sábado, 1 de agosto de 2020

Conhecimento racional e apofático de Deus (Pe. Dumitru Staniloae)

Segundo a tradição patrística, há um conhecimento racional ou catafático de Deus e um conhecimento apofático ou inefável. Este último é superior ao anterior porque o completa. No entanto, nenhum deles conhece Deus em Sua essência. Conhecemos Deus através do conhecimento catafático apenas como criador e causa sustentadora do mundo, ao passo que através do conhecimento apofático obtemos uma espécie de experiência direta de Sua presença mística que ultrapassa o simples conhecimento dEle como causa investida de certos atributos similares aos do mundo. Este último conhecimento é denominado apofático porque a presença mística de Deus experimentada através do mesmo transcende a possibilidade de ser definido em palavras. Esse conhecimento é mais adequado a Deus do que o conhecimento catafático.

O conhecimento racional, porém, não pode simplesmente ser renunciado. Mesmo que o que diz sobre Deus possa ser não inteiramente adequado, ele não diz nada que seja contrário a Deus. O que diz deve ser aprofundado através do conhecimento apofático. Além disso, mesmo o conhecimento apofático, quando procura oferecer qualquer explicação de si mesmo, deve recorrer aos termos do conhecimento do intelecto, embora preencha esses termos continuamente com um significado mais profundo do que as noções da mente podem fornecer.

O conhecimento apofático é capaz de fazer isso, pois, para ele, os atributos de Deus não são meramente objetos de pensamento, mas são, em certa medida, experimentados diretamente. Por exemplo, no conhecimento apofático, a infinitude, a onipotência ou o amor de Deus não é apenas uma noção intelectual, mas uma questão de experiência direta. No ato de conhecer de forma apofática, o sujeito humano experimenta, de uma maneira real, uma espécie de submersão na infinitude, na onipotência ou no amor de Deus. Por meio do conhecimento apofático, o sujeito humano não apenas conhece que Deus é infinito, onipotente ou amoroso, mas também experimenta isto. No entanto, nesta experiência, a infinitude de Deus se mostra de fato tão avassaladora que o homem percebe que esse infinito é totalmente diferente daquele que ele pode conceber em sua mente, que é inefável. Também é verdade que, no curso do conhecimento racional, o homem percebe que o infinito de Deus é maior e diferente do que ele é capaz de compreender dentro de um conceito intelectual de Deus. Assim, ele corrige esse conhecimento por uma negação dele. Mas essa negação é igualmente intelectual enquanto uma expressão. O homem sabe que a infinitude de Deus é diferente do infinito que ele concebe com sua mente, mas a negação subsequente sempre se refere ao que foi afirmado. Esta é a via negativa da teologia ocidental. Na tradição patrística oriental, no entanto, a teologia apofática é uma experiência direta. É verdade que também deve recorrer a essa teologia negativa intelectual para se expressar, mas em si mesma difere da outra. [1]

Consideramos que essas duas formas de conhecimento não se contradizem nem se excluem, mas se completam mutuamente. Estritamente falando, o conhecimento apofático é completado pelo conhecimento racional de dois tipos, o que procede por meio de afirmação e o que procede por meio de negação. Ele transfere ambas as formas de conhecimento racional para um plano mais apropriado, mas, quando precisa se expressar - no entanto, de maneira longe de ser satisfatória -  o conhecimento apofático, por sua vez, recorre aos termos do conhecimento racional em ambos os seus aspectos (afirmação e negação). Aquele que tem um conhecimento racional de Deus muitas vezes completa o mesmo com o conhecimento apofático, ao passo que aquele cuja experiência apofática é mais acentuada recorrerá aos termos do conhecimento racional ao dar expressão a essa experiência. Assim, quando os Pais Orientais falam de Deus, eles transitam freqüentemente de um modo para o outro.

Assim como o conhecimento racional-afirmativo, o conhecimento apofático também é ocasionado pela visão do mundo, mas vai além desta visão e, às vezes, não precisa de nenhuma real visão do mundo para poder surgir, ainda que o conhecimento apofático pressuponha o conhecimento do mundo e o enriquecimento da alma que provém através dele. A presença mística de Deus é capaz de emergir na experiência do conhecimento apofático quando ocorre quer seja através do mundo ou diretamente. O conhecimento racional afirmativo está, no entanto, sempre conectado ao mundo. O mundo permanece sempre um termo que é mantido no pensamento daquele que conhece a Deus através da dedução, como causa do mundo e investido de atributos similares aos do mundo. O fato de que, no conhecimento apofático, a alma é absorvida ao discernir a presença de Deus, fez com que os Pais Orientais falassem por ocasião de um “esquecimento” do mundo durante este ato. Isso não significa, no entanto, um afastamento factual do mundo mundo. Mesmo permanecendo no mundo, o homem pode contemplar Deus como aquele que é inteiramente diferente do mundo, quer isso se torne aparente para ele através do mundo em si ou à parte dele.

O que mais distingue o conhecimento apofático, direto e místico de Deus do conhecimento racional e dedutivo é que, no primeiro, o sujeito humano experimenta a presença de Deus como pessoa de um modo mais premente. No entanto, a compreensão de Deus como pessoa não é excluída do conhecimento afirmativo e racional, embora o mistério de Deus como pessoa não seja revelado de forma acentuada, profunda e premente. Entretanto, é preciso ter em mente que, nestes dois tipos de conhecimento, a revelação sobrenatural medeia para nós, como um fato certo, o conhecimento de Deus como pessoa. Mesmo o conhecimento apofático, quando falta a ele a revelação sobrenatural, pode experimentar a presença inefável de Deus como uma profundidade impessoal. Não devemos, portanto, distinguir o conhecimento apofático do conhecimento afirmativo e racional apenas com base no fato de que o primeiro seria um conhecimento sobrenatural revelado, enquanto o segundo constituiria um conhecimento puramente natural. Ambos estão fundamentados na revelação sobrenatural quando é uma questão de conhecer a Deus como pessoa.

O conhecimento racional, no entanto, não faz uso de todo o conteúdo da revelação sobrenatural. Nesse sentido, assemelha-se ao conhecimento de Deus no judaísmo e no islamismo, já que estes também têm parte da revelação sobrenatural em sua base, mas não toda ela. Pelo fato de que este é um conhecimento mais pobre de Deus e, como tal, não precisa de toda a revelação sobrenatural, às vezes acontece que este mesmo conhecimento também pode ser visto em algumas pessoas que não compartilharam de nenhuma parte da revelação sobrenatural.

Por fim, a terceira coisa que deve ser mencionada com relação à relação entre esses dois tipos de conhecimento de Deus é que, na medida em que o homem progride na vida espiritual, o conhecimento intelectual sobre Deus - como criador do mundo e fonte do cuidado providencial do mesmo - que vem ao homem a partir do mundo, é imbuído com a contemplação direta e mais rica dele, isto é, com o conhecimento apofático.

Essa é mais uma razão pela qual os Pais frequentemente alternam seus discursos sobre o conhecimento racional afirmativo de Deus com discursos sobre o conhecimento apofático. Ou, talvez, na medida em que no caso deles o conhecimento racional afirmativo foi sobrecarregado pelo conhecimento apofático, eles falam mais sobre o último, embora mostrem que o primeiro não é excluído.

Em sua discussão sobre o conhecimento racional afirmativo de Deus que provém das coisas do mundo, São Gregório de Nazianzo diz: "Nossos próprios olhos e a lei da natureza nos ensinam que Deus existe e que Ele é a causa eficiente e que mantém todas as coisas: nossos olhos, porque caem sobre objetos visíveis, e os vêem em uma bela estabilidade e progresso, levados, por assim dizer, num movimento imóvel; a lei natural, porque através dessas coisas visíveis e de sua ordem, remontam ao autor das mesmas. Pois como este universo poderia ter vindo à existência ou ter sido unido, a menos que Deus o tivesse chamado à existência, e o tivesse mantido unido? Pois qualquer um que vê um alaúde belamente elaborado, e considera a habilidade com a qual ele foi encaixado e arranjado, ou quem ouve sua melodia, não pensaria em ninguém a não ser aquele que criou alaúde, ou o tocador de alaúde, e se lembraria dele em sua mente, embora desconhecendo-o pela vista. E assim também nos é manifestado o que fez e move e preserva todas as coisas criadas, mesmo que ele não seja compreendido pela mente. E muito deficiente no julgamento é aquele que não avançar até este ponto, seguindo provas naturais..." [2]

São Gregório o Teólogo observa apropriadamente que a racionalidade do mundo é inexplicável na ausência de uma pessoa que o concebeu como racional e que, na medida em que, em tal caso, essa racionalidade não estaria seguindo qualquer propósito, