolicismo (esta tendência do pensamento se reflete nos meus diálogos Nos muros de Khersones, naturalmente não publicados). Precisamente naquela época eu fui exilado da Rússia... Desnecessário dizer, eu superei minha infecção Católica, em parte sob o impacto da experiência (incidentalmente, a experiência da propaganda Católica em Constantinopla) e em parte através do trabalho interior do pensamento. Não me arrependo do meu enamoramento pelo Catolicismo, pois acho que foi um estágio dialeticamente inevitável no desenvolvimento da minha concepção da igreja, e de fato acredito que foi salutar para mim, nem que fosse apenas como uma inoculação preventiva. O mais importante é que eu perdi, penso que para sempre, o gosto espiritual pelo papado. Os motivos dogmáticos a favor dele sempre me pareceram pouco convincentes e bastante inverossímeis.... Esta luta interior deixou um traço teológico nos meus ensaios Pedro e João, os dois principais apóstolos e O Dogma do Vaticano. O caráter polêmico destes dois ensaios me deu a reputação de inimigo do Catolicismo, o que eu certamente não sou. Ao longo do meu combate interior com o papado, eu preservei totalmente o meu respeito pelo cristianismo ocidental, e por fim cheguei à ampla estrada da Ortodoxia oecumênica, livre de todo o provincialismo. Mas em geral, o tempo para uma relação baseada no reconhecimento mútuo e no respeito pelo caráter individual um do outro ainda não chegou para o cristianismo oriental e ocidental; e eu, de minha parte, não quero aumentar o abismo entre eles, que é, penso eu, principalmente devido a causas psicológicas e históricas profundamente enraizadas. É a tarefa do amor, que é a vida da igreja, preencher o abismo trabalhando em conjunto, e assim preparar o terreno para a re-união das igrejas" (1).
A estas palavras do Pe. Sergius Bulgakov podem ser acrescentadas as seguintes observações. O artigo sobre "O Dogma do Vaticano" faz parte da série "Ensaios sobre a doutrina sobre a Igreja" e foi publicado nos № 15 e 16 da revista Put (Paris 1929). Os três primeiros artigos são uma tentativa de delinear a eclesiologia Ortodoxa - um problema ao qual Pe. Sergius voltou no final de sua vida no livro A Noiva do Cordeiro, publicado em 1945, após sua morte.

Depois de escrever O Dogma do Vaticano, o Pe. S. Bulgakov, por razões práticas, absteve-se durante vários anos de publicá-lo. Mas certos artigos da imprensa Católica, acusando-o de "não ser Ortodoxo", induziram-no à publicação, apesar do seu carácter polêmico. Numa nota introdutória, o Pe. Sergius diz que o seu motivo para tal foi "o desejo de submeter à discussão teológica sem preconceitos a questão principal que divide o Oriente e o Ocidente. O artigo foi escrito não num espírito de hostilidade, mas por um desejo sincero de compreensão mútua que conduz a uma maior proximidade" (2).


(1) Notas autobiográficas (em russo). Y.M.C.A. Press 1946 p. 48-49.

(2) Put, N. 15, p. 39.


O Dogma do Vaticano


A doutrina da supremacia papal foi construída no Catolicismo Romano ao longo dos séculos, na luta contra o sistema episcopal. Foi a expressão do voluntarismo religioso dos cristãos ocidentais e da sua consciência da Igreja como, sobretudo, um poder organizado. Até 1870, porém, o papado era apenas um fato, embora poderoso e decisivo, mas não tendo ainda a força de um dogma que adquiriu após o Concílio Vaticano de 1870. Este último foi um divisor de águas na história do Catolicismo, objetivo pelo qual ele se esforçou no desenvolvimento do sistema do papado. Na história antecedente da Igreja, as inúmeras afirmações absolutismo papal podem ser contrapostas por provavelmente o mesmo número de afirmações diretas ou indiretas que afirmam o contrário. Esta diferença de opinião existia na literatura católica até 1870 e era evidente mesmo no próprio Concílio Vaticano, onde muitos dos seus membros mais cultos e influentes se opuseram definitivamente à fórmula que afirmava a infalibilidade papal, submetida ao Concílio para discussão. Foi só depois deste Concílio que o papalismo deixou de ser apenas um fato para se tornar um dogma: a questão foi encerrada. Roma locuta est - na face do mundo inteiro, à luz de toda a publicidade. A forma como o Concílio foi organizado e prosseguiu o seu trabalho tornou-se perfeitamente clara através de provas documentais e do testemunho dos seus membros. O Concílio é de grande significado para o Catolicismo; ele mostrou tanto o imenso poder de disciplina e organização, característico do mundo Católico, como a sua grande fraqueza - a ausência de liberdade espiritual.

Os poucos teólogos dissidentes, com o venerável Dœllinger a sua frente, viram-se fora da Igreja como "Velhos Católicos".

Isto é incontestavelmente provado nas monografias históricas de Friedrich[1], Schulte[2] e Friedberg[3]. O Concílio Vaticano tem tanta legitimidade em ser chamado concílio quanto as reuniões atuais dos representantes do povo na União Soviética em serem consideradas como expressão livre da vontade do povo.

Para começar, os bispos, de quem normalmente é composto um concílio eclesiástico, estão presentes ali como representantes ou testemunhas de suas respectivas dioceses - só pode haver um concílio quando as pessoas dão e recebem conselhos. Mas neste caso não poderia ter havido tal coisa, já que o próprio propósito do Concílio tinha sido mantido em segredo. Ninguém sabia por que o concílio estava sendo convocado, e seu objetivo principal só foi revelado depois que se reuniu, embora o partido de liderança - os jesuítas - tivesse uma noção relativamente clara do mesmo. A alocução papal de 26.VI.1867 referia-se à convocação do Concílio, mas durante os dois anos e meio que passaram não foi colocada nenhuma questão de importância para a sua deliberação. A comissão de teólogos, que sob a presidência de um cardeal estava preparando a pauta, não informou o episcopado do resultado de seus trabalhos. Assim, houve sigilo desde o início nas transações do Concílio.

Quando os delegados chegaram, receberam instruções impressas do papa que já havia nomeado todos os oficiais do Concílio. As instruções contemplavam várias comissões, mas a comissão principal de projetos, à parte da qual não era possível propor resoluções, já havia sido nomeada pelo papa. As duas outras comissões foram eleitas por voto de maioria simples, mas a maioria pertencia claramente ao partido papal, devido à composição do Concílio. As três comissões incluíam apenas uma centena de pessoas, ou seja, um sexto ou um sétimo do número total dos membros, que variava de 764 a 601. O resto permaneceu em inatividade compulsória, e nem sequer foi permitido realizar consultações privadas.  Eles tiveram que definhar na expectativa das reuniões gerais para as quais não foram fixados tempos definidos. Enquanto o Concílio ainda reunido, as instruções foram alteradas pelo papa e tornadas mais rigorosas. As reuniões gerais eram realizadas numa sala com uma acústica tão ruim que a maioria dos presentes não conseguia ouvir os oradores; o presidente tinha o direito de determinar a ordem em que os oradores deveriam se dirigir à audiência, e de interromper as discussões. Aos membros do Concílio foram apresentadas algumas resoluções elaboradas pelas comissões; eles não tinham livros à sua disposição (a biblioteca do Vaticano estava fechada para eles) e tinham apenas alguns dias para se prepararem para as reuniões de discussão.  Havia uma atmosfera geral de vigilância e espionagem, da qual muitos delegados se queixaram. Em vista de tudo isto, os procedimentos dificilmente podem ser descritos como um Concílio; cartas e muitos outros materiais que têm sido publicados deixam bem claro o desânimo e até a consternação que possuía os seus membros[4].

Mas, pergunta-se, como poderiam todos os bispos presentes dar o seu consentimento a algo que era repugnante para a consciência de muitos deles? Não era como se estivessem ameaçados com os horrores bolcheviques, com tortura e morte; no pior dos casos, a carreira deles teria sido estragada. A explicação é, em primeiro lugar, que a composição do Concílio tinha sido pré-arranjada, de modo a garantir uma maioria obediente ao papa. Isto foi feito incluindo, além dos verdadeiros bispos que representavam as suas dioceses, um número considerável de bispos titulares que não representavam nenhuma diocese e que, no fundo, eram simplesmente oficiais obedientes do consistório do papa, ou mesmo nem sequer bispos - cardeais, generais de diferentes ordens [5].

A esmagadora maioria dos bispos diocesanos era italiana (do total de 541 bispos europeus, a Itália tinha 276, Áustria-Hungria - 48, França - 84, Alemanha - 19). É bastante claro o que esta preponderância de bispos italianos significava: eles estavam diretamente subordinados ao papa como seu patriarca e inteiramente conscientes das diretrizes de Roma. Os membros não-diocesanos do Concílio, juntamente com o número desproporcionado de bispos italianos, constituíram uma maioria que poderia levar qualquer resolução submetida à reunião. Foi precisamente isto que aconteceu.

Quando, em 13 de julho de 1870, o dogma do Vaticano foi submetido à votação, 88 membros do Concílio eram contra (non placet) e 62 condicionalmente (placet juxta modum); 84 dos 88 e 41 dos 62 eram bispos diocesanos representando países Católicos muito influentes como a Áustria-Hungria, a França e a Alemanha. Quando os bispos dissidentes abandonaram o Concílio (mais sobre isso será dito a seguir), 535 membros permaneceram para a votação final; 533 votaram a favor da resolução e apenas dois contra. Nessa altura, apenas 4 dos 24 bispos alemães estavam presentes, apenas 44 dos 86 bispos franceses, apenas 9 dos 60 da Áustria-Hungria, 148 dos 264 da Itália e assim por diante. Entre os que participaram na votação contam-se 22 cardeais sem dioceses, 3 patriarcas latinos in partibus, 4 abades nullius dioceseos, 23 generais de ordens, 13 abbates generales, 88 episcopi in partibus infidelium, 30 dos quais não tinham diocese nem rebanho [6]. Estes são os números.

Os teólogos eruditos aos quais foi atribuído um lugar tão importante no Concílio de Trento, não tiveram qualquer participação no Concílio do Vaticano, a menos que fossem bispos ou oficiais papais em trajes clericais; apenas alguns teólogos foram trazidos como consultores; assim, o Professor Friedrich veio com o Arcebispo Hohenlohe. No conjunto, a participação de leigos, mesmo como meros conselheiros ou apenas como membros de comissões, foi cuidadosamente descartada. A assembleia consistia em membros obedientes que, além da disciplina eclesiástica geral, estariam em subordinação canônica direta ao papa.

Já foi dito que a bula que convocou o Concílio não deu nenhuma indicação do verdadeiro tema da discussão, e o Schema introduzido em dezembro de 1869 também não o revelou. Era essencial criar a impressão de que o novo dogma, para o qual, como pareceu tarde, o Concílio tinha sido convocado, era uma resposta a uma exigência vinda de baixo, do rebanho como um todo. Na verdade, porém, o medo de que o dogma da infalibilidade papal pudesse ser submetido ao Concílio causou muita ansiedade e oposição nos círculos Católicos de 1867 em diante - embora, aparentemente, nenhuma preparação tenha sido feita para enfrentar o perigo.

Schema constitutionis dogmaticae de ecclesiae, introduzido no Concílio com o consentimento direto do papa, nem sequer mencionou o papa no capítulo IX de ecclesiae infallibilitate, que expõe a doutrina da infalibilidade da Igreja. Lemos ali: haec autem infallibilitas, cujus finis est fidelium sanctitas in doctrina fidei et morum intemperata veritas, magisteria inest, quod Christus in ecclesia sua perpetuum instituit cum ad Apostolos dixit: Mateus 28, 19-21 (cf. Friedrich, Documenta II, 91-3). O capítulo XI de romani pontificis primatu também não diz nada sobre a infalibilidade papal. Não fazer, naquela altura, qualquer referência ao ponto em questão é essencialmente enganador e incompreensível, mas foi feito de forma bastante deliberada, e o mecanismo pré-arranjado funcionou como um relógio.

Já em janeiro de 1870, por iniciativa dos Bispos Martin e Senestre, uma petição foi enviada ao papa; ela recebeu imediatamente o apoio da maioria dos membros do Concílio e assim antecipou a decisão antes de qualquer discussão sobre o assunto. A petição pedia a proclamação da suprema e infalível autoridade do papa em matéria de fé. 46 membros do Concílio da Áustria-Hungria e da Alemanha enviaram imediatamente uma petição contrária, pedindo para não submeter este assunto a discussão; a eles juntaram-se 38 bispos franceses, 27 americanos, 17 orientais e 7 italianos[7].

Tudo isso estava acontecendo em uma atmosfera de silêncio forçado e tensão moral. Em Roma era impossível até mesmo imprimir qualquer dos discursos, notas ou artigos, de modo que uma espécie de literatura em segredo surgiu e foi passada de mão em mão (só foi publicada muito mais tarde na coleção do Professor Friedrich).

A petição apoiada pela maioria foi mais uma vez submetida ao papa, e em resposta a ela, primeiro, as Instruções foram alteradas (22.II.1870), privando o Concílio - apesar dos protestos da minoria - da liberdade que ainda lhe restava, e então foi feita uma "adição" ao Schema no cap. XI sobre a primazia papal, e que serviu como base do dogma do Vaticano. Ela foi apresentada ao Concílio no dia 6 de março, e as críticas a ela só puderam ser feitas por escrito até 17 de março. Assim, apenas onze dias foram concedidos aos membros para criticarem uma proposta que lhes foi subitamente imposta e que ameaçava minar os próprios fundamentos da vida da Igreja. Pode-se bem compreender o alarme e o desânimo que prevalecia no Concílio; de fato, havia conversas de que o papa era louco. Ele apoiava claramente e verdadeiramente de forma flagrante os partidários da infalibilidade, e não prestava atenção às petições e protestos dos seus oponentes, não lhes dando qualquer resposta.

A coleção de protestos escritos contra o dogma da infalibilidade papal mostra como foi forte a oposição a ele[8]. 61 membros escreveram que o dogma proposto deveria ser eliminado e alguns deram razões dogmáticas e canônicas decisivas para isso; 14 disseram que o assunto precisava de mais investigação; outros consideraram o dogma proposto como uma inovação auto-contraditória que provavelmente levaria ao cisma; apenas 56 eram mais ou menos a favor dele. Mas de acordo com as Instruções, os comentários escritos foram dirigidos ao comitê, cuja composição e atitude haviam sido previamente estabelecidas - e, naturalmente, o comitê não os levou em consideração. Quanto às discussões nas reuniões gerais, limitaram-se a que alguns membros proferiram discursos que eram bastante inaudíveis devido à má acústica e cansaram a maior parte da audiência. Além disso, os membros do Concílio sofreram com o terrível calor do verão de Roma, particularmente severo para as pessoas idosas do norte da Europa. Eles imploraram para que as sessões fossem adiadas ou temporariamente suspensas, mas em vão; o calor provou ser um aliado extra dos defensores da infalibilidade.

Apesar de uma série de protestos e tentativas de oposição por parte da minoria, a proposta original, formulada ainda mais acentuadamente do que antes (veja Schulte 285 f.), foi apresentada ao Concílio para deliberação em 12 de julho. No dia 13 de julho, sem qualquer discussão preliminar (que na verdade era algo contrário às Instruções), ela foi colocada à votação na Assembléia Geral. Depois disto, e também sem mais discussão, foi submetida à assembleia pública no dia 18 de julho, aceita pela maioria, com apenas dois votos dissidentes, e imediatamente aprovada pelo papa. Entre 13 e 18 de julho, sem que o Concílio tivesse conhecimento, a resolução foi novamente reformulada: foi um pouco abreviada[9], mas teve um acréscimo muito importante: a saber, foram introduzidas nela as palavras ex sese sine consensu ecclesiae. Estas palavras, que contêm a própria essência do dogma, foram inseridas sem qualquer deliberação preliminar, submetidas à votação e adotadas em bloco pelo Concílio.

Um observador sincero e imparcial do funcionamento do [Concílio do] Vaticano não consegue deixar de ficar chocado com tais métodos, por mais genuínos e profundos que sejam as suas simpatias para com a igreja ocidental.

Mas o que aconteceu com o partido dos opositores? Como foi possível alcançar uma unanimidade tão surpreendente na votação decisiva, quando uma nova fórmula tinha sido inesperadamente introduzida na resolução? Evidentemente, a oposição tinha derretido parcialmente sob a influência do calor tropical e da pressão "vinda de cima" e, além disso, algo incrível mesmo nos anais deste "Concílio" aconteceu. Depois de votar contra a resolução na reunião de 13 de julho, a oposição perdeu o entusiasmo; viu a necessidade de preservar sua unidade, mas foi incapaz de defender a causa comum. Os membros dissidentes decidiram abandonar o campo de batalha, com um gesto de despedida de respeito pelo papa. Em 17 de julho, na véspera da votação decisiva; uma declaração foi enviada a ele por 56 bispos diocesanos, encabeçados por Schwarzenberg, o arcebispo de Praga; entre eles estava o famoso Strossmeyer, o historiador da Igreja Dom Hefele, o arcebispo de Paris D'Arbois, Dupanlou e outros. Eles reafirmaram o seu voto contra a proposta (suffragia renovare et affirmare), mas ao mesmo tempo declararam que não estariam presentes na reunião pública para não votar contra a proposta na presença do Santo Padre a respeito de um assunto que lhe dizia respeito pessoalmente (pietas enim filialis ac reverential....non sinunt nos in causa Sanctitatis Vestrae personam adeo proxime concernante falam et in facie patris dicere non potest). Este ato de fraqueza por parte da parte mais independente do Concílio Vaticano, conecta de alguma forma a questão de um dogma fundamental da Igreja com o pietas et reverentia para com o papa, enfatizando assim de certa forma o seu interesse pelo poder pessoal.

O papa ignorou a declaração, como já havia feito antes com outros que o desagradaram. Os signatários cometeram, assim, um suicídio eclesiástico, e o dogma do Vaticano foi adotado quase por unanimidade; apenas dois non placet testemunham que foi possível, apesar de tudo, votar contra a proposta no último momento.

Ao contrário da prática dos antigos concílios, a resolução foi publicada por decisão autocrática do papa na forma de uma bula Pater aeternus, em 18 de julho de 1870, mencionando meramente sancto approbante concilio.  Estas palavras foram uma expressão externa do fato de que o Concílio havia se abolido como tal.

Restava agora fazer com que a decisão do Concílio fosse aceita pelas massas. Para isso, foram rapidamente aplicadas excomunhões, anátemas e outras sanções. Os mesmos bispos que no Concílio estavam provando que a proposta do Vaticano era totalmente contrária à tradição da Igreja, começaram imediatamente em suas dioceses a insistir no reconhecimento do dogma do Vaticano sob a ameaça da excomunhão. Isto foi feito pelo bispo Ketteler[10] e outros. O grupo de estudiosos alemães encabeçados por Dœllinger (Schulte, Reinkens, Langen, Friedrich e outros) foram vítimas do dogma do Vaticano; eventualmente foram impelidos à posição sectária e fundaram a igreja "Velha Católica". O fato de [a igreja "Velho Católica"] ter tido tão pouco sucesso mostra quão profundamente o Catolicismo estava imbuído com o papado: a reforma no século XIX foi um fracasso, o que provou a alguns que foi um erro, e a outros que veio tarde demais.

Católicos conscientes e reflexivos, livres do fanatismo ultramontanista, tiveram que enfrentar a dolorosa tarefa de reconsiderar a sua atitude para com a Igreja. Aqueles que inicialmente haviam discordado do dogma o aceitaram por obediência eclesiástica - mas como o aceitaram? Foi apenas uma submissão externa, de hábito e disciplina, ou uma submissão interna, como o exige o dogma do Vaticano e todo o sistema do papado? Se o papa é o vigário de Cristo, a encarnação viva da Igreja, a sua decisão deve ser obrigatória independentemente de todas as provas e mesmo contra elas. É preciso discordar sincera e interiormente de si mesmo, da evidência da própria razão e assumir o pensamento do outro como seu: este é o doce sacrifício do intelecto, sacrificio dell-intelleto - se isso for possível. É precisamente em tal entrega de si em nome da submissão à autoridade, mesmo contra toda a mente e consciência, que reside a essência do papismo como um sistema eclesiástico. Mas se não existe tal ato interior de submissão, resta apenas uma obediência hipócrita que sanciona a falsidade e o fingimento.

Qual foi, então, a natureza da submissão? Alguns dos antigos opositores do dogma mudaram a sua atitude tão bruscamente, que dificilmente pode haver uma dúvida sobre o caráter da mudança. Mas é instrutivo observar a tragédia interior dos poucos escolhidos - de homens sinceros e espiritualmente responsáveis como, por exemplo, os bispos Strossmeyer e Hefele. Ambos se opuseram severamente ao dogma do Vaticano e persistiram mais tempo do que qualquer outro em recusar-se a reconhecê-lo, mas no final ambos cederam e se submeteram. As suas cartas foram publicadas e permitiram-nos reconstruir o passado. O Bispo Hefele escreve de Rotenburg a Dœllinger em 10 de Agosto de 1870 (ou seja, depois do dogma do Vaticano ter sido proclamado pelo papa): "Teria sido melhor dizer mais uma vez no Conselho non placet e não respeitar a exigência de obediência. Mas como não houve unanimidade, agimos da maneira que havia sido indicada, e concordamos em trabalhar juntos localmente... Ainda não tenho certeza do que farei, mas nunca aceitarei o novo dogma sem as modificações as quais insistimos, e negarei que o Concílio foi livre ou que suas decisões foram vinculativas. Que os Romanos me proíbam e me excomunguem, e designem alguém para administrar minha diocese. Que Deus seja misericordioso e, em breve, afaste da cena o perturbator ecclesiae..." [11] Esta carta certamente não testemunha a renúncia da razão em favor da infalibilidade papal, e o desejo de um rápido desaparecimento do infalível "perturbador da paz eclesial" causa um choque profundo, vindo como vem do sábio autor de Conciliengeschichte, para quem a história do desenvolvimento da consciência eclesial era um livro aberto. Em sua próxima carta a Dœllinger Hefele escreve: "Reconhecer como revelação divina algo que não é verdadeiro em si mesmo - que aqueles que conseguirem, façam - non possum" (ib. 223). Em 11 de novembro de 1870 Hefele escreveu ao Comitê de Bonn: "Eu também não posso esconder de mim, seja em Rotenburg ou em Roma, que o novo dogma não tem base verdadeira nas Escrituras e na tradição, e que um dano incalculável foi feito à igreja, que nunca recebeu um golpe mais cruel e mortal do que o que lhe foi dado em 18 de Julho" (224).  Em 25 de janeiro de 1871 Hefele escreveu aos seus amigos em Bonn, o seguinte: "Infelizmente, devo dizer com Schulte que durante muitos anos pensei que estava a servir a Igreja Católica, mas servi a distorção (das Zerbild) infligida a ela pelo romanismo e pelo jesuítismo. Foi somente em Roma que vi com perfeita clareza que o que está acontecendo ali é cristão no nome e na aparência e não na realidade; o trigo desapareceu e só resta a casca, tudo está completamente exteriorizado (verausserlicht)" (ib. 228). Como o leitor pode ver por si mesmo, isto é tudo menos uma submissão inquestionável à autoridade infalível. Seis semanas depois, porém, o tom de Hefele muda: ao reinterpretar o dogma ele se reconcilia com ele, e logo se submete completamente (ib. 229).

O bispo Strossmeyer no início também se mostrou irreconciliável. Em 7 de setembro de 1870 ele escreveu ao Professor Reinkins (que mais tarde se tornou um bispo Velho Católico), falando do comportamento despótico e arbitrário do papa no Concílio e do "uso inescrupuloso e hediondo da infalibilidade papal - a fim de fazer dessa infalibilidade um dogma" (252). "O papado se enredou num comércio mundano mesquinho e afundou ao nível de uma instituição puramente italiana" (253). Ele expressa sua confiança de que sua própria nação (os Horvats) irá "um dia se libertar do despotismo romano" (254). Em uma carta a Dœllinger de 4.III.1871 ele escreve: "os meios mais questionáveis e absurdos foram utilizados para impedir uma livre troca de opiniões. Repito pela centésima vez que Deus nunca, nunca poderá dar a sua bênção a uma coisa que surgiu desta maneira" (254). "Se alguma vez na história um encontro foi o oposto do que deveria ser, este foi o Concílio Vaticano. Tudo o que podia prejudicar o nome de 'concílio' estava lá em um grau superlativo" (255). "Claro que em Roma não há respiração do espírito de Cristo, porque enquanto Ele proibiu chamá-Lo 'bom', em Roma eles lutaram descaradamente pelo título de infallibilis" (257). Também Strossmeyer exprime constantemente o desejo pela morte do papa: "Há alguns dias que as pessoas dizem aqui que o papa esteve perigosamente doente e mesmo que ele morreu. Isto seria uma verdadeira bênção para a humanidade"... (258); veja também algumas cartas semelhantes para várias pessoas: (258-263).

Mas este bispo também terminou por se submeter. Nas palavras de Schulte "ele não se importava em fazer algo pela fé, já que seu único interesse era erguer a nação iugoslava". Este nacionalista eslavo esqueceu tão completamente a voz da sua consciência de homem eclesiástico que em 1881, por considerações nacionais e políticas, ele próprio proclamou na sua epístola pastoral a omnipotência e a infalibilidade papais. É digno de nota que por volta da mesma época Strossmeyer, com o peso deste compromisso na sua consciência, estava tentando converter V. Solovyov ao Catolicismo.

II

Os adeptos do dogma do Vaticano esforçam-se para provar - e de fato estão obrigados por esse mesmo dogma a isso - que ele sempre foi mantido pela Igreja (de acordo com a máxima de São Vicente de Lérins: quod semper, quod ubique, quod ab omnibus creditum est). Isto é totalmente incoerente com os fatos, como foi incontestavelmente demonstrado pelos opositores Católicos do dogma do Vaticano no Concílio e fora dele (ao demonstrar isto, o grupo de estudiosos que eventualmente se juntou aos Velhos Católicos prestou um grande serviço à Igreja). Menos de cem anos antes do Concílio, o absolutismo papal era reconhecido apenas por algumas escolas de teologia e certamente não pela Igreja Católica enquanto tal [12]. A doutrina em questão foi solenemente rejeitada por toda a Igreja Católica nos Concílios, cujo significado é agora geralmente menosprezado ou completamente negado. A referência, naturalmente, diz respeito aos grandes concílios do período da reforma, em Constança e Basiléia; o primeiro é considerado, em parte, como um concílio parcialmente œcumenico, e o segundo não é de modo algum reconhecido.

Segundo o dogma do Vaticano, o papa é a cabeça suprema e infalível da Igreja, não sendo responsável perante ninguém ou sujeito a qualquer jurisdição, já que não há autoridade eclesiástica acima dele. Esta ideia está em contradição irreconciliável com o fato dogmático (ou seja, um fato com significado doutrinário) de que na história da Igreja Católica houve e, portanto, pode haver - distúrbios relacionados com o papa como pessoa. Em tais ocasiões a igreja, representada pelos seus bispos, viu-se confrontada com a necessidade, em primeiro lugar, de decidir qual era o verdadeiro papa entre dois ou mesmo três anti-papas e, em segundo lugar, de julgar e depor estes papas e entronizar um novo papa.

Com efeito, do ponto de vista do Dogma do Vaticano, as interrupções do papado naturalmente provocadas pela morte de um papa devem causar perplexidade dogmática: se um vicarius Christi pode realmente existir, como pode ele ser mortal? Como pode a própria ordem do papado ser interrompida, como sem dúvida acontece com a morte? Um patriarcado pode tornar-se vacante quando um patriarca morre ou é removido, mas o patriarcado não é uma ordem sagrada especial, algo que o papado supostamente é. O patriarcado é um ofício eclesiástico com elevada posição [nível] e jurisdição especial ligada a ele, mas no que diz respeito às ordens sagradas, um patriarca é um bispo - e a ordem do episcopado, como a do sacerdócio, não é interrompida pela morte de seus representantes individuais, e continuará até o fim dos tempos. Com o papado o caso é diferente: uma ruptura é causada devido à morte de seus representantes, já que um papa só existe no singular.

Se for dito que o papado não é uma ordem especial, mas apenas um ofício, já que o papa está na ordem dos bispos, isso estará de acordo com a concepção da Igreja universal antes do cisma, mas será contrário à doutrina do Vaticano. Segundo ela, há uma graça especial (carisma) dada a Pedro e aos seus sucessores - veritatis et fidei nunquam deficientis - que constitui a ordem do papado. A teologia Católico-Romana elevou gradualmente São Pedro a um nível tão elevado em relação aos outros Apóstolos que ele já não é considerado como um deles, mas como um príncipe dos Apóstolos.  Além do carisma apostólico geral, ele tem um carisma próprio, pessoal, similar à maneira pela qual o episcopado inclui o sacerdócio. Um bispo celebra a liturgia como um sacerdote, e não difere dele a este respeito, mas isso não significa que eles sejam de igual nível. As mesmas considerações aplicam-se à concepção Católica do papa, para quem foi criado um quarto e mais elevado grau das ordens sagradas. Certamente, a literatura Católica não contém qualquer expressão direta da idéia de que o papado é a mais elevada das ordens sagradas - a do episcopus episcoporum ou episcopus universalis, mas isto é ou evasividade ou inconsistência; o lugar especial e excepcional atribuído ao " primaz " nos escritos canônicos católicos não pode ter outro significado [13].

Mas se o papado for entendido como uma ordem especial de São Pedro (Tu es Petrus é cantado quando o papa recém-eleito é levado em procissão), as dificuldades que já foram mencionadas se destacam ainda mais claramente. Por um lado, os portadores de ordens hierárquicas inferiores não podem ordenar as ordens superiores, de modo que a consagração de um papa pelos bispos (cardeais) é canônica e sacramentalmente desprovida de significado: o papa deveria, em sua vida, consagrar seu sucessor. Por outro lado, se uma ordem é descontinuada porque não há portador dela, há uma ruptura na sucessão apostólica como um todo. O milagre permanente da existência de um vicarius Christi exige a sua imortalidade pessoal. O ensinamento dogmático sobre o papa deve certamente tornar-se menos pretensioso e limitar-se a considerar o papa como simplesmente um patriarca, mas isso, claro, significa a queda de toda a fortaleza do Vaticano. Em qualquer caso, como já foi dito, o simples fato da morte de um papa tem implicações dogmáticas que ainda não foram tratadas de forma satisfatória pelos teólogos Romanos.

Ainda maior importância dogmática para o problema do papado diz respeito às interrupções intencionais e artificiais na sucessão papal, devido ao desejo da corte papal de se administrar por si só por um tempo, sem o vicarius Christi [14]. O que acontece neste meio tempo com a plenitude e a infalibilidade do poder eclesiástico? Se a resposta é que permanece com a Igreja, isso significa que a Igreja pode viver sem um papa, ficando "viúva" por um tempo como uma diocese sem um bispo. Isto prova claramente, pode-se pensar, que a igreja não é uma função do papado, mas o papado é uma função da igreja que pode, em certas circunstâncias, compensar a ausência do papa.

O problema que a morte de um papa suscita indiretamente, manifesta-se abertamente no caso de cisma eclesiástico, quando há mais de um papa em existência. Quando isso aconteceu, a própria igreja, através do seu órgão máximo - o concílio, resolveu os problemas, julgou os papas, depôs uns e nomeou outros. A superioridade do concílio ao papa, dogmaticamente estabelecida nos Concílios de Constança e Basileia, foi exercida por eles antes que esta proclamação dogmática fosse feita. 

Esses concílios rejeitaram a afirmação de que o papa não está sujeito a nenhuma jurisdição eclesiástica, "prima sedes a nemine judicatur". Eles julgaram e depuseram os papas, e nem a Igreja, nem o Papa Martinho V nomeado pelo Concílio de Constança, nem seus sucessores, se opuseram a isso. Protestar contra isso significaria questionar sua própria legitimidade e admitir que eles eram usurpadores.

Repito, estes fatos têm um significado dogmático; os Católicos Romanos gostam de dizer que a Providência preservou a Sé de Roma de erros dogmáticos, mas neste caso pode dizer-se com igual justiça que a Providência permitiu certos fatos, cujo significado dogmático era preservar a Sé Romana de fazer falsas reivindicações e fornecer indicações claras sobre o caminho correto[15].

Passando dos fatos à doutrina, devemos dizer que no início do século XV, admitindo, naturalmente, muitas exceções, a opinião geral da Igreja Católica era contrária ao papado enquanto sistema eclesiástico e favorecia a idéia dos concílios. Isto foi evidente tanto em Constança como em Basiléia. Mesmo os mais fervorosos adeptos do papado admitem que o Concílio de Constança foi necessário, útil e até (em parte) de caráter ecumênico, mas eles se esforçam a todo custo para enfraquecer as decisões dogmáticas [do Concílio], aceitas na 4ª sessão e diretamente contrárias ao dogma do Vaticano. A decisão é a seguinte: Ipsa synodus in spiritu congregata legitime generale consilium faciens, ecclesiam catholicam mili­lantern representans, potestatem a Christo immediate habet, cui quilibet cujuscunque status dignitatis, etiamsi papalis existat, obedire tenetur in his quae pertinent ad fidem et extirpationem dieti schismatis et reformationem generalem ecclesiae Dei in capite et membris [16]. [O Sínodo em si, devidamente convocado no espírito, constituindo um concílio geral representando a igreja Católica militante, tem o seu poder diretamente de Cristo; toda posição [grau] de qualquer dignidade, mesmo que seja o papado, é obrigado a obedecê-lo em matérias que dizem respeito à fé e à extirpação do mencionado cisma e à reforma geral da igreja de Deus na sua cabeça e nos seus membros. Harduini v. VIII p. 252.]

Na 5ª sessão esta declaração, subsequentemente confirmada mais de uma vez no Concílio de Basileia, foi repetida e ampliada. Foi aceita após a fuga do Papa João XXIII, quando o Concílio estava prestes a julgá-lo por uma série de ofensas. O resultado do julgamento foi que o papa foi deposto, e outro papa, Martinho V, foi eleito; o procedimento foi reconhecido por todo o mundo Católico como legalmente válido. Mas segundo o princípio "prima sedes a nemine judieatur", e, a fortiori, segundo o dogma do Vaticano, o ato de julgar e depor um papa, e eleger um novo no seu lugar, é ilícito e revolucionário. Se, no entanto, o Concílio teve o direito de agir como agiu, obviamente que teve razões dogmáticas e canônicas para tal, expressas na resolução aprovada na 4ª e na 5ª sessões. A deposição de um papa e a eleição de outro é um fato dogmático, ou, como dizem os juristas, um fato conclusivo, que ou nega a primazia absoluta dos papas ou interrompe sucessão canônica deles: se Martinho V não é um papa legítimo, seus sucessores também não são legítimos; a sucessão papal é interrompida.

O derrube de um papa e a eleição de outro é um facto dogmático ou, como dizem os advogados, conclusivo, que derruba a teoria do primado absoluto ou, caso contrário, interrompe a continuidade canônica dos papas: se o Papa Martin V é ilegal e todos os seus sucessores são ilegais, a continuidade papal é interrompida. 

Em vez de tirar todas as conclusões dogmáticas e canônicas deste impasse, por meio das quais a Providência, por assim dizer, delimita as reivindicações do papado, os teólogos Católicos fazem todo o possível para minimizar o significado dos fatos incômodos; isto é o que Hefele, o erudito historiador do Concílio de Constança, se esforça em fazer. Ele reconhece que o curso adotado pelo Concílio no momento difícil em que havia três papas ao mesmo tempo era o único possível. Assim, ele admite a legitimidade de ações que, em seu entender, são eclesiasticamente ilegais. Segundo a doutrina Católica Romana, é tão impossível para um Concílio depor um papa e nomear um novo, como é impossível para padres consagrar um bispo. Mas Hefele prossegue dizendo que o Concílio de Constança só pode ser considerado como ecumênico após sua última (41-45) sessão, quando ele trabalhou em conjunto com o Papa Martinho V. Se, no entanto, ele não foi legalmente válido ou não foi ecumênico (para usar a frase deliberadamente vaga de Hefele) desde o início, suas transações não têm validade, e o Concílio não poderia tornar-se ecumênico em conjunto com um novo papa, pois, nesse caso, ele não seria um papa legítimo[17].

Os mesmos artifícios forçados são usados para justificar o fato de que o Papa Martinho V confirmou vários, se não todos, os decretos do Concílio de Constança, reconhecendo-o como ecumênico, ainda que apenas em parte, mas nunca declarou nenhum dos seus decretos como sendo herético. Ele indubitavelmente ratificou os decretos dogmáticos sobre as falsas doutrinas de Wycliffe, Huss etc. proclamados pelo Concílio  ao mesmo tempo que o decreto sobre a autoridade de um Concílio Ecumênico sobre o papa[18]. É possível que um concílio, considerado herético em relação a um dogma fundamental sobre a igreja, possa ser considerado como ecumênico sob um outro aspecto? Esta é uma das evasivas e ambiguidades da doutrina Romana, historicamente explicada pelo simples fato de que o Papa Martinho não ousou protestar contra as resoluções que o desagradaram, esperando um momento mais favorável para fazê-lo e, ao mesmo tempo, desejando fazer uso do concílio para a luta contra os hereges. Mas do ponto de vista do dogma, temos aqui uma ambiguidade inadmissível. O pronunciamento do Papa Martinho V em relação ao Concílio de Constança pode, como o próprio Hefele admite, ser interpretado por cada lado à sua maneira (Hefele, VII, 348, 368).

Seu sucessor, o Papa Eugênio IV, foi mais preciso e, em 1446, aceitou as decisões do Concílio de Constança absque tamen praejudicio juris dignitatis et praeeminentiae sedis apostolicae. Hefele interpreta isto como significando que todas as resoluções que limitam o poder papal são excluídas (v. VI 372-3). Mais tarde, em 1459, o Papa Pio II na bula Exsecrabilis condenou apelos a um concílio contra o papa; em 1516, o Papa Leão X na bula Pastor aeternus condenou a resolução do Concílio de Basileia (que apenas reafirmou a do Concílio de Constança) sobre a supremacia do concílio sobre o papa. Foi assim que as coisas permaneceram até que Pio IX emitiu a bula Pastor aeternus, em julho de 1870 - e é assim que elas se encontram agora.

É instrutivo observar até que ponto os teólogos dogmáticos Católicos Romanos são hipnotizados pelo papismo. O selo da aprovação papal tem um significado tão decisivo para eles que eles perdem todo o interesse no concílio que foi a fonte primária das doutrinas que receberam a aprovação. Um concílio constituído, sob um aspecto, por hereges óbvios estabelece a verdadeira fé - uma fonte emana ao mesmo tempo água doce e amarga! Ou então, o concílio torna-se simplesmente um ofício papal para a elaboração de projetos teológicos.

III

Esta hesitação e inconsistência é ainda mais evidente no Concílio de Basileia, onde uma luta constante contra o papa foi travada durante muitos anos com sucesso variável.

Após a vitória do papado, o Concílio de Basileia foi, evidentemente, excluído do número de Concílios Ecumênicos reconhecidos pela Igreja Ocidental (embora tenha sido neste Concílio que foi formulado o dogma Católico Romano da Imaculada Conceição de Nossa Senhora, proclamado em 1854 pelo Papa Pio IX). O que nos interessa, porém, não é esta rejeição final do seu carácter ecumênico, mas as mudanças na atitude do papa em relação a ele, enquanto ainda se encontrava reunido. Tais mudanças teriam sido impossíveis se a Igreja já mantivesse naquela época o dogma da infalibilidade papal. Pelo contrário, o Concílio de Basiléia manteve firmemente a definição dogmática do Concílio de Constança e a reafirmou mais de uma vez.

O Concílio de Basileia foi iniciado em 23 de julho de 1431, logo após a eleição do Papa Eugênio IV (após a morte de Martinho V) e imediatamente entrou em conflito com o papa que queria dissolvê-lo e convocar um novo concílio na Itália, em Bolonha. (Tinha sido decidido em Constança que os concílios deveriam ser realizados a cada dez anos). O Concílio aprovou uma resolução negando o direito do papa de dissolvê-lo - e, portanto, negando seu plena potestas. Após algum tempo o papa iniciou negociações com o Concílio rebelde e ofereceu-se para transferi-lo para algum outro lugar ou para limitar sua competência; a oferta foi feita através do bispo de Tarentum, que em seu discurso no Concílio enalteceu a primazia papal e o plena potestas. Em resposta, o Concílio acusou o papa de tendências cismáticas e exigiu que a ordem para a sua dissolução fosse revogada; a dissolução, na opinião deles, iria, entre outras coisas, dificultar a união com a Igreja Grega, da qual o papa tinha falado. Contra a alegação do bispo de Tarentum de que o papa tinha plena potestas e os bispos apenas in partem solicitudinis, o Concílio defendeu que era competente para lidar com matérias de fé, com a erradicação de cismas e com a reforma da igreja em relação à sua cabeça e aos seus membros, segundo a definição estabelecida pelo Concílio de Constança. Somente Deus e os concílios ecumênicos eram infalíveis, ao passo que até os anjos eram falíveis, e os papas também, como por exemplo Anastásio e Libério. Em suma, o papa não era mais do que caput ministeriale.


Por estes argumentos os membros do Concílio estavam provando que sua insubordinação era legítima, e as reivindicações do papa injustificáveis (Hefele VII, 477-8). Com o passar do tempo, a diferença entre a concepção de autoridade eclesiástica do concílio e a do papa foi se tornando cada vez mais acentuada. Na II sessão de 27.IV.1433 foram aprovadas resoluções que obrigavam o papa a convocar periodicamente um concílio e a comparecer ao mesmo, sob pena de ser submetido a um tribunal e mesmo de ser declarado cismático. Em 16 de junho foi aprovada uma nova resolução condenando o papa por sua atitude em relação ao concílio e que dizia que a subordinação ao concílio era uma questão de doutrina, "fidei concernit", de modo que se o papa Eugênio IV negligenciasse ouvir a igreja (isto é, o concílio), ele seria semelhante a um homem pagão e um publicano. No dia 13 de julho as principais teses de Constança foram mais uma vez confirmadas em Basiléia. O conflito com o papa desenvolveu-se numa luta constante pelo poder; o papa foi convocado para um tribunal e embora o julgamento tenha sido adiado mais de uma vez, ele por fim aconteceu e o papa foi deposto.

Antes disto acontecer, porém, certos eventos que levantaram importantes questões teóricas ocorreram. Em 29 de julho de 1433 o papa, sem saber da sua acusação pelo Concílio, publicou a bula Inscrutabilis anulando todas as resoluções que o Concílio havia aprovado contra ele. Dois dias depois, porém, em 1º de agosto, teve de publicar outra bula, Dudum sacra, na qual reconheceu plenamente o Concílio na condição de que seus legados presidissem lá, e que todas as resoluções dirigidas contra ele pessoalmente fossem canceladas. Ao mesmo tempo, uma bula anterior, Deus Novit, atacando o Concílio, foi declarada como não autêntica. Quando, porém, o papa ouviu falar dos decretos do Concílio contra ele, ele publicou no dia 11 de setembro uma nova bula, In arcano, anulando esses decretos e anatemizando aqueles que os obedeciam.

No dia 16 de outubro foi realizado um debate no Concílio, na presença do Imperador Sigismundo, entre o presidente do Concílio, Cardeal Julián Cesarini, e o legado papal, Arcebispo de Spoletto, sobre o mesmo tópico que foi discutido no Vaticano em 1870, mas em um contexto muito diferente. O Cardeal Cesarini manteve a primazia do Concílio sobre o papa, citando a autoridade do Concílio de Constança, dos sete Concílios Ecumênicos e particularmente do Concílio de Calcedônia, de Santo Agostinho, de São Jerônimo e de São Gregório Magno, e contestou o direito do papa de dissolver um Concílio. Ele concluiu dizendo que se tratava de uma matéria relativa à fé (ib. 554). As condições de paz foram ditadas ao papa, e como ele estava em uma posição difícil, ele as aceitou in toto numa nova bula, também chamada Dudum Sacra, 15 de dezembro de 1443. Ele admitiu nela que ele tinha se esforçado para a dissolução do Concílio, e isso tinha levado a graves dissensões. Ele não usou a antiga fórmula autoritativa "volumus contentamur", mas a fórmula sugerida pelo Concílio: decernimus et declaramus. Reconheceu que o Concílio desde o início prosseguiu legitimamente o seu trabalho em relação aos três pontos principais (erradicar a heresia, pacificar e reformar a igreja na sua cabeça e nos seus membros) e às questões relacionadas a eles. O papa fala como se o Concílio nunca tivesse sido dissolvido; a ordem da sua dissolução é declarada nula e sem efeito, e ele está pronto a desejar ao Concílio cum effectu ac omni devtione ac favorece prosequi. As duas bulas anteriores, Inscrutabilis de 26 de julho e In arcana de 11 de setembro, são canceladas (assim como a não autêntica Deus novit), e todas as restrições contra os membros do Concílio são revogadas[19].

Que os defensores da infalibilidade papal se reconciliem o melhor possível com todas essas declarações incoerentes e contraditórias feitas no decorrer de alguns meses sobre o mesmo assunto, que sem dúvida tratam de fide et moribus [fé e moral]. É óbvio que o reconhecimento do papa do concílio, que abertamente e de fide afirma a primazia [do concílio], implica que tal afirmação é legítima. Caso contrário, não haveria como escapar à conclusão de que o papa reconheceu um concílio manifestamente herético que persistia na sua heresia.

Mas como o papa se submeteu ao Concílio de maneira insincera e por pura necessidade, ele preparou para si mesmo uma forma de recuar por meio das habituais evasivas. Quando as circunstâncias mudaram, ele declarou no Colégio dos Cardeais, em 1439, que tinha consentido apenas em prolongar o Concílio, mas certamente não tinha aceitado os seus decretos. Esta ideia foi adotada e apoiada zelosamente pelo teólogo papal J. Torquemada[20]. Na bula Moyses de 4 de Setembro de 1439, o papa condenou os decretos de Basileia como sendo ímpios, e tentou ao mesmo tempo, seguindo os argumentos desonestos de Torquemada, minar a força do decreto do Concílio de Constança[21]. Tudo isso, porém, aconteceu muito mais tarde; na época, a capitulação do papa foi recebida no Concílio de Basileia como um grande triunfo e imediatamente registrada em suas transações[22]. O mais importante a salientar é que o Concílio, depois de ter sido reconhecido pelo Papa, reafirmou na sessão de 18 de Junho de 1434 o quinto decreto do Concílio de Constança sobre a supremacia do Concílio sobre o Papa. Todas as resoluções aprovadas em Basileia foram emitidas como bulas em nome do Concílio, em contradição com o Vaticano, onde "a decisão do Concílio" foi publicada sob a forma de uma bula papal[23].

Um novo fator foi introduzido na história do Concílio de Basiléia pelas negociações com os gregos sobre a união das Igrejas Orientais e Ocidentais, eventualmente proclamada no Concílio de Florença. Deixando de lado a questão da união como tal, estamos aqui interessados simplesmente no papel que esse Concílio desempenhou nos destinos da Igreja Ocidental. Desde o primeiro momento, as negociações com os gregos tornaram-se uma arma na luta entre o papa e o Concílio de Basileia. Os gregos interessavam-se muito pouco pela união real com a Igreja Ocidental, que eles consideravam com desprezo e repúdio tradicional; o Imperador queria a união por razões puramente políticas, na esperança de uma ajuda militar contra os turcos. Nenhum dos delegados gregos era, inicialmente, favorável aos latinos, mas à medida que o Concílio prosseguia o seu trabalho, alguns deles, como Bessarion e Isidoro, mudaram a sua atitude.

Independentemente de tudo isto, porém, os gregos (que estavam enganados nos seus cálculos políticos) iniciaram discussões sobre a união em uma época em que a Igreja Ocidental estava paralisada pelas suas próprias dissensões e ela própria precisava de se unir. As negociações poderiam prosseguir com apenas um dos dois partidos em que a Igreja Ocidental estava dividida, e cada um queria aproveitar a união com os gregos em seu próprio benefício. A delegação grega inicialmente negociou com ambos os lados - o papa e o Concílio - e cada lado adiantou-se para os gregos, enviando para Constantinopla embaixadas de que brigavam e conspiraram uma contra a outra. Prometeram aos gregos vários benefícios, cada uma tentando superar a outra. Isto durou mais de quatro anos[24].

No final, o papa venceu, e os gregos consentiram em vir ao seu concílio - não porque o considerassem canonicamente legítimo, mas porque o partido de Basileia foi longe demais em suas objeções ao local onde o concílio deveria reunir-se; além disso, disputaram entre si e cometeram uma série de erros táticos. No entanto, depois de chegar a Ferrara, os gregos nada fizeram durante seis meses (de abril a outubro de 1438), esperando membros de Basileia e representantes dos povos francês e alemão que nunca chegaram. Como expediente temporário os gregos tiveram que lidar com um conciliabilum papal que consistia em oito cardeais (todos os outros estavam em Basileia), dois patriarcas "titulares", 61 arcebispos (a maioria electi, ou seja, "arcebispos do Vaticano"), 43 abades e um general de uma Ordem; todos os verdadeiros representantes - algumas centenas deles - estavam em Basileia. Assim, o Concílio de Florença não era um concílio geral e não foi considerado como tal no Ocidente até ao século XIX[25], graças à força do dogma do Vaticano. Verdade, naquela ocasião, o papa assegurou aos gregos que a sua presença era suficiente para garantir que um concílio fosse um concílio geral; mas, nesse caso, não havia qualquer necessidade de ter um concílio, e as negociações podiam ser conduzidas da mesma maneira apenas com o papa. Foi o que aconteceu no chamado Concílio "Geral" de Lyons, em 1274, quando os emissários do Imperador Miguel leram aos legados do papa a confessio exigida a eles, e o assunto terminou ali. Mas era impossível impor a questão dessa forma depois que os gregos tinham negociado com toda a Igreja Ocidental, representada pelos seus dois centros - o papa e o Concílio. E logo ficou evidente que um Concílio Geral com os gregos fracassou, pois o partido de Basileia iniciou imediatamente as hostilidades. Enquanto em Florença os gregos eram forçados a reconhecer a supremacia do papa, outra parte da Igreja Católica Romana negava essa supremacia como uma questão de dogma. Foi a situação sem esperança dos gregos, bem como a sua indiferença em relação ao problema em questão, que os impediu de arbitrar o grande cisma da Igreja Ocidental e de implantar ali os princípios da Ortodoxia. Se o tivessem feito, teriam evitado a queda de Bizâncio e a vinda da Reforma.

No momento em que o Concílio de Florença se reuniu, desenvolveu-se um novo conflito entre o papa e o Concílio de Basileia. O papa emitiu uma bula transferindo suas sessões para Ferrara; em resposta, o partido de Basileia conduziu um julgamento condenando o papa e proibindo-o in temporalibus et spiritualibus. Quando o papa declarou a abertura do Concílio Geral em Ferrara, os membros do Concílio de Basileia em 24 de março de 1438 o condenaram solenemente como uma reunião cismática e negaram de fide o direito do papa de transferir um Concílio Geral de um lugar para outro.  Os mais importantes dos países católicos, a França e a Alemanha, no geral, apoiaram Basileia (considere, por exemplo, a Assembleia de Bourge e as "sanções pragmáticas" 7.VII.1438, a "neutralidade" conciliadora da Alemanha e o Reichstag de Mainz em 26.III.1439 aceitando os decretos reformadores de Basileia); todos os países da Europa Ocidental estavam ansiosos para ter um novo Concílio Geral convocado. De qualquer forma, não havia a possibilidade de reconhecer o Concílio de Florença, e o papa, junto com os gregos atraídos por ele, permaneceu isolado. A profunda divisão na Igreja ocidental fez discursos sobre a união com os cristãos orientais soar vazios.

Na 32ª sessão de 16 de maio de 1439, em resposta por assim dizer, à futura declaração do Concílio Florentino, as seguintes teses foram mais uma vez estabelecidas como veritates fidei catholicae: 1) um concílio ecumênico é superior ao papa; 2) o papa não pode transferir, ou cancelar, ou dissolver um concílio ecumênico; 3) qualquer um que negue isto é um herege (Hefele, VII 778-9). Na 34ª sessão de 25 de junho de 1439, o papa foi declarado deposto após ser julgado.  Assim, precisamente no momento em que em Florença se assinava a união com a Igreja grega, no Concílio de Basileia, que de qualquer modo representava uma parte considerável da Igreja Ocidental, foram negados os direitos plenários do papa e do seu concílio, e a tese sobre a supremacia do papa, proclamada no Concílio de Florença, foi, do ponto de vista dogmático, rejeitada como heresia. Mas a tese florentina, disputada naquela época, foi ressuscitada em nossos dias pelo Concílio Vaticano e colocada na base da sua definição[26]. A afirmação, expressa em termos imprecisos, metafóricos e um tanto ambíguos, não foi suficientemente discutida[27], e foi forçada aos gregos na conclusão de um Concílio que se prolongou por muitos meses cansativos.

Vale observar que João de Ragusa, na sua resposta a Bessarion, justificou o poder do papa sobre os bispos como seus vigários pelo fato de São Pedro ter nomeado patriarcas, metropolitas e bispos para várias dioceses; em apoio a isso, citou uma passagem espúria do Anaclite de pseudo-Isidoro, e um texto também espúrio do 6º cânon do 1º Concílio de Nicéia. (O texto tinha sido provado como espúrio no IV Concílio Ecumênico de 451, onde os legados papais tinham tentado fazer uso dele). Nos seus argumentos João de Ragusa também se referiu ao texto notoriamente espúrio Donatio Constantini - um documento que já tinha sido provado ser falso por Laurentius Valla e Nicolau Cusanus (Hefele VII. 733).

A declaração aparentemente não foi discutida em detalhes, embora tenha ocorrido uma disputa sobre uma importante adição, insistida pelos latinos, mas rejeitada pelos gregos - a saber, a afirmação de que a autoridade papal deve ser reconhecida com base na sacra scriptura et dicta sanctorum. Teria sido difícil evitar atribuir um significado exagerado ao "dicta" retirado do seu contexto, e por fim a adição tomou a forma de KATH'ON TROPON - quemadmodum (etiam) in gestis conciliorum et in sacris canonibus. Esta fórmula bastante importante é inquestionavelmente vaga e ambígua. Se for entendida com reservas como significando que a primazia do papa se mantém apenas dentro dos limites dos Concílios Ecumênicos (dos quais os gregos reconhecem apenas sete) e dos seus cânones, esta interpretação implica que o Oriente Ortodoxo tem razão em considerar o papa como o primeiro entre os bispos e exclui qualquer coisa que se assemelhe ao dogma do Vaticano. Se for entendida com reservas como significando que a primazia do papa se mantém apenas dentro dos limites dos Concílios Ecumênicos (dos quais os gregos reconhecem apenas sete) e dos seus cânones, esta interpretação implica que o Oriente Ortodoxo tem razão em considerar o papa como o primeiro entre os bispos e exclui qualquer coisa que se assemelhe ao dogma do Vaticano. Se, porém, as reservas são retiradas (como se faz na tradução latina, ao acrescentar etiam, que não tem equivalente no texto grego [28]), significa que os Concílios e os Cânones reconheceram o papado no mesmo sentido que o Catolicismo moderno - o que certamente não era o caso. Os Concílios de Constança e Basileia mostram claramente que dentro da própria Igreja Católica Romana o desacordo sobre esta questão era tão forte naquela época como na época do Concílio Vaticano; mas no século XV [o desacordo] foi expresso livremente, e em 1870 foi asfixiado.

Ao proclamar a supremacia papal, o Concílio de Florença deixou passar em silêncio a questão ardente do dia - a saber, a da relação do papa com o Concílio. Há motivos para pensar que, naquela época, a questão não foi considerada resolvida pelo decreto florentino. Em setembro ou outubro de 1439, quando o Concílio terminou, o papa organizou em Florença um debate sobre a questão, na presença de cardeais e outros dignitários eclesiásticos. O Cardeal Cesarini defendeu a tese adotada pelo Concílio de Basiléia, e Juan Torquemada (que logo depois foi nomeado cardeal) se opôs a ele - portanto, obviamente, ainda era uma questão em aberto[29]. O próprio Torquemada não acreditava na infalibilidade papal: ele defendia que o papa não estava sujeito a nenhuma jurisdição a menos que caísse numa heresia - o que, no entanto, era inacreditável. Hefele também admitiu tal possibilidade e pensou que nesse caso o papa deixaria de ser um membro vivo da igreja. Mas é claro que esta era a opinião de Hefele antes do Concílio Vaticano ter acontecido.

O Concílio de Basileia persistiu em sua disputa com Eugênio IV e no fim de 1439 elegeu um anti-papa, Félix V, que depois transferiu o Concílio para Lausanne. O cisma foi renovado e somente após a morte de Eugênio (em 1447) o recém-eleito papa Nicolau V, que conseguiu fazer as pazes com os príncipes e assegurar a mediação deles, começou a negociar com o anti-papa. Foram oferecidas as seguintes condições a Félix V: ele deveria renunciar à tiara e receber uma compensação em dinheiro do papa Nicolau e, além disso, continuar a ser o primeiro cardeal desfrutando de todos os privilégios que isso implicava. Félix concordou, e Nicolau V, em uma bula especial, revogou todas as restrições a Félix, ao Concílio de Basiléia e seus aderentes. Félix, por sua vez, revogou em uma missiva especial todas as censuras contra Eugênio IV, Nicolau e seus aderentes, e confirmou seus próprios privilégios e nomeações. Na segunda sessão do Concílio em Lausanne Félix assinou sua renúncia, dizendo que, para o bem da Igreja, ele aceitou do Concílio Geral sua nomeação como papa, e que neste mesmo Concílio que, tendo sido convocado legitimamente no Espírito Santo, representava legitimamente a Igreja universal, ele renunciava "pure, libere, simpliciter et sincere, realiter et cum effectu em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo". Nas sessões que seguiram, o Concílio reafirmou suas teses e, em vista da vacância (sic!) da sé papal, ele também elegeu Nicolau V[30]. Em seguida, o Concílio conferiu a Félix a posição de cardeal, o poder de jurisdição, o status de estar junto ao papa em autoridade e entregou-lhe as vestes papais e algumas das insígnias. O Concílio foi encerrado. A conclusão da paz foi solenemente celebrada em Roma; na bula de 18.VI.1449 o papa confirmou todos os decretos emitidos pelo Concílio e pelo papa Félix, que morreu dois anos após a sua renúncia no odor da santidade.

Esta solução pacífica do cisma eclesiástico significou, obviamente, para ambas as partes, um compromisso ditado por considerações de "economia" eclesiástica ou simplesmente de conveniência. Apesar disso, porém, ela é um fato de significado dogmático.

Para começar, a reconciliação ou acordo com hereges, cismáticos obstinados e rebeldes é impossível para a Igreja: o Vaticano sempre esteve preparado para excomungar e anatematizar os hereges. No entanto, os membros do Concílio de Basileia não renunciaram de forma alguma às suas posições dogmáticas e canônicas e, apesar do decreto emitido pelo Concílio de Florença, continuaram a manter a supremacia do Concílio sobre o papa e os direitos soberanos do Concílio na administração da Igreja. Eles também defenderam firmemente os direitos do Papa Félix, que abdicou livremente, para o bem da Igreja, nos mais honrosos termos garantidos pelo Concílio e acordados pelo futuro papa Nicolau. Este novo papa também foi eleito pelo Concílio e não simplesmente aceito por ele como um papa legítimo já existente, ao qual todos os fiéis Católicos devem obedecer. Os termos oferecidos a Félix foram fielmente cumpridos pelo Papa Nicolau. A pergunta agora pode ser feita, quem foi esse Félix a quem o Papa Nicolau nomeou cardeal? Era ele um anti-papa, um rebelde e adepto das heresias de Basileia? Ele rejeitou "o Concílio Geral de Florença" e o seu decreto sobre a autoridade papal - ainda que só porque esse Concílio, anatematizado pelo Concílio de Basileia, foi convocado pelo Papa Eugênio, que tinha sido deposto em Basileia. E o que foi esta assembleia de Lausana com a qual o papa fez acordo, aceitando formalmente os termos por ela elaborados? Foi um Concílio Geral como ele mesmo se descreveu, ou um Concílio dos ímpios, uma reunião herege e rebelde que presumiu julgar e depor um papa, eleger um novo, anatematizar um Concílio papal e proclamar novos dogmas (do ponto de vista do Vaticano, dogmas falsos e heréticos) sobre a subordinação do papa ao Concílio? É permitido, mesmo em nome da " economia", ter acordos ou mesmo negociar com usurpadores eclesiásticos e hereges? Certamente o homem que vai ao concílio dos ímpios e aprova os desígnios deste deve ter culpa - mesmo que seja o próprio papa?

Ou um ou outro: ou a Igreja Romana caiu numa grave heresia e perverteu a sua hierarquia, entrando em comunhão com Belial e aceitando o Papa Nicolau, eleito por uma assembleia ímpia, ou a Igreja Romana reconheceu o Concílio de Basileia e os seus dogmas (isso para não falar do Concílio de Constança que, de fato, já tinha sido reconhecido). Mas, nesse caso, surge inevitavelmente uma série de outras questões. Se o Concílio de Basileia tinha autoridade canônica em 1449, significa que tinha  preservado a autoridade apesar de todas as restrições do Papa Eugênio IV; mas se assim for, o ato do Concílio de censurar e posteriormente depor esse papa foi válido, bem como seu ato de anatematizar e anular o Concílio de Florença. Este último [o Concílio de Florença] é, na melhor das hipóteses, canonicamente ambíguo e, ainda que somente por essa razão, não tem autoridade vinculante para a Igreja universal. E, no entanto, o Vaticano derivou o apoio dogmático do Concílio de Florença.

A questão seguinte é completamente insolúvel: qual dos dois era o verdadeiro papa e qual dos dois era o anti-papa Eugênio ou Félix? Na verdade, ambos foram reconhecidos pela Igreja Romana: Eugênio enquanto viveu, e depois da sua morte - e Félix, cuja abdicação foi interpretada como um ato livre, levando à eleição de um novo papa. Além disso, depois de ser deposto em Basileia, Eugênio nunca foi considerado papa por nenhum momento por toda a igreja, porque Basileia permaneceu permanentemente em oposição a ele. Félix, pelo contrário, pelo menos no momento de sua renúncia parecia ser reconhecido por toda a igreja - tanto pela igreja de Basiléia como pela de Roma.

Toda esta confusão se deve ao fato de que a autoridade do Concílio de Basileia e do papa eleito pelo Concílio foi reconhecida indiretamente pela Igreja Romana no momento em que o Concílio estava chegando ao fim. A habitual astúcia política e o oportunismo da cúria provaram, neste caso, ser um oportunismo dogmático indesculpável que resultou numa interpretação vaga e ambígua dos princípios mais fundamentais. As inconsistências que daí resultam são tão danosas para o dogma do Vaticano como o comportamento ambíguo e auto-contraditório dos Papas Vigílio e Libério e a heresia de Honório - tão persistentemente, mas em vão, recordado no Concílio do Vaticano. Mas é notável que ninguém tenha chamado a atenção para o fato dogmático discutido no presente ensaio.

Ao obter o reconhecimento de sua validade apesar de tudo, o Concílio de Basileia obteve uma vitória dogmática; mas como questão de fato histórico, a vitória foi conquistada pelo papado. Isto levou inevitavelmente a Igreja à Reforma, ou seja, a um cisma final e irremediável, e ao mesmo tempo ao decreto do Vaticano como o ponto culminante da contra-Reforma e à sua vitória decisiva dentro da Igreja Católica Romana.

Tão logo os papas sentiram sua posição segura, começaram retrospectivamente e em oposição aos seus antecessores a eliminar os vestígios deixados pelo Concílio de Basileia. Em 1460, ou seja, dez anos após o seu reconhecimento papal e a reconciliação final, o Papa Pio II (na bula Exsecrabilis) anunciou que proclamar o direito de apelar a um Concílio contra o Papa era uma ofensa digna de anátema [31].  Em 1516, bem no início da Reforma, o Papa Leão X na bula Pastor aeternus (Enchir. 257) declarou que o Concílio de Basileia foi inválido após a tentativa do papa de transferi-lo para Ferrara, e seu decreto sobre o concílio ser superior ao papa também era inválido (como se este decreto tivesse sido proclamado apenas pelo Concílio de Basileia, e aprovado após a proposta de transferência para Ferrara!); A memória do Vaticano revelou-se, portanto, muito curta. O passo seguinte foi excluir completamente o Concílio de Basileia do número de Concílios Gerais e limitar o significado do Concílio de Constança, ao mesmo tempo em que exaltava o do Concílio de Florença. O mecanismo tradicional funcionou eficazmente e, quando o selo de infalibilidade foi emitido no Vaticano, a técnica de trabalho tornou-se muito mais simples, de modo que agora ninguém ousa defender a autoridade dos Concílios de Basileia e de Constança[32].

Mas tudo isso está sujeito a revisão - donec corrigetur - e é bem plausível que um dia o quadro seja invertido e Florentinum e Vaticanum mudem de lugar com Constantiense e Basiliense; a história deles ainda não está encerrada... Continuemos, porém, a considerar o dogma do Vaticano enquanto tal.

IV

O dogma do Vaticano é composto por duas partes. A primeira, Constitutio dogmatica de fide catholica (sessio III, 24 de Abril de 1870) divide-se em três capítulos e é como uma página do catecismo; ela testemunha a tendência geral do Catolicismo de multiplicar as definições dogmáticas, sejam elas exigidas pelas necessidades essenciais da vida da Igreja ou não. Ao mesmo tempo, ela serve, por assim dizer, para camuflar a situação local e esconder a artilharia principal - a saber, a segunda resolução do Concílio, Constitutio dogmatica de ecclesia Christi, (sessio IV, 18 Julii 1870), ou seja, o próprio dogma do Vaticano que marca uma época na história do Catolicismo.  Ela consiste em uma introdução geral e quatro capítulos que expõem os fundamentos para a adoção do "cânon", e do próprio "cânon", acompanhado de anátemas contra aqueles que não o aceitam. (Segundo o significado destes anátemas, por sinal, eles são dirigidos contra todos os não-Católicos que não reconhecem o dogma do Vaticano e, consequentemente, contra todos os fratres separati cismáticos, incluindo nós, também, Ortodoxos). Os "fundamentos" foram apresentados aos fiéis durante a própria sessão do Concílio e não são tão inquestionavelmente vinculativos como o cânon em si.

CÂNON I: Portanto, se alguém diz que o bem-aventurado apóstolo Pedro não foi constituído pelo Senhor Cristo como cabeça de todos os apóstolos e cabeça de toda a igreja militante, ou que ele não recebeu direta e imediatamente do mesmo Senhor Jesus Cristo a primazia não só de honra, mas de verdadeira e real jurisdição, que ele seja anátema. 
CÂNON II: Portanto, se alguém diz que não é por direito divino ou por decreto divino do próprio Senhor Cristo que o bem-aventurado Pedro tem uma sucessão ininterrupta do seu primado, ou que o pontifex Romano [33] não é um sucessor do bem-aventurado Pedro em tal primado, que ele seja anátema. 
CANÔN III: Portanto, se alguém diz que o pontifex Romano tem apenas poder de supervisão ou direção e não o poder pleno e supremo de jurisdição em toda a igreja, não apenas em matérias relativas à fé e à moral, mas também naquelas relativas à disciplina e ao governo da igreja em todo o mundo; ou que ele tem apenas a parte mais importante e a plenitude desse poder supremo; ou que esse seu poder não se estende ordinária e diretamente a toda e qualquer igreja e a todo e qualquer pastor e fiel, que ele seja anátema. 
CÂNON IV: Portanto, seguindo fielmente a tradição aceita desde o início da religião cristã, pela glória de Deus Salvador, pelo engrandecimento da fé católica e pela salvação dos povos cristãos, declaramos e determinamos, com a aprovação do santo Concílio, o seguinte dogma como divinamente revelado: O pontifex Romano, quando ele fala ex cathedra, isto é, quando, desempenhando o seu ofício de pastor e doutor de todos os cristãos, em virtude da sua suprema autoridade apostólica, define uma doutrina referente à fé ou à moral como vinculante para toda a Igreja, ele goza, com a ajuda de Deus prometida a ele na pessoa do bem-aventurado Pedro, da infalibilidade que o Divino Redentor conferiu à Sua Igreja, na medida em que ele define doutrinas sobre a fé e a moral; assim, as definições estabelecidas pelo pontifex Romano por si mesmas, e não devido ao consentimento da igreja, não estão sujeitas a correção. 
(Cânon) "Se alguém ousar contrariar esta nossa definição, o que Deus não permita, que ele seja anátema". [34]

Em contradição com outros Concílios Católicos, incluindo o de Constança e mesmo o de Trento, as resoluções do Concílio Vaticano são colocadas sob a forma de uma bula publicada como decreto pessoal do papa.  Os dois primeiros capítulos deste espantoso decreto contêm a doutrina que desde os primeiros séculos - embora não desde o início - foi mantida pela Igreja Romana sobre a primazia de Pedro, transmitida em sucessão aos pontífices Romanos. Ela não foi, porém, expressa e decisivamente transformada num dogma, excepto talvez no Concílio de Florença[35]. O decreto do Vaticano explica o significado desta primazia nos seus dois aspectos: a plenitude do poder e jurisdição e a infalibilidade dogmática.  A segunda parte parece ser a mais surpreendente das duas, mas a primeira[36] não é menos essencial, ou, dito de forma mais correta, ambas são igualmente importantes na interligação delas. O cânon III dá ao papa poder absoluto, admitindo nenhuma exceção, sobre toda a igreja, todos os seus membros e todos os seus assuntos - poder completo no exato sentido do termo, ou seja, não "a primazia de honra", mas de jurisdição direta e ordinária. Isto significa, em outras palavras, em todo caso, que no que diz respeito à jurisdição, o papa é o único poder na igreja, uma vez que não há e não pode haver nenhum poder independente além dele.  Os bispos são privados dos seus báculos e tornam-se meros celebrantes, completamente dependentes do papa em todas as coisas, uma vez que o poder dele não é meramente supremo, mas ordinário e imediato. O papa é o único bispo que tem poder. A força aniquiladora deste absolutismo espiritual sem precedentes leva-nos para muito tempo atrás, na era pré-cristã, à teocracia egípcia e ao "Pontifex Maximus" pagão dos imperadores romanos. Diante disso, a reserva referente ao cânon III (cap. 3) soa vazia e meramente formal [37].

Permanece totalmente incompreensível como pode haver na igreja qualquer poder estável não incluído dentro da plenitude da jurisdição papal. E se quisermos aplicar a comparação popular do papado com a monarquia, numa monarquia absoluta que independência tem o poder entre ministros, governadores provinciais  e todos os oficiais? Na realidade, o exercício do poder é delegado a eles, mas deve estar sempre e em todas as coisas de acordo com a "ukase [decreto] de Sua Majestade Imperial".

O papa pode comandar e exigir qualquer coisa sob a ameaça da mais terrível punição: a pena de morte espiritual, o anátema (especialmente tendo em conta que os papas há muito assumiram o direito de governar não só neste mundo, mas também no próximo - no purgatório - por meio de indulgências. Neste sentido, as indulgências estão diretamente ligadas ao desenvolvimento da plena potesta do papa, e a prática de emitir indulgências é uma das manifestações do papismo). Dir-se-á sem dúvida que o papa é limitado pela lei eclesiástica, pelos dogmas e pela tradição geral da igreja, assim como se disse que um monarca absoluto é limitado de forma semelhante. Na verdade, porém, assim como um monarca absoluto não está sujeito a leis, mas as impõe a si mesmo por sua própria vontade, também o papa é ele próprio a tradição viva da Igreja ou, mais exatamente, segundo o dogma do Vaticano, ele sozinho é essa tradição. Ele, portanto, não está sujeito a ela, mas tem o poder de interpretá-la autenticamente; o "veredicto da Sé Apostólica", que é a mais elevada autoridade, não pode ser revogado por ninguém, e ninguém está autorizado a criticá-lo. A finalidade do veredicto implica, de fato, sua infalibilidade, mesmo se esta última não tenha sido especialmente mencionada no Capítulo IV. A possibilidade de um papa se revelar herege está excluída, uma vez que a existência de um corpo que poderia presumir de ejus judicare judicio e testemunhar a heresia dele está excluída de antemão [38]. Assim, foi estabelecida uma infalibilidade jurídica e, por assim dizer, mecânica, ligada ao ofício ou posição papal, que é para toda a vida e não está sujeita a cancelamento.

O cânon III confere ao papa um poder tão absoluto dentro da igreja que a infalibilidade segue como algo óbvio; o cânon IV, que geralmente atrai mais atenção, é em certo sentido uma tentativa de limitá-la ou, antes, de defini-la. Em virtude de seu plena potestas o papa pode ordenar qualquer coisa, e consequentemente é na prática irreformabilis em todos os momentos e em todas as coisas, mas o cânon IV limita esta infalibilidade e irreformabilidade [39] a questões relativas à fé e à moral, e faz com que seja uma condição que o julgamento seja pronunciado ex cathedra.

Não há necessidade de falar das dificuldades históricas enfrentadas pelo dogma da infalibilidade papal[40]. Dogmaticamente também essa fórmula elástica pode ser puxada em diferentes direções, como se tivesse sido destinada a esse propósito (pois de outra forma a incongruência do dogma seria óbvia demais). Se o cânon IV não fosse precedido pelos três primeiros, conectados entre si, a sua ideia principal de chefe hierarca autoritativo, proclamando numa forma final as resoluções de um concílio, seria quase inofensiva e até...Ortodoxa. Definiria a posição do papa como o patriarca chefe em relação a toda a igreja universal na analogia da posição, por exemplo, do patriarca russo em relação à igreja russa: de acordo com a decisão do concílio de 1917-1918 ele é o porta-voz de uma igreja local, sendo a cabeça de um concílio local. Tal concepção refletiria no todo a autoridade (verdade, nem sempre incontestável) de que os papas desfrutavam na época dos concílios ecumênicos, antes da divisão das igrejas.

Mas quando tomado em conjunto com o cânon III, o cânon IV afirma a infalibilidade real do papa ou, o que é mais importante, a imutabilidade - irreformabilitas - de cada julgamento papal. Cada definição estabelecida pelo papa enquanto tal, na plenitude do seu poder, é necessariamente ex cathedra, porque é impossível separar nele o sacerdote, o bispo de Roma, o patriarca da Itália e o bispo universal. Obviamente ele janta e descansa como uma pessoa privada, mas nesses momentos ele não se dirige à Igreja. Ele celebra a missa simplesmente como um bispo ou como um sacerdote, mas mais uma vez ele não se dirige à igreja (embora na medida em que ele é seu próprio e único bispo, ele celebra a missa em virtude da jurisdição papal). Mas todos os seus julgamentos eclesiásticos num concílio ou no consistório, bulas ou breves, carregam igualmente o selo da plenitude do poder, irreformabilitas, e nesse sentido são ex cathedra[41]. A única cathedra papal definível e real é a plenitude do poder e, portanto, tudo o que o papa faz na igreja é ex cathedra. Da mesma forma, a vontade de um monarca absoluto é igualmente soberana e inalterável em um decreto legal e em cada nomeação administrativa; há diferenças de classificação e codificação, mas a natureza do poder é sempre a mesma.

O mesmo deve ser dito em relação à reserva expressa pelas palavras de fide et moribus [de fé e moral]. O significado de "de moribus" é bastante indefinido e ilimitado, pois não há nada nas atividades humanas que não tenha a ver, de uma maneira ou de outra, com mores. O significado de de fide se revela igualmente indefinido. A afirmação de que 2 x 2 = 4 não é de fide mas de arithmetica; no entanto, se em algum momento surgir uma disputa religiosa por motivos epistemológicos em relação à tabuada de multiplicação, um decreto papal sobre isso seria de fide, ainda que indiretamente. De que outra forma se poderia explicar a condenação do papa à teoria astronômica de Copérnico - uma condenação que agora está causando tantos problemas a apologistas como Hergenrother?

Em termos gerais, se o papa dirigir-se na sua capacidade pastoral à igreja representada por qualquer dos seus órgãos, ele certamente tratará fide et moribus, pois não há outros interesses na vida da igreja; todos os aspectos particulares da mesma, como o direito canônico, a disciplina, as liturgias, etc., são meros meios para esse fim. Ou, para ser mais exato, todo problema tem relação direta com a fé e a moral ou pode, segundo as circunstâncias, adquirir tal relação[42]. Assim, a reserva feita no cânon IV não é, na realidade, reserva alguma e ao papa é dada tanto o plena potestas como a plena infallibilitas et irreformabilitas; em outras palavras, é proclamado tacitamente que a igreja é o papa. Todo decreto papal é apoiado pelo plena potestas, seja de fato ou em princípio.

Há um limite para a omnipotência do papa dentro da igreja? Isso não pode ser determinado, uma vez que o poder pessoal absoluto é admitido como uma questão de princípio. No fundo, toda a dogmática Católica é resumida pelo dogma do Vaticano, pois estabelece um critério de verdade eclesiástica - um critério que, segundo o significado do dogma, se aplica (contrário à evidência da história [43]) tanto ao passado como ao futuro. A verdade dogmática é aquela que o papa proclama como tal infallibiliter, e a verdade prática é expressa em seus decretos que são irreformáveis. A infalibilidade da Igreja como um todo está nele: de acordo com a fórmula do cânon IV, per assistentiam divinam ipsi in beato Petro promissam, ea infallibilitate pollere, qua divinus Redemptor Eeclesiam suam in definienda doctrina de fide vel moribus instructam esse voluit; o papa parece ser considerado como um equivalente da igreja. Mesmo esta fórmula, entretanto, contém uma óbvia ambiguidade - intencional ou devida a um lapso - que torna possível interpretar o dogma, com igual razão, em dois significados diferentes, ou até mesmo contraditórios. O primeiro significado, naturalmente seguindo do contexto geral, foi apontado: pelo menos em casos de julgamento infalível, a igreja é o papa. O segundo significado é aquele que os teólogos, não sabendo o que fazer com este absurdo dogmático, tentam extrair, interpretando a fórmula "positivamente, mas não exclusivamente".  Este é o ponto de vista, por exemplo, de representantes autoritativos da teologia Católica alemã: Scheeben, Arzberger, Simar, Pohle e outros. Segundo a interpretação deles, o papa tem o poder que pertence também à Igreja; a questão de saber se um colégio de bispos, isto é, um concílio (evidentemente, em união com o papa) tem jure divino a mesma plenitude de poder como o papa tem por si só é deixada em aberto, assim como a questão se os bispos recebem o poder de jurisdição diretamente de Cristo ou do papa. Esta questão já tinha sido debatida no Concílio de Trento, e foi decidido que o potestas ordinis derivava diretamente de Cristo, mas a origem da jurisdictio permaneceu indefinida[44].

Scheeben em seu Handbuch der Dogmatik diz a respeito do dogma do Vaticano: "[O dogma] não diz que a ajuda divina prometida especialmente ao papa compreende toda a ajuda prometida ao corpo magisterial da igreja, ou que é uma base formal adequada da infalibilidade de todo esse corpo, e que consequentemente a infalibilidade da igreja se limita à do papa, ou é realizada nele exclusivamente.  As palavras ea infallibilitate pollere qua etc. pressupõem, antes, que há uma distinção entre a infalibilidade do papa e a da igreja; caso contrário, a afirmação subentendida nas palavras que uma tem o mesmo alcance que a outra não teria significado próprio" [45]. Assim, na opinião de Atzberger e de outros teólogos acima mencionados, os concílios ecumênicos encabeçados pelo papa ajudam a esclarecer as decisões e dar apoio ao papa (como se tal apoio fosse possível ou necessário!), e têm uma infalibilidade própria, que possuiriam mesmo que o papa não fosse infalível. "Isto explica porque, antes do Vaticanum, a infalibilidade era atribuída a Concílios à parte da infalibilidade papal e, de fato, reconhecia-se que a última não estava necessariamente envolvida na primeira e podia ser estabelecida ou independentemente da primeira, ou em conjunto com ela"[46].

Mas segundo o significado do dogma do Vaticano que esclarece toda a história da Igreja e a dá numa interpretação autoritativa e dogmática, o poder dos concílios dependia da ratificação deles pelo papa, à parte da qual eles não seriam ecumênicos. Por outro lado, o papa pode dispensar os concílios dos quais ele necessita apenas na sua capacidade consultiva e certamente não na sua capacidade legislativa; eles podem, portanto, ser substituídos pela cúria ou abolidos por completo. Os intérpretes mais consistentes do dogma do Vaticano, como por exemplo o jesuíta Palmieri, dizem claramente que o papa é a única autoridade eclesiástica que é ao mesmo tempo infalível e impecável.

E de fato não pode haver dois soberanos, duas jurisdições supremas ou órgãos de infalibilidade, de modo que reconhecer que o episcopado ou um concílio tem algum tipo de direitos independentes ou é algo irrefletido ou devido a uma oposição consciente ao verdadeiro significado do dogma do Vaticano (tal oposição é mais difundida no mundo Católico do que geralmente se supõe). Os direitos do episcopado são negados na declaração clara e decisiva do cânon III, que torna os bispos vigários do papa e o torna não só episcopus universalis, mas também episcopus episcoporum[47]. Os direitos do concílio são descartados pelas palavras "ex sese, non ex consensu ecclesiae" [por si mesmas, e não devido ao consentimento da igreja], acrescentadas, como sabemos, no último momento, pelos defensores excessivamente zelosos do dogma e aceitas sem qualquer discussão[48]. Os apologistas interpretam a frase "non ex consensu ecclesiae" como limitando e definindo a expressão "ex sese", que de outra forma significaria o poder absoluto do papa em proclamar dogmas. Mas o contexto geral mostra que o verdadeiro objetivo da adição era tornar a fórmula completamente incontestável. Esse foi também o objetivo de eliminar algumas das cláusulas realmente limitadoras que exigiam que o papa fosse fiel à tradição da igreja, o que abriria um caminho para a crítica.

As palavras muito importantes "ex sese, non autem ex consensu ecclesiae"; na fórmula fatídica separa o papa da igreja e opõe o papa a ela como seu soberano, transcendente a ela (contrário à comparação constantemente utilizada da cabeça como parte do corpo). Elas negam implicitamente o princípio de sobornost’ - "conciliaridade" [*], baseado nas palavras de Cristo "onde se reunirem dois ou três em meu nome, ali eu estou no meio deles", e na sucessão apostólica do episcopado. Se a frase decisiva tivesse sido omitida ou substituída pelo seu oposto: "non ex sese, sed cum consensu ecclesiae" [não por si mesmas, mas somente com o consentimento da Igreja], o ponto de vista episcopal e soborny poderia legitimamente ser defendido; mas ele é tacitamente, embora enfaticamente, rejeitado na fórmula.

Na linguagem da teologia católica, a toda a igreja só lhe resta infallibilitas passiva, ou seja, a virtude da obediência através da fé; infallibilitas active, que é a porção da igreja magisterial, pertence apenas ao papa. Isso é confirmado pelo fato de que a resolução do concílio foi publicada como um decreto papal, uma bula; sim, ela contém a frase "sancto approbante consilio", mas meramente como uma referência a um evento concomitante e não a uma condição canônica do decreto. A aprovação do Concílio é contrabalançada pelo docemus et definimus do papa. Certamente, o dogma do Vaticano poderia ter sido publicado como um decreto do Concílio ratificado pelo papa. Nesse caso, de acordo com o significado do dogma, o concílio teria sido simplesmente a cathedra do papa (do mesmo modo, as ukases imperiais foram por vezes apresentadas sob a forma de decisões do Concílio de Estado ratificadas pelo Imperador).  Mas a forma como o dogma foi realmente publicado impede a própria ideia de o concílio desempenhar um papel independente. O direito de proclamar dogmas ou regras de fé pertence àqueles que têm a plenitude do poder. Portanto, na Igreja universal esse direito pertencia apenas aos concílios ecumênicos como órgãos do supremo poder eclesiástico. Em 1870 este plena potestas e o direito de proclamar dogmas foi atribuído ao papa apenas. O Concílio Vaticano não foi realmente um concílio, mas meramente uma assembléia consultiva, um consistório ampliado, pois se o poder do papa é absoluto, não pode haver concílio no sentido canônico do termo.

Isto leva-nos à auto-contradição fundamental que se revelou fatal para o Concílio Vaticano. Ele foi convocado como um concílio, porque os dogmas do plena potestas e infallibilitas eram ainda inexistentes - o que é comprovado pelo fato de terem sido discutidos no concílio como proposições discutíveis, às quais muitos dos membros se opuseram completamente.  Em outras palavras, ambos os dogmas não eram verdades auto-evidentes, não eram axiomas, mas teoremas. Mas proclamá-los no concílio e em seu nome é auto-contraditório. Ao proclamar a soberania papal, o concílio aboliu a si mesmo, cometeu suicídio dogmático, declarou a sua própria inexistência. Uma assembléia não pode, sem cair em auto-contradição, aprovar um decreto que anula imediatamente seu direito de legislar não só no futuro, mas também no presente, bem como seu direito de ter legislado no passado. Não há contradição se uma assembleia constituinte elege um monarca ou um ditador e depois anula a si mesma, submetendo-se a ele: ela lhe entrega legitimamente a plenitude do seu próprio poder, - e a soberania não é interrompida. Mas o mesmo não se pode dizer de um concílio que discute e adota um dogma em virtude do qual se prova não ter nem a plenitude do poder, nem mesmo qualquer significância independente, já que o poder soberano na igreja pertence, e sempre pertenceu, ao papa. Se assim for, o concílio não é competente para lidar com o assunto. Uma assembléia de oficiais inferiores não pode decretar nada sobre o poder do chefe do departamento a quem eles estão legalmente subordinados. Num império autocrático nenhuma assembleia de qualquer tipo pode determinar nada sobre os direitos do monarca, ponderá-los ou conferi-los a ele. No entanto, foi precisamente isto que aconteceu no Concílio Vaticano. Como se poderia esperar que um concílio aprovasse a resolução de que não tem poder para decidir nada e que só o papa tem o direito de julgamento final?

Como poderia o Concílio ter consentido sequer em debater um absurdo como este? Pode-se, claro, argumentar que o concílio teve de cumprir a ordem do papa por obediência, independentemente do conteúdo da mesma; mas mesmo um papa infalível não pode fazer coisas sem sentido e contraditórias, tais como submeter à decisão de um concílio a proposta de que o poder de decidir não pertence ao concílio, mas ao papa.

Os fervorosos defensores do Vaticano, na sua auto-afirmação teológica, não tinham pensado suficientemente no seu plano de utilizar o voto do Concílio sobre um assunto que, pela natureza do caso, não era da competência de nenhum concílio. Eles inadvertidamente transformaram o concílio - convocado e aberto como tal - na paródia de um, ou numa mera consulta expressando sob a forma de um dogma algo que sempre existiu como fato. Obviamente, se a supremacia papal tivesse sido estabelecida pelo próprio Deus e existisse desde o início, o máximo que um concílio poderia fazer seria proclamar este fato, mas não ratificá-lo [49]. O concílio foi estabelecido como uma tarefa que se sabia exceder a sua competência e que deveria ter sido rejeitada ou deixada de fora de debate. Em todo o caso, discuti-la foi um erro.

Há verdades que não podem ser provadas porque estão na base de toda a inferência: tais são, por exemplo, axiomas matemáticos sobre os quais repousa a prova dos teoremas. Um axioma não pode, de forma alguma, ser transformado num teorema e ser inferido ou investigado. Similarmente nos dogmas cristãos existem verdades básicas e primárias, cujo reconhecimento (ou não reconhecimento) determina se uma pessoa pertence (ou não pertence) à igreja. Utilizando-se a terminologia de Kant, axiomas dogmáticos deste tipo são julgamentos sintéticos a priori (e não julgamentos analíticos a posteriori); eles estão na base de toda a experiência da igreja e determinam todo o seu pensamento dogmático. Uma base axiomática da vida da igreja é a fé no Deus-homem Cristo, Senhor e Salvador, e em Sua Igreja. Os dogmas cristológicos (e parcialmente eclesiológicos) formulados nos Concílios Eucarísticos são, por assim dizer, teoremas dogmáticos provados e verificados através desses axiomas. Assim, por exemplo, a rejeição do arianismo foi um julgamento particular destinado a definir com mais precisão especificamente a divindade do Filho; o objetivo do Concílio de Nicéia foi o mesmo - expressar um axioma inalterável de fé em uma fórmula particular, estabelecer um teorema de fé.

A peculiaridade de tal teorema dogmático é que, até que seja autoritativamente e finalmente expresso, ele é problemático; em resposta ao problema nele contido, o Concílio formula um dogma que adquire então a força de um axioma. O mesmo se aplica a todos os dogmas estabelecidos no curso da história da Igreja. Neste sentido, cada dogma apresentou algo novo na época, algo que ainda não tinha se tornado claro para a mente da igreja. É por isso que podemos falar do desenvolvimento dogmático da igreja, embora em princípio esse desenvolvimento não possa conter nada de novo, pois na Igreja tudo foi dado desde o início: ela é "a plenitude daquele que cumpre tudo em todos"; seus dogmas ou teoremas são simplesmente aspectos diferentes dos axiomas inalteráveis que expressam sua própria essência.

Portanto, em termos gerais, não pode haver e não houve nenhum concílio que dogmaticamente tenha estabelecido a fé no Deus-homem e na Sua Igreja, embora essa fé tenha sido solenemente proclamada, por exemplo, no Credo Niceno. Tudo o que foi estabelecido foi uma expressão verbal definida da fé, mas não a fé em si, que naturalmente já existia antes de qualquer fórmula, e de fato foi a fé que tornou válido tanto o concílio quanto o credo.

Apliquemos agora estas considerações ao dogma do Vaticano. Será ele um desses teoremas dogmáticos que permaneceu fora do campo dogmático de visão, e entrou nele num determinado momento definitivo? Pode tal dogma ser uma novidade dogmática (pelo menos no sentido relativo apenas em que isso é possível), ou é a priori, uma das condições básicas da experiência religiosa? Este último significado é obviamente o que está subentendido na interpretação do Concílio Vaticano sobre a supremacia papal. A forma peculiar do eclesio-papismo proclamado pelo Concílio faz da submissão ao papa uma condição de pertença à Igreja e o eleva à categoria de soberano supremo da Igreja na terra, o vigário de Cristo, ou seja, um Cristo terreno em relação à Igreja. Obviamente tal concepção, se verdadeira, deve ser tão primária quanto o axioma religioso de que Cristo é a cabeça da Igreja. Obviamente, também, só pode ser proclamada solenemente como uma verdade eterna e não como o resultado de deliberações sobre um problema dogmático colocado como um "esquema" diante de um concílio para ser debatido, aceito ou rejeitado.


Um concílio que proclama os papas poder infalível na igreja ex sese, sine consensu ecclesiae comete uma ação auto-contraditória, sem sentido e suicida que é um reductio ad absurdum do concílio enquanto tal. Por conseguinte, o dogma do Vaticano é interiormente autodestrutivo. Tal dogma não poderia ter sido proclamado por nenhum concílio como uma resolução dogmática, mas poderia, na melhor das hipóteses, ser colocado sob a forma de um discurso de lealdade ao soberano, expressando devoção e obediência. O dogma significa que somente o papa tem o poder de proclamá-lo - qualquer papa e em qualquer época - não somente Pio IX no Vaticano, mas, por exemplo, o Papa Martinho V ou o Papa Eugênio IV em Basiléia. Portanto, não só os Concílios de Constança e de Basileia, mas também o do Vaticano, na medida em que ele continha uma minoria contestadora, foram negações vivas do suposto "axioma dogmático". Tentativas de se opor a ele não podiam mais ser consideradas como legítimas por parte dos membros, como um dever deles, mas se tornaram uma heresia e uma revolta contra a Igreja. A posição não pode ser defendida dizendo que embora o dogma fosse sempre mantido pela igreja, o tempo para proclamá-lo não tinha chegado até aquele momento em particular. A idéia da "evolução dos dogmas" não tem utilidade neste caso: a doutrina sobre a cabeça da igreja pode receber uma expressão diferente, mas a sua essência deve permanecer axiomaticamente clara e não pode ser proclamada como uma novidade dogmática.

A frase sacro approbante consilio, introduzida na fórmula, é obviamente ambígua, pois pode, com igual direito, ser interpretada como uma circunstância de tempo "após a [ou com a] aprovação do concílio" ou como uma circunstância de ação "como consequência da, em virtude da, após a aprovação do concílio." Tal ambiguidade evidencia ainda mais claramente a inerente invalidade do dogma ex sine consensu ecclesiae; estas palavras, introduzidas no último momento, servem mais do que qualquer outras para tornar o dogma do Vaticano tão sem sentido como um quadrado redondo ou gelo torrado. A história da torre de Babel repetiu-se...os homens intoxicados com a vitória estavam ansiosos por novos triunfos, mas não conseguiram parar no tempo e derrotaram os seus próprios objetivos. A impossibilidade inerente e a contradição interior do eclesio-papismo foi assim claramente trazida à luz.

* * * 

A Igreja Católica não precisava do dogma do Vaticano.  Foi subitamente imposto a ela pelos ultramontanistas, o partido papista, que criaram o dogma. Não aumentou minimamente a autoridade papal como um fato - essa autoridade era e ainda é tão grande que um aumento dela é dificilmente possível. O novo dogma apenas investiu o papa com uma auréola dogmática. Obrigada a registrá-lo em seus anais, a teologia Católica não sabe o que fazer com ele, e até hoje continua a ser uma charada dogmática. Já em 1871 foi pedido ao Papa Pio IX uma interpretação mais exata do novo dogma, mas ele respondeu irritado que era claro o suficiente para todos os homens de boa consciência; e que mais poderia dizer o autor, e ao mesmo tempo a vítima, da fórmula do Vaticano? Durante os cinquenta anos seguintes não teve aplicação prática: o papa nenhuma vez falou solenemente ex cathedra. O seu plena potestas provou ser suficiente para revestir de infalibilidade todos os seus pronunciamentos, dogmáticos entre eles (por exemplo, contra os modernistas).

Apesar, porém, de sua inutilidade prática, o dogma do Vaticano foi uma consequência lógica inevitável do legalismo eclesiástico e um sintoma final da profunda fragmentação espiritual do cristianismo ocidental após a Reforma. É a última palavra do Protestantismo dentro do Catolicismo - da Reforma atuando como contra-reforma.

Apesar da ambição dos papas individuais e do poder histórico do papado, o dogma do Vaticano teria sido tanto impossível como sem sentido antes da Reforma. Teria sido impossível porque os princípios da liberdade eclesiástica ainda viviam na Igreja Católica, como sabemos pela história dos Concílios da Pré-Reforma, e a primazia papal não era interpretada como absolutismo eclesiástico. Teria sido sem sentido porque o inimigo rejeitando o poder da hierarquia eclesiástica era inexistente. A Reforma rompeu não só o corpo externo, mas também a unidade interna da igreja.  A combinação da liberdade cristã com a obediência eclesiástica, que constitui a própria essência da vida da igreja, e que atualmente só é professada na Ortodoxia, foi destruída. O amor à liberdade, tentado pela miragem da liberdade sem obediência, fugiu para o deserto do protestantismo e do individualismo; e a obediência, tomando consciência da sua hostilidade à liberdade, tornou-se mais árida e legalista do que nunca. A influência dos princípios do Antigo Testamento no cristianismo, perceptível na igreja ocidental por algum tempo, tornou-se mais pronunciada, e o dogma do Vaticano foi sua expressão final.


Não devemos ficar deslumbrados com a riqueza dos seus poderes humanos, a era da cultura, o auge da civilização - a Europa Ocidental tem uma herança rica, mas devemos distinguir a tonalidade especial dessa eclesialidade na sua essência. O mundo ocidental europeu continua doente com uma reforma ultrapassada e não resolvida, que foi a sua crise inevitável.

A Igreja Católica Romana após a Reforma não se recuperou até hoje de uma espécie de esgotamento espiritual que encontrou expressão, entre outras coisas, no peculiar militarismo espiritual da Companhia de Jesus, característico do Catolicismo moderno pós-Reforma. Seu caráter específico deve ser reconhecido, embora não se possa deixar de admirar-se com os abundantes poderes e vitalidade do cristianismo ocidental manifestado no Protestantismo e, ainda mais, no Catolicismo. A riqueza de suas energias humanas, sua cultura antiga e sua alta civilização não deve nos deixar cegos à peculiar tonalidade de sua vida eclesial. A Europa Ocidental não superou os efeitos da Reforma que a levou a uma crise inevitável. O Concílio do Vaticano mostra que a Reforma ainda está ativa tanto no Catolicismo quanto no Protestantismo. As metades divididas estão se movendo em direções opostas, e claro, o Vaticano está preparando novas armas contra a Reforma. Mas elas são inúteis e testemunham mais a fraqueza espiritual do que a força. O Catolicismo é um exército poderoso e disciplinado, mas a Igreja não é um exército, e os exércitos são impotentes contra a Reforma, como a história prova abundantemente. O Catolicismo como contra-Reforma negou a liberdade cristã proclamada no Evangelho. O mundo Protestante, por outro lado, recebeu as boas novas de liberdade principalmente da pregação de São Paulo. O caminho para o Vaticano está fechado para aqueles para quem a liberdade cristã é um dever religioso que não pode ser renunciado. Mas o caminho para a Ortodoxia é possível e natural para eles, embora, para entrar nele, eles tenham de superar interna e externamente a doença do anti-hierarquismo, provocada nas comunidades Protestantes pelo papismo.

A Reforma foi a grande catástrofe do cristianismo ocidental, mas foi apenas uma continuação do mesmo processo que antes tinha provocado a chamada divisão das igrejas. Esta última, certamente, teve causas nacionais, culturais e históricas complexas, e é impossível negar uma parcela de culpa, além de Roma, em Bizâncio (as ambições dos patriarcas de Constantinopla e o cesarepapismo bizantino), mas não é isso que está em causa. O que interessa é que a mudança na concepção que os cristãos ocidentais têm da Igreja, refletida na predominância de princípios jurídicos, o papado e uma influência cada vez maior da mentalidade do Antigo Testamento, mostrou-se incompatível com a compreensão que os cristãos orientais têm da vida eclesiástica. No exterior, a Igreja Oriental sofreu com a servidão e parecia escravizada, mas no interior ela preservou a ordem do discípulo amado de Cristo. A tradição petrina, posta em oposição à paulina (embora Pedro e Paulo tenham fundado juntos a Igreja Romana), revelou-se incompatível com o cristianismo oriental de João - não na sua fraqueza histórica, mas na sua essência inteligível, no seu eidos. Os teólogos Católicos não conseguem ver ou sentir isto, mesmo hoje.

A próxima etapa no desenvolvimento dos princípios espiritualmente judaicos no Catolicismo foi a estranha e antinatural oposição estabelecida no Cristianismo ocidental entre os apóstolos Pedro e Paulo. O dogma do Vaticano aumentou desnecessariamente essa oposição, e assim fez um grande mal. A cegueira fanática da contra-Reforma tornou a fratura irremediável.

Com o dogma do Vaticano, o Catolicismo se isola do resto do mundo cristão. Historicamente tem sido sempre agressivo e proselitista, mas agora está dogmaticamente forçado a sê-lo. Extra eeclesiam nulla salus é agora definitivamente entendido como significando que não há salvação sem submissão ao papa, a quem pertence omnis creatura [toda criatura] (segundo a bula de Bonifácio VIII Unam sanctam em 1302). Apenas um método de ação - conquista, apenas uma política - o imperialismo papal agora está aberto aos Católicos. O Catolicismo, por sua própria natureza, não pode conhecer outra união senão a de submissão ao papa; não é um amor pessoal ou por assim dizer psicológico ao poder, mas um amor ontológico. O Catolicismo deve mudar na sua própria essência, deve romper com o papismo e tornar-se Ortodoxo nessa questão decisiva antes de poder sentir a necessidade de união. A oração do Senhor "que todos sejam um" é entendida de forma tão diferente pelos Católicos e pelos Ortodoxos que eles na verdade rezam por coisas diferentes.

O dogma do Vaticano foi imposto sobre Católicos que estavam mais próximos que outros do espírito da Ortodoxia, e até hoje compele muitos a se comportarem hipocritamente. Não se pode negar, porém, que mesmo no presente o papado tem um significado espiritual para o mundo Católico e é um dos seus princípios básicos. E enquanto assim for, temos de admitir que os Católicos ainda não estão maduros para a verdadeira união das Igrejas. Os argumentos teológicos de nada servem aqui; se assim fosse, a fortaleza da teologia voluntarista do Vaticano já se teria desmoronado há muito tempo. A crítica devastadora e irrefutável dos Velhos Católicos, para não falar do trabalho intelectual de séculos do Protestantismo, teria sido suficiente para esse fim. A tarefa de refutar teoricamente as alegações do papado já foi realizada; agora é a própria vida que deve fazer o trabalho. O que é necessário é uma nova experiência, que o Catolicismo até agora não conhece. O papado passou por grandes convulsões e dúvidas dogmáticas na época do cativeiro de Avinhão, no século XV, e no final do XVIII. Estará seguro contra elas em nossa época de grandes convulsões? A "rocha de Pedro" parece inabalável, mas a fortaleza do cæsaropapismo czarista também parecia assim - e, no entanto, desmoronou no decorrer de alguns dias. A cada hora histórica, cada revolução está grávida de novas possibilidades e convulsões.

Enquanto o dogma do Vaticano for mantido, ele é para o mundo Ortodoxo um obstáculo insuperável a um esforço sincero e real pela união com os Católicos. Sem dúvida, também entre os Ortodoxos há homens com uma mentalidade Católica, papistas sem papa, que pensam na Igreja de uma maneira Católica Romana e falam não de reunião, mas de anexação e subjugação. Tal atitude, porém, não é de forma alguma representativa da abordagem Ortodoxa à questão; a mente Ortodoxa no seu nível mais profundo está perfeitamente aberta para lidar com o problema em todas as suas implicações. Durante os séculos de cisma entre Oriente e Ocidente, muitas diferenças dogmáticas e até dissensões se acumularam, mas todas elas poderiam ser discutidas plena e completamente, se a possibilidade de fazer isso em um concílio ecumênico ou de alguma outra forma estivesse aberta a ambos os lados. Está aberta para os Ortodoxos, mas não para os Católicos enquanto o dogma do Vaticano estiver em vigor: nenhum dogma católico, seja qual for o seu conteúdo, pode ser sujeito a qualquer discussão real uma vez que tenha sido ratificado pelo papa e recebido o selo da infalibilidade. Em vez da união, só pode haver submissão e anexação. A Ortodoxia não pode, claro, por sua própria natureza, adotar esta forma de abordagem, pois isso significaria renunciar à sua essência íntima, a graça do Espírito Santo que habita na igreja e que se manifesta a todo Ortodoxo.

No presente momento, o dogma do Vaticano é o problema central para a reunião da igreja - caso o Senhor venha a revelar ao mundo este milagre da Sua misericórdia. Anteriormente, na época dos Concílios de Lyons e de Florença, o principal tópico de desacordo dogmático era o dogma sobre o Espírito Santo, a cláusula filioque; questões sobre a primazia papal, do uso de pão levedado ou ázimo para a Eucaristia, do purgatório e algumas outras eram de importância secundária. No nosso tempo, a questão sobre o Espírito Santo, evidentemente, não perdeu nem a sua importância nem a sua dificuldade, mas de fato, na mente dos fiéis, ela deixou de ser um impedimentum dirimens (para usar o termo de V. V. Bolotov) e admite uma calma discussão teológica, tal como aconteceu, por exemplo, na conferência com os Velhos Católicos. A questão do pão ázimo e das diferenças entre as liturgias oriental e ocidental, cujo significado foi outrora  exagerado, quase perdeu também a sua importância. Mesmo a questão do purgatório e do novo dogma da Imaculada Conceição (na medida em que é dissociada da infalibilidade papal) é comparativamente de importância secundária.

Mas todas essas discordâncias particulares são ofuscadas por uma que é fundamental: o papismo desenvolvido e fortalecido ao longo dos séculos, estabelecido dogmaticamente no dogma do Vaticano. Esta é a divergência básica e decisiva entre o Oriente e o Ocidente. O Catolicismo identificou-se com o papismo e se afirma como tal; a Ortodoxia não pode, em nenhuma circunstância, aceitar o papismo que considera uma heresia na doutrina sobre a Igreja, embora possa e deva reconhecer a primazia da Sé Romana e honrá-la como antigamente. Somos assim levados a um impasse: até que o Catolicismo deixe de ser papismo e renuncie ao dogma do Vaticano (nem que seja através de uma nova e mais exata definição dele) - e isso requer uma espécie de cataclismo geológico - não há como se unir a ele. Mas o que é impossível ao homem é possível a Deus, e tudo o que podemos fazer é confiar na Providência que nos conduz, governa os destinos da Igreja, e faz aquilo que é impossível para o homem.

Notas

[1] Friedrich. Tagebuch während des Vaticanischen Con­sils geführt. Nördlingen 1871 (mit Beilagen). Pelo mesmo autor: Documenta ad illustrandum Consilium Va­ticanum I-II.

[2] Schulte. Die Stellung der Concilien. Päbste, Bischöfe vom historischen una canonischen Standpunkte und die päbstliche Constitution vom 18 Juli 1870. Mit den Quellen­begen. Prag. 1871. Pelo mesmo autor: Der Altkatho­lizismus etc. Die Macht der römischen Päbste etc. Prag. 1871.

[3] Friedberg. Die Sammlung der Actenstücke zum ersten Vaticanische Consil. 1892. Os procedimentos do Concílio Vaticano foram agora publicados na conhecida coleção Mansi.

[4] Veja a nota escrita por um dos membros: La liberté du concile et l’infallibilité. (Friedrich. Documenta I 129-185).

[5] Friedberg (I p. 376) fornece uma lista completa dos nomes dos membros. Estavam presentes: 4 bispos-cardinais, 37 sacerdotes-cardinais (20 dos quais tinham na verdade a posição de bispos diocesanos), 7 diáconos-cardinais, 10 patriarcas (nominal, claro, - in partibus infidelium). 7 primazes (também nominais), 201 arcebispos (13 sem diocese): 487 bispos (49 sufragâneos e 38 titulares), 6 abades nullius, 15 abades, 25 generais de ordens.

[6] Schulte Der Altkatholizismus 294-5.

[7] Friedrich, Documenta I, 250 & ff.

[8] Veja Friedrich Documenta II 212-289. Synopsis obser­vationum quae a partibus in caput addendum decreto de Romani Pontificis primatu (infallibilitate) factae fuerunt.

[9] O texto em latim é fornecido por Schulte em Die Stellung e a tradução em alemão está em seu Der Altkatho­lizismus 291-2. O texto em latim também é fornecido por Friedrich, Documenta II, 262, e Friedberg I, 622-3.

[10] No Concílio o bispo Ketteler fez circular um panfleto contra a infalibilidade papal (Questio, Friedrich I. c.), contendo uma exaustiva crítica histórica e dogmática sobre a mesma, parcialmente semelhante à feita por Janus em Pabst und das Concil, Leipzig, 1869. ("Janus" era o pseudônimo coletivo dos Professores Döllinger, Friedrich, Schulte e outros). É uma obra de grande erudição e poder convincente, e o golpe que deu às pretensões do papado é verdadeiramente devastador. Está disponível em tradução francesa e não perdeu nada do seu significado nos dias de hoje.

[11] Schulte, Der Altkatholicizmus 222. Veja também Fried­rich, J. v. Döllinger B. III.

[12] Evidências suficientes para confirmar isso podem ser encontradas no Geschichte der kirchlichen Trennung des Orients und Occidents de Pichler. 2 Bde München 1868. Este livro foi publicado na véspera do Concílio do Vaticano e denunciou-o de forma não intencional, tanto do ponto de vista histórico como dogmático.

[13] Assim, o professor Philips, um zelote canônico do papado, escreve que o papa ocupa o lugar de "einer Mittelperson zwischen Gott und dem Bischöfe, der seine Gewalt selbst von Gott hat” (Das Kirchenrecht I, 190). “Nicht die Kirche giebt dem Pabste die Gewissheit sondern Sie empfängt von ihm denn sie steht auf ihm, als auf dem Fundamente, nicht er auf ihr” (II, 315).

[14] O Papa Celestino IV foi eleito dois anos após a morte do seu predecessor, Gregório X após 3 anos, Nicolau IV após quase um ano. Após a sua morte, dois anos e três meses decorreram antes de Celestino V ser eleito; após a morte de Bento XI houve um intervalo de onze meses, e após a morte de Clemente V - dois anos e quatro meses (Janus, Der Pabst und das Concil, pp. 232-3). O Professor Schulte considera que desde o tempo do Papa Leão Magno o trono papal permaneceu vago por um período total de 40 anos. Sete vezes ficou vago por mais de um ano, três vezes por mais de dois anos e treze vezes por mais de seis meses (Die Stellung der Concilien, Päbste, etc.).

[15] Schulte (256, nota 7) faz as seguintes perguntas: "Era Bento IX, um menino de 10 ou 12 anos (1033-1048), também infalível? Era Adriano V, que nunca tinha sido ordenado sacerdote, infalível? O que aconteceu à infalibilidade na época terrível de João XI, Leão V, Sérgio III? E Leão VIII, Bento V, João XIII? ou Donus II, que figuram no calendário romano, mas que se prova nunca terem existido? E quanto a Bento VII e Bonifácio VII, entre os quais existe uma estranha rivalidade? João XIX, que foi constituído papa enquanto ainda era leigo, tornou-se imediatamente infalível? Gregório XII foi eleito por unanimidade em 30.X.1406, deposto em 5.VI.1409 em Pisa, mas abdicou apenas em 4.VII.1415; era ele o papa infalível ou era Alexandre V, eleito em junho de 1409 (d. 3.V.1410) ou João XXIII, eleito em 17.V.1410 e deposto em Constança em 29.1.1415? Outra pergunta: O Papa Bento IX, consagrado em janeiro de 1033, vendeu seu pontificado em 1.V.1045 a Gregório VI, e em 16.VII. 1048 foi banido pelo Imperador Heinrich. Os Romanos em 22.II.1044 elegeram Silvestre III, mas em 10 de abril ele foi banido e em dez.XII foi destituído do seu ministério e sacerdócio e confinado em um mosteiro. Gregório VI, em virtude de sua compra, ocupou a sede papal em dezembro de 1045, quando, na presença do Imperador, admitiu que deveria renunciar e, alguns anos mais tarde, morreu em algum lugar do Reno. Onde encontramos aqui a sucessão ininterrupta?"

[16] (O Sínodo em si, devidamente convocado no espírito, constituindo um concílio geral representando a igreja Católica militante, tem o seu poder diretamente de Cristo; toda posição [grau] de qualquer dignidade, mesmo que seja o papado, é obrigado a obedecê-lo em matérias que dizem respeito à fé e à extirpação do mencionado cisma e à reforma geral da igreja de Deus na sua cabeça e nos seus membros.) Harduini v. VIII p. 252.

[17] Hefele (Conciliengeschichte, VII cp. 1. 53). Este argumento foi apresentado já em 15 de maio de 1438 por João de Ragusa em Viena: "aut (Concilium Constantiense) fecit quod potuit, aut quod non potuit…Si fecit quod non potuit, sequitur quod Iohannes non fuit depositus, et per consequens nec papa Martinus non fuit papa, et ita, nec qui ei succesit Eugenius” (Ou o Concílio de Constança fez o que tinha o direito de fazer, ou o que não tinha... Se fez o que não tinha o direito de fazer, segue-se que João não foi deposto e, consequentemente, que o Papa Martinho não era papa, nem o seu sucessor Eugênio); veja N. Valois, Le pape et le concile 1418-1450. Paris 1909 v. I Introdução. Valois cita os argumentos tanto dos partidários do Concílio de Constança como dos seus opositores que tentam salvar a situação, assinalando que, no decorrer do tempo, tanto o Papa João XXIII como o Papa Gregório XII renunciaram livremente às suas reivindicações. O mesmo não se pode dizer, porém, de Bento XIII. É interessante que o Cardeal Oddo Colonna (o futuro Papa Martinho V) tenha realmente participado no Concílio de Constança e no julgamento do Papa João XXIII. Mas como Valois corretamente observa, não há lugar em que as pessoas mudem suas opiniões mais prontamente do que num conclave - veja também B. Hubler Die Constanzer Reformation und die Concordate 1418, Leipzig 1867.

[18] O Papa Martinho V, ao ser eleito, emitiu uma bula condenando 45 teses de Wycliffe e 30 de Huss; os bispos e inquisidores tiveram que examinar os suspeitos perguntando-lhes, sob juramento, se tinham doutrinas falsas e (parágrafo 6) se acreditavam que aquilo que o Concílio de Constança - representando a igreja universal - aprovou in favorem fidei et sa lutem animarum deveria ser defendido por toda a cristandade. Os galicanos e muitos membros do Concílio de Basileia concluíram a partir disso que o papa aprovou o Concílio de Constança em sua totalidade. A partir do século XVII, no entanto, tem sido levantada a objeção de que a aprovação foi feita apenas às resoluções sobre fé e salvação, e não às resoluções sobre a prioridade do concílio sobre o papa.  Hefele concorda com isso e considera o Concílio de Constança como sendo ecumênico somente em suas últimas quatro sessões (42-5), nas quais o papa esteve presente.  (Mas nesse caso, segue-se que antes da eleição do papa legítimo, a igreja estava completamente privada de autoridade legítima, já que nem o Concílio, nem os anti-papas tinham qualquer autoridade) - a segunda declaração do Papa Martinho V sobre o Concílio de Constança (a propósito do caso de Falkenberg) ratifica seus decretos in materiis fidei et conciliariter, e também é interpretada como referindo-se apenas a este último. Seria inútil discutir este ponto. N. Valois mostra convincentemente que todas as afirmações do Papa são evasivas, ambíguas e intencionalmente inconclusivas, de modo que qualquer um dos lados pode encontrar apoio para a sua própria perspectiva nesta prevaricação tradicional. A inconclusividade estava de acordo com os fatos: dentro da própria igreja havia uma luta entre dois princípios - o de Sobornost ou consentimento comum e o do absolutismo; naquela época a questão ainda estava indecisa, e mais tarde o absolutismo conquistou a vitória. O século XV foi como que a encruzilhada entre os dois caminhos. Mas o próprio fato da luta e das suas vicissitudes prova abundantemente que o dogma do Vaticano não era uma tradição inalterável, mas o resultado de novos desenvolvimentos do Catolicismo face à Reforma.

[19] Hefele VII 563. Para o texto das bulas, veja Mansi XXIX 78 seq. e Harduinis t. Vz II, 1172 seq.

[20] Valois I, 305-6.

[21] Os membros do Concílio da Basiléia disseram em resposta a isso que a doutrina da supremacia do concílio ecumênico sobre o papa é parte da fé de necessitate salutis e tinha sido formulada não só na 33ª sessão, mas muito antes, quando os legados papais estavam presidindo, e que o Papa Eugênio IV, quando cancelou a primeira dissolução do Concílio, aprovou formalmente essa doutrina (Hefele, VII, 783).

[22] Os legados papais - o Cardeal Albergati de Santa Croce (posteriormente venerado como santo) e outros três - só foram aceitos como membros do Concílio em 24 de abril de 1434, depois de terem declarado sob juramento que 1) o Concílio de Constança e todo Concílio Ecumênico deriva seu poder diretamente de Cristo e que todos, incluindo o papa, deve obedecer-lhe em matérias de fé, de erradicação do cisma e de reforma da igreja em sua cabeça e membros e 2) todo aquele que a desobedecer nessas questões, mesmo que seja o próprio papa, deve ser punido. Eles fizeram este juramento, porém, in propriis nominibus, e não sob as instruções do papa. Foram admitidos à sessão de 26 de Abril de 1434, em nome do Papa e em seu lugar, na condição de não terem jurisdição vinculativa e de estarem preparados para respeitarem as regras estabelecidas pelo Concílio.

[23] Hefele VII, 565-7. I (2A) 54. Valois 176-6. Após o dogma do Vaticano ter sido proclamado, Hefele escreveu o seguinte: "Eugênio IV não reconheceu expressamente (ausdrücklich) a subordinação do papa a um concílio ecumênico, mas é claro que sua afirmação de que ele reconheceu as transações anteriores do concílio pode ser tomada como implicando que ele concordou com a tese em questão, e consequentemente, com a do Concílio de Constança. Mas evidentemente ele esperou por uma oportunidade mais favorável para se expressar sobre o assunto e se opor aos decretos dos Concílios de Basileia e de Constança. Ele não podia fazê-lo ali porque esta tese era, por assim dizer, o grito de guerra da época e era defendida e difundida por imperadores e reis, por cardeais e bispos, por estudiosos leigos e clericais". Este argumento ingênuo e cínico ad majorem papae gloriam de um dos melhores estudiosos Católicos nos faz, na melhor das hipóteses, sentir pena de Hefele, cuja sinceridade após o Concílio Vaticano parece duvidosa. Mas tudo isto é um exemplo notável de erudição eclesiástica "voluntarista".

[24] Em setembro de 1437 duas frotas chegaram a Constantinopla, uma trazendo uma embaixada do papa, e outra do Concílio. Os legados papais não tinham escrúpulos sobre os meios que usavam: houve um atentado contra a vida de João de Ragusa; um emissário de Sabóia, enviado no navio papal para Bizâncio com cartas do Concílio e dos governantes da França, Arragão, Sabóia, Milão e outros, desapareceu, de modo que nenhuma nova notícia do Concílio foi recebida em Constantinopla. (Johannes Haller, Concilium Basiliense, Basel 1896. Bd.I, 132, nota 1).

[25] Veja Friedrich, Tagebuch wahrend des Vatican Concils gefuhrt. Nordlingen 1871 Beilage. No Concílio de Trento foi formalmente declarado pelos representantes franceses e alemães que o Concílio de Florença não foi um Concílio Geral. Suas resoluções foram consideradas como questões em aberto. Veja também Theodor Fromann, Kritische Beitrage zur Geschichte des Florentiner Kircheneinigung, Halle 1872. Döllinger salienta (veja Friedberg I, 501) que não incluiu um único representante da Europa do Norte - França, Alemanha, Escandinávia, Polônia, Boêmia e outros países (então Católicos). Pode-se dizer que nove décimos do mundo Católico se mantiveram afastados do Concílio de Florença por princípio, considerando-o ilegítimo ao lado do Concílio de Basileia. No final, o Papa Eugênio IV reuniu com certa dificuldade cerca de cinquenta bispos italianos, aos quais se juntaram mais alguns enviados pelo Duque de Borgonha, vários bispos de Provença e dois da Espanha. Ao todo, sessenta e dois bispos assinaram como membros.

[26] “Item definimus sanctam Apostolicam Sedem et Romanum pontificem in universum orbem tenire primatum, et ipsum pontificem Romanum successorem esse beati Petri principis apostolarum et verum Christi vicarium, totiusque Ecclesiae caput et omniam christianorum patrem et docto­rem existire; et ips in beato Petro pascendi, regendi ac gubernandi universalem Ecclesiam a Domino nostro J. Christo plenam potestate traditam esse; quem at modam etiam in gestis oecumenicorum Conciliorum et in sacris canonibus continentur.” Inclui, mas não define claramente as expressões plena potestas e vicarius Christi, características da doutrina do papado (e, claro, não confirmadas por gesta conciliorum oecumenicorum ou por sacri canones).

[27] O historiador do Concílio de Florença, Th. Fromann diz: "Em todo caso, a definição da primazia foi expressa de maneira tão verbosa e metafórica que cada uma das partes pôde ler nela os seus próprios pontos de vista; isto pode ser visto pela sua interpretação por João o Provincial como primatus juris dictionis com todas as suas implicações, e pelos gregos que a interpretaram como significando simplesmente primazia em honra. Não houve unidade e nem mesmo compromisso, mas apenas uma dissimulação das diferenças por meio de uma fórmula vaga e ambígua" (Krit. Beitr., 18-19).

[28] Em relação a etiam veja a polêmica de Hefele com Janus (Hefele VII, 733).

[29] H. Valois, II 202-5.

[30] As razões dadas pelo Concílio são dignas de nota: "Sabendo a partir de um testemunho de confiança que ele acredita e defende o dogma de que um concílio ecumênico deriva sua autoridade diretamente de Cristo e que todos, incluindo o Papa, devem obedecê-lo em questões quae pertinentes ad fidem, extirpationem schismatis et ad generalem reformationem Ecclesiae Dei in capite et membris, o Concílio ordena que os fiéis lhe obedeçam como papa" (Hefele VII, 849).

[31] Enchiridion symbolorum, 251. Curiosamente, Pio II foi Enéas Silvius Piccolomini, um dos líderes espirituais da oposição no concílio, que escreveu tratados provando que os concílios têm autoridade sobre o papa.

[32] No Enchiridion symbolorum o Concílio de Basileia não é sequer mencionado, apesar do fato de que, em todo caso, até o decreto do papa que o transferiu para Ferrara, ele tinha sido considerado como um concílio geral pelo próprio Papa Eugênio IV, e também por Leão X na bula que referimos anteriormente. Nem uma única das suas resoluções é citada. Quanto às resoluções aprovadas pelo Concílio de Constança, quase nenhuma é citada, exceto aquelas que condenam Huss e Wycliffe.

[33] Deixo o termo pagão romano Pontifex não traduzido, pois não tem o mesmo significado que "sumo sacerdote" no uso cristão, embora seja geralmente traduzido por esse termo.

[34] CANON I. Si quis igitur dixerit, beatum Petrum Apo­stolum non esse a Christo Domino constitutum Apostolorum omnium principem et totius Ecclesiae militantis visibile caput; vel eundem honoris tantum, non autem verae pro­priaeque jurisdictionis primatum ab eodem Domino nostro Jesu Christo directe et immediate accepisse: anathema sit.

CANON II. Si quis ergo dixerit, non esse ex ipsius Chris­ti Domini institutione seu jure divino, ut beatus Petrus in primatu super universam Ecclesiam habeat perperuos suc­cessores; aut Romanum Pontificem non esse beati Petri in eodem primatu successorem: anathema sit.

CANON III. Si quis itaque dixerit, Romanum Pontificem habere tantummodo officium inspection is vel directionls, non autem plenain et supremam potestatem jurisdictionis in universam Ecclesiam, non solum in rebus quae ad fidem et mores, sed etiam in iis quae ad disciplinam et regiminem Ecclesiae per totum orbem diffusae pertinent; aut eum habere tantum potiores partes, non vero totam plenitudinem huius supremae potestatis, aut hanc eius potestatem non esse ordinariam et immediatam sive in omnes ac singu­las ecclesias sive in omnes et singulos pastores et fideles: anathema sit.

CANON IV. Itaque nos traditioni a fidei christianae ex­ordio perceptae fideliter inhaerendo, ad Dei Salvatoris nos­tri gloriam, religionis catholicae exaltationem et christia­norum populorum salutem, sacro approbante Consilio, docemus et divinitus revelatum dogma esse definlmus: Romanum Pontificem, cum ex cathedra loquitur, id est, cum omnium Christianorum pastoris et doctoris munere fungens pro suprema sua Apostolica auctoritate doctrinam de fide vel moribus ab universa Ecclesia tenendam definit, per assistentiam divinam ipsi in beato Petro promissam, ea infallibilitate pollere, qua divinus Redemptor Ecclesiam suam in definienda doctrina de fide vel moribus instructam esse voluit; ideoque eiusmodi Romani Pontificis definltiones ex sese, non autem ex consensu Ecclesiae irreformabilis esse.

(Canon). Si quis huic Nostrae definitioni contradicere, quod Deus avertat, praesumpserit: anathema sit.

[35] A tentativa de relacionar o Cânon II com o Concílio Geral de Éfeso, referindo-se ao discurso pretensioso do legado papal, é uma das distorções históricas totalmente e incontestavelmente refutadas por Schulte em Die Stellung etc.

[36] Friedrich observa com razão em Tagebuch, Beilage III, 435, que as palavras "plenam potestatem ordinariam et immediatam" são "as mais perigosas em todo o esquema". Elas servem para que o episcopado aprove o sistema essencialmente imoral do papismo, contra o qual os Concílios de Constança e Basileia, que apoiaram o sistema episcopal, haviam protestado, e que provocou a reforma de Lutero e uma forte oposição no Concílio de Trento". É interessante que os antigos defensores do poder absoluto do papa soubessem o que queriam e não usaram sofismas para escondê-lo, como é comum fazer-se atualmente. Nouvelles Religieuses de 1 de setembro de 1923 fala de um tratado do século XIV de Maitre Herve, descoberto por Elter S.J., em defesa dos privilégios das ordens monásticas em conexão com a jurisdição papal: De jurisdictione et de exemptione (Gregoriana, Junho de 1923). O autor diz: "Na igreja universal o papa recebeu diretamente de Deus através de Cristo, de Quem ele é vigário, o poder completo de jurisdição. Os bispos, de acordo com sua posição, têm apenas o poder ordinis, efetivamente para celebrar os sacramentos. Ao delegar-lhes a sua jurisdição P. M. não renuncia a nenhum dos seus direitos superiores; Ele permanece sempre, como chefe [cabeça] da igreja, o chefe ordinário e imediato de todos os fiéis, de todos eles, qualquer que seja a sua posição na hierarquia. Ele pode limitar ou proibir através do seu pleno poder soberano todas as jurisdições episcopais " (385-6).

[37] "Este poder do pontifex supremo, no entanto, não interfere com o poder ordinário e direto da jurisdição episcopal; os bispos, nomeados pelo Espírito Santo (Atos 20, 28) assumiram o lugar dos apóstolos, e como verdadeiros pastores apascentam e governam o rebanho que lhes foi confiado, cada um com o seu próprio rebanho" (segue-se uma referência ao Papa Gregório Magno, que, será lembrado, rejeitou energicamente como pretensioso o título de episcopus universalis).

[38] A possibilidade disto foi admitida, mesmo depois do Concílio Vaticano, por intérpretes como, por exemplo, Hefele (1. 50). Argumentando contra os galicanos dos Concílios de Constança e Basileia que admitiram dois motivos para depor um papa: ob mores or ob fidem aut haeresim, Hefele admite apenas o segundo, que implica que o papa deixou de ser membro da igreja. Mas obviamente este argumento é incompatível com o dogma do Vaticano. Há outra questão: pode um papa ser louco, como alguns membros do Concílio Vaticano IX supunham (de acordo com Friedrich) que Pio IX fosse? O Papa Adriano VI, ainda professor na Universidade de Lovaina, especializou-se em denunciar os papas por heresia (Janus 399, 430). Pohle no Kirclienlexicon (XII, 241: nota) diz, curiosamente, que "o dogma do Vaticano nem sequer implica que seja impossível um papa desviar-se da fé, uma vez que a lei canônica declara que em tal caso (imaginário, claro) o papa perderia imediatamente a sua posição papal". (Decret. Grat. dist. 39, c. 6, d. Phillips. Das Kirchenrecht I, 261., Scheeben, Handb. d. Dogmatik, I, 214). Mas o código de Graciano remonta ao período em que a infalibilidade papal era desconhecida na lei canônica. Em De romano pontifice 1877 de Palmieri, p.628 lemos que o papa não é infalível quando está sujeito à violência física e não tem liberdade de julgamento. Mas admitir tal falibilidade - por assim dizer, "ex cahtedra" espúrio - não condiz com a ousada proclamação veritatis et fidei nunquam deficientis charisma, pois assim o caminho está aberto para examinar criticamente se o julgamento do papa é verdadeiramente "ex cathedra". Não é difícil imaginar as graves consequências a que isto pode levar se a Sé Romana cair em maus tempos, como por vezes aconteceu no passado.

[39] Ambos os termos são usados no cânon IV, o primeiro implicando a infalibilidade teórica do pensamento e o segundo a infalibilidade prática de uma definição, regra dogmática ou ordem.

[40] É sem dúvida um fato histórico que o próprio Pedro não só errou, mas até negou Cristo; que não Pedro, mas o concílio apostólico resolveu a disputa sobre a necessidade da circuncisão (Atos 15); que Pedro foi censurado por Paulo por sua ação (Gal. 2, 11); que Papa Honório errou em questões de fé; que os 6°, 7° e 8° Concílios Ecumênicos anatemizaram Honório como um herege; que o Papa Leão II admitiu o erro de Honório; que o Papa Vigílio pregou heresia, e isto foi admitido pelo Papa Pelágio II em Aquilea em 586; que o 5º Concílio Ecumênico anatemizou o Papa Vigílio como um herege; que durante séculos os papas ao assumirem o cargo juravam reconhecer 8 Concílios Ecumênicos e anatemizar o seu predecessor Honório (Liber diurnus ed. de Roziere. 83 H.); que originalmente os papas admitiam a sua falibilidade em matéria de fé (veja Stellung 74 ff.); que há contradições entre os decretos papais ex cathedra e entre eles e as resoluções dos concílios ecumênicos; que todos os especialistas de direito canônico, a começar por Graciano, nos séculos XII e XIII e muitos nos XIV e XV, e o mais importante dos jesuítas, Schmalzgrüber e Layman, admitem que o papa pode ser acusado de heresia (Stellung. 189); que os primeiros papas certamente consideravam necessário convocar concílios para resolver questões relativas à fé e, ao recomendar isto, o 5º Concílio Ecumênico citou o exemplo dos apóstolos (Schulte, Der Altkatholozismus, 309). Esta lista pode ser complementada pelos seguintes casos. Ao responder aos búlgaros em 866 o Papa Nicolau I declarou que o batismo em nome do Senhor Jesus Cristo, mesmo se realizado por um judeu, era válido (Denzingeri, 335); mas de acordo com a definição do Papa Alexandre III (século XII), só era válido o batismo em nome da Santíssima Trindade (Denz., 399), e naturalmente isto foi confirmado no Concílio de Florença (Denz., 696). (Claro, é dito que o pronunciamento do Papa Nicolas I é a sua opinião pessoal e não ex cathedra.) O Papa Alexandre III declarou que a fórmula batismal deve incluir as palavras ego te baptizo; mas o Papa Alexandre VIII (século XVII) admitiu que a omissão dessas palavras não torna o batismo inválido (Denz. 1317). Com referência ao intentio o Papa Inocêncio III (1210) em sua bula contra os valdenses exigiu i. fidelis; Papa Alexandre VIII afirmou que um batismo propriamente realizado não era eficaz se o sacerdote interiormente dissesse: non intendo. Foi assim introduzida a ideia de intentia interna. O Papa Leão XIII, ao contrário, na sua bula sobre as ordenações anglicanas (1896) disse claramente que a Igreja não julga a intenção interior, mas deve julgá-la apenas na medida em que seja expressa exteriormente.

[41] Obviamente os teólogos Católicos insistem em estabelecer distinções: eles afirmam que "como um estudioso privado, como um leigo soberano, como simplesmente o bispo de Roma, como o primaz da Itália, como o patriarca do Ocidente, o papa não é infalível; ele é infalível única e exclusivamente como chefe [cabeça] supremo da Igreja, e apenas quando fala ex cathedra... Assim, os decretos que tratam de disciplina, instrução, política eclesiástica ou administração, bem como os que aplicam a doutrina da fé a determinadas instâncias têm tão pouco a ver com a infalibilidade papal como as ocasiões em que o papa, embora se pronuncie sobre questões de doutrina, não o faz de forma solene e universalmente vinculativa ex cathedra" (Pohle, Kirchenlex. 244). Todas essas distinções abstratas nada valem diante da unidade concreta do portador do poder absoluto enquanto pessoa. Elas apenas mostram que, em relação a esta questão, os teólogos estão perdidos e não sabem o que fazer com o dogma do Vaticano.

[42] Em seu Die Macht der Römische Päbste ilber Fürste, etc. Schulte apresenta uma lista de bulas papais sobre vários assuntos; o significado do dogma da infalibilidade implica que elas permanecem em vigor até os dias de hoje. Algumas dessas bulas proclamam o poder soberano do papa sobre os reis e seus súditos, Católicos e não-Católicos; em virtude desse poder ele concede novos países aos reis e o direito de escravizar a população... Assim o Papa Nicolau V nas bulas Romanus Pontifex e Nuper non de 9 de janeiro de 1454 concede tal direito a Afonso rei de Portugal com respeito à África Ocidental (isto foi confirmado pelo Papa Calisto III na bula Inter caetera 1456, e Sixtus IV na bula Aeterni Regis 1481). As bulas do Papa Nicolau V concedem a Portugal o poder exclusivo sobre todos os mares. O Papa Alexandre VI na bula Inter caetera 4 de Maio de 1493 "em virtude da plenitude apostólica do poder e da autoridade de Deus Todo-Poderoso, que nos foi dada em São Pedro como a um vigário de Jesus Cristo" concede os países e ilhas recentemente descobertos ao Rei Fernando e à Rainha Isabel. O Papa pode escravizar e distribuir até mesmo súditos cristãos cujo governante tenha sido anatemizado: O Papa Gregório XI fez isto em relação aos florentinos em 22 de Março de 1376, na bula In omnes fere, e assim por diante.

[43] Schulte observa com razão que a referência a Florentinum no c. IV e a citação da sua resolução são tendenciosas e omitem o final da resolução que fala de todos os concílios. "Os gregos referiam-se aos sete concílios ecumênicos aceitos por eles, e os uniatas - oito; nenhum destes concílios, começando com o de Nicéia em 325 e terminando com o de Constantinopla em 869 reconheceu que o bispo de Roma era o único ou infalível doutor de fé e moral; nem ele foi reconhecido como tal nos Concílios de Latrão de 1123, 1139, 1179 e 1215, ou nos dois Concílios de Lyons em 1245 e 1274, ou no Concílio de Viena em 1311.  O Concílio de Constança em sua quinta sessão em 6.IV.1415 estabeleceu como dogma que o papa, como qualquer outro, está sujeito a um concílio geral. A quinta sessão indubitavelmente pertence à parte do concílio que foi reconhecida pelo Papa Martinho V. Assim, nenhum dos onze concílios pré-florentinos reconhecidos por Roma, ou, deixando de fora o Concílio de Constança (o de Basileia não é contado), nem um dos dezesseis concílios ecumênicos estabeleceu a definição que, no c. IV, diz-se que Florentinum confirmou. E, de qualquer forma, a declaração florentina difere tão completamente do dogma do Vaticano, que na verdade os membros dissidentes do Concílio Vaticano inclinaram-se a reafirmar a definição florentina. Além disso, os argumentos de Florentinum estão desatualizados e foram esclarecidos pelo Tridentium" (ibid. 307).

[44] Veja Scheeben Handbuch d. Kath. Dogmatik IV Bd. I.

[45] Scheeben, ibid. 225. Como se isto fosse um argumento!

[46] ibid. 244. Cp. Th. H. Simar, Lehrbuch der Dogmatik, 4 Auff. 1889, I, 40; II, 754.5; Pohle, ibid. 248; H. Shell Die Kathol. Dogmatik, Paderborn 1892, Bd. III. 1, 410-422.

[47] Schulte Lehrbuch des Kathol. Kirchenrechts, 3 A. 1873 pp. 24l-2.

[48] As palavras cum caeteris (que poderiam ser interpretadas no sentido "galicano") foram suprimidas em 15 de julho, de modo a trazer mais à força a idéia de que a infalibilidade papal é independente do episcopado, e a frase "non autem ex consensu ecclesiae" - a pedra-chave do dogma do Vaticano - foi inserida. Em um parágrafo do cap. IV Hoc igitur as palavras non deficientis foram substituídas por "nunquam deficientis", o que implica que os erros dos antigos papas, conhecidos por todos os historiadores, não foram cometidos.

[*] Nota do tradutor: sobornost, que vem da palavra sobor (sínodo, concílio, reunião), foi cunhado e  popularizado pelos primeiros eslavofilos, Ivan Kireyevsky e Aleksey Khomyakov. Segundo a Encyclopedia Britannica, "No sistema de Khomyakov, o termo-chave era sobornost, uma palavra com diversas traduções abrangentes, entre elas "união" e "sinfonia". Esta palavra, na versão eslava do Credo Niceno, corresponde a "católico". Não significa, porém, "universal", mas denota uma perfeita comunhão orgânica de pessoas redimidas unidas pela fé e pelo amor. Khomyakov acreditava que uma pessoa poderia alcançar melhor maturidade espiritual e intelectual em uma comunidade orgânica que respeitasse a liberdade de seus membros e que o verdadeiro progresso dependeria não da competição (como no Ocidente), mas da cooperação. Ele afirmava assim que a tarefa da igreja era ensinar a humanidade a viver em unidade e liberdade. Na perspectiva de Khomyakov, o Ocidente cristão, após sua separação do Oriente, não conseguiu cumprir esse papel. Os seus escritos sobre sobornost estão entre os mais influentes das suas obras." [https://www.britannica.com/biography/Aleksey-Stepanovich-Khomyakov#ref29360

[49] Schulte em Der Altkatholizismus, Giessen. 1871 p. 311 mostra claramente a absurda auto-contradição do dogma do Vaticano. "A votação de 553 membros do Concílio que apoiaram o dogma em 18 de julho de 1870 foi inútil: se tivesse sido necessária, o dogma seria falacioso. As duas afirmações - a imutabilidade das decisões papais enquanto tais, e a imutabilidade delas com o consentimento da igreja - são contraditórias. Igualmente contraditórias são as afirmações de que o papa falando ex cathedra é infalível por causa da ajuda divina, e que o papa se tornou infalível porque o concílio reconheceu sua infalibilidade. Consequentemente, o assentimento e a cooperação do Concílio são sem sentido: aqueles que acreditaram na infalibilidade papal acreditaram nela porque o papa a proclamou ex cathedra e não porque 553 dignitários eclesiásticos de vários tipos votaram a favor dela".