quarta-feira, 4 de março de 2020

O curioso caso de São João Cassiano (Pe. Stephen De Young)

São João Cassiano, em seus 75 anos de vida vividos na virada do século V, interagiu com todas as grandes figuras cristãs da Era Patrística, fundou o monaquismo no Ocidente, lançou os fundamentos teológicos dos "Sete Pecados Capitais", escreveu o sumário papal para a posição da Sé Romana no Terceiro Concílio Ecumênico, e escreveu a obra mais lida de piedade devocional do cristianismo latino antigo e medieval tardio.  É bem provável que ele tenha sido o primeiro santo "canonizado" por um Papa da Antiga Roma.  No entanto, hoje em dia, quase ninguém ouviu falar dele.  O seu nome foi retirado do popular calendário ocidental e, fora de Provença, a sua festa não é celebrada regularmente pelos cristãos ocidentais.  Aqueles que ouviram falar dele, principalmente os Protestantes de linha calvinista, consideram-no como o personagem histórico no qual todo o cristianismo saiu dos trilhos (uma calúnia semelhante à forma como alguns estudiosos Ortodoxos trataram Santo Agostinho de Hipona).  Como exatamente isso aconteceu é uma das verdadeiras curiosidades da história da Igreja e da patrística.

Nascido ca. 360 em Cítia (atual Romênia) e batizado com o nome de Cassianus, o santo emerge pela primeira vez na história cerca de 20 anos depois.  Tendo viajado para a Palestina (especificamente Belém) e entrado na vida monástica (lá recebeu o nome de "João"), Cassianus viajou com seu amigo, São Germânico, para o Egito, onde estudou o modo de vida mais rigoroso e (já naquela época inicial) mais tradicional do deserto.  Lá, São João excedeu em vários anos a dispensa que lhe tinha sido dada pelo seu ancião monástico, o que parece tê-lo levado a uma situação em que já não era capaz de regressar à lar monástico original.  Por volta do ano 400, ele e São Germânico foram para Constantinopla.  Lá foram ordenados (São Germânico presbítero e São João diácono) e fizeram parte do círculo interno do clero de São João Crisóstomo durante o seu período inicial como arcebispo.  No infame Sínodo do Carvalho, foi São Germânico quem trouxe a resposta de Crisóstomo ao caso contra ele e a argumentou contra os seus opositores.  Quando esses esforços fracassaram, São João Cassiano foi enviado a Roma para buscar o apoio do Papa de Roma para restaurar São João Crisóstomo à sua sé.


Depois de sua viagem a Roma, São João Cassiano se estabeleceu no Ocidente depois de estabelecer uma amizade com o Arcebispo Leão (mais tarde São Leão Magno, Papa de Roma).  Foi ordenado presbítero e foi encarregado de levar a vida monástica do Oriente para a Europa Ocidental.  Ele o fez por dois meios:  Primeiro, estabelecendo o Mosteiro de São Vítor na Gália (o que hoje é Marselha para ser preciso) e segundo, através da composição de sua obra Os Institutos da Vida Cenobítica.  Este último é um tesouro de informação histórica, pois São João compara e contrasta sistematicamente as tradições do Egito e da Palestina em todos os aspectos da vida monástica, e oferece sugestões sobre como os princípios básicos envolvidos podem encontrar expressão nativa na Europa Ocidental.  A última parte dos Institutos consiste numa discussão sobre os "Oito Maus Pensamentos", que mais tarde se tornariam os Sete Pecados Capitais, como são conhecidos na tradição ocidental.  Depois de concluir essa obra, São João Cassiano iniciou outra, a sua mais famosa, As Conferências.  Esta obra é na verdade uma coleção de 24 obras mais curtas, escritas como diálogos entre São Germânico e vários dos Padres do Deserto durante o tempo de São João no Egito.  Estas 24 Conferências foram publicadas em vários pequenos blocos, um dos quais, compreendendo as Conferências 11-17, tornar-se-ia a principal fonte da controvérsia sobre a vida e obra de São João.

A segunda década do século V no Ocidente foi abalada por uma controvérsia doutrinária importante, que envolveu Pelágio, o monge britânico que tinha começado a viajar pelas principais cidades do Império, pregando o arrependimento, e centrando-se intransigentemente na responsabilidade de cada ser humano perante Deus.  O mais alarmante é que ele proclamou que a Graça Divina não era necessária para a salvação.  A Graça era, para Pelágio, uma espécie de plano secundário, uma fonte de perdão para os que se extraviaram.  Mas para ele a meta e o propósito da vida cristã era nunca se extraviar, e ele alegou que estava perfeitamente dentro dos limites até mesmo da humanidade caída viver uma vida sem pecado e perfeita sem qualquer assistência sobrenatural e assim alcançar a salvação.  Era claro para muitos, entre eles principalmente Santo Agostinho, que isto era uma heresia.  Até esta época, no entanto (ou seja, os dois primeiros Concílios Ecumênicos e os Concílios locais a eles relacionados), ortodoxia e heresia estavam voltados para as concepções da Santíssima Trindade e da pessoa do Filho em particular, não para as questões relacionadas com o caminho da salvação em si.  Tendo apresentado Pelágio ao Santo Sínodo de Jerusalém para condenação, Agostinho ficou espantado por o terem inocentado das acusações depois de o terem examinado apenas em relação à [doutrina da] Santíssima Trindade e o Credo.  Isto levou o Bispo de Hipona a escrever, e as suas obras anti-pelagianas (literalmente) encheram volumes.  Finalmente, em 418, Santo Agostinho conseguiu que Pelágio e seus falsos ensinamentos fossem anatematizados pelo Concílio de Cartago.

