quinta-feira, 27 de fevereiro de 2020

A Encíclica Patriarcal de 1895: Uma resposta à Encíclica Papal do Papa Leão XIII





Comentário

Em 20 de junho de 1895, por ocasião do seu jubileu episcopal, o Papa Leão XIII publicou a sua encíclica "Praeclara gratulationis", dirigida aos chefes de estado e aos povos do mundo. A Igreja Ortodoxa foi convidada a unir-se ao trono papal e a reconhecer o Papa como a Cabeça Suprema da Igreja, no sentido definido pelo dogma do Concílio Vaticano I, mantendo os ortodoxos, bem entendido, as suas próprias línguas e ritos litúrgicos, bem como os seus costumes e tradições diversas.

Ao mesmo tempo, a encíclica recomendava a extensão, no Oriente ortodoxo, do Uniatismo, o envio partindo de Roma de um grande número de agentes que, sob vestes ortodoxas, converteriam, por todos os meios, os ortodoxos.

Diante desta ameaça, e para prevenir e proteger os fiéis da propaganda latina, o Patriarca de Constantinopla publicou a encíclica a seguir.

Dez são os pontos abordados:

1. O Filioque
2. A Primazia e infalibilidade papal
3. O Batismo por aspersão
4. O Pão ázimo para a Eucaristia
5. A consagração dos santos dons pelas palavras do Senhor, e não pela epiclese.
6. A Comunhão dos fiéis sem o Sangue de Cristo.
7. O Purgatório.
8. Os méritos superabundantes dos santos.
9. As indulgências
10. A retribuição e a bem-aventurança plena dos justos e dos santos imediatamente após a morte e antes da Ressurreição universal.


Encíclica 

Aos Santíssimos e Divinamente Amados Irmãos em Cristo Metropolitas e Bispos, ao seu santo e venerável Clero e a todos os leigos piedosos e ortodoxos do Santíssimo Trono Apostólico e Patriarcal de Constantinopla.
"Lembrem-se dos seus líderes, que lhes falaram a palavra de Deus. Observem bem o resultado da vida que tiveram e imitem a sua fé. Jesus Cristo é o mesmo, ontem, hoje e para sempre. Não se deixem levar pelos diversos ensinos estranhos." (Hebreus 13:7-8)
I. Toda alma piedosa e ortodoxa, que tem um zelo sincero pela glória de Deus, fica profundamente triste e abatida com grande dor ao ver que o inimigo do bem, que é um homicida desde o princípio, impelido pela inveja da salvação do homem, nunca deixa de semear continuamente o joio no campo do Senhor, a fim de pisotear o bom grão. Desta fonte, de fato, mesmo desde os primeiros tempos, brotou na Igreja de Deus os joios heréticos, que de muitas maneiras tem feito estragos, e ainda fazem estragos, na salvação da humanidade por Cristo; que, além disso, como más sementes e membros corruptos, são justamente cortados do corpo sadio da Igreja católica ortodoxa de Cristo. Mas nestes últimos tempos o maligno arrancou da Igreja ortodoxa de Cristo até mesmo nações inteiras no Ocidente, tendo inflado os bispos de Roma com pensamentos de arrogância excessiva, o que deu origem a diversas inovações ilegítimas e anti-evangélicas. E não só isso, como também os Papas de Roma, de tempos em tempos, buscando absolutamente e sem examinação modos de união de acordo com sua própria fantasia, esforçam-se por todos os meios para reduzir a seus próprios erros a Igreja católica de Cristo, que em todo o mundo caminha inabalável na ortodoxia da fé transmitida a ela pelos Padres.

II. Assim o Papa de Roma, Leão XIII, por ocasião do seu jubileu episcopal, publicou no mês de junho do ano da graça de 1895 uma carta encíclica, dirigida aos líderes e aos povos do mundo, pela qual convida ao mesmo tempo a nossa Igreja Católica e Apostólica ortodoxa de Cristo a unir-se ao trono papal, pensando que tal união só pode ser obtida reconhecendo-o como o supremo pontífice e o mais elevado governante espiritual e temporal da Igreja universal, como o único representante de Cristo na Terra e dispensador de toda a graça.

III. Sem dúvida, todo coração cristão deve estar preenchido com o desejo da união das Igrejas, e especialmente todo o mundo ortodoxo, sendo inspirado por um verdadeiro espírito de piedade, de acordo com o propósito divino do estabelecimento da Igreja pelo Deus-homem nosso Cristo Salvador, ardentemente deseja a unidade das Igrejas na única regra da fé, e sobre o fundamento da doutrina apostólica que nos foi transmitida através dos Padres, "sendo o próprio Jesus Cristo a principal pedra angular". Por isso também ela, todos os dias, em suas orações públicas ao Senhor, ora pela reunião dos dispersos e pelo retorno para o caminho reto da verdade daqueles que se desviaram, que só ele conduz à Vida de todos, ao Filho unigênito e Verbo de Deus, nosso Senhor Jesus Cristo. [2] De acordo, portanto, com este santo desejo, a nossa Igreja ortodoxa de Cristo está sempre pronta a aceitar qualquer proposta de união, com a condição expressa de que o bispo de Roma abandone definitiva e totalmente todas as numerosas e diversas inovações contrárias ao Evangelho que foram introduzidas na sua Igreja e que provocaram a triste divisão das Igrejas do Oriente e do Ocidente, e retornasse à base dos sete santos Concílios Ecumênicos, que, reunidos no Espírito Santo, com representantes de todas as Igrejas santas de Deus, para a determinação do justo ensinamento da fé contra os hereges, têm na Igreja de Cristo uma supremacia universal e perpétua. E isto, tanto pelos seus escritos como pelas suas cartas encíclicas, a Igreja Ortodoxa nunca deixou de pedir à Igreja Papal, dando-lhe a entender clara e firmemente que qualquer discussão de união seria vã e vazia, enquanto esta Igreja perseverar em suas inovações e enquanto a Igreja Ortodoxa permanecer fiel às tradições divinas e apostólicas do Cristianismo, que o Ocidente também seguiu em uma época em que estava unido em um mesmo espírito com as Igrejas Ortodoxas do Oriente. Por isso, até agora, temos permanecido em silêncio e recusamos levar em consideração a encíclica papal em questão, estimando que não é proveitoso falar aos ouvidos daqueles que não ouvem. Desde certo período, porém, a Igreja Papal, tendo abandonado o método de persuasão e discussão, começou, para nosso espanto geral e perplexidade, a montar armadilhas para a consciência dos cristãos ortodoxos mais simples por meio de trabalhadores dissimulados transformados em apóstolos de Cristo [3], enviando para o Oriente clérigos com vestes e hábitos de sacerdotes ortodoxos, inventando também diversos e outros meios ardilosos para obter seus objetivos proselitistas; por esta razão, acreditamos ser o nosso santo dever, publicar esta encíclica patriarcal e sinodal, para defesa da fé e piedade ortodoxas, sabendo "que a observância dos cânones verdadeiros é um dever para todo homem de bem, e muito mais para aqueles que foram considerados dignos, pela Providência, de governar os assuntos dos outros.' [4]

IV. Como já proclamamos, a Igreja Ortodoxa de Cristo, Una, Santa, Católica e Apostólica, deseja vivamente a santa união, numa só fé, com as Igrejas que se separaram dela, mas sem esta unidade na fé, a união das Igrejas é algo completamente impossível. Assim sendo, perguntamo-nos verdadeiramente como é que o Papa Leão XIII, embora ele próprio também reconheça esta verdade, cai numa simples auto-contradição, declarando, por um lado, que a verdadeira união reside na unidade da fé e, por outro lado, que cada Igreja, mesmo depois da união, pode ter as suas próprias definições dogmáticas e canônicas, mesmo quando diferem das da Igreja Papal, como o Papa declara numa encíclica anterior, datada de 30 de Novembro de 1894. Pois há uma contradição evidente quando em uma mesma Igreja alguém crê que o Espírito Santo procede do Pai, e outro crê que Ele procede do Pai e do Filho; quando um asperge, e outro batiza (mergulha) três vezes na água; um usa pão fermentado no sacramento da Santa Eucaristia, e outro pão ázimo; um distribui ao povo tanto o cálice como o pão, e o outro somente o pão sagrado; e outras coisas como estas. Mas o que esta contradição significa, se o respeito pelas verdades evangélicas da santa Igreja de Cristo e uma concessão indireta e reconhecimento das mesmas, ou algo mais, não sabemos dizer.

V. Mas seja o que for, para a realização prática do desejo piedoso da união das Igrejas, um princípio e uma base comum devem ser estabelecidos em primeiro lugar; e não pode haver um princípio e uma base comum segura a não ser o ensinamento do Evangelho e dos sete santos Concílios Ecumênicos. Voltando ao ensinamento que era comum às Igrejas do Oriente e do Ocidente até ao cisma, é necessário procurar com sincero desejo de verdade, qual era a fé da Una, Santa Igreja Católica e Apostólica, que formava então, no Oriente e no Ocidente, um só corpo, a fim de manter esta fé intacta e inalterada. Mas o que quer que tenha sido acrescentado ou removido em tempos posteriores, cada um tem um dever santo e indispensável, se ele busca sinceramente a glória de Deus mais do que a sua própria glória, que num espírito de piedade corrija isto, considerando que, continuando arrogantemente na perversão da verdade, ele está sujeito a uma pesada acusação perante o tribunal imparcial de Cristo. Ao dizer isto, não nos referimos de modo algum às diferenças em relação ao rito dos santos ofícios, aos hinos, ou às vestimentas sagradas, e afins, coisas que sempre existiram e que não prejudicam minimamente a substância e a unidade da fé; mas referimo-nos às diferenças essenciais que se referem às doutrinas divinamente transmitidas da fé, e à constituição canônica divinamente instituída do governo das Igrejas. "Nos casos em que a coisa desconsiderada não é a fé" - diz também o santo Fócio [5]  - "e não há afastamento de nenhum decreto geral e católico, diferentes ritos e costumes sendo seguidos entre diferentes povos, um homem que sabe julgar corretamente decidiria que nem os que os seguem agem erroneamente, nem os que não os receberam violam a lei". [6]

VI. Nesta perspectiva, pela santa causa de união, a Igreja de Cristo Ortodoxa e Católica no Oriente está disposta a aceitar de todo o coração tudo o que as Igrejas do Oriente e do Ocidente confessaram unanimemente antes do século IX, se ela por acaso modificou ou abandonou algo. Se os ocidentais conseguirem provar, com base nos ensinamentos dos Santos Padres e dos Concílios divinamente reunidos antes do século IX, que a então Igreja Ortodoxa de Roma, que tinha jurisdição sobre o Ocidente, antes desta data, lia o credo com a adição do Filioque, e usava o pão ázimo, aceitava a doutrina do fogo do purgatório, aspergia em vez de batizar, acreditava na concepção imaculada da sempre-virgem Maria, no poder temporal, na infalibilidade e no absolutismo do bispo de Roma, então não temos mais nada a dizer. Mas se, pelo contrário, for provado, como reconhecem certos latinos que amam a verdade, que a Igreja de Cristo Ortodoxa e Católica no Oriente guarda as doutrinas transmitidas e confessadas desde o início, que na época eram professadas em comum tanto no Oriente como no Ocidente, e que a Igreja Ocidental as perverteu por diversas inovações, então torna-se claro, mesmo para uma criança, que o meio mais simples de realizar a união é o retorno da Igreja Ocidental à sua situação doutrinal e canônica anterior, pois a fé não muda de acordo com o tempo e as circunstâncias, mas permanece sempre a mesma e em toda a parte, como escreve o apóstolo: Há um só corpo e um só Espírito, como também fostes chamados em uma só esperança da vossa vocação; um só Senhor, uma só fé, um só batismo; um só Deus e Pai de todos, o qual é sobre todos, e por todos e em todos vós. [7]

VII. Assim, a Igreja una, santa, católica e apostólica dos sete Concílios Ecumênicos, confessa e ensina, fiel ao Evangelho, que o Espírito Santo procede do Pai. Mas no Ocidente, a partir do século IX, o santo credo composto e aprovado pelos Concílios Ecumênicos foi falsificado e a idéia de que o Espírito Santo procedia também do Filho (Filioque) foi arbitrariamente difundida. E certamente, o Papa Leão XIII sabe que seu predecessor e homônimo, o Papa ortodoxo Leão III, confessor da ortodoxia, condenou sinodicamente, no ano 809, a adição do Filioque como sendo contrária ao Evangelho e totalmente ilegítima, e que em seguida mandou gravar em duas placas de prata, em grego e latim, o santo Credo Niceno-Constantinopolitano, completo e sem qualquer adição; tendo, além disso, escrito: "Eu, Leão, preparei estas placas por amor e para a salvaguarda da fé ortodoxa." (Haec Leo posui amore et cautela fidei orthodoxa). [8]

O Papa não pode ignorar que, ao longo do século X e no início do século XI, esta adição ilegítima, contrária ao Evangelho, foi inserida no credo em Roma e que, a Igreja Romana, persistindo em inovações e recusando-se a voltar ao dogma dos Concílios Ecumênicos, é necessariamente a única responsável pelo cisma aos olhos da Igreja Una, Santa, Católica e Apostólica de Cristo, que guarda o que recebeu dos Padres e conserva intacto em todas as coisas o depósito da fé que lhe foi entregue, em obediência à ordem Apostólica: Guarda o bom depósito pelo Espírito Santo que habita em nós; Guarda o depósito que te foi confiado. Evite as conversas inúteis e profanas e as ideias contraditórias do que é falsamente chamado conhecimento Professando-o, alguns desviaram-se da fé. [9] 

VIII. A Igreja Una, Santa, Católica e Apostólica dos primeiros Concílios Ecumênicos batizados por tripla imersão, e o Papa Pelágio disse que a tripla imersão é um "mandamento do Senhor". No século XIII, o batismo por imersão ainda prevalecia no Ocidente, e as santas fontes batismais que foram preservadas nas igrejas mais antigas da Itália são um testemunho convincente disso. Mas, em tempos posteriores, a aspersão ou efusão, sendo introduzida, veio a ser aceita pela Igreja Papal, que ainda mantém a inovação, aumentando assim também o abismo que ela cavou;  mas nós, Ortodoxos, fiéis à Tradição Apostólica e à prática da Igreja dos Sete Concílios Ecumênicos, "conservamos bem", segundo as palavras de São Basílio, "e lutamos pela confissão comum, guardando preciosamente o tesouro da fé correta legada pelos nossos Padres".[10]

IX. A Igreja Una, Santa, Católica e Apostólica dos Sete Concílios Ecumênicos, seguindo o próprio exemplo do nosso Salvador, celebrou a santa e divina liturgia durante quase mil anos, tanto no Ocidente como no Oriente, com pão fermentado, como testemunham os teólogos ocidentais que amam a verdade. Mas o Papado, desde o século XI, também fez uma inovação no santo e divino sacramento da Eucaristia ao introduzir o pão ázimo.

X. A Igreja Una, Santa, Católica e Apostólica dos Sete Concílios Ecumênicos sempre afirmou que os santos dons são consagrados após a oração de invocação ao Espírito Santo pela bênção do sacerdote, como podem testemunhar os antigos rituais de Roma e da Gália. Entretanto, o papado inovou nisto também, ao aceitar arbitrariamente a consagração dos dons preciosos como ocorrendo junto com a pronunciação das palavras do Senhor: "Tomai, comei, isto é o meu corpo" e "Bebei dele todos, porque isto é o meu sangue." [11]

XI. A Igreja Una, Santa, Católica e Apostólica dos Sete Concílios Ecumênicos, fiel ao mandamento do Senhor "Bebei dele todos", [12] concedeu também o Santo Cálice a todos fiéis. Mas, o Papado, desde o século XI, inovou ao privar os leigos do Santo Cálice. Também transgrediu a ordem do Senhor e contrariou a prática universal da Igreja e as numerosas proibições formais dos antigos bispos ortodoxos de Roma.

XII. A Igreja Una, Santa, Católica e Apostólica dos Sete Concílios Ecumênicos, seguindo os passos dos Apóstolos, da Tradição e da Sagrada Escritura, ora e invoca a misericórdia de Deus pelo perdão e descanso daqueles 'que adormeceram no Senhor.' [13] Mas a Igreja Papal, a partir do século XII, inventou e concedeu como privilégio particular ao Papa uma multidão de inovações, o fogo do purgatório, a superabundância das virtudes dos santos e sua distribuição para aqueles que necessitam delas, entre outras, até mesmo afirmando que há uma recompensa plena para os justos antes da Ressurreição e do Juízo universal.

XIII. A Igreja Una, Santa, Católica e Apostólica dos Sete Concílios Ecumênicos ensina que apenas a encarnação sobrenatural do Filho Unigênito e Verbo de Deus, Sua Encarnação do Espírito Santo e de Maria, é pura e imaculada; mas a Igreja Papal, há quase quarenta anos atrás, inovou mais uma vez ao estabelecer um novo dogma relativo à concepção imaculada da Mãe de Deus e sempre-Virgem Maria, que era desconhecido pela antiga Igreja (e fortemente combatido em diferentes épocas até pelos mais distintos entre os teólogos papais).

XIV. Desconsiderando, portanto, estas sérias e substanciais diferenças entre as duas igrejas no que diz respeito à fé, diferenças que, como já foi dito, foram criadas no Ocidente, o Papa, na sua encíclica, apresenta a questão da primazia do Romano Pontífice como a principal e, por assim dizer, a única causa da dissensão, e encaminha-nos para as fontes, para que possamos fazer uma busca cuidadosa sobre o que os nossos antepassados acreditavam e sobre o que a primeira era do cristianismo nos legou. Mas tendo consultado os Padres e os Concílios Ecumênicos da Igreja dos primeiros nove séculos, estamos plenamente convencidos de que o Bispo de Roma nunca foi considerado como a suprema autoridade e a cabeça infalível da Igreja, e que cada Bispo é a cabeça e o líder da sua Igreja particular, sujeito apenas às ordenanças sinodais e às decisões da Igreja universal, a única que é infalível. O Bispo de Roma não estava de modo algum isento desta regra, como demonstra a história da Igreja. Só Nosso Senhor Jesus Cristo é o Príncipe eterno e Cabeça imortal da Igreja, pois 'Ele é a Cabeça do corpo, a Igreja' [14], que disse também aos Seus divinos discípulos e apóstolos na Sua ascensão aos céus: 'eis que eu estou convosco todos os dias, até a consumação dos séculos' [15]. Na Sagrada Escritura, o Apóstolo Pedro, a quem os papistas, apoiando-se nos livros apócrifos do segundo século, os pseudo-Clementinos, imaginam com um propósito ser o fundador da Igreja Romana e seu primeiro bispo, discute os assuntos como um igual entre iguais no sínodo apostólico de Jerusalém, e em outro momento é severamente repreendido pelo Apóstolo Paulo, como é evidente na Epístola aos Gálatas [16]. Além disso, os próprios papistas sabem bem que a passagem do Evangelho a que o Pontífice se refere, "Tu és Pedro, e sobre esta pedra edificarei a minha Igreja" [17], é nos primeiros séculos da Igreja interpretada de forma totalmente diferente, num espírito de ortodoxia, tanto pela tradição como por todos os Padres divinos e santos sem excepção; a pedra fundamental e inabalável sobre a qual o Senhor edificou a Sua própria Igreja, contra a qual as portas do inferno não prevalecerão, é metaforicamente entendida como sendo a verdadeira confissão de Pedro a respeito do Senhor, de que 'Ele é Cristo, o Filho do Deus vivo.' [18] Sobre esta confissão e fé, a pregação salvífica do Evangelho por todos os apóstolos e seus sucessores repousa inabalável. Daí também o apóstolo Paulo, que foi arrebatado ao céu, evidentemente interpretando esta passagem divina, declara a inspiração divina, dizendo:  "Segundo a graça de Deus que me foi dada, pus eu, como sábio arquiteto, o fundamento, e outro edifica sobre ele. Porque ninguém pode pôr outro fundamento além do que já está posto, o qual é Jesus Cristo." [19] Mas é num outro sentido que Paulo chama todos os apóstolos e profetas juntos o fundamento da edificação dos fiéis em Cristo; isto é, os membros do corpo de Cristo, que é a Igreja, [20] quando escreve aos Efésios: "Assim que já não sois estrangeiros, nem forasteiros, mas concidadãos dos santos, e da família de Deus; edificados sobre o fundamento dos apóstolos e dos profetas, de que Jesus Cristo é a principal pedra angular." [21] Assim, sendo tal o ensinamento divinamente inspirado dos apóstolos a respeito da fundação e Príncipe da Igreja de Deus, é claro que os santos Padres, que mantiveram firmemente as tradições apostólicas, não podiam ter ou conceber qualquer idéia de uma primazia absoluta do Apóstolo Pedro e dos bispos de Roma; nem podiam dar qualquer outra interpretação, totalmente desconhecida para a Igreja, a essa passagem do Evangelho, senão a que era verdadeira e correta; nem poderiam, arbitrariamente e por si mesmos, inventar uma nova doutrina a respeito dos privilégios excessivos do Bispo de Roma como sucessor, supostamente, de Pedro; especialmente considerando que a Igreja de Roma foi fundada, não por Pedro, cuja ação apostólica em Roma é totalmente desconhecida para a história, mas pelo apóstolo dos gentios, Paulo, que foi arrebatado ao céu, através dos seus discípulos, cujo ministério apostólico em Roma é bem conhecido por todos. [22]

XV. Os divinos Padres, honrando o Bispo de Roma apenas como bispo da capital do Império, deram-lhe a prerrogativa honorária de presidência, considerando-o simplesmente como o bispo primeiro na ordem, ou seja, primeiro entre iguais; prerrogativa que também atribuíram posteriormente ao Bispo de Constantinopla, quando esta cidade se tornou a capital do Império Romano, como testemunha o XXVIII Cânon do IV Concílio Ecumênico de Calcedônia, dizendo, entre outras coisas, o seguinte "Nós também determinamos e decretamos as mesmas coisas a respeito das prerrogativas da Igreja Santíssima de Constantinopla, que é a Nova Roma. Pois os Padres deram justificadamente a prerrogativa ao trono da velha Roma, porque ela era a cidade imperial. E os cento e cinquenta bispos muito devotos, movidos pela mesma consideração, atribuíram uma prerrogativa igual ao trono santíssimo da Nova Roma". A partir deste cânon é muito evidente que o Bispo de Roma é igual em honra do Bispo da Igreja de Constantinopla e aos das outras Igrejas, e não há nenhuma alusão feita em qualquer cânon ou por qualquer dos Padres de que somente o Bispo de Roma tenha sido príncipe da Igreja universal e juiz infalível dos Bispos das outras Igrejas independentes e autogovernadas, ou sucessor do Apóstolo Pedro e vigário de Jesus Cristo na terra.

XVI. Cada Igreja particular autogovernada, tanto no Oriente como no Ocidente, era totalmente independente e autoadministrada na época dos Sete Concílios Ecumênicos. E assim como os bispos das Igrejas autogovernadas do Oriente, assim também os bispos da África, Espanha, Gália, Alemanha e Grã-Bretanha administravam os assuntos das suas próprias Igrejas, cada um através dos seus sínodos locais, não tendo o bispo de Roma o direito de interferir, e sendo ele mesmo igualmente sujeito e obediente aos decretos dos sínodos. Mas a respeito de questões importantes, que precisavam da sanção da Igreja universal, um apelo era feito a um Concílio Ecumênico, que era e é o único tribunal supremo da Igreja universal. Tal era a antiga constituição da Igreja; mas os bispos eram independentes uns dos outros e cada um totalmente livre dentro dos seus próprios limites, obedecendo apenas aos decretos sinodais, e sentavam-se como iguais uns aos outros nos sínodos. Além disso, nenhum deles jamais reivindicou direitos monárquicos sobre a Igreja universal; e se algumas vezes certos bispos ambiciosos de Roma apresentaram reivindicações excessivas a um absolutismo desconhecido para a Igreja, tais foram devidamente reprovados e censurados. Portanto, a afirmação de Leão XIII, quando diz na sua Encíclica que antes do período do grande Fócio o nome do trono romano era santo entre todos os povos do mundo cristão, e que o Oriente, assim como o Ocidente, em um só acordo e sem oposição, estava sujeito ao pontífice romano como sucessor legítimo, por assim dizer, do Apóstolo Pedro, e consequentemente vigário de Jesus Cristo na terra, revela-se imprecisa e um erro manifesto.

XVII. Durante os nove séculos dos Concílios Ecumênicos, a Igreja Ortodoxa Oriental nunca reconheceu as pretensões excessivas de primazia por parte dos bispos de Roma, nem, consequentemente, se submeteu a elas, como a história da Igreja claramente testemunha. A relação independente do Oriente com o Ocidente é demonstrada clara e manifestamente também por aquelas poucas e muito significativas palavras de Basílio o Grande, que ele escreveu numa carta ao santo Eusébio, bispo de Samosata: "Porque quando se cortejam personagens soberbos, é da sua natureza tornar-se ainda mais desdenhosos. Pois se o Senhor tem misericórdia de nós, de que outro auxílio precisamos? Mas se a ira de Deus cai repousa sobre nós, que auxílio há para nós vindo da arrogância ocidental? Homens que não conhecem a verdade nem podem suportar aprendê-la, mas prejudicados por falsas suspeitas, agem agora como faziam antes no caso de Marcellus". [23]  A celebrado Fócio, o santo Prelado e luminar de Constantinopla, portanto, defendendo esta independência da Igreja de Constantinopla depois de meados do século IX, e prevendo a iminente perversão da constituição eclesiástica no Ocidente, e a sua defecção do Oriente ortodoxo, a princípio se esforçou de forma pacífica para evitar o perigo; mas o Bispo de Roma, Nicolau I, com a sua interferência não-canônica no Oriente, para além dos limites da sua diocese, e com a tentativa que fez para subjugar a si mesmo a Igreja de Constantinopla, levou ao limiar do cisma doloroso das Igrejas. As primeiras sementes dessas pretensões de absolutismo papal foram disseminadas por torda parte nas pseudo-Clementinas, e foram cultivadas, exatamente na época desse Nicolau, nos chamados decretos pseudo-Isidorianos, que são um emaranhado de decretos reais e cartas de antigos bispos de Roma, falsificados e forjados, através dos quais, contrariamente à verdade da história e à constituição estabelecida da Igreja, foi propositadamente promulgado que, conforme eles dizem, a antiguidade cristã atribuía aos bispos de Roma uma autoridade ilimitada sobre a Igreja universal.

XVIII. Estes fatos recordamos com tristeza, na medida em que a Igreja Papal, embora agora reconheça o caráter espúrio e forjado destes decretos nos quais baseiam suas pretensões excessivas, não só se recusa obstinadamente a voltar aos cânones e decretos dos Concílios Ecumênicos, mas mesmo nos últimos anos do século XIX ampliou o abismo existente, proclamando oficialmente, para o espanto do mundo cristão, que o Bispo de Roma é até mesmo infalível. A Igreja ortodoxa oriental e católica de Cristo, com exceção do Filho e Verbo de Deus, que inefavelmente se fez homem, não conhece ninguém infalível na terra. Até o próprio apóstolo Pedro, cujo sucessor o Papa considera ser, negou três vezes o Senhor, e foi repreendido duas vezes pelo apóstolo Paulo, como não andando de acordo com a verdade do Evangelho. [24] Mais tarde o Papa Libério, no século IV, subscreveu uma confissão ariana; e igualmente Zósimo, no século V, aprovou uma confissão herética, negando o pecado original. Virgílio, no século VI, foi condenado por ter opiniões erradas pelo quinto Concílio; e Honório, tendo caído na heresia monotelita, foi condenado no século VII pelo sexto Concílio Ecumênico como um herege, e os papas que o sucederam reconheceram e aceitaram a sua condenação.

XIX. Com estes e tais fatos em vista, os povos do Ocidente, civilizados gradualmente pela difusão das letras, começaram a protestar contra as inovações e a exigir (como foi feito no século XV nos Concílios de Constança e Basiléia) o retorno à constituição eclesiástica dos primeiros séculos, à qual, pela graça de Deus, as Igrejas ortodoxas do Oriente e do Norte, as únicas que formam agora a Igreja una, santa, católica e apostólica de Cristo, coluna e fundamento da verdade, permanecem e sempre permanecerão fiéis. O mesmo foi feito no século XVII pelos doutos teólogos galicanos, e no século XVIII pelos bispos da Alemanha; e neste século atual da ciência e da crítica, a consciência cristã ergueu-se num só corpo no ano de 1870, nas pessoas dos célebres clérigos e teólogos da Alemanha, devido ao novo dogma da infalibilidade dos Papas, proclamado pelo Concílio Vaticano, cuja consequência resultou na formação das comunidades religiosas separadas dos Velhos Católicos, que, tendo rejeitado o papado, são bem independentes dele.

XX. Em vão, portanto, o Bispo de Roma nos encaminha às fontes para que busquemos cuidadosamente o que nossos antepassados acreditavam e o que o primeiro período do cristianismo nos transmitiu. Nessas fontes nós, ortodoxos, encontramos as doutrinas antigas e divinamente transmitidas, às quais guardamos diligentemente até o tempo presente, e em nenhum lugar encontramos as inovações que o Ocidente introduziu mais tarde, em tempos de indigência espiritual, e que a Igreja Papal adotou e mantém até hoje. A Igreja ortodoxa oriental gloria-se, assim, justamente em Cristo como sendo a Igreja dos sete Concílios Ecumênicos e dos primeiros nove séculos do cristianismo e, portanto, a Igreja una, santa, católica e apostólica de Cristo, "coluna e fundamento da verdade"; [25] mas a Igreja romana atual é a Igreja das inovações, da falsificação dos escritos dos Padres da Igreja, da má interpretação da Sagrada Escritura e dos decretos dos santos Concílios, pelas quais ela foi razoável e justamente repudiada, e ainda é repudiada, na medida em que permanece em seu erro. "Porque melhor é uma guerra digna de louvor do que uma paz que nos separa de Deus", como diz também Gregório de Nazianzo.

XXI. Tais são, resumidamente, as inovações sérias e arbitrárias relativas à fé e à constituição administrativa da Igreja, que a Igreja Papal introduziu e que, é evidente, a Encíclica Papal propositadamente ignora em silêncio. Estas inovações, que se referem a pontos essenciais da fé e do sistema administrativo da Igreja, e que se opõem manifestamente à condição eclesiástica dos primeiros nove séculos, tornam impossível a tão desejada união das Igrejas: e todo coração piedoso e ortodoxo se enche de inexprimível tristeza ao ver a Igreja Papal persistir desdenhosamente nelas, e não contribuindo minimamente para o propósito santo da união através da rejeição dessas inovações heréticas e do retorno à antiga condição da Igreja una, santa, católica e apostólica de Cristo, da qual ela também fazia parte naquela época.

XXII. Mas o que dizer acerca de tudo o que o Romano Pontífice escreve quando se dirige às gloriosas nações eslavas? Ninguém, de fato, jamais negou que pela virtude e pelos esforços apostólicos de São Cirilo e Metódio a graça da salvação foi concedida a muitos dos povos eslavos: mas a história testemunha que no período do grande Fócio, esses apóstolos gregos dos eslavos e amigos íntimos desse Santo Padre, saindo de Tessalônica, foram enviados para converter as tribos eslavas, não a partir de Roma, mas a partir de Constantinopla, cidade onde foram formados, vivendo como monges no mosteiro de São Policrono. É portanto totalmente incoerente o que é proclamado na Encíclica do Pontífice Romano, que, como ele diz, houve uma relação de bondade e simpatia mútua entre as tribos eslavas e os pontífices da Igreja Romana; pois mesmo que o Papa não saiba, a história ensina-nos explicitamente que os santos apóstolos dos eslavos, de quem falamos, encontraram grandes dificuldades nas suas obras e mesmo excomunhões e oposição por parte dos bispos de Roma, e foram mais cruelmente perseguidos pelos bispos papais francos do que pelos habitantes pagãos daquelas regiões. Certamente o Papa sabe bem que o bem-aventurado Metódio, tendo partido para o Senhor, duzentos dos mais distintos dos seus discípulos depois de muitas lutas contra a oposição dos Pontífices Romanos, foram expulsos da Morávia e levados pela força militar para além das suas fronteiras, de onde posteriormente foram dispersos na Bulgária e noutros lugares. E ele sabe também que com a expulsão do clero eslavo mais erudito, o rito oriental, assim como a linguagem eslava então em uso, também foram suprimidos e, pouco a pouco, todos os vestígios da ortodoxia desapareceram daquelas províncias, e todas estas coisas foram feitas com a cooperação oficial dos bispos de Roma, de uma maneira nem um pouco honrosa em relação à santidade da dignidade episcopal. Mas apesar de todo esse tratamento arrogante, as Igrejas ortodoxas eslavas, as amadas filhas do Oriente ortodoxo, e especialmente a grande e gloriosa Igreja da Rússia divinamente preservada, tendo sido conservadas isentas de danos pela graça de Deus, guardaram, e guardarão até o fim dos tempos, a fé ortodoxa e testemunharão a liberdade encontrada em Cristo. Em vão, portanto, a Encíclica Papal promete às Igrejas Eslavas prosperidade e grandeza, porque pela boa vontade do Deus mais gracioso elas já possuem essas bênçãos e permanecem firmes na ortodoxia de seus Pais e se orgulham dela em Cristo.

XXIII. Sendo estas coisas assim, e sendo provadas inquestionavelmente pela história eclesiástica, nós, desejosos como é nosso dever, nos dirigimos aos povos do Ocidente que, com credulidade, por ignorância da história verdadeira e imparcial dos assuntos eclesiásticos, tendo se deixado levar, seguem as inovações anti-evangélicas e totalmente ilegítimas do papado, tendo sido separados e continuando longe da Igreja una, católica, apostólica e ortodoxa de Cristo, que é "a Igreja do Deus vivo, coluna e terra da verdade", [26] na qual também os seus graciosos antepassados brilharam pela sua piedade e ortodoxia de fé, tendo sido membros fiéis e preciosos dela durante nove séculos inteiros, seguindo obedientemente e andando segundo os decretos dos Concílios Ecumênicos divinamente reunidos.

XXIV. Povos que amam a Cristo dos países gloriosos do Ocidente! Regozijamo-nos, por um lado, vendo que tendes um zelo por Cristo, sendo guiados por esta reta convicção, 'de que sem fé em Cristo é impossível agradar a Deus'; [27] mas, por outro lado, é evidente para qualquer pessoa sensata que a fé salutar em Cristo deve, por todos os meios, ser reta em tudo, e de acordo com a Sagrada Escritura e as tradições apostólicas, nas quais se baseiam os ensinamentos dos Padres divinos e os sete Concílios Ecumênicos santos e divinamente reunidos. Além disso, é manifesto que a Igreja universal de Deus, que mantém em seu seio esta fé salutar e única, inalterada, integral, como um depósito divino, tal como outrora foi entregue e pregada pelos Padres teóforos guiados pelo Espírito, e formulada por eles durante os primeiros nove séculos, é uma e a mesma para sempre, e não múltipla e variável com o passar dos séculos: porque as verdades do evangelho nunca são suscetíveis de alteração ou progresso no decorrer do tempo, como os vários sistemas filosóficos; 'pois Jesus Cristo é o mesmo ontem, e hoje, e para sempre'.' [28] Por isso também o santo Vicente, que foi alimentado com o leite da piedade recebido dos Padres no mosteiro de Lérins, na Gália, e floresceu em meados do século V, com grande sabedoria e ortodoxia caracteriza a verdadeira catolicidade da fé e da Igreja, dizendo: "Na Igreja Católica, devemos sobretudo preocupar-nos em guardar o que tem sido crido em toda a parte, em todos os tempos e por todos. Pois isso é verdadeira e propriamente católico, em toda a força e significado da palavra, que quer dizer 'compreende tudo universalmente.'  Esta regra observaremos se seguirmos a universalidade, a antiguidade e o consentimento." [29] Mas, como já foi dito antes, a Igreja Ocidental, do século X em diante, introduziu no seu interior, através do papado, várias estranhas e heréticas doutrinas e inovações, e assim ela foi separada e afastada da verdadeira e ortodoxa Igreja de Cristo. Quão necessário, pois, é que volteis e regresseis às antigas e inalteradas doutrinas da Igreja para alcançar a salvação em Cristo, que tanto desejais, se considerardes atentamente o mandamento do apóstolo Paulo, que foi arrebatado ao céu, aos tessalonicenses, que diz: "Então, irmãos, estai firmes e retende as tradições que vos foram ensinadas, seja por palavra, seja por epístola nossa." [30] e também o que o mesmo santo apóstolo escreve aos gálatas dizendo: "Admiro-me de que vocês estejam abandonando tão rapidamente aquele que os chamou pela graça de Cristo, para seguirem outro evangelho que, na realidade, não é o evangelho. O que ocorre é que algumas pessoas os estão perturbando, querendo perverter o evangelho de Cristo." [31] Mas evita tais pervertedores da verdade evangélica: 'Pois essas pessoas não estão servindo a Cristo, nosso Senhor, mas a seus próprios apetites. Mediante palavras suaves e bajulação, enganam os corações dos simples' [32] e volta agora para o seio da Igreja santa, católica e apostólica de Deus, que compreende todas as Igrejas plantadas por Deus como ricas videiras em todo o mundo ortodoxo, e que estão inseparavelmente unidas umas às outras pela fé salvífica em Cristo, na paz e no Espírito Santo, para que o venerável e magnífico Nome do nosso Deus e Salvador Jesus Cristo, que sofreu pela salvação do mundo, seja também glorificado entre vós.

XXV. Quanto a nós, que pela graça e vontade misericordiosa de Deus somos membros preciosos do Corpo de Cristo, isto é, da Sua Igreja Una, Santa, Católica e Apostólica, guardemos firmemente a piedade dos nossos Padres, tal como nos foi transmitida desde os tempos apostólicos. Cuidado com os falsos apóstolos, que, vindo até nós em pele de ovelha, tentam seduzir os mais simples entre nós com várias promessas enganosas, considerando todas as coisas como lícitas e permitindo-as em nome da união, com a única condição de que o Papa de Roma seja reconhecido como soberano supremo e infalível e soberano absoluto da Igreja universal, e único representante de Cristo na terra, e fonte de toda a graça. E especialmente nós, que pela graça e misericórdia de Deus fomos designados bispos, pastores e doutores das santas Igrejas de Deus, 'tenhamos cuidado de nós mesmos, e de todo o rebanho, sobre o qual o Espírito Santo nos constituiu bispos, para apascentarmos a Igreja de Deus, que Ele resgatou com o Seu próprio sangue', [33] como aqueles que devem prestar contas.'Por isso, confortai-vos e edificai-vos uns aos outros'. [34] 'O Deus de toda a graça, que os chamou para a sua glória eterna em Cristo Jesus... os confirmará, lhes dará forças e os estabelecerá" [35] e que Ele faça com que todos aqueles que estão fora e afastados do rebanho uno, santo, católico e ortodoxo das Suas ovelhas razoáveis possam ser iluminados com a luz da Sua graça e com o reconhecimento da verdade. A Ele sejam a glória e o reino para todo o sempre.

Amém. 

No Palácio Patriarcal de Constantinopla, no mês de agosto do ano de graça MDCCCXCV (1895).

+ ANTIMOS de Constantinopla, amado irmão e intercessor em Cristo nosso Deus.

+ NICODEMOS de Cizicos, irmão amado e intercessor em Cristo nosso Deus.

+ FILOTEU de Nicomedia, irmão amado e intercessor em Cristo nosso Deus.

+ JERÔNIMO de Nicéia, amado irmão e intercessor em Cristo nosso Deus.

+ NATANAEL de Prusa, irmão amado e intercessor em Cristo nosso Deus.

+ BASÍLIO de Esmirna, irmão amado e intercessor em Cristo nosso Deus.

+ ESTEVÃO de Filadélfia, irmão amado e intercessor em Cristo nosso Deus.

+ ATANÁSIO de Lemnos, irmão amado e intercessor em Cristo nosso Deus.

+ BESSARIÃO de Dyrrachium, irmão amado e intercessor em Cristo nosso Deus.

+ DOROTEU de Belgrado, irmão amado e intercessor em Cristo nosso Deus.

+ NICODEMOS de Elasson, irmão amado e intercessor em Cristo nosso Deus.

+ SOFRÔNIO de Cárpatos e Cassos, irmão amado e intercessor em Cristo nosso Deus.

+ DIONÍSIO de Eleuterópolis, irmão amado e intercessor em Cristo nosso Deus.

Notas

1. Ef. 2:20.

2. João 14:6.

3. II Cor. 11:13.

4. Fócio Epístola. iii. 10.

5. Patriarca de Constantinopla; c. 800.

6. Fócio Epístola iii. 6.

7. Ef. 4.5-6.

8. Veja a vida de Leão III por Atanásio, presbítero e bibliotecário em Roma, em sua obra Vida dos Papas. Também o santo Fócio, fazendo menção a esta invectiva do Papa ortodoxo de Roma, Leão III, contra os detentores da doutrina errônea, em sua famosa carta ao Metropolita de Acquileia, se expressa da seguinte forma:  "Pois (sem mencionar aqueles que o antecederam) Leão mais velho, prelado de Roma, assim como Leão mais novo depois dele, mostram-se do mesmo espírito com a Igreja católica e apostólica, com os santos prelados seus predecessores, e com os mandamentos apostólicos; o primeiro tendo contribuído muito para a reunião do quarto santo Concílio Ecumênico, tanto pelos santos homens que foram enviados para representá-lo, como pela sua carta, pela qual tanto Nestório como o Eutiques foram derrotados; por essa carta ele, além disso, de acordo com os decretos sinodais anteriores, declarou que o Espírito Santo procedia do Pai, mas não também "do Filho". E da mesma forma Leão mais jovem, seu homólogo na fé, assim como no nome. Este último, de fato, que era ardentemente zeloso pela verdadeira piedade, a fim de que o padrão imaculado da verdadeira piedade não fosse de forma alguma falsificado por uma língua bárbara, publicou-o em grego, como já foi dito no início, para o povo do Ocidente, a fim de que assim glorificassem e pregassem corretamente a Santíssima Trindade. E não só por palavra e ordem, mas também, tendo-a inscrito e exposto à vista de todos em certas placas especialmente feitas, como em certos monumentos, fixou-as às portas da Igreja, para que cada pessoa aprendesse facilmente a fé incontaminada, e para que não fosse deixada qualquer possibilidade aos forjadores secretos e inovadores de adulterar a piedade de nós cristãos, e de apresentar o Filho juntamente com o Pai como uma segunda causa do Espírito Santo, que procede do Pai com honra igual à do Filho gerado. E não foram só estes dois santos homens, que brilharam intensamente no Ocidente, que preservaram a fé livre de inovações; pois a Igreja não está em tanta carência como a dos pregadores ocidentais; mas há também uma multidão deles que não pode ser facilmente contada e que agiu da mesma maneira." - Epist. v. 53.

9. III Tim. 1:14; 1 Tim. 6:20-21.

10. São Basílio, o Grande, Ep. 243, Aos Bispos da Itália e da Gália.

11. Mt. 26,26.28.

12. Mat. 26:28.

13. Mat. 26:31; Heb. 11:39-40; II Tim. 4:8; II Macc. 12:45.

14. Col. 1:18.

15. Mat. 28:20.

16. Gal. 2:11.

17. Mat. 16:18.

18. Mat. 16:16.

19. 1 Cor. 3:10, 11.

20. Cor. 1:24.

21. Ef. 2:19, 20. Cp. 1 Pd. 2:4; Apoc. 21:14.

22. Veja Atos dos Apóstolos 28.15, Rom. 15.15-16; Fil. 1:13.

23. Epístola. 239.

24. Gal. 2:11.

25. I Tim. 3:15.

26. I Tim. 3:15.

27. Heb. 11:6.

28. Heb. 13:8.

29. 'In ipsa item Catholica Ecclesia magnopere curandum est, ut teneamus, quod ubique quod semper ab omnibus creditum est. Hoc est enim vere proprieque Catholicum (quod ipsa vis nominis ratioque declarat), quod omnia fere universaliter comprehendit. Sed hoc fiet si sequimur universalitatem, antiquitatem, consensionem' (Vincentii Lirinensis Commonitorium pro Catholica fidei antiquitate et universalitate cap. iii, cf. cap. viii and xiv).

30. 1 Tess. 2:15.

31. Gal. 1:6-7.

32. Rom. 16:18.

33. Atos 20:28.

34. I Tess. 5:11.

35. I Pedro 5:10.

Nota do tradutor: A presente tradução foi baseada nas versões em inglês e espanhol da encíclica.

terça-feira, 11 de fevereiro de 2020

Casamento, divórcio e novo casamento na Igreja Ortodoxa (Bispo Athenagoras Peckstadt)

Economia e Orientação Pastoral por D. Athenagoras (Peckstadt) de Sinope[1].
Congresso Internacional - Universidade Católica de Leuven (18-20 de Abril de 2005)


1. INTRODUÇÃO


Muitas vezes se pergunta qual é a posição da Ortodoxia sobre o casamento. A resposta a essa pergunta deve ser procurada no ensino Ortodoxo a respeito do "mistério ou sacramento" do matrimônio. Sabemos também que a Igreja Católica Romana considera o matrimônio como um sacramento. Há, porém, uma diferença muito importante que deve ser esclarecida aqui. Em primeiro lugar, a Igreja Católica Romana considera que a noiva e o noivo executam eles mesmos o matrimônio, em seus votos um para o outro. Na Igreja Ortodoxa é o sacerdote ou o bispo que consagra o casamento, que invoca a Deus em nome da comunidade e pede que o Espírito Santo seja enviado (epiclesis) sobre o homem e a mulher e assim os faça "uma só carne". Além disso, o matrimônio é para a Igreja Ortodoxa mais um caminho espiritual, uma busca de Deus, o mistério da unidade e do amor, o retrato preparatório do Reino de Deus, do que uma  necessidade de reprodução

2. O CASAMENTO CRISTÃO: MISTÉRIO - SACRAMENTO[2]

O matrimônio é um mistério ou sacramento que foi instituído com a bênção de Deus durante a criação. O povo escolhido entendeu-o então como um mistério que teve o seu início na criação divina. Isto é confirmado por Cristo que diz: "Mas no princípio da criação Deus ‘os fez homem e mulher’. ‘Por esta razão, o homem deixará pai e mãe e se unirá à sua mulher, e os dois se tornarão uma só carne". (Marcos 10, 6-8).

De acordo com as Sagradas Escrituras o casamento é construído sobre:

1. a distinção, na primeira criação do homem, entre homem e mulher ("E criou Deus o homem à sua imagem; à imagem de Deus o criou; homem e mulher os criou.", Gn 1,27)

2. a criação da mulher a partir da costela de Adão (Gn 2,21-24);

3. a bênção de Deus sobre os primeiros criados com as palavras: "Frutificai e multiplicai-vos" (Gn 1,27-28).

Estes três elementos fazem do casamento uma praxis espiritual por excelência, não só devido à simples aliança entre duas pessoas, mas especialmente devido ao fato de ser uma expressão da vontade de Deus. O pacto natural do matrimônio torna-se também como que uma aliança divina, daí também o seu caráter plenamente místico, que a Igreja enfatiza. O principal e portanto o elemento mais essencial do matrimônio é a união de cada pessoa com uma única pessoa do sexo oposto. Este elemento de uma única pessoa no matrimônio se mantém mesmo depois da queda dos primeiros criados no Antigo Testamento, embora nem sempre tenha sido aderido na prática [3]. Este elemento do matrimônio assume uma semelhança com a relação entre Deus e o povo escolhido. Este elemento de uma única pessoa no matrimônio é confirmado pelo ensinamento de Cristo sobre o matrimônio.

Paulo é o primeiro a compreender a essência do ensinamento de Cristo sobre o casamento e a sua santidade. Ele descreve-o como "um grande mistério em Cristo e na Igreja" (Ef 5,32). A definição "em Cristo e na Igreja" significa, segundo Paulo, que o vínculo espiritual do amor, do compromisso e da submissão recíproca dos parceiros - que é o vínculo da completa unidade deles - só existe quando se conforma ao amor de Cristo pela sua Igreja (Ef 5,22-33). A relação dos parceiros que nasce do matrimônio é, em outras palavras, tão essencial, tão intensa e tão espiritual, como a relação existente entre Cristo e a Igreja [4]. A união da Igreja - enquanto comunidade dos batizados - com Cristo, e a sua manutenção, realiza-se através do sacramento da Divina Eucaristia. Este é o centro de todos os sacramentos e coloca a humanidade numa perspectiva escatológica. Deste modo, o matrimônio "transfigura" também a unidade do homem e da mulher numa nova realidade, isto é, visto na perspectiva da vida em Cristo [5]. É por isso que o apóstolo Paulo não hesita em chamar a este passo decisivo da existência humana "mistério" (ou sacramento) à imagem de Cristo e da sua Igreja. Esta é a única razão pela qual um matrimônio verdadeiramente cristão pode ser único, "porque é um Mistério do Reino de Deus, que introduz a humanidade na alegria e no amor eterno "[6]. Esta unidade - realizada com o sacramento do matrimônio - não é uma ação unilateral da Igreja. Afinal, o homem não é chamado a participar passivamente na graça de Deus, mas como co-laborador de Deus. E mesmo quando o homem se torna co-laborador, ele permanece sujeito à fraqueza e à pecaminosidade da existência humana.

Sob esta luz, até mesmo a reprodução (1 Tim. 2, 15) é vista como a co-operação do homem com a criação. O mistério ou sacramento do matrimônio torna-se imediatamente relacionado com o mistério da vida, do nascimento das almas humanas, da imortalidade e da morte delas.

3. O PROPÓSITO DO CASAMENTO

Aqui torna-se evidente que a Igreja Católica Romana e a Igreja Ortodoxa diferem na sua compreensão do propósito do casamento. No pensamento teológico Ortodoxo este é, em primeiro lugar, o amor recíproco, a relação e a ajuda entre os cônjuges com vista à sua plenitude em Cristo. Só depois vem a restrição da paixão sexual deles[7] e a reprodução do gênero humano[8]. É notável que no Novo Testamento não encontramos nenhuma referência relativa ao matrimônio com relação à reprodução. Na Igreja Católica Romana é evidente que o fim último do matrimônio é a "procriação" ou a reprodução. Entender a reprodução como o principal objetivo do casamento é uma perspectiva redutora da vida conjugal do homem e da mulher. Que valor tem a relação sexual entre homem e mulher em caso de esterilidade ou após a menopausa, ou se a mulher é medicamente incapaz de ter mais filhos? É certo que o casal tem precedência sobre a família, por mais louvável que seja o propósito da família [9]. A história do estabelecimento do casamento encontra-se no segundo capítulo do livro do Gênesis, que trata do fato de que "deixará o homem o seu pai e a sua mãe, e apegar-se-á à sua mulher, e serão ambos uma carne" (Gn 2,24), sem mencionar a reprodução. O Santo João Crisóstomo se refere a isso: "Há duas razões pelas quais o casamento foi estabelecido ... para fazer com que o homem fique satisfeito com uma só esposa e para lhe dar filhos, mas é o primeiro que é o mais importante... Quanto à reprodução, o casamento não inclui necessariamente isso... a prova está nos muitos casamentos nos quais não é possível ter filhos. É por isso que a razão principal do casamento é regular a vida sexual, especialmente agora que o gênero humano já povoou o mundo inteiro". [10]

4. CASAMENTO COMO A IGREJA DOMICILIAR

Os Padres da Igreja dizem-no caracteristicamente: "Onde Cristo está, ali está a Igreja", o que demonstra que a relação matrimonial tem um carácter eclesial. Por isso Paulo fala da "a igreja que se reúne na casa deles" (Rm 16,5) e João Crisóstomo da "pequena Igreja" [11]. Em Caná da Galileia Jesus "revelou a sua glória" (Jo 2,11) no seio de uma "igreja doméstica". Paul Evdokimov afirma, "este casamento, por assim dizer, é o casamento do casal nupcial com Cristo. É Ele quem conduz e - segundo os Padres da Igreja - o faz em todos os casamentos cristãos" [12]. O amor recíproco do homem e da mulher é um amor comunal a Deus. Cada momento da vida deles torna-se uma glorificação de Deus. Assim o diz João Crisóstomo: "O matrimônio é um ícone místico da Igreja" [13].



5. SANTIDADE E INDISSOLUBILIDADE DO CASAMENTO

Nós já dissemos que o casamento na sua forma mais pura é uma ordem natural de acordo com a intenção divina. É a base da família, que é a comunidade onde os sentimentos mais nobres do homem são capazes de se desenvolver. O matrimônio é em sua essência uma instituição santa e sua santidade foi selada por meio da Igreja, que vê o matrimônio como uma instituição e mistério divino[14]. Não é, portanto, o acordo e o livre arbítrio dos cônjuges que estabelecem o matrimônio, mas é a graça de Deus em particular que é essencial, e esta é dada através da aprovação da Igreja, na pessoa do bispo[15].

A doutrina sobre a indissolubilidade do casamento é baseada na sua santidade. A santidade e a indissolubilidade do casamento exaltam a monogamia. A este respeito, muitas vezes se faz referência ao Antigo Testamento (Mal. 2, 14).

Mas, como mistério ou sacramento, o casamento cristão é, sem dúvida, confrontado com o estado "caído" da humanidade. Ele é apresentado como o ideal inalcançável. Mas há uma diferença distinta entre um "sacramento" e um "ideal", pois o primeiro é "uma experiência que envolve não só o homem, mas uma experiência na qual ele age em comunhão com Deus", na qual ele se torna um parceiro do Espírito Santo enquanto permanece humano com as suas fraquezas e defeitos [16].

A teoria da indissolubilidade do casamento tem um forte significado pedagógico. A motivação que Cristo dá é um comando. Aqueles que se comprometem com a aliança do matrimônio devem fazer tudo para não se separarem, pois têm a Deus que agradecer pela unidade deles. Mas a motivação adicional: "Portanto, o que Deus uniu, que o homem não separe." (Marcos 10, 9; Mateus 19, 6) não significa uma aderência mágica. Em todo mistério ou sacramento, excluindo o batismo, é necessário o exercício do livre-arbítrio do homem. O "não separe" é um requerimento divino, assim como o "não mate". Mas o homem é livre e pode dissolver o seu casamento e matar o seu semelhante. Em ambos os casos, ele comete um pecado grave[17].

A Igreja tem sido fiel, ao longo dos séculos, ao princípio mencionado por Paulo, de que um segundo casamento é uma aberração do estatuto cristão. Neste sentido, a doutrina ortodoxa confirma não só a "indissolubilidade" do matrimônio, mas também a sua singularidade. Todo verdadeiro matrimônio pode ser singularmente o "único".

6. DIVÓRCIO

O problema do divórcio é uma questão muito delicada, uma vez que muitas vezes toca numa dolorosa realidade humana.

A tradição da Igreja dos primeiros séculos - que continua a ter autoridade para a Igreja Ortodoxa - coloca a ênfase muito forte em dois pontos relacionados:

1. a "singularidade" do autêntico casamento cristão,
2. a permanência da vida conjugal casada.

Podemos recordar aqui a analogia que Paulo faz entre a unidade de Cristo e sua Igreja e a da noiva e do noivo. Esta analogia que está como que na raiz do mistério assume a unidade real e contínua do casal conjugal, o que exclui totalmente uma poligamia simultânea e vê um único casamento como o ideal.

O divórcio não cura o casamento doente, mas mata-o. Não é uma ação ou intervenção positiva. Trata-se de dissolver a "mini-Igreja" que se formou através da relação matrimonial [18]. A Sagrada Escritura atribui o divórcio à insensibilidade do homem [19]. Isto é visto como uma queda e um pecado. E no entanto a Igreja Ortodoxa pode permitir o divórcio e o novo casamento com base na interpretação do que o Senhor diz em Mateus 19:9: "Digo-vos que quem se divorciar da sua esposa, exceto por infidelidade conjugal, e casar com outra mulher, comete adultério." Segundo o Bispo Kallistos Ware, o divórcio é uma ação de "economia" e "expressão de compaixão" da Igreja para com o homem pecador. "Uma vez que Cristo, segundo o relato do Evangelho de Mateus, permitiu uma exceção à sua regra geral sobre a indissolubilidade do casamento, a Igreja Ortodoxa também está aberta a permitir uma exceção" [20].

Uma pergunta que podemos nos fazer é se Cristo considerava o casamento como sendo indissolúvel. Precisamos ser muito claros nisso, pois quando Cristo ensina que o casamento não deve ser dissolvido, isso não significa que Ele esteja afirmando que isso não pode acontecer. A integridade da relação matrimonial pode ser maculada por comportamentos errôneos. Em outras palavras, é a ofensa que rompe o vínculo. O divórcio é, em última análise, o resultado dessa ruptura. Este é também o ensinamento dos Padres da Igreja Oriental. Uma citação do testemunho de Cirilo de Alexandria será suficiente para explicar aqui o nosso ponto de vista: "Não são as cartas de divórcio que dissolvem o casamento em relação a Deus, mas o comportamento errôneo" [21].

A violação de uma relação matrimonial é dividida em dois grupos:

1. as resultantes de adultério (infidelidade e comportamento imoral)
2. as provenientes da ausência de um dos parceiros (esta ausência deve, no entanto, ter certas particularidades).

Segundo o espírito da Ortodoxia, a unidade do casal não pode ser mantida somente em virtude da obrigação jurídica; a unidade formal deve ser coerente com uma sinfonia interna [22]. O problema surge quando já não é possível salvar nada desta sinfonia, pois "então o vínculo que originalmente era considerado indissolúvel já está dissolvido e a lei nada pode oferecer para substituir a graça e não pode curar nem ressuscitar, nem dizer: 'Levanta-te e vai'"[23].

A Igreja reconhece que há casos em que a vida matrimonial não possui conteúdo ou pode mesmo levar à perda da alma. O Santo João Crisóstomo diz a este respeito que: "É melhor romper a aliança do que perder a alma" [24]. No entanto, a Igreja Ortodoxa vê o divórcio como uma tragédia devido à fraqueza humana e o pecado.

7. NOVO CASAMENTO

Apesar do fato de que a Igreja condena o pecado, ela também deseja ser um auxílio para aqueles que sofrem e pelos quais ela pode permitir um segundo casamento. Este é certamente o caso quando o casamento deixou de ser uma realidade. Um possível segundo matrimônio só é permitido, portanto, por causa da "fraqueza humana". Como diz o apóstolo Paulo a respeito dos não casados e das viúvas: "Se não podem conter-se, devem casar-se" (1 Cor. 7, 9). É permitido como uma concessão pastoral no contexto da "economia", diante da fraqueza humana e do mundo corrupto em que vivemos.

Em outras palavras, existe uma estreita relação em todas as dimensões entre o divórcio e a possibilidade de um novo casamento. É importante aqui explicar um elemento fundamental da doutrina da Igreja Ortodoxa, a saber, que a dissolução de uma relação matrimonial não concede ipso facto o direito de entrar em outro casamento. Se olharmos para o tempo da Igreja primitiva, a Igreja dos primeiros séculos, então teremos que concordar que a Igreja não tinha nenhuma autoridade jurídica em relação ao casamento e, portanto, não fez nenhuma declaração sobre a sua validade.O Santo Basílio o Grande, por exemplo, não se refere a uma regra, mas a um costume, no que diz respeito a este problema [25]. Falando do homem que tinha sido traído pela esposa, ele declara que o homem é "perdoável" (a ser desculpado) se ele se casar novamente. É bom lembrar que a Igreja Ortodoxa sempre teve, em geral, um sentimento de relutância em relação aos segundos casamentos. Seria completamente errado afirmar que os cristãos Ortodoxos podem se casar duas ou três vezes!

A lei canônica Ortodoxa pode permitir um segundo e até mesmo um terceiro casamento "em economia", mas proíbe estritamente um quarto. Em teoria o divórcio só é reconhecido em caso de adultério, mas na prática também é reconhecido à luz de outras razões. Há uma lista de causas de divórcio aceitáveis para a Igreja Ortodoxa. Na prática, os bispos às vezes aplicam a "economia" de forma liberal. A propósito, o divórcio e o novo casamento só são permitidos no contexto da "economia", ou seja, por cuidado pastoral, por compreensão da fraqueza. Um segundo ou terceiro casamento será sempre um desvio do "casamento ideal e único", mas muitas vezes uma nova oportunidade[26] para "corrigir um erro" [27].

8. ECONOMIA

A questão surge aqui, o que é exatamente essa "economia"[28]? Numa contribuição teológica e acadêmica, o atual Patriarca Ecumênico Bartolomeu, enquanto ainda o Metropolita de Filadélfia, explicou de forma clara e concisa o que é a "economia". Ele sugere que é geralmente aceito que a economia eclesiástica é uma imagem da economia divina, do amor e da bondade. Que a economia é tão antiga quanto a própria Igreja é evidente a partir de uma leitura do Novo Testamento. Isto é muito claro, por exemplo, em Atos 16, 3 "e tomando-o, o circuncidou, por causa dos judeus que estavam naqueles lugares; porque todos sabiam que seu pai era grego." No entanto, a economia na Igreja Ortodoxa nunca foi definida sistemática ou oficialmente. "Trata-se de uma característica, de um verdadeiro privilégio e de um precioso tesouro da Igreja" [29]. Nos encontros pan-Ortodoxos do século XX houve tentativas de dar uma definição à economia, mas no final isso foi abandonado, "porque a economia é algo mais experimentado do que descrito e definido... na Igreja Ortodoxa, na qual é um privilégio característico e antigo" [30].

Mas agora a questão permanece, o que é "economia"? Bem, de acordo com a lei canônica da Igreja Ortodoxa, economia é "a suspensão da aplicação absoluta e rigorosa dos cânones e regulamentos da Igreja no governo e na vida da Igreja, sem comprometer subsequentemente as limitações dogmáticas. A aplicação da economia só ocorre através das autoridades eclesiásticas oficiais e só é aplicável para um caso particular"[31]. Isto é permitido por razões excepcionais e severas, mas não cria precedentes. A Igreja, que continua a estender a obra redentora de Cristo no mundo, determinou, com base nos mandamentos do Senhor, e dos apóstolos, uma série de cânones. Através deles, a Igreja ajuda os fiéis a alcançar a salvação. Mas deve-se notar que essas regras não são aplicadas juridicamente, pois a Igreja tem sempre em mente o que o próprio Senhor disse: "O sábado foi feito por causa do homem, e não o homem por causa do sábado." (Marcos 2, 27).

Um cânon é uma "regra" ou "guia" para o culto, os sacramentos e o governo da Igreja. Há cânones determinados pelos apóstolos, pelos Padres da Igreja, pelos Concílios locais, regionais e pelos Concílios gerais ou ecumênicos. Somente o bispo, como cabeça da Igreja local, os aplicam. Ele pode aplicá-los de maneira rigorosa ("akrivia"), ou flexível ("economia"), mas a "precisão" é a norma. Uma vez passada a circunstância particular - que exigia um juízo condescendente e acomodador - "akrivia" assume mais uma vez toda a sua força. Não pode ocorrer que a "economia", que era necessária numa situação específica, se torne um exemplo e que mais tarde seja mantida como regra[32]. A "economia" é para a Igreja Ortodoxa uma noção que não pode ser comparada à "dispensação" na Igreja Católica Romana. A dispensação é uma exceção antecipada, que prevê uma norma jurídica paralela ao regulamento oficial.

A economia é baseada no mandamento de Cristo aos seus apóstolos: "Recebei o Espírito Santo. Àqueles a quem perdoardes os pecados lhes são perdoados" (João 20, 22-23). Este é o caso quando a experiência do casamento humano se torna impossível, devido à morte espiritual do amor. É então que a Igreja - como Corpo de Cristo - com compreensão e compaixão e por preocupação pessoal, pode aplicar a "economia" "aceitando o divórcio e não rejeitando os fiéis pecadores humanamente fracos, nem privando-os da misericórdia de Deus e de mais graça"[33] É o objetivo preciso da economia que a pessoa fraca não seja irrevogavelmente banida da comunhão eclesial, segundo o exemplo de Cristo, que veio, afinal de contas, para salvar os perdidos.

9. ACONSELHAMENTO PASTORAL

Antes que as autoridades eclesiásticas reconheçam o divórcio no contexto da economia, deve ser dado aconselhamento pastoral em todos e cada um dos casos, através do qual se tenta reconciliar os parceiros casados. Somente quando isso não for mais possível, deve ser pedida permissão para o novo casamento, contanto que uma forma de penitência possa ser imposta, à luz de cada caso individual. Deste modo, a Igreja Ortodoxa deve ter um ponto de vista claro sobre este problema, e os sacerdotes devem estar mais motivados para assumir um papel mais importante na explicação, no aconselhamento e na cura psicológica [34].

a. Preparação para o casamento

Em seu livro "Casamento: uma perspectiva Ortodoxa", Padre John Meyendorff aponta o perigo de casamentos forçados, onde o próprio casal não tem desejo de um compromisso positivo. Pode ter sido desejado como um acontecimento social ou o que quer que seja. Este, e muitos outros, são problemas que o padre precisa discutir quando se encontra com o casal para ajudá-los a se preparar para o casamento. Ele tem a responsabilidade de ajudá-los a compreender o sentido e o significado do matrimônio cristão. Esta reunião não pode de modo algum ser, ou parecer ser, um assunto exclusivamente administrativo, em que muitos documentos são recolhidos com a intenção de assegurar a aprovação do bispo para a celebração do casamento. Ele também deve estar alerta para garantir que não sejam consagrados casamentos em que o casal não aceite o seu verdadeiro significado. Este é um problema que se encontra frequentemente com os casamentos mistos. Estritamente falando, a responsabilidade da preparação do casamento cabe não só ao sacerdote, mas também aos professores, aos pais e, certamente, em primeiro lugar, aos próprios jovens noivos [35].

Para que o casamento viva, e possivelmente também para sobreviver, há necessidade de vida espiritual. Esta espiritualidade é vivida primeiramente na própria escola da Igreja, onde podemos participar por excelência dos dons de graça do Espírito Santo na celebração dos sacramentos. É aliás, num destes sacramentos, que o homem e a mulher se tornam um só, ou "igreja-domicilar", pela graça do Espírito Santo. "Na perspectiva eclesiológica e espiritual que acabamos de referir, o casamento entra em uma ação dinâmica" [36]. O caminho percorrido é determinado em particular pelos próprios casais e, no entanto, eles se encontram em um mundo "de surpresas e milagres". O caminho torna-se cada vez mais estreito à medida que é percorrido lado a lado, com 2 ou 3 filhos acompanhando. O caminho da vida espiritual ortodoxa é "um caminho de liturgia, mística, ascese e escatologia"[37]. É a vida da e na Igreja e esta vida dá ao casal e a toda a família uma outra dimensão, uma outra abordagem da vida e dos problemas que se têm de enfrentar.

É muito importante que a Igreja providencie a reflexão correta de tudo o que diz respeito ao matrimônio e à família, e seu valor a partir da perspectiva da fé, especialmente para os jovens e futuros casais de noivos e seus pais. Em muitas dioceses da Igreja Ortodoxa da Grécia, por exemplo, existem "escolas para os pais", onde se dá atenção específica à preparação dos filhos para o matrimônio. Isto é possível também através de uma palestra sobre este tema [38].

[...]

c. Abordagem pastoral do problema do divórcio

A comunidade eclesial precisa estar vigilante e dar atenção suficiente aos casais e famílias que tenham sido afetados e incapacitados pelo divórcio. O parceiro casado que foi abandonado pelo outro parceiro encontra-se subsequentemente numa situação de desânimo e solidão. O destino dos filhos é muitas vezes muito pior. Pela experiência pastoral sabemos que a assistência social e psicológica é insuficiente. Eles precisam sobretudo de ser fortalecidos através de uma abordagem "espiritual e pastoral", que esperamos que volte a dar sentido e significado a vida deles.

A Igreja, como comunidade, pode continuar a envolvê-los nos encontros litúrgicos. É evidente que uma comissão de amor discreta[40] é reservada a cada cristão em relação àqueles que estão divorciados. Também isto é coerente com aquilo a que o Santo João Crisóstomo chamou "o sacramento do irmão". É preciso certamente evitar julgar ou condenar o irmão ou a irmã.

10. CONCLUSÃO

Pelo que foi dito, temos em mente que o casamento é um sacramento ou mistério, porque é uma experiência viva do Reino de Deus. É uma entrada para uma nova vida, um crescimento comunal no Espírito Santo. Esta nova vida entra como um dom, não como uma obrigação. O homem é livre para entrar ou não nesta nova vida por esta porta. Mas esta nova vida só tem sentido se ela realmente leva à entrada na vida sacramental da Igreja. O matrimônio ganha perfeição quando o casal participa regularmente na Eucaristia, no Corpo de Cristo. Deste modo, o matrimônio ganha um carácter santificante. Esta santidade do matrimônio deve, porém, ser protegida por certos cânones, não porque este seja o espírito da Igreja, mas para demonstrar o ideal para os cristãos. A doutrina cristã do matrimônio é uma "responsabilidade jubilosa" [41]. Ela demonstra o que significa ser verdadeiramente humano, através do qual se recebe a alegria de dar a vida, à imagem do Criador.

Quanto à perspectiva ortodoxa sobre a delicada área problemática do divórcio e do possível novo casamento, é preciso dizer que ela está impregnada de sabedoria. Ela confirma o valor fundamental do casamento cristão firme e único, o que não significa que essa firmeza deva ser vista, em todas as circunstâncias da vida, como a preservação absolutamente irrevogável de uma afirmação jurídica. A Igreja Ortodoxa não quer fechar inexoravelmente a porta da misericórdia, mas mantém-se firme no ensinamento do Novo Testamento [42].
NOTAS:

[1] D. Athenagoras Peckstadt é bispo assistente da Arquidiocese Ortodoxa da Bélgica e Exarca da Holanda e Luxemburgo (Patriarca Ecuménico de Constantinopla) e estudou teologia na Universidade Aristotélica de Salónica e no Instituto Ecuménico de Bossey, em Genebra.

[2] Em grego o mistério tem o significado de sacramento.

[3] É bom lembrar aqui que, na história da criação, a monogamia é assumida como a norma.

[4] O apóstolo Paulo vê, portanto, o paralelo entre a relação conjugal do homem e da mulher e a unidade entre a noiva, a Igreja e o noivo, Cristo. Isto não é apenas um quadro descritivo, mas também uma explicação da unicidade real e essencial no sacramento do matrimônio. Veja N. Matsoukas, Dogmatic and symbolic theology, Thessalonica, 1988, pp. 496-497 (em grego).

[5] G. Mantzaridis, Christian Ethics, Thessalonica, 1995, p. 321 (em grego).

[6] J. Meyendorff, Marriage: an orthodox perspective, Nova Iorque, 1975, p.21.

[7] A unidade física - da qual o apóstolo Paulo diz que eles são "templos do Espírito Santo - é muito mais que simples prazer ou remédio para o impulso sexual" Veja Ign. Peckstadt, em Het huwelijk ortodoxo em Een open venster op de Orthodoxe Kerk, (The orthodox marriage in An open window on the Orthodox Church), Averbode, 2005.

[8] Ch. Catzopoulos, The holy sacrament of marriage - mixed marriages, Atenas, 1990, p.39 (em grego). Veja também Ch. Vantsos, Marriage and her preparation from an orthodox pastoral view of an orthodox, Atenas, 1977, pp.83-99 (em grego).

[9] Ign. Peckstadt, Het orthodox huwelijk in Een open venster op de Orthodoxe Kerk, (The orthodox marriage in An open window on the Orthodox Church), Averbode, 2005.

[10] Discurso sobre o casamento. Veja P. Evdokimov, Le sacerdoce conjugal - essai de théologie orthodoxe du mariage, in Le mariage - églises en dialogue, (The conjugal priesthood – essay on the orthodox theology of marriage, in The marriage – churches and dialogue), Paris, 1966, p. 94.

[11] Homilie 20 on Ephesians; P.G., 62, 143.

[12] P. Evdokimov, Sacrement de l'amour - le mystère conjugal à la manière de la tradition orthodoxe, (Sacramento do amor - o mistério conjugal segundo a tradição ortodoxa), Paris, 1962, p. 170.

[13], P.G. 62, 387.

[14] P. Rodopoulos (Metropolita), Lições de direito canônico, Tessalônica, 1993, p. 216 (em grego).

[15] O Santo Inácio de Antioquia disse em sua carta a Policarpo: "Os homens e mulheres que se casarem, devem entrar em sua unidade com a aprovação do bispo", veja Inácio de Antioquia, Policarpo de Esmirna, Cartas, em col. Fontes Chrétiennes, (Christian Sources) Paris, 1958, p. 177 (A Polycarpe V, 2).

[16] J. Meyendorff, Marriage: an orthodox perspective, New York, 1975, p. 21.

[17] N. Matsoukas, Dogmatic and symbolic theology, Thessalonica, 1988, p. 497 (in Greek).

[18] G. Patronos, Marriage in theology and in life, Athens, 1981, p.119 (in Greek).

[19] “Moses permitted you to divorce your wives because your hearts were hard. But it was not this way from the beginning” (Matt. 19, 8).

[20] T. Ware (Bishop Kallistos), L’Orthodoxie — l’Eglise des septs conciles, Paris 1997, pp. 380-381.

[21] P.G. 72, 380 D.

[22] Veja P. L’Huillier (Archbishop), Le divorce selon la théologie et le droit canonique de l’Eglise orthodoxe, in Messager de l’Exarchat du Patriarcat Russe en Europe occidentale,  (no 65), Paris, 1969, pp. 25-36.

[23] P. Evdokimov, Sacrement de l’amour — le mystère conjugal à la manière de la tradition orthodoxe, Paris, 1962, p. 264.

[24] P.G. 61, 155.

[25] P. L’Huillier (Archbishop), Les sources canoniques de saint Basile, in Messager de l’Exarchat du Patriarcat Russe en Europe occidentale (no 44), Paris, 1963, pp. 210-217.

[26] O Padre Meyendorff explicou a este respeito que: "a Igreja não 'reconheceu' nem 'concedeu' o divórcio. Ele é visto como um grande pecado, mas a Igreja nunca deixou de oferecer aos pecadores uma 'nova oportunidade' e ela estava sempre preparada para recebê-los novamente, desde que fossem penitentes". Veja J. Meyendorff, Marriage: an orthodox perspective, Nova Iorque, 1975, p. 64.

[27] Ign. Peckstadt, Het orthodox huwelijk in Een open venster op de Orthodoxe Kerk, (The orthodox marriage in An open window on the Orthodox Church), Averbode, 2005.


[28] Encontra-se o termo "economia" ou "oikonomia" - como se entende aqui - no Novo Testamento e nos textos dos Padres da Igreja e dos autores da Igreja. Ainda que não se encontre um escrito sistemático sobre este tema por parte dos Padres da Igreja, foi utilizado por eles com frequência, no sentido de desviar-se da precisão da regra. Veja P. Rodopoulos (Metropolita), Introdução aos temas do quinto congresso internacional da Sociedade de Direito das Igrejas Orientais - I. Oikonomia, II Casamentos mistos, in Estudos I - cânon, pastoral, litúrgico e vários (em grego), Tessalônica, 1993, p.244. É um conceito teológico exclusivo da Igreja Ortodoxa.


[29] B. Archondonis (Ecumenical Patriarch), The problem of oikonomia today, in Kanon, Jahrbuch der Gesellschaft fur das recht der Ostkirchen, (Yearbook of the Society for the law of the Eastern Churches) Vienna, 1987, p. 42.

[30] Ibid., p.40.

[31] P. Rodopoulos (Metropolitan), Oikonomia nach orthodoxem Kirchenricht, em Studies I (em grego), Thessaloniki, 1993, p. 231.

[32] P. Trembelas, Dogmatique de l”Eglise orthodox catholique, (Dogmatics of the catholic orthodox Church, part III), deel III, Chevetogne 1968, p. 61.


[33] Ign. Peckstadt, Het orthodox huwelijk in Een open venster op de Orthodoxe Kerk, Averbode, 2005. Veja também: Ign. Peckstadt, De economia in de Orthodoxe Kerk, in 25 jaar Orthodoxe Communauteit Heilige Apostel Andreas Gent (1972-1997), Gent 1975, p. 65.


[34] J. Meyendorff, Marriage: an orthodox perspective, New York, 1975, p. 65.

[35] Ibid., p. 54-56.

[36] A. Stavropoulos, Concerning marriage and the family, in Snapshots and excursions on paths of pastoral service, parte 3, Atenas, 1985, p. 116 (em grego).

[37] Ibid., p. 117.

[38] Ibid., p.118.


[...] 


[40] Ign. Peckstadt, Het orthodox huwelijk in Een open venster op de Orthodoxe Kerk, Averbode, 2005.

[41] J. Meyendorff, Marriage: an orthodox perspective, New York, 1975, p. 84.

[42] P. L’Huillier (Archbishop), Le divorce selon la théologie et le droit canonique de l’Eglise orthodox, in Messager de l’Exarchat du Patriarcat Russe en Europe occidentale (no 65), Paris, 1969, p. 36.

quinta-feira, 6 de fevereiro de 2020

Neo-Platonismo agostiniano vs. Teologia Ortodoxa Nicena

Neo-Platonismo agostiniano vs. Teologia Ortodoxa Nicena:

A Trindade e o Problema Uno-Múltiplo no Debate entre Oriente e Ocidente

Se alguém ler esta obra e disser: 'Eu entendo o que está sendo dito, mas não é verdade', ele tem a liberdade de afirmar a sua própria convicção tanto quanto quiser e refutar a minha, se puder. Se ele conseguir fazê-lo de forma caridosa e verdadeira, e também se der ao trabalho de levar ao meu conhecimento (se eu ainda estiver vivo), estarei colhendo frutos copiosos desta minha obra. Se ele não me puder fazer esse serviço, eu ficaria muito contente que ele o fizesse para qualquer um que ele possa. [1]
- Santo Agostinho
Teologia Agostiniana 

A grande divisão entre o cristianismo oriental e ocidental remonta de fato a Santo Agostinho (354-430 d.C.). As diferentes concepções da Trindade que agora caracterizam a diferença entre a Ortodoxia Oriental (que ensina a monarchia do Pai) e o Papismo/Protestantismo (que ensina a simplicidade absoluta e o filioque) não eram conhecidas antes da época de Santo Agostinho, que se tornaria o principal defensor do que doravante seria considerado a tradição ocidental. Agostinho tomou a teologia de Tertuliano (ca. 160-220 d.C.) e a combinou com a estrutura filosófica do filósofo neoplatonista Plotino (ca. 204-270 d.C.). É esta síntese Tertuliano-Plotino que a Igreja Ortodoxa rejeita como heresia.[2]

Entretanto, não devemos considerar Agostinho como um heresiarca: pois São Fócio, o Pe. Michael Pomazansky e o Pe. Serafim Rosa afirmam o status de Agostinho entre os " bem-aventurados " Padres da Igreja. Seria inapropriado para nós questionar a autoridade de homens tão grandes sobre este tema. Agostinho estava apenas tentando defender a Trindade a partir de uma perspectiva filosófica. Os hereges que negavam a Trindade eram neopatonistas, por isso era natural que Agostinho trabalhasse dentro dessa mesma estrutura neopatônica ao argumentar contra eles. A heresia da "teologia" ocidental só ocorre quando essa estrutura filosófica é transformada em um "dogma" da fé.Em sua obra Sobre a Doutrina Cristã, Santo Agostinho expõe a doutrina da Trindade de uma maneira perfeitamente compatível com a teologia oriental, sem mencionar a simplicidade absoluta ou o filioque. [3] Em De Trinitate, Santo Agostinho trata primeiro da Trindade em termos inteiramente ortodoxos. Suas idéias heréticas só surgem mais tarde, quando tenta defender e explicar filosoficamente as doutrinas trinitárias. Contudo, a explicação filosófica de Agostinho sobre a Trindade é herética e é precisamente esta explicação errônea que é a base de todo o pensamento cristão ocidental.

Agostinho ensinou que a singularidade de Deus depende inteiramente de Sua simplicidade absoluta. Portanto, é impossível distinguir entre a essência de Deus e Seus atributos, qualidades e energias: pois Deus deve ser totalmente sem distinções se Ele deve ser absolutamente simples. Para compreender a noção de simplicidade absoluta é preciso equiparar simplicidade absoluta com pura unicidade. Talvez a seguinte ilustração ajude: Se você quer simplificar algo, você "quebra-o". Para simplificar algo total e absolutamente, você teria que dividi-lo nos componentes mais singulares e básicos. Por exemplo: se você precisa simplificar algum objeto, você o decompõe em átomos. Então você pode quebrar esses átomos em quarks, que são as partes mais básicas. Estes quarks (teoricamente) não podem ser decompostos em mais nada. Um quark é puramente um - é uma única partícula sem composição. Portanto, simplicidade absoluta e singularidade são sinônimos. Assim, Cornelius van Til escreve: "Singularidade e simplicidade estão envolvidas uma na outra". [4] E esta compreensão agostiniana das coisas é compartilhada por todos os filósofos teológicos ocidentais posteriores.

Para compreender Santo Agostinho, é importante colocá-lo no contexto histórico apropriado. Quando Agostinho estava escrevendo sobre a Trindade, a heresia ariana ainda prevalecia. O apologista ariano Eunômio tinha desenvolvido um rigoroso argumento filosófico em defesa da heresia. Eunômio seguiu a filosofia grega e construiu sua defesa da posição ariana em torno dos ensinamentos do filósofo neoplatonista Plotino. Plotino, o filósofo pagão, escreveu,
E este nome, o Uno, não contém na verdade nada mais do que a negação da pluralidade: sob a mesma influencia os pitagóricos encontraram a sua referência no símbolo 'Apolo' (α=não; πολλων=múltiplo) com o repúdio do múltiplo deles.... a designação, uma mera ajuda à investigação, nunca foi destinada senão a uma afirmação preliminar da simplicidade absoluta a ser seguida pela rejeição até mesmo dessa afirmação. [5]
Eunômio adotou esta noção neo-platônica da simplicidade absoluta e afirmou que "o Deus Não-gerado é um e único... um ser simples e não-composto". [6] Segundo Eunômio, Deus é absolutamente "simples e não-composto, e nenhuma coisa interna é diferente dele" porque "ele é sem partes". Portanto, a expressão "Não-gerado" não se refere a algo distinto da substância (essência) de Deus em si, e sim Deus "deve ser ele mesmo a Substância Não-gerada" [7]. Simplicidade, para Eunômio, exige que a substância (essência) de Deus seja sinônimo com seu caráter não-gerado. Ele argumenta que o Filho é gerado e, portanto, não é consubstancial com o Não-gerado: "Como pode a razão permitir-nos igualar uma substância gerada com aquela que é Não-gerada?" [8] Com esta doutrina da simplicidade absoluta, Eunômio foi capaz de eliminar a Trindade. "Se uma pessoa é Não-gerada, então ela não é um Filho; e se ela é um Filho, não é Não-gerada. Mas que existe um só Deus do universo Não-gerado...o que já dissemos sobre este assunto demonstra suficientemente "[9]. "[Deus] apenas é não-gerado. Ora, é impossível que um ser seja gerado que tenha a sua substância Não-gerada", portanto o Filho não é Deus "porque o caráter de Filho, e de um ser gerado, não admitirá o de uma Substância não-gerada".[10] Assim Eunômio argumentou contra a divindade de Cristo.

Ao abordar este argumento eunomiano, Agostinho comete um erro fatal. Ele concede aos hereges a premissa deles - ou seja, o pressuposto da simplicidade absoluta neo-platônica. Agostinho começa com esta falsa premissa (simplicidade absoluta) e depois tenta chegar à verdadeira doutrina de Deus. Isto não é válido. Não se pode permitir ao "homem natural" seus falsos pressupostos e então construir sobre esses pressupostos a fim de estabelecer uma visão de mundo verdadeira e precisa. Você deve primeiro abordar os pressupostos em si.  O que Agostinho deveria ter feito é o seguinte: ele deveria ter salientado que a doutrina da simplicidade absoluta carece de qualquer base bíblica e é um conceito filosófico pagão que vem diretamente de Plotino, colocando assim em questão a própria premissa do argumento ariano. Mas isto, infelizmente, não é o que Agostinho fez.

O filósofo neoplatonista Plotino no centro
Em vez disso, Santo Agostinho concede a validade da estrutura neo-platônica de Eunômio, afirmando que em Deus em Si "ser" e "ser sábio" não pode "ser entendido como duas coisas diferentes", porque isso seria afirmar que Deus "não é supremamente e perfeitamente simples." [11]

Agostinho escreve:
... Não é uma coisa que o torna grande e outra que o torna Deus; o que o torna grande é o que o torna Deus, porque para ele não é uma coisa ser grande e outra ser Deus; assim, presumivelmente, seguir-se-á que o Pai não é Deus tomado individualmente, mas somente com e junto com a divindade que gerou; e assim o Filho será a divindade do Pai assim como é a sabedoria e o poder do Pai, e assim como ele é o Verbo e a imagem do Pai. E como não é uma coisa ser e outra ser Deus, o Filho é também o ser do Pai como é seu Verbo e Imagem.  Isto significa que, a parte de ser Pai, o Pai não é nada mais que o que o Filho é para ele. É claro que ele só é chamado Pai porque tem um Filho, já que é chamado Pai não com referência a si mesmo, mas com referência ao Filho. Mas agora somos forçados a dizer, além disso, que é apenas porque ele gerou o seu próprio ser que ele é o que ele é com referência a si mesmo. Assim como ele só é grande pela grandeza que gerou, pois para ele não é uma coisa ser e outra ser grande. Não somos nós então forçados a dizer que ele é o Pai do seu próprio ser, assim como ele é o Pai da sua própria grandeza, assim como ele é o Pai do seu próprio poder e sabedoria? Porque sem dúvida a sua grandeza é o mesmo que o seu poder, e o seu ser é o mesmo que a sua grandeza. [12]
Em outras palavras, Agostinho argumenta que, porque a Bíblia diz que "Cristo é o poder de Deus e a sabedoria de Deus", segue-se que Cristo é Deus porque a sabedoria de Deus é sinônimo de seu ser. (Cf. 1 Coríntios 1:24)

Um pouco mais adiante, no mesmo livro, ele continua:
Portanto, Pai e Filho são juntos uma só sabedoria, porque são um só ser, e um a um são sabedoria da sabedoria como são ser do ser. E, assim, não se segue que, porque o Pai não é o Filho, nem o Filho o Pai, ou um é não-gerado, o outro gerado, que, portanto, não são um só ser; pois esses nomes apenas declaram as suas relações. Ambos juntos são uma única sabedoria e um único ser, já que para eles ser é o mesmo que ser sábio. Não são, porém, ambos juntos um só Verbo ou um só Filho, pois Verbo ou Filho são expressões relativas, como já demonstramos suficientemente. [13]
Eunômio, o herege, afirmou que o Filho "foi gerado antes de todas as coisas, pela vontade de Deus Pai" e "que sua vontade é sua operação, e não que sua Substância é tal; e que o [Filho] Unigênito subsistiu pela vontade do Pai" e, portanto, que é "necessário que o Filho preserve esta semelhança, não quanto à Substância, mas quanto à operação". [14] Em outras palavras, Eunômio negou a divindade de Cristo porque acreditava que o Filho nasce das energias (operação) de Deus voluntariamente, e não necessariamente de Sua essência.

Santo Agostinho enfrenta este argumento apelando para a noção de simplicidade absoluta. Ele afirma que Deus é absolutamente simples, portanto Sua vontade é idêntica à Sua essência (substância). Isto, concluiu ele, significa que o Filho deve necessariamente ser gerado da essência de Deus. Portanto, o Filho é Deus.

Agostinho escreve:
Tudo isto serve para mostrar o quão ridícula é a lógica de Eunômio, o pai dos hereges eunomianos. Ele não foi capaz de entender e não quis acreditar que o Verbo unigênito de Deus através da qual todas as coisas foram feitas é o Filho de Deus por natureza, ou seja, ele é gerado da substância do Pai; e assim ele disse que Ele não é o Filho da natureza ou substância ou ser de Deus, mas o Filho de sua vontade. Ele queria, evidentemente, afirmar que a vontade pela qual Deus gerou o Filho é algo acidental para Ele, com o fundamento de que, aparentemente, às vezes, nós queremos algo que não estávamos querendo antes - como se isso não fosse prova da mutabilidade de nossa natureza, algo que não podíamos acreditar que fosse o caso em Deus. Pois, assim está escrito: No coração do homem agitam-se muitos pensamentos; a vontade do Senhor, porém, é o que permanece para sempre (Pr 19,21). Isso para que entendamos ou creiamos que como Deus é eterno, eterno é também o seu conselho e, por isso, imutável como ele é... Alguns, para evitar ao Verbo unigênito a denominação de Filho do conselho ou da vontade do Pai, afirmaram que esse Verbo é o próprio conselho ou a própria vontade do Pai. Considero ser mais apropriado denominar o Verbo de “conselho do conselho”, e “vontade do vontade”, assim como ele é substância da substância, sabedoria da sabedoria. [15]

Na superfície, isto pode parecer um argumento decente contra a posição eunomiana (e é um argumento muito inteligente!). Mas ao afirmar a premissa eunomiana - a falsa premissa da simplicidade absoluta -, a "teologia" agostiniana se tornou constantemente vulnerável a conclusões heréticas. Toda heresia na Igreja primitiva tinha uma coisa em comum: todas elas eram baseadas no neo-platonismo. Na verdade, pode-se argumentar que o próprio neo-platonismo é a essência de toda heresia. Agostinho involuntariamente caiu na armadilha da filosofia de Plotino e toda a cristandade ocidental seguiu o mesmo caminho.

Tomás de Aquino (1225-1274) leu os filósofos aristotélicos islâmicos e passou a basear seu entendimento da simplicidade absoluta na filosofia de Aristóteles e não em Plotino.[16] Mas Aristóteles era tanto Platonista quanto Plotino.[17] Aquino continua sendo um Platonista e afirma a doutrina da simplicidade absoluta. Ele afirma: "Deve-se dizer que Deus deve ser considerado simples em todos os sentidos... Portanto, como é impossível que Deus seja composto, ele deve ser completamente simples." [18] E como Agostinho, Aquino confunde o ser de Deus e a Sua essência, dizendo: "Deve-se dizer que em Deus a existência não é outra coisa senão a sua substância." [19]

Na filosofia aristotélica, uma característica descritiva de uma coisa é chamada de "acidente" e Aquino sustenta que acidentes não podem ser predicados de Deus. Quando alguém usa terminologia acidental para descrever Deus como sábio, grande ou santo, Aquino sustenta que estes termos não são usados como descrições acidentais, mas como sinônimos para Deus. Ele afirma que "quando outras categorias, distintas de relação, são usadas na predicação divina, todas elas se transformam em substância, assim como ''justo'', embora pareça ser uma qualidade, significa substância, e similarmente 'grande' e outras como elas".[20] "Em Deus não há diferença entre aquele que tem e aquele que é tido, ou de participante e participado; de fato, ele é tanto sua natureza quanto sua existência e, portanto, nada estranho ou acidental pode estar nele".[21]

Tomás de Aquino escreve:
Deve-se dizer que as relações que são ditas temporalmente de Deus não estão realmente nele, mas apenas segundo o entendimento. Há uma relação real quando uma coisa realmente depende de outra, seja absolutamente ou num certo aspecto....Deve-se dizer que a pluralidade de pessoas não introduz nenhuma composição em Deus. Pois as pessoas podem ser consideradas de duas maneiras: primeiro, em comparação com a essência com a qual são realmente o mesmo, e, portanto, nenhuma composição resulta; segundo, como elas são comparadas umas com as outras, e então elas são comparadas como distintas, não como uma. Portanto, também nenhuma composição vem deste ângulo, uma vez que cada composição é uma união. [22]
Como pode-se ver, Aquino era um agostiniano. O pe. John Romanides resume assim o ensinamento de Agostinho: "Para ele, cada pessoa da Santíssima Trindade é identificada com a essência de Deus, ou seja, são iguais "23 Seguindo Agostinho, Tomás de Aquino não diz apenas que as pessoas da Trindade são todas "de uma só essência" (consubstanciais), mas que cada uma é idêntica à essência. Aquino fala da "essência com a qual [as pessoas] são realmente o mesmo". Deste modo, Aquino, seguindo Agostinho, confunde a distinção entre a essência e as pessoas dentro da Divindade. Ele sustenta que as pessoas (hypostaseis) são idênticas à essência (ousia). Mas se assim fosse, então o inverso também seria verdadeiro: a essência seria idêntica às pessoas. Assim, a essência do Pai e a pessoa do Pai tornam-se idênticas. Mas como a essência do Pai é compartilhada pelo Filho, o Filho se torna assim essencialmente e pessoalmente idêntico ao Pai! Portanto, Aquino conclui: "Deve-se dizer que propriedade e essência no divino não diferem realmente, mas apenas no entendimento, pois a paternidade em si é a essência divina." [24] Aí está: a paternidade é a própria essência de Deus, segundo Aquino.Permita-me chamar a sua atenção novamente para Eunômio, o herege. Ele identificou a essência de Deus com o Pai e então concluiu que o Filho (o Gerado) não é Deus, porque ele não é o Pai (o Não-gerado). Pe. John Zizioulas, um proeminente filósofo ortodoxo, afirma com razão que devemos evitar "qualquer identificação da essência de Deus com o Pai, sendo essa a identificação que os eunomianos tentaram fazer para que eles pudessem então sustentar que como o Filho não é o Pai, Ele se encontra fora da essência do Pai e por isso não é "consubstancial com o Pai""[25]. Se a identificação da essência de Deus com o Pai (por Eunômio e Aquino) é correta, então a única maneira que o Filho pode de fato ser Deus é se Ele é o Pai. Assim, a teologia ocidental implica que, para que o Pai e o Filho sejam verdadeiramente consubstanciais um com o outro, a paternidade deve ser comum tanto ao Pai como ao Filho. Isto significa que o Filho é o Pai - que eles não são realmente duas pessoas distintas!

A fórmula trinitária ocidental é fundamentalmente anti-trinitária. Com base nos pressupostos agostinianos, deve-se admitir que ou os sabelianos estavam corretos (isto é, não há Trindade porque o Pai é o Filho) ou os eunomianos estavam corretos (isto é, não há Trindade porque o Filho não é o Pai); e os teólogos ocidentais se colocaram do lado de Sabélio, que eles mesmos consideram como um herege. Embora Agostinho e Aquino tenham utilizado a terminologia trinitária, na verdade estavam ensinando o Unitarismo por implicação. (Se eles estavam ou não conscientes de que isto é o que eles estavam ensinando é uma questão bem diferente).

Tomás de Aquino segue Santo Agostinho ao identificar a vontade de Deus e Sua atividade (operação/energias) com Sua essência:
Deve-se dizer que as atividades de Deus podem ser consideradas ou da parte do agente ou da parte do que recebe a ação. Se da parte do agente, há apenas uma atividade em Deus, que é a sua essência, pois ele não faz as coisas por uma ação que interviria entre Deus e a sua vontade, que é a sua própria existência. Mas, considerado o lado do que recebe a ação, existem de fato diferentes atividades, pois através do seu entendimento existem diversos efeitos da atividade divina. Mas isto não introduz nele nenhuma composição. [26]
O cristianismo ocidental é geralmente unitarista: a fórmula trinitária ocidental é meramente modalista - é cripto-sabelianismo. Os teólogos ocidentais rejeitam explicitamente a distinção entre a essência e as energias de Deus e negam implicitamente (às vezes explicitamente) a distinção entre a essência e as pessoas. Qualquer uma dessas distinções comprometeria o seu dogma Plotiniano da simplicidade absoluta. Não parece haver qualquer diferença entre a posição protestante tradicional e católica romana e a dos pentecostais unitaristas e outras seitas unitaristas no que diz respeito à substância da doutrina de Deus. Os leigos na cristandade ocidental podem ser trinitários, mas os filósofos, teólogos, e o clero educado das denominações ocidentais têm sido (pelo menos implicitamente) unitaristas. E se os teólogos ocidentais forem tudo menos unitaristas, então eles são totalmente irracionalistas: pois então eles devem estar afirmando que Deus é uma contradição total por natureza. Mas se for esse o caso, então o Deus que eles estão postulando não pode existir.

Esta fórmula trinitária errônea - que faz da simplicidade absoluta de Deus a base da unidade na Divindade - baseia-se no pressuposto de que tudo em Deus é idêntico à Sua essência. Luís de Granada (1504-1588) escreve: "A Essência de Deus não admite distinção alguma; de modo que Seu Ser é Sua Essência, Sua Essência é Seu Poder, Seu Poder é Sua Vontade, Sua Vontade é Sua Compreensão", etc. [27] É por isso que os "teólogos" ocidentais rejeitaram a distinção entre a essência de Deus e Suas energias. Como, então, eles podem manter uma distinção entre a essência de Deus e as pessoas na Trindade? Se eles forem consistentes, não podem. Se uma distinção entre a essência de Deus e Seus atributos comprometesse Sua simplicidade absoluta, então qualquer distinção entre Sua essência e as pessoas faria o mesmo. Foi natural que filósofos teológicos mais autoconscientes no Ocidente confundissem totalmente as pessoas e a essência em Deus: assim Cornelius van Til declarou que Deus é "simultaneamente uma pessoa e três pessoas." [28] Não decorre da afirmação de que a essência é idêntica ao Pai e que o Pai é uma pessoa, que a própria essência também é uma pessoa? Se não pode haver diferenciação entre Seus atributos e Sua essência, então não pode haver diferença entre Sua essência e as pessoas: o essencial é totalmente identificado com o pessoal e o pessoal totalmente confundido com o essencial.

O Catecismo da Igreja Católica afirma:
"A tradição latina do Credo confessa que o Espírito 'procede do Pai e do Filho (filioque)'. O Concílio de Florença, em 1438, explica: "O Espírito Santo é eternamente do Pai e do Filho; Ele tem a sua natureza e subsistência de uma só vez (simul) do Pai e do Filho. Ele procede eternamente de ambos como de um só princípio e através de uma única espiração..." [29]
Considerando o esquema geral agostiniano, não é muito difícil entender porque os filósofos cristãos ocidentais se apressaram em afirmar que o Espírito Santo procede do Pai e do Filho (ex Patri Filioque procedit) como de um único princípio. Os teólogos ocidentais podem "derivar o Filho de nenhuma outra fonte a não ser da substância do Pai." [30] Segundo a teologia ocidental, a essência de Deus é o Pai, [31] e o Filho procede da essência de Deus como a "essência da essência" [32] , de modo que "o Filho é também a essência do Pai" [33] e "o Pai e o Filho juntos são uma só essência". [34] É natural assumir que o Espírito derivaria Sua divindade da mesma fonte que o Filho deriva a Sua; e a teologia ocidental sustenta que o Filho derivou Sua divindade da essência do Pai (não da pessoa do Pai). [35] Como o Espírito deve proceder dessa essência que é compartilhada pelo Pai e pelo Filho, ele deve proceder de ambos como de um só princípio. Assim Agostinho concluiu: "Pois, se o Filho tem do Pai o que quer que o Pai tenha, então certamente ele tem do Pai, que o Espírito Santo procede também d'Ele." [36] E o Catecismo da Igreja Católica afirma o mesmo: "E, como o Pai, através da geração, deu ao Filho unigênito tudo o que pertence ao Pai, exceto ser Pai, o Filho também tem eternamente do Pai, que eternamente O gerou, que o Espírito Santo procede do Filho" [37]

Minha crítica à posição agostiniana neste ponto seria que ela praticamente pressupõe uma relação temporal entre as pessoas dentro da Trindade ontológica, apesar do fato de que a Trindade existe além do tempo e todas as relações nela devem, portanto, ser relações eternas. João Calvino (ca. 1509-1564) observa que, apesar do fato de as três pessoas serem coeternas, devemos manter "ainda a distinção de ordem... sendo mencionado primeiro o Pai, depois o Filho que vem Dele, e depois o Espírito que vem de ambos... Por esta razão, diz-se que o Filho é somente do Pai; o Espírito de ambos, do Pai e do Filho". [38] Trabalhando dentro desta estrutura agostiniana, é preciso admitir que se o Filho é gerado somente pelo Pai e procede somente Dele como Sua Palavra, então ou há uma relação temporal dentro da Trindade ou então o Espírito Santo não é Deus. As duas possibilidades são (1) que o Pai existiu eternamente e que o Filho procedeu Dele em um ponto, então o Espírito procedeu posteriormente tanto do Pai como do Filho como de um só princípio em um ponto posterior, ou (2) que o Espírito Santo não é Deus porque há algo comum ao Pai e ao Filho que não é comum a Ele, de modo que Ele não compartilha assim da essência comum. [39] Isto é, o Pai e o Filho compartilham o fato de serem uma fonte de processão ontológica, ao passo que o Espírito Santo não é a fonte de nenhuma processão. Esta é a mesma crítica que é feita pelo Pe. John Romanides:
"Consequentemente, se a essência do Pai e do Filho é a causa da existência do Espírito Santo, então, o Espírito Santo é uma criatura. Mais uma vez, se a causa da existência do Espírito, ou a sua processão, é uma energia comum do Pai e do Filho, que falta ao Espírito, então ele é uma criatura. É assim porque, como argumentam os Ortodoxos e os Pneumatomaquianos, a ausência de uma só energia comum ao Espírito que é comum ao Pai e ao Filho demonstraria a natureza criada do Espírito" [40].
.A única saída, se a interpretação agostiniana do filioque não for rejeitada, é afirmar ao mesmo tempo um spirituque. Para não ter que afirmar que o Espírito Santo não é Deus, os agostinianos podem talvez acrescentar à sua fórmula que o Filho procede do Pai e do Espírito. Mas, como a processão do Filho é na forma de geração, isso implicaria claramente que o Espírito é o Pai do Filho, confundindo assim o Pai e o Espírito. Isto é cripto-sabelianismo. Se o agostiniano não afirma que o Filho procede tanto do Pai como do Espírito, então ele sugere que houve um tempo em que o Espírito não existia: pois como pode o Filho proceder da essência sem proceder do Espírito, a menos que o Espírito ou não é Deus ou não existia no momento da processão? No entanto, se o Espírito não existia em nenhum momento, segue-se que ele não é Deus. Mas nenhuma pessoa de credibilidade jamais ensinou que o Filho procede do Espírito, então o filioque é para o Espírito o que o Arianismo é para o Filho. É uma forma de Subordinacionismo - Arianismo Pneumatológico. E até os melhores dos teólogos ocidentais caíram nesta heresia. Além disso, uma vez que o Espírito procede da essência de Deus (e não da pessoa do Pai) segundo a teologia agostiniana, e o Espírito Santo é da mesma essência com o Pai e o Filho, o agostiniano deve afirmar também que o Espírito, na verdade, procede de Si mesmo; pois Ele compartilha a essência da qual Ele procede.

Ademais, a tradição agostiniana apresenta o Espírito Santo como a personificação de atributos impessoais de Deus ou como a personificação da união do Pai e do Filho. O Espírito é meramente algo impessoal que assumiu literalmente uma persona própria.

Escreve Agostinho:
Portanto, como o Pai, o Filho e o Espírito Santo são um só Deus, e certamente Deus é santo, e Deus é um espírito, a Trindade pode ser chamada também o Espírito Santo. Mas ainda assim, esse Espírito Santo, que não é a Trindade, mas é entendido como na Trindade, quando se há de fazer referência a ele, denominando-o propriamente Espírito Santo, a referência é dita de modo relativo, já que Ele é referido tanto ao Pai como ao Filho, porque o Espírito Santo é o Espírito tanto do Pai como do Filho. Portanto, o Espírito Santo é uma certa comunhão inefável do Pai e do Filho; e por isso, talvez, Ele seja assim chamado, porque o mesmo nome é adequado tanto para o Pai como para o Filho.  Para o Espírito Santo, a denominação é própria, mas para as outras pessoas é comum, pois o Pai é espírito, o Filho é espírito; assim como o Pai é santo e o Filho é santo. Portanto, para que a comunhão de ambos possa ser significada a partir de um nome que convenha a ambos, o Espírito Santo é chamado o dom de ambos. [41]
Mais uma vez, Agostinho escreve:
Alguns, porém, chegaram ao ponto de acreditar que a comunhão do Pai e do Filho, e (por assim dizer) sua Divindade (deitatem), que os gregos designam θεότης, é o Espírito Santo; de modo que, sendo o Pai Deus e o Filho Deus, a própria Divindade - na qual eles estão unidos um ao outro, - a saber, o primeiro, gerando o Filho, e o segundo, unindo-se ao Pai - deve [assim] ser constituída em igualdade com Aquele por quem Ele é gerado. Esta Divindade, portanto, que eles desejam que seja entendida também como o amor e a caridade que subsiste entre estas duas [Pessoas], uma para com a outra, eles afirmam ter recebido o nome do Espírito Santo. [42]
Agostinho observa que a passagem que diz "Deus é amor" se refere à essência de Deus, mas depois afirma que "naquela natureza simples e suprema, a substância não deve ser uma coisa e amor outra, mas a substância em si deve ser amor, e o amor em si deve ser substância, seja no Pai, seja no Filho, seja no Espírito Santo;  Contudo, a denominação de Amor aplica-se com maior propriedade ao Espírito Santo." [43] "O Espírito Santo é pois alguma coisa comum ao Pai e ao Filho, seja o que for. Mas essa comunhão é consubstancial e coeterna. Se for mais exato dar-lhe o nome de amizade, que se dê. Mas seria mais adequado chamá-lo de amor." [44] A substância ou essência de Deus é o amor, e esse amor é compartilhado pelo Pai e pelo Filho; essa mesma essência de amor assumiu uma persona própria e se tornou o Espírito Santo. O Espírito é a essência do Pai e do Filho personificada. Assim João Calvino referiu-se ao Espírito Santo como "uma hipóstase de toda a essência." [45]

Esta fórmula trinitária errônea é ensinada tanto por católicos romanos quanto por protestantes. Até mesmo C. S. Lewis, a quem a maioria dos cristãos ortodoxos tem muito respeito, ensinou este erro, dizendo:

...Deus não é uma coisa estática - nem mesmo uma pessoa estática - mas uma atividade dinâmica, pulsante, uma vida, quase um tipo de drama. Quase - se não me acharem irreverente - uma espécie de dança. A união entre o Pai e o Filho é uma coisa tão viva e concreta que esta união em si é também uma Pessoa. Eu sei que isto é quase inconcebível, mas considerem assim. Você sabe que entre os seres humanos, quando se reúnem numa família, ou num clube, ou num sindicato, as pessoas falam do "espírito" dessa família, clube, ou sindicato... E claro que, nesse exemplo, não se trata de uma pessoa real: é apenas algo que se parece com uma pessoa. Mas essa é somente uma das diferenças entre Deus e nós. Aquilo que nasce da vida conjunta do Pai e do Filho é uma pessoa real; é, com efeito, a terceira das três pessoas de Deus.
O Espírito Santo é, na visão agostiniana, apenas uma personificação literal da relação abstrata do Pai com o Filho. Agora faz perfeito sentido como tantos ocidentais poderiam ser tão facilmente enganados a acreditar que o Espírito Santo é em si mesmo uma entidade impessoal; porque mesmo quando os teólogos ocidentais apresentam o Espírito como uma pessoa, eles O apresentam como a personificação de algo que é abstrato e impessoal. Suponhamos, pela argumentação, que a opinião deles seja correta. Agora, se as relações naturalmente se tornam pessoas dentro da Divindade, então a relação do Pai com o Espírito não se tornaria também uma persona? E a relação do Espírito com o Filho se tornaria uma persona? E então as novas relações entre as novas pessoas se tornariam personae também ad infinitum? Este é o argumento que São Fócio apresentou muito tempo atrás.

São Fócio, argumentando contra os agostinianos, escreve:
Além disso, se o Filho é gerado do Pai, e o Espírito (segundo esta inovação) procede do Pai e do Filho, então também uma outra hipóstase deve proceder do Espírito, e assim deveríamos ter não três, mas quatro hipóstases! E se a quarta processão é possível, então outra processão é possível a partir daí, e assim por diante para um número infinito de processões e hipóstases, até que finalmente esta doutrina se transforme em um politeísmo grego. [47]
Se você afirma que o Pai é a essência de Deus e que o Filho é a essência de Deus, então segue-se que o Pai é o Filho: pois duas pessoas que são a mesma essência são realmente uma só pessoa. Duas pessoas podem ser consubstanciais, compartilhando uma só essência, sem serem confundidas em uma única pessoa, mas não podem ser a única essência sem serem confundidas. Parece, então, que o Pai e o Filho são juntos apenas uma única pessoa. Além disso, a definição agostiniana do Espírito Santo como personificação literal da união do Pai e do Filho leva inevitavelmente à conclusão de que o Espírito é também pessoalmente idêntico ao Pai e ao Filho; pois o que é a personificação de uma única pessoa que não seja essa mesma pessoa? Assim, não há absolutamente nenhuma diferenciação entre as pessoas da Trindade se a estrutura agostiniana é seguida consistentemente. A Trindade é reduzida a nada mais do que uma mônada cripto-sabeliana!

Teologia Nicena (i.e. Teologia Ortodoxa) 

Os Ortodoxos mantêm que a pessoa do Pai é a "única fonte" (monarche) da Divindade. Esta monarchia do Pai serve como base da unidade da Trindade para a teologia oriental. O Filho é gerado somente do Pai, e o Espírito procede somente do Pai, e somente o Pai é a fonte eterna da Divindade. Assim, a diversidade das pessoas se origina na unidade do Pai: pois, como observa São João de Damasco, "é uma necessidade natural que a dualidade se origine na unidade" [48]. Uma vez que o Espírito e o Filho são originários do Pai, procedem dEle e derivam o seu ser dEle, compartilham de Sua natureza - cada pessoa compartilham da essência comum. A monarchia do Pai é portanto a base tanto da unidade como da diversidade em Deus: as pessoas são diversas na medida em que as relações são diferentes - somente o Filho é gerado do Pai e somente o Espírito procede do Pai -, mas existe uma unidade última na medida em que elas compartilham uma única essência da divindade e assim são juntas um só Deus. Há uma igualdade última do um e do múltiplo na Trindade ontológica. Vladimir Lossky, o grande filósofo Ortodoxo, afirma: "Se o Espírito Santo procede do Pai e do Filho como de um único princípio, a unidade essencial tem precedência sobre a diversidade pessoal." [49] Por isso, a crítica de Lossky à teologia tradicional ocidental é que ela não mantém a igualdade última do um e do múltiplo na Trindade.

Esta fórmula trinitária oriental tem a vantagem de ser mais consistente com Niceia e as Escrituras. O Credo começa com o Pai Todo-Poderoso como o único Deus ["...um só Deus.."] e prossegue a partir daí. O Credo Niceno afirma: "Nós cremos em um só Deus, Pai Todo-Poderoso..." Repare que somente o Pai é tratado como o "único Deus" ["...um só Deus.."]. Só depois de estabelecer a unidade de Deus através do Pai é que o Credo segue para o Filho: "...e [cremos] em um só Senhor Jesus Cristo, Deus verdadeiro de Deus verdadeiro". O Filho é "gerado não criado, consubstancial ao Pai." Ele tem a sua origem no Pai e compartilha uma essência comum com Ele. Da mesma forma o Espírito é descrito como "procede do Pai" e tem a Sua origem nEle. O Espírito também é Deus em virtude de Ele ter Sua origem no "um só Deus, Pai". O trinitarismo Ortodoxo oriental é simplesmente uma fidelidade estrita ao Credo Niceno. E esta visão Ortodoxa também é reforçada pelas Escrituras, que seguem a mesma abordagem. [50]

Vladimir Lossky, apoiando-se na doutrina oriental da Trindade, escreve:
...aqui não estamos preocupados com o número enquanto quantidade: diversidade absoluta não pode estar sujeita a somas de adição; não possuem nem mesmo uma oposição em comum. Se, como nós falamos, um Deus pessoal não pode ser uma mônada - se ele não pode ser mais do que uma pessoa - tampouco ele pode ser uma díade. A díade é sempre uma oposição de dois termos, e, nesse sentido, não pode significar uma diversidade absoluta. Quando dizemos que Deus é Trindade, estamos emergindo da série de números contabilizáveis ou calculáveis.[51] A processão do Espírito Santo é uma passagem infinita para além da díade, que consagra a diversidade absoluta (em oposição à relativa) das pessoas.... Se Deus é uma mônada igual a uma tríade, não há lugar nele para uma díade.... Dizemos 'a Trindade simples', e esta expressão antinômica, característica da hinografia Ortodoxa, [52] aponta uma simplicidade que a absoluta diversidade das três pessoas não pode de forma alguma relativizar. [53]
Noutro lugar, Lossky escreve:

O termo 'monarquia' para o Pai é comum aos grandes teólogos do século IV. Isso significa que a fonte em si da divindade é pessoal. O Pai é divindade, mas precisamente porque Ele é o Pai, Ele a concede em sua plenitude às duas outras pessoas. Estas últimas têm a sua origem a partir do Pai, μόνη ἀρχή, princípio único, daí o termo 'monarquia', a 'divindade - fonte', como diz Dionísio, o Areopagita, sobre o Pai. É daí, de fato, que brota - aí que está enraizada - a divindade do Filho e do Espírito Santo, idêntica, não-compartilhada, mas comunicada de forma diferente. A noção de monarquia, portanto, denota em uma única palavra a unidade e a diferença em Deus, começando a partir de um princípio pessoal. [54]

Se existe uma simplicidade absoluta da essência de Deus, então existe também uma absoluta diversidade de pessoas. É isto que o modelo ocidental não consegue estabelecer consistentemente: a diversidade absoluta em contraste com a simplicidade absoluta. A essência de Deus é absolutamente simples e as pessoas são absolutamente diversas, e o princípio tanto da diversidade absoluta como da simplicidade absoluta é a pessoa do Pai somente. A essência divina do Pai é dada ao Filho conforme o Filho é gerado do Pai somente. A mesma essência é dada ao Espírito quando Ele procede do Pai somente. Esta essência compartilhada faz das diversas pessoas um só Deus, enquanto que as diversas relações - o Espírito procedendo, o Filho sendo gerado, e o Pai sendo a fonte da Divindade - garante a absoluta diversidade das pessoas. Há uma igualdade última do um e do múltiplo, mas o Ocidente manteve a ultimidade do um negligenciando o múltiplo.  A teologia ocidental torna-se assim epistemologicamente auto-refutável com base nos seus próprios princípios.

O metropolita John Zizioulas escreve:

"A relação entre unidade e diversidade está ligada a doutrinas fundamentais da fé cristã, particularmente com a teologia trinitária, a cristologia e a pneumatologia". Implícita nestas doutrinas está a questão filosófica da unidade e da alteridade, ou do 'um' e o 'múltiplo', que inquieta a mente humana, pelo menos desde a época de Platão. A unidade precede a alteridade? A unidade é mais importante do que a alteridade? O "múltiplo" existe em favor do "um", como Platão insistiu em suas Leis? Estas perguntas são básicas para qualquer discussão sobre o problema da unidade e da diversidade.  A Igreja e a teologia cristã não podem responder a tais questões filosóficas de outra forma, exceto com a ajuda das doutrinas básicas da fé das quais depende a nossa própria identidade como cristãos. Consideremos algumas dessas doutrinas.... 
"A teologia trinitária envolve em sua estrutura básica o problema da relação entre unidade e diversidade na forma da relação ontológica entre o um e o múltiplo. A fé no 'um' Deus que é ao mesmo tempo 'três' [Pessoas], ou seja, 'múltiplo', implica que unidade e diversidade coincidem no próprio ser de Deus. A questão se a unidade precede a diversidade logicamente ou ontologicamente em Deus é de importância crucial. A teologia medieval [agostiniana ocidental] sucumbiu à lógica do essencialismo ou substancialismo, que herdou do pensamento grego, e deu prioridade na dogmática ao capítulo 'De Deo uno', que recebeu precedência sobre o de 'De Deo Trino'. Deus, logicamente falando, é primeiro "um" e depois "múltiplo". Este monismo teológico é o equivalente ao monismo filosófico que caracterizou o pensamento grego antigo desde os pré-socráticos ao neoplatonismo. Platão enfrentou este problema em seu Parmenides, mas não conseguiu dar ao 'múltiplo' a mesma prioridade ontológica que ele atribuiu ao 'um'. O mesmo aconteceu com a teologia escolástica medieval em relação a Deus: a unidade em Deus vem primeiro; a Trindade vem depois. As dificuldades que a teologia ocidental tem enfrentado desde então para acomodar a doutrina da Trindade na lógica comum são bem conhecidas. 
"A posição da teologia medieval em relação à prioridade do único Deus em relação ao Deus Trino era acompanhada por outra ordem ontológica, a da prioridade da substância [ou essência] sobre a pessoalidade. Desde Santo Agostinho, o um só Deus foi identificado com a substância divina (divinitas), e a teologia medieval elaborou isto entendendo as três Pessoas de Deus como 'substâncias' dentro de uma substância. Uma vez que a pessoalidade representa a alteridade e a pluralidade no ser de Deus, a identificação do um só Deus com a substância divina e a atribuição de prioridade lógica a ela significou que a alteridade e a liberdade - dois ingredientes básicos da pessoalidade - devem por fim sucumbir à necessidade da substância... 
"Para a tradição patrística grega [Ortodoxa], a Trindade é tão ontologicamente primária quanto a unidade de Deus. O 'um' e o 'múltiplo' coincide plenamente em Deus. A substância é uma noção relacional, segundo Santo Atanásio e todo o pensamento patrístico grego: sem o Filho, a substância do Pai torna-se "empobrecida", argumenta o bispo de Alexandria contra os arianos. Além disso, o um só Deus é para os Padres gregos a Pessoa do Pai, e isto significa que a alteridade - e por extensão a diversidade - é incorporada na própria noção de unicidade ou unidade. Deus não é primeiro um e depois três, mas simultaneamente um e três. O geral é inconcebível sem o particular." [55]
Dentro da Trindade, há algo como um filioque genuíno: o Espírito Santo procede do Pai através do Filho, mas não de ambos como de um único princípio. Todos os Padres afirmam isso, mas falam da processão somente a partir do Pai e através do Filho, para demonstrar que a processão difere em relação a cada pessoa. A divindade do Espírito deriva apenas da fonte eterna do Pai e não do Filho. Por isso, São Gregório Nazianzeno (ca. 329-390) escreve: "...tudo o que o Pai tem pertence igualmente ao Filho, exceto Causalidade; e tudo o que é do Filho pertence também ao Espírito, exceto a Sua filiação... " [56]

São João de Damasco (ca. 676-749 d.C.) escreve:
E o Espírito Santo é o poder do Pai revelando os mistérios ocultos de Sua Divindade, procedendo do Pai através do Filho de uma maneira conhecida por Ele mesmo, mas diferente da geração... Todos os termos, portanto, que são apropriados ao Pai, como causa, fonte,  gerador, devem ser atribuídos somente ao Pai... E falamos também do Espírito do Filho, não como se procedesse dEle, mas como se procedesse através dEle a partir do Pai. Pois somente o Pai é causa. [57]
A noção Ortodoxa do filioque pode ser entendida através da seguinte analogia. Há uma torneira (o Pai) da qual flui água (o Espírito) e uma mangueira (o Filho) através da qual flui a água. A água tem a sua origem somente a partir da torneira como de um único princípio, mas também pode ser dito que ela vem tanto da torneira como da mangueira. Do mesmo modo, o Espírito procede do Pai e do Filho - a partir do Pai somente e através do Filho - mas não como de ambos, como de um único princípio. Em essência, este entendimento Ortodoxo é mais econômico do que ontológico.

São João de Damasco dá a seguinte analogia:
Temos uma analogia em Adão, que não foi gerado (pois o próprio Deus o moldou), e Set, que foi gerado (pois ele é filho de Adão), e Eva, que procede da costela de Adão (pois ela não foi gerada). [58]
Cada uma das pessoas da Trindade habita dentro de cada uma das outras. Em virtude da essência compartilhada, cada pessoa penetra nas profundezas das outras pessoas e habita nelas. Esta é a doutrina patrística da perichoresis. [59] Coletivamente, a Trindade tem toda a plenitude da Divindade: individualmente, cada pessoa contém toda a plenitude da Divindade. É por isso que São Paulo pôde falar de Cristo, dizendo, "Porque nele habita corporalmente toda a plenitude da divindade" (Colossenses 2:9). Assim também, diz Cristo: "Quem me vê a mim vê o Pai; e como dizes tu: Mostra-nos o Pai? Não crês tu que eu estou no Pai, e que o Pai está em mim? As palavras que eu vos digo não as digo de mim mesmo, mas o Pai, que está em mim, é quem faz as obras. Crede-me que estou no Pai, e o Pai em mim" (João 14:9-11). Esta mútua habitação ou perichoresis é o motivo pelo qual o Espírito Santo é referido como o Espírito do Filho; porque embora Ele proceda somente do Pai, Ele pertence ao Filho na medida em que o Pai está no Filho.

Epistemologia (O Conhecimento de Deus e o Conhecimento do Homem)

O Criador existia necessariamente antes da criação. Mas tendo existido antes da criação, não havia nada além de Si mesmo com o qual o Criador pudesse se comparar e se contrastar. [60] Mas sem uma análise de comparação-e-contraste, o conhecimento simplesmente não pode existir: isto é o que é denominado como o problema do um e do múltiplo na filosofia. O Pe. John Romanides faz o seguinte resumo:

"O objeto conhecido é descritível. Nós conhecemos a sua descrição e somos capazes de o descrever. Mas o que nos permite descrevê-lo? A sua semelhança com outro objeto que já conhecemos. Existe uma semelhança entre o objeto que queremos descrever e outra coisa qualquer.
"Outro aspecto do conhecimento é a diferença. Similaridade e diferença formam a base do conhecimento criado pelo homem. Quando similaridade e diferença estão presentes, um objeto pode ser descrito. Similaridade e diferença tornam um objeto susceptível à descrição e classificação de acordo com gênero, espécie, et cetera. Estas categorias de semelhança e diferença são as bases do conhecimento humano." [61]
Mas se se sustenta que o fundamento do conhecimento humano são as categorias de similaridade e diferença, então também se deve sustentar que todas essas categorias têm como base a Trindade ontológica. Caso contrário, o conhecimento humano não é dependente de Deus; manter tal posição é heresia absoluta. Todas as categorias criadas de similaridade e diferença têm como base última as eternas categorias correspondentes na Trindade. Segundo São Basílio de Cesaréia, "A distinção entre ousia e hipóstase é a mesma que a distinção entre o geral e o particular". [62] A clara conseqüência é que as categorias epistemológicas do um e do múltiplo - isto é, similaridade e diferença - estão eternamente presentes na Divindade. Deus é eternamente consciente de Si mesmo, conhecendo a Si mesmo através de Suas categorias gerais e particulares eternas. O Pe. Michael Pomazansky observa: "A razão nos diz que Deus é um Ser auto-existente, pois nada pode ser a causa ou a condição da existência de Deus." [63] Da mesma forma, ele observa: "O conhecimento de Deus é visão e compreensão imediata de tudo, tanto o que existe como o que é possível, o presente, o passado e o futuro", e Deus é "auto-suficiente a Si mesmo" [64]. Isto significa que Deus também é eternamente consciente de Si mesmo. Então Pomazansky levanta a questão: "Como procedia a vida de Deus antes da criação do mundo?". A resposta dada é que Ele contemplava o Seu próprio ser na Trindade ontológica: "Contemplava o resplendor amoroso da Sua própria bondade, e o igualmente perfeito esplendor da Divindade triplamente luminosa conhecida apenas pela Divindade e por quem Deus a revela." [65] O conhecimento de Deus é analítico: Ele conhece a Si mesmo eternamente através de uma análise eterna do Seu próprio ser - há uma análise eterna das categorias epistemológicas do um e do múltiplo em Deus. No entanto, como Deus é eterno, não podemos pensar nessa análise como se fosse temporal. Pomazansky é rápido em enfatizar que Deus é eterno: "A existência de Deus está fora do tempo, pois o tempo é apenas uma forma do ser limitado, do ser mutável." [66] Em outras palavras, não se pode dizer que Deus tenha adquirido conhecimento através de uma análise; ao contrário, Ele conhece eternamente através de uma análise eterna. Nunca houve um ponto em que Ele não conhecesse nem nunca houve um ponto em que Ele não estivesse analisando - a análise e a "obtenção" do conhecimento são eternamente simultâneas. Assim, São Gregório Palamas escreve: "Como se poderia conceber um começo da auto-contemplação de Deus, e houve algum momento em que Deus começou a ser movido em direção à contemplação de Si mesmo? Nunca!" [67] A compreensão correta [ortodoxa] da Trindade é de vital importância pois um "deus" não-trinitário jamais poderia conhecer o que quer que seja. [68]

Agora, sobre os pressupostos católicos romanos e protestantes, que apresentam Deus como uma mônada cripto-sabeliana, não há possibilidade de tal análise. Uma vez que as relações na Trindade são meramente distinções lógicas e filosóficas, e não diversidades ontológicas reais, não pode haver uma análise contrastante na própria Divindade. Em uma similaridade absoluta sem diversidade, não pode haver análise: não se pode saber o que é a escuridão, a menos que se tenha sido capaz de contrastá-la com a luz. Assim, um ex-protestante, que se converteu à Ortodoxia, aponta:
Aqui a razão não pode operar dentro do Um porque a razão requer relações entre objetos conceituais e, dentro de um Um completamente singular e absolutamente simples, as relações simplesmente não são possíveis. [69]
Em outras palavras, a definição ocidental de Deus é necessariamente auto-refutável. Deus não pode ser onisciente e uma Mônada absolutamente simples, desprovida de diversidade real. Epistemologicamente falando, o conhecimento de Deus baseia-se no Seu próprio ser e na igualdade última eterna do um e do múltiplo em Si mesmo - ou seja, o conhecimento de Deus repousa sobre a Trindade ontológica como sua base.

Se Deus é o criador do homem, conclui-se que o conhecimento humano é necessariamente dependente de Deus. E como as "categorias de similaridade e diferença são os fundamentos do conhecimento humano", [70] como observa Romanides, conclui-se necessariamente que as categorias criadas de similaridade e diversidade são contingentes às categorias paralelas na Trindade ontológica, de modo que o fundamento último de todo o conhecimento humano é a Trindade ontológica. Se o homem é criado pelo Deus Trinitário e o conhecimento humano é criado, então o conhecimento humano deve ser totalmente dependente da Trindade. Qualquer negação deste fato é uma apostasia manifesta, a rejeição total do Deus cristão.[71]

Se Deus é a Trindade ontológica, então Ele é o Concreto Universal! Ele tem em Si mesmo as categorias eternas do um e do múltiplo. Nikolai Berdyaev escreve:

Há uma universalidade concreta, distinta de uma generalidade abstrata. Esta universalidade concreta não é extra-pessoal, mas é o conteúdo mais elevado da vida pessoal.... Deus é uma Pessoa e não uma Essência Universal. [72] 
Do ponto de vista da história do pensamento mundial, no que diz respeito ao problema da pessoalidade, uma imensa importância se atribui à doutrina das hipóstases da Santíssima Trindade. Poder-se-ia dizer que a consciência de Deus como pessoalidade precede a consciência do homem como pessoalidade .... A pessoalidade é uma união do um e do múltiplo. [73]
Todos os Seus pensamentos refletem estas categorias epistemológicas eternas. E "a criação do mundo", segundo Pomazansky, "é a realização do pensamento eterno de Deus".[74] Portanto, pode-se dizer que o um e o múltiplo temporal são análogos às categorias eternas do um e do múltiplo na mente de Deus. São categorias que têm como base as categorias ontológicas na Trindade.[75] Contudo, não se pode sustentar que os pensamentos na mente de Deus tenham tido uma existência real antes da criação. Qualquer noção platônica de uma analogia do ser, pela qual as coisas neste mundo têm algum tipo de relação análoga com a real existência metafísica de suas formas paralelas em outro mundo, deve ser rejeitada completamente. Tais noções obscurecem a distinção entre o criado e o Incriado, tornando o criado eternamente existente por direito próprio em virtude de sua forma análoga. Os pensamentos de Deus, porém, não têm tal existência de modo a fazer com que o pensamento eterno da criação implique uma criação eterna. O pensamento e a vontade de Deus não são coincidentes com o Seu ser, como ensina falsamente a teologia ocidental. Assim como sabemos que o monstro debaixo da cama na mente de uma criança não tem existência real, mas é meramente uma imaginação, assim o pensamento na mente de Deus não tinha existência real até que Ele quis que existisse.[76]

Assim, escreve Pe. Michael Pomazansky: 
"A imutabilidade de Deus não é contrariada, igualmente, pela criação do mundo.  O mundo é uma existência que é exterior em relação à natureza de Deus e, portanto, ele não muda nem a essência nem os atributos de Deus. A origem do mundo é apenas uma manifestação do poder e do pensamento de Deus. O poder e o pensamento de Deus são eternos e eternamente ativos, mas nossa mente de criatura não consegue entender o conceito dessa atividade na eternidade de Deus. O mundo não é co-eterno com Deus; ele é criado. Mas a criação do mundo é a realização do pensamento eterno de Deus (Bem-aventurado Agostinho)" [77].

E o Pe. John Romanides escreve: 
"A distinção, porém, entre essência e energia em Deus ajuda-nos a compreender a criação do mundo a partir do nada.  Os filósofos aristotélicos de Antioquia, que eram contra a noção cristã da "perfeição" de Deus, argumentaram os seguintes pontos contra a doutrina cristã da criação a partir do nada. Deus, antes da criação, deve ter sido criador 'potencialmente', e, na criação, deve ter-se tornado criador 'atualmente'. Portanto, Deus é mutável e, consequentemente, 'imperfeito', tornando-se 'perfeito' através da criação. Este argumento é refutado por certos documentos, atribuídos a Justino Mártir, que mencionam que Deus não criou o mundo a partir de Sua essência, mas por Sua energia. Essência e energia não são identificadas, mas distinguidas. Isto significa que Deus cria o que Ele quer, sempre que Ele quer, sem que a Sua essência seja afetada, porque permanece inalterada e imutável. A decisão de Deus, portanto, sobre a criação do mundo não diz respeito à Sua essência, mas à Sua vontade. Uma vez que [a criação] ocorre pela vontade, isto significa que Deus não está por necessidade relacionado com o mundo, nem mudou de 'potencialidade' para 'atualidade', uma vez que Deus não cria o mundo a partir de Sua essência, mas por Sua energia e vontade" [78].
Mais uma vez, Vladimir Lossky escreve: 
"Na grande tradição platónica, Deus é sempre concebido como o princípio de tudo o que existe e o mundo se desenvolve a partir deles, sem ruptura ontológica. Para os cristãos, pelo contrário, todo o emanacionismo é impossível, a ruptura ontológica é total, a criação ex nihilo é livre". [79]
No quadro agostiniano, para ser coerente, a teologia ocidental deve afirmar uma espécie de continuidade e analogia de ser que confunde a distinção entre o Incriado e o criado. Toda a teologia ocidental se resume nas seguintes palavras de Luís de Granada: "Encontramos em todas criaturas diversidades que as distinguem umas das outras, mas a pureza da Essência de Deus não admite distinção alguma; de modo que Seu Ser é Sua Essência, Sua Essência é Seu Poder, Seu Poder é Sua Vontade, Sua Vontade é Sua Compreensão, Sua Compreensão é Seu Ser, Seu Ser é Sua Sabedoria, Sua Sabedoria é Sua Justiça, Sua Justiça é Sua Misericórdia".[80] A teologia ocidental não permite qualquer distinção entre a mente, vontade, energia de Deus e Sua essência. Uma vez que a essência de Deus é idêntica ao Seu pensamento, o próprio pensamento da criação na mente de Deus implica que a criação é Deus. Uma vez que a mente, a vontade e a energia de Deus são idênticas à Sua essência, de acordo com a teologia ocidental, a criação de Deus deve ter procedido a partir de Sua essência. Mas se esse for o caso, então a processão da criação a partir da essência de Deus seria equivalente à processão do Espírito. A teologia ocidental tem uma implicação panteísta evidente.[81] Além disso, se o pensamento de Deus é coincidente com o Seu ser, não se segue que Seus pensamentos sobre a criação teriam ser em si mesmos? Implicando assim que o plano eterno de Deus para a criação requer a criação eterna como seu corolário necessário?


São Gregório de Nissa, afirmando a posição Ortodoxa, ensinou que entre Deus e a criação há uma descontinuidade de ser - uma ruptura ontológica total. A essência de Deus é absolutamente outra. No entanto, as energias de Deus são capazes de comunicar certos de Seus atributos e características à criação. Há um abismo entre o Criador e a criação, mas as energias de Deus são de Sua essência e transmitem Suas qualidades com elas. Alguns de Seus atributos (por exemplo, existência) podem ser comunicados à criação através das energias de Deus.82 Deus quis criar e Suas energias imediatamente comunicaram existência ao conceito de existentes criados, que não tinha existência real de antes. Os atributos de Deus só podem ser conhecidos através da criação se eles forem comunicados a ela por Suas energias: "Pois desde a criação do mundo os atributos invisíveis de Deus, seu eterno poder e sua natureza divina, têm sido percebidos claramente, sendo compreendidos por meio das coisas criadas." (Romanos 1:20) Mas apenas alguns dos Seus atributos são assim comunicados à criação. Alguns de Seus atributos (por exemplo, asseidade, omnisciência, etc.) são incomunicáveis. Há uma descontinuidade total de ser quando consideramos a essência de Deus, mas há um grau de continuidade quando consideramos a comunicação de certos atributos divinos através de Suas energias onipresentes.Esta doutrina não é exclusiva de São Gregório de Nissa: a mesma distinção é feita pela grande maioria dos Padres da Igreja, incluindo nomes tão grandes como São Basílio, São Gregório de Nazianzo, e São Máximo o Confessor [83]. O filósofo Ortodoxo Dr. Clark Carlton comentou que "a distinção entre a essência e as energias de Deus, que os Católicos Romanos gostam de chamar de Palamismo, mas que na verdade ocorre ao longo da história do pensamento Ortodoxo, nada mais é do que uma convenção linguística para afirmar que Deus é ao mesmo tempo transcendente e imanente " [84].

Fonte: Augustinian Neo-Platonism vs. Orthodox Nicene Theology por W. J. Whitman

Notas


1 Santo Agostinho, De Trinitate, livro 1, capítulo 1 (I: 5)

2 A abordagem de Tertuliano foi falha porque ele via o Filho como procedendo da essência de Deus e não da pessoa do Pai - mas então o Filho não se relacionaria com o Pai como um Filho porque ele seria o Filho da Essência e não o Filho do Pai -, mas Tertuliano não ensinou "simplicidade absoluta" ou o "filioque": estas duas doutrinas foram tomadas emprestadas por Agostinho do Neo-Platonismo.