No processo de argumentar contra Pelágio, porém, Santo Agostinho havia adotado (ou pelo menos parecia adotar como posição a partir da qual argumentou) a posição extrema oposta.  Ele parecia defender uma forma de Predestinação e Reprovação na qual os seres humanos eram completamente passivos em sua salvação (pois a carne era uma fonte apenas de concupiscência) e viviam suas vidas inteiras de relativa santidade ou iniqüidade executando um plano divino pré-existente.  No seu extremo, Santo Agostinho chegou mesmo a afirmar que o Espírito Santo tinha que conter constantemente a carne humana dos impulsos de Cristo para que Ele não pecasse.  Estas idéias eram tão perturbadoras para muitos segmentos da Igreja quanto as de Pelágio haviam sido.  Era especialmente perturbador para muitas das comunidades monásticas do Ocidente, a quem São João Cassiano estava servindo.  Por isso, São João compôs a Conferência 13, "Sobre a Proteção Divina", na qual ele apresenta o princípio básico da sinergia na vida cristã.  Pelágio estava errado ao afirmar que o homem caído pode fazer o bem e agir sob os seus próprios poderes naturais.  Igualmente, porém, Santo Agostinho estava errado ao dizer que Deus age sobre uma humanidade passiva (ou lutando ativamente para realizar o impulso contrário).  Em vez disso, no centro do texto de São João, todo cristão deveria, citando São Paulo, "operai a vossa salvação com temor e tremor; Porque Deus é o que opera em vós tanto o querer como o efetuar, segundo a sua boa vontade."  As Energias Divinas são o começo, o fim e a base da salvação, mas não negam, subjugam ou aniquilam o humano.

No final da sua vida, a tarefa final de São João Cassiano foi o seu Tratado Contra Nestório.  Composto em 430 a pedido do Arcebispo Leão, o Tratado é na realidade uma espécie de resumo para o Papa de Roma, explicando-lhe quais eram os problemas com a cristologia de Nestório para lhe permitir preparar-se para o que se tornaria o Terceiro Concílio Ecumênico.  Curiosamente, para explicar as questões cristológicas que São Cirilo tinha contra Nestório a uma audiência latina, São João relaciona a heresia de Nestório com a de Pelágio.  Da mesma forma, argumenta ele, que Pelágio separou as energias divinas, o próprio Deus, da sua criação, Nestório tentava separar a pessoa divina do Filho da natureza humana de Cristo, de uma forma que tornava impossível a salvação.  Por causa desta relação traçada por São João, no Terceiro Concílio Ecumênico, o anátema contra Pelágio foi renovado por toda a Igreja ao mesmo tempo em que Nestório foi condenado.

Na época do repouso de São João Cassiano, em 435, não havia qualquer dúvida de que ele estava na plena comunhão da Igreja, e que ele tinha sido um dos Seus maiores mestres espirituais.  Mesmo aqueles partidários de Santo Agostinho que tinham tentado argumentar contra a Conferência 13, como Próspero da Aquitânia, se opuseram apenas ao "autor das Conferências", não estando dispostos a falar o nome de São João sob uma luz negativa.  Um século e meio depois, São Gregório o Dialogista, Papa de Roma, era tão devoto à memória de São João que mandou colocar as suas relíquias no mosteiro de São Victor num cofre de prata feito por ele mesmo, inscrito com "São João Cassiano".  Tomás de Aquino, como era comum em muitas ordens monásticas do Ocidente medieval, lia diariamente trechos da Sagrada Escritura e trechos das Conferências, como parte de sua regra de oração.  No Oriente, não só era inquestionável a santidade de São João, como também é o único autor latino cuja obra está incluída na Apophthegmata, a coleção de ditos dos pais e mães do deserto.

Mais tarde, durante a Reforma Protestante, a história do Ocidente cristão foi cuidadosamente reexaminada.  O projeto, naturalmente, da Reforma era tentar devolver a igreja ocidental ao seu estado original, depois de séculos de corrupção e erro insidioso.  Santo Agostinho, como Padre da Igreja, foi visto, especialmente pela 'ala' calvinista do campo reformado, como uma das mais puras fontes de doutrina do apogeu do poder e influência teológica da Igreja Ocidental. Embora a teologia de Santo Agostinho ainda sustentasse grande parte da doutrina do Ocidente, as posições expressas (especialmente na forma extrema apresentada ali) nos escritos Anti-Pelagianos não tiveram lugar em evidência na teologia de um Gabriel Biel.  Em vez de concluir, como é exato, que essas posições [extremas] foram corrigidas parcialmente pelo próprio Santo Agostinho em suas Retrações, parcialmente por outros Padres como São João Cassiano, e em grande parte pela orientação da Igreja pelo Espírito Santo através da história, os reformadores, ao invés, concluíram que houve um afastamento histórico de um predestinarianismo e monergismo original durante a época de Santo Agostinho ou posteriormente, e que esse afastamento fazia parte da corrupção da igreja ocidental que necessitava de reforma.  Como ele foi o primeiro e mais prestigioso questionador das opiniões de Santo Agostinho, São João Cassiano tornou-se um alvo óbvio.

Vendo a posição de sinergia de São João Cassiano como uma espécie de "meio-termo" entre o monergismo humano de Pelágio e o monergismo divino de Santo Agostinho, os reformadores do século 16 cunharam um novo termo: semi-pelagianismo.  Embora agora tivessem um bom termo ligando São João, ironicamente, ao homem cuja heresia ele na verdade tinha submetido à condenação universal, historicamente falando tanto no Ocidente como no Oriente, foi a posição de São João que claramente triunfou não só em termos da história subsequente (que os reformadores poderiam anular como corrompida), mas também entre os seus contemporâneos no século V, muitos dos quais eram simultaneamente considerados pelos reformadores como pilares da ortodoxia.  A fim de completar a revisão histórica, então, a Reforma inicial reacendeu um episódio que ocorreu 100 anos após a morte de São João, ligado a ele apenas no sentido de envolver uma geração subsequente de monges no mosteiro de Marselha que ele tinha fundado.

No início do século VI, uma heresia conhecida como massilianismo surgiu em Provença.  Basicamente, o clero monástico da região estava adiando o batismo para os receptores [os que iriam ser batizados], por acreditar que o batismo, visto como a primeira interação da pessoa humana com a graça divina sacramentalmente, deve ser merecido pelo receptor.  Em termos práticos, um iniciado da fé cristã tinha que se arrepender, corrigir sua vida e tornar-se moralmente puro antecipadamente a fim de ser digno de ser batizado.  Isto foi visto na época como uma forma de pelagianismo, na medida em que considerava como pressuposto necessário que uma pessoa poderia de alguma forma, independentemente da graça divina e da vida da Igreja, aperfeiçoar-se a si mesma para ser digna de ser recebida no Reino.  Esta heresia particular foi condenada por um concílio local, o Segundo Concílio de Orange, em 529.  O Concílio teve o cuidado, porém, além de recondenar o pelagianismo, de condenar também o conceito de reprovação (ou predestinação à condenação) do extremo oposto, e de ensinar claramente que o santo batismo tem como efeito primário a remissão dos pecados.

Apesar do fato de os reformadores negarem a regeneração batismal (que o batismo realmente perdoa pecados) e de acreditarem na doutrina da reprovação tão claramente anatematizada pelo Segundo Concílio de Orange, eles renomearam o massilianismo como um tipo de semi-pelagianismo, então usaram a coincidência de Marselha para ligar esse 'semi-pelagianismo' ao suposto semi-pelagianismo de São João (embora muito diferente), a fim de afirmar que as opiniões de São João Cassiano foram condenadas pelo Segundo Concílio de Orange, apresentando as posições mais extremas de Santo Agostinho como 'a posição patrística'.Apesar da sua falta de base na realidade e da incrível inconsistência da sua lógica, esta narrativa prevalece até hoje em quase todas as abordagens protestantes do tema.  Para agravar a questão, em vez de se juntar à defesa de São João, a Roma de Trento cedeu-lhe completamente, de tal forma que esta narrativa é ainda hoje frequentemente encontrada em fontes Católicas Romanas, optando por retirá-lo do seu calendário e defender apenas o (então) atual ensino sobre o mérito e graça criada infundida.  Na verdade, tal defesa pode ter sido impossível no século XVI, pois as categorias teológicas nas quais Roma então falava tinham "progredido" para tão longe da mente dos Padres que tornaram ininteligível grande parte das suas obras (especialmente os Padres Orientais).

Além das distorções grosseiras da história cristã no Ocidente e da calúnia de um homem grande e santo, esta re-caracterização de São João Cassiano teve um efeito particularmente desastroso: privou os cristãos de alguns dos maiores escritos espirituais da história da Igreja.  São João compôs todas as suas obras em latim, e assim o Oriente só o conheceu (e o amou) através de citações gregas, trechos e resumos.  Suas obras na sua totalidade, no latim original, foram confiadas ao Ocidente e, após o século XVI, foram em grande parte abandonadas.  Talvez a maior prova disso seja o fato de que mesmo um recurso como os Padres Niceno e Pós-Niceno contém apenas trechos dos Institutos e das Conferências.  De fato, a primeira tradução completa das Conferências para o inglês só foi publicada em 1997.  Felizmente, os cristãos da nossa época estão finalmente em condições de resgatar estas obras [1], esta parte da nossa história comum, e o próprio homem São João Cassiano.

[1] Nota do tradutor: As Conferências foram publicadas em português em 3 volumes pela editora Edições Subiaco. 

Atualização: a obra Instituições Cenobíticas também foram publicadas pela mesma editora. 

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