3 Cf. Agostinho, Sobre a Doutrina Cristã, Livro 1, cap. 5.

4 Cornelius van Til, Uma introdução à Teologia Sistemática, cap. 16.

5 Plotino, As Enéadas 5.6

6 Eunômio, A Primeira Apologia

7 Eunômio, A Primeira Apologia

8 Eunômio, A Primeira Apologia

9 Eunômio, A Primeira Apologia

10 Eunômio, A Primeira Apologia

11 Santo Agostinho, De Trinitate, Livro 7, Capítulo 1 (VII:2)

12 Santo Agostinho, De Trinitate, Livro 7, Capítulo 1 (VII, 1); cf. Luís de Granada (1504-1588), O Guia dos Pecadores, cap. 1: "As criaturas são compostas de várias substâncias, enquanto Ele é um Ser puro e simples; se Ele fosse composto de substâncias diversas, isso pressuporia um ser acima e antes d'Ele para ordenar a composição dessas substâncias, o que é totalmente impossível... Por isso Aristóteles chama-O de um ato puro - isto é, Perfeição Suprema, que não admite nenhum incremento... Encontramos em todas as criaturas diversidades que as distinguem umas das outras, mas a pureza da Essência de Deus não admite nenhuma distinção; de modo que Seu Ser é Sua Essência, Sua Essência é Seu Poder, Seu Poder é Sua Vontade, Sua Vontade é Sua Compreensão, Sua Compreensão é Seu Ser, Seu Ser é Sua Sabedoria, Sua Sabedoria é Sua Justiça, Sua Justiça é Sua Misericórdia".

13 Santo Agostinho, De Trinitate, Livro 7, Capítulo 1 (VII, 3)

14 Eunômio, A Primeira Apologia

15 Santo Agostinho, De Trinitate, Livro 15, Capítulo 5 (XV, 38)

16 Aristóteles sustentou que tem de haver algum "Motor Imóvel" que tenha posto todas as outras coisas em movimento. Um objeto não se move até que algo o ponha em movimento, então deve haver algum "primeiro princípio" que iniciou o continuum de movimento no universo. Aristóteles escreve: "Está claro então pelo que foi dito que existe uma substância que é eterna e imóvel e separada das coisas sensíveis. Foi também demonstrado que esta substância não pode ter qualquer magnitude, mas é sem partes e indivisível..." (Metafísica, Livro 12, Capítulo 7) A dependência de Aquino em relação a Aristóteles, em vez de Plotino, é, na minha opinião, retrógrada. O sistema de Plotino foi na verdade uma melhoria em relação ao sistema de Aristóteles. Agostinho foi melhor filósofo que Aquino porque ao menos seguiu uma filosofia mais desenvolvida e consistente (Plotinismo), enquanto que Aquino voltou a uma filosofia menos desenvolvida (Aristotelismo). O tomismo é um passo atrás dentro do pensamento platonista.

17 Cf. Cornelius van Til, em uma palestra sobre Filosofia e Apologética: "[Aristóteles] permaneceu sempre fiel aos princípios de Platão. Em outras palavras, o que Aristóteles ensinou não é uma mudança de posição em nenhum sentido básico".

18 Tomás de Aquino, Sobre o Poder de Deus, Pergunta 7: "Sobre a Simplicidade de Deus", Artigo 1, Resposta

19 Tomás de Aquino, Sobre o Poder de Deus, Pergunta 7: "Sobre a Simplicidade de Deus", Artigo 2, Resposta

20 Tomás de Aquino, Sobre o Poder de Deus, Pergunta 7: "Sobre a Simplicidade de Deus", Artigo 5, Pelo Contrário

21 Tomás de Aquino, Sobre o Poder de Deus, Pergunta 7: "Sobre a Simplicidade de Deus", Artigo 4, Resposta

22 Tomás de Aquino, Sobre o Poder de Deus, Pergunta 7: "Sobre a Simplicidade de Deus", Artigo 1, Ad 9-10

23 Pe. John Romanides, An Outline of Orthodox Patristic Dogmatics, Parte 2, Ch. 6

24 Tomás de Aquino, Sobre o Poder de Deus, Pergunta 7: "Sobre a Simplicidade de Deus", Artigo 1, Ad 4

25 Pe. John Zizioulas, The One and The Many, Part One, The Being of God and the Being of Man, § 3

26 Tomás de Aquino, Sobre o Poder de Deus, Pergunta 7: "Sobre a Simplicidade de Deus", Artigo 1, Ad 7

27 Luís de Granada, O Guia dos Pecadores, Ch. 1

28 Cf. Cornelius van Til: "Nós afirmamos que Deus, ou seja, toda a Divindade, é uma só pessoa. Constatamos que cada atributo é co-extensivo com o ser de Deus.... De maneira semelhante, temos notado como os teólogos insistem que cada uma das pessoas da Divindade é coincidente com o ser da Divindade.... Deus não é uma essência que tem personalidade; ele é personalidade absoluta. No entanto, dentro dessa única pessoa nos é permitido e somos compelido pela Escritura a fazer a distinção entre um tipo específico ou genérico de ser e três subsistências pessoais" (Uma Introdução à Teologia Sistemática, Ch. 17).

29 Catecismo da Igreja Católica, Segunda Edição, ¶246

30 Tertuliano, Contra Praxeas, Ch. 4

31 Cf. "A paternidade em si é a essência divina" (Tomás de Aquino, Sobre o Poder de Deus, Pergunta 7, Artigo 1, Resposta à 4ª Protesto)

32 Agostinho, De Trinitate, Livro 7, Ch. 2 (VII:3)

33 Agostinho, De Trinitate, Livro 7, Ch. 1 (VII:1)

34 Agostinho, De Trinitate, Livro 7, Ch. 2 (VII:3)

35 Este princípio de derivar a Trindade da essência do Pai e não da Sua pessoa remonta a Tertuliano (ca. 155-220), que foi de fato o primeiro teólogo ocidental. Cornelius van Til cita Herman Bavinck como afirmando que Tertuliano foi "o primeiro que tentou derivar a Trindade das pessoas, não da pessoa do Pai, mas da essência de Deus" (Cf. Cornelius van Til, An Introduction to Systematic Theology, Ch. 17).

36 Agostinho, Sobre a Trindade, Livro 15, cap. 26 (§47)

37 Catecismo da Igreja Católica, Segunda Edição, ¶246

38 João Calvino, Institutos da Religião Cristã 1.13.18

39 Isso acontece porque os teólogos afirmam que o que é comum a várias pessoas está relacionado com a essência e o que não é comum a várias pessoas não está relacionado com a essência, mas com as pessoas.

40 Fr. John Romanides, An Outline of Orthodox Patristic Dogmatics, Parte 2, Cap. 7

41 Agostinho, De Trinitate, Livro 5, Capítulo 11 (V:12)

42 Agostinho, Um tratado sobre a fé e o credo, Ch. 9 (§ 19)

43 Agostinho, De Trinitate, Livro 13, Capítulo 17 (XIII:29)

44 Agostinho, De Trinitate, Livro 6, Capítulo 1 (VI, 7)

45 João Calvino, Institutos da Religião Cristã 1.13.20: "Porque nada nos impede de manter que [o Espírito Santo] é toda a essência espiritual de Deus, na qual estão compreendidos Pai, Filho e Espírito. Isto é claro a partir da Escritura. Pois como Deus ali é chamado de Espírito, assim também o Espírito Santo, na medida em que ele é uma hipóstase de toda a essência, é dito ser tanto de Deus como a partir de Deus". Note que se Calvino tivesse meramente feito esta afirmação no contexto da pericorese - que cada pessoa é uma pessoa de toda a essência porque todas são plenamente Deus -, então não envolveria heresia. O problema é que a afirmação é feita no contexto do Espírito Santo e do filioque apenas, de modo que Ele é considerado uma ser uma "pessoa da essência" em um sentido diferente daquele sentido que também poderia ser aplicado ao Pai e ao Filho.

46 C. S. Lewis, Cristianismo Puro e Simples, Livro 4, Ch. 4

47 S. Fócio, Mistagogia do Espírito Santo, 37, grifo meu

48 São João de Damasco, Uma Exposição Exata da Fé Ortodoxa, Livro 1, cap. 5

49 Vladimir Lossky, A processão do Espírito Santo na Teologia Ortodoxa Trinitária (em Daniel B. Clendenin's Eastern Orthodox Theology: A Contemporary Reader, Cap. 10)

50 Cf. 2 Coríntios 1:2; 1 Timóteo 2:5

51 Basílio parece expressar bem esta ideia: "Porque nós não contamos na forma de adição, fazendo gradualmente aumentar da unidade para a pluralidade, dizendo 'um, dois, três' ou 'primeiro, segundo, terceiro'. 'Eu sou o primeiro e eu sou o último', diz Deus (Isa. 44:6). E nós nunca, até nossos próprios dias, ouvimos falar de um segundo Deus. Porque ao adorarmos 'Deus de Deus' nós confessamos tanto a distinção de pessoas como respeitamos a monarquia" (De Spiritu Sancto 8 [PG 32.149B]).

52 André de Creta Grande Cânone do Arrependimento, odes 3, 6, 7

53 Vladimir Lossky, A processão do Espírito Santo na Teologia Ortodoxa Trinitária (em Daniel B. Clendenin's Eastern Orthodox Theology: A Contemporary Reader, Cap. 10)

54 Vladimir Lossky, Teologia Ortodoxa: Uma Introdução, Cap. 1, § 5

55 John D. Zizioulas, The One and the Many, Parte III, "Uniformity, Diversity, and the Unity of the Church", parênteses meus

56 São Gregório Nazianzeno, Oração 34:10

57 São João de Damasco, Uma Exposição Exata da Fé Ortodoxa, Livro 1, cap. 12

58 São João de Damasco, Uma Exposição Exata da Fé Ortodoxa, Livro 1, cap. 8.

59 Cf. São Máximo, o Confessor: "Há um só Deus porque há uma só divindade, única, sem princípio, simples e supersubstancial, sem partes e indivisível, identicamente mônada e tríade; inteiramente mônada e inteiramente tríade; inteiramente mônada quanto à substância, e inteiramente tríade quanto às hipóstases. Pois o Pai, o Filho e o Espírito Santo são a Divindade, e a Divindade está no Pai, no Filho e no Espírito Santo. O todo está em todo o Pai e todo o Pai está no todo dela; o todo está no Filho e todo o Filho está no todo dela. E o todo está no Espírito Santo e todo o Espírito Santo está no todo dela. O todo é o Pai e em todo o Pai; e todo Pai está no todo dela.  E o todo é o todo Filho e o todo está em todo o Filho e todo o Filho é o todo dela. E o todo é o Espírito Santo e no Espírito Santo e o Espírito Santo é o todo dela e todo o Espírito Santo está no todo dela. Pois nem a Divindade está parcialmente no Pai nem o Pai é parcialmente Deus; nem a Divindade está parcialmente no Filho nem o Filho é parcialmente Deus; nem a Divindade está parcialmente no Espírito Santo nem o Espírito Santo é parcialmente Deus. Pois nem a Divindade é divisível, nem o Pai, nem o Filho, nem o Espírito Santo são imperfeitamente Deus. Pelo contrário, a Divindade inteira e completa está inteiramente no Pai inteiro e totalmente e completa está inteiramente no Filho inteiro; e totalmente e completa está inteiramente no Espírito Santo inteiro. Pois todo o Pai está inteiramente em todo o Filho e Espírito Santo, e todo o Filho está inteiramente em todo o Pai e Espírito Santo; e todo o Espírito Santo está inteiramente em todo o Pai e Filho. É por isso que existe um só Deus, Pai, Filho e Espírito Santo. Pois há uma e a mesma essência, poder e ato do Pai, do Filho e do Espírito Santo, e nenhum deles pode existir ou ser concebido sem os outros" (Capítulos sobre o Conhecimento, 2:1).

60 Cf. Vladimir Lossky: "O Deus vivo deve ser lembrado para além da oposição do ser e não-ser, para além de todos os conceitos, incluindo, é claro, o de devir. Ele não pode ser oposto a nada. Ele não conhece nada que poderia opor-se a Ele" (Teologia Ortodoxa: Uma Introdução, Prólogo) & São Máximo, o Confessor: "Sustentamos, porém, que a substância divina por si só não tem contrário, porque é eterna e infinita e concede a eternidade às outras substâncias; além disso, que o não-ser é o contrário da substância dos seres [criados] e que o ser ou não-ser eterno deles reside no poder daquele que propriamente é Ser..." (Quatro Centúrias sobre o Amor 3, 28)

61 Pe. John Romanides, Teologia Patrística, Ch. 35

62 São Basílio de Cesareia, Carta 236: A Anfilóquio 6

63 Pe. Michael Pomazansky, Orthodox Dogmatic Theology, Part2 1, Cap. 1, The Attributes of God

64 Pe. Michael Pomazansky, Orthodox Dogmatic Theology, Part2 1, Cap. 1, The Attributes of God

65 Pe. Michael Pomazansky, Orthodox Dogmatic Theology, Parte 2, Cap. 3; Pomazansky está citando São Gregório de Nazianzo; a respeito da "auto-contemplação" de Deus cf. São João de Damasco, An Exact Exposition of the Orthodox Faith, Livro 2, Ch. 2

66 Pe. Michael Pomazansky, Orthodox Dogmatic Theology, Parte 1, Cap. 1, The Attributes of God

67 São Gregório Palamas, The Triads III. ii. 6.

68 Cf. Apostolos Makrakis: "De acordo com a doutrina das Escrituras e da Igreja, Deus é Uno e Trino. Ele é Uno de acordo com a essência, mas Trino de acordo com as pessoas ou hipóstases. De acordo com isto, na Divindade há a identidade e a pessoa que se distingue; e por isto não é adequado que dividamos e partamos a essência Divina, nem que confundamos em uma só as Pessoas Divinas. Pois o primeiro, por um lado, leva ao politeísmo, e o segundo à afirmação de um Deus que não tem razão nem espírito, conseqüentemente de um Deus que não se conhece a Si mesmo. No entanto, a segunda afirmação leva ao Sabelianismo e ao teísmo. Pois o herege Sabélio, negando a união tri-hipostática da Divindade, como impostor, falou de um Deus que se manifesta em três propriedades, e não em três pessoas e substâncias (hipóstase). Mas o teísmo antigo e o mais recente aceitando um Deus tendo uma só pessoa vai contra o ensinamento do Evangelho a respeito de Deus, e luta contra [o evangelho]... De coisas pertencentes a Deus nós predicamos o idêntico e particular. O idêntico, por um lado, é predicado da natureza e essência, que é uma e predicada em comum do Pai, do Filho e do Espírito Santo. Mas o que é essa essência e natureza comum? O Imaterial e Espiritual, o Auto-inteligente e o Todo-inteligente, o Onipotente e o Todo-Bom, aquilo que pela palavra é declarado Deus. Portanto, dizemos, Deus Pai, Deus Filho, Deus Espírito Santo; isto é o que significa que as Três Pessoas têm a sua essência em comum. A identidade, portanto, não faz um número um, dois, três, mas uma mônada. De onde dizemos, que porque as Três Pessoas na Divindade também têm identidade de essência, por esta razão, fazem uma mônada de essência e não uma tríade. Pois o Um em Três, sendo feito idêntico, também fazem um ao outro idêntico. E eles são feitos idênticos na ideia da essência, a Divindade. Portanto, o Pai, o Filho e o Espírito Santo são feitos Um na essência da Divindade e constituem um só Deus, tendo a palavra 'Deus' como um predicado comum" (The Political Philosophy of the Orthodox Church, Part I: Philosophical and Theological Pre-Suppositions, "The Doctrine Concerning the One Triune God").

69 Perry C. Robinson, Anglicanos no Exílio

70 Pe. John Romanides, Teologia Patrística, Ch. 35

71 Deus é um pressuposto necessário precisamente porque Ele precede todas as suposições do homem. Ele vem primeiro em ordem de tempo e lógica. Ele criou as nossas mentes e estruturou os nossos pensamentos. Isto está implícito na própria definição do termo Deus. O presuposicionalismo é necessário para os teístas - pois Deus como pressuposto está implícito no próprio termo Deus - e, portanto, poderíamos classificar as apologéticas anti-presuposicionalistas como uma forma de cripto-ateísmo.

72 Nikolai Berdyaev, Spirit & Reality, Cap 2, § 2 

73 Nikolai Berdyaev, Slavery and Freedom, Parte 1, § 1 

74 Pe. Michael Pomazansky, Orthodox Dogmatic Theology, Parte 1, Cap. 1, The Attributes of God

75 Cf. Paulos Mar Gregorios: "Gregório [de Nissa]...procede para desenvolver sua própria epistemologia baseada no princípio da analogia ou proporcionalidade" (Cosmic Man: The Divine Presence, Ch. 2) & "Para, ao mesmo tempo, negar diastēma [descontinuidade] entre as Três Pessoas da Trindade, e para afirmar diastēma [descontinuidade] entre o Criador e a criação, Gregory [de Nissa] tem que estabelecer um axioma - a incomensurabilidade total do Criador e da criação. No processo ele também destrói toda possibilidade da analogia entis..." (Cosmic Man: The Divine Presence, Ch. 4, § 4) Em outras palavras, há um sentido no qual as coisas criadas são análogas às coisas divinas e há um outro sentido no qual elas não são.

76 Cf. Pe. John Romanides: "A confusão entre a energia e a essência de Deus implica que entre o Criador e as criaturas existe um parentesco de essência. Assim, ou o mundo existe na essência de Deus em forma de arquétipos ou, em sua forma material, é igualmente sem-início em essência e co-eterno com Deus" (O Pecado Ancestral, Cf. 2) A identificação agostiniana dos pensamentos/energias de Deus com Sua essência significa que as formas platônicas na mente de Deus são idênticas à Sua essência. Portanto, as coisas criadas têm uma existência eterna real em Deus e são também coincidentes com Deus. A distinção Criador-criatura é totalmente obliterada.

77 Pe. Michael Pomazansky, Orthodox Dogmatic Theology, Parte 1, Cap. 1, The Attributes of God

78 Pe. John Romanides, An Outline of Orthodox Patristic Dogmatics, Parte 1, Cap. 3


79 Vladimir Lossky, Orthodox Theology: An Introduction, Prologue

80 Luís de Granada, O Guia do Pecador, Cap. 1

81Cf. Pierre Teilhard de Chardin (Cristianismo e Evolução, "Introdução à Vida Cristã"), onde ele abraça o "panteísmo cristão" e afirma "que o cristianismo é, em primeiro lugar, uma fé na unificação progressiva do mundo em Deus; é essencialmente universalista, orgânico e 'monista'... Ao contrário do preconceito demasiado popular, é no cristianismo (desde que compreendido na plenitude do seu realismo Católico) que a mística panteísta de todos os tempos, e mais particularmente da nossa época (quando é tão dominada pelo 'evolucionismo criativo') pode atingir a sua forma mais elevada, mais coerente e mais dinâmica...". Assim, Pierre Teilhard é um exemplo de filósofo Católico Romano que levou a teologia ocidental à sua conclusão panteísta.

82 Cf. São Máximo, o Confessor: "Ao trazer à existência uma natureza racional e inteligente, Deus na Sua suprema bondade comunicou-a quatro dos atributos divinos..." (Quatro centúrias sobre o Amor 3, 25)

83 Cf. a obra de Paulos Mar Gregorios sobre a epistemologia de São Gregório de Nissa: " Ao longo da diastēma ou descontinuidade entre o Criador e a criação, existe a continuidade da metusia ou participação. Sem essa participação, nada pode existir. Mas a participação no Ser, na Vida, no Bem, são as três inseparáveis uma da outra. Participação na ousia [essência] de Deus significa ser autozoēs, autogathos, ho ontōs ōn. Isto só é possível para as Três Pessoas da Divindade Triuna. O que podemos participar é do ser, da vida e da bondade de Deus como nos é dado na energeia de Deus que nos trouxe à existência, nos sustenta na vida e nos conduz ao bem. Todos os três pertencem à natureza do homem, e toda a natureza do homem é o dom gratuito de Deus. A natureza é graça" (The Cosmic Man: The Divine Presence, Cap. 5, § 5)

84 Dr. Clark Carlton, Fé e Filosofia transmitido na Ancient Faith Radio em 2/20/2010 intitulado "Palamismo Explicado em Doze Minutos ou Menos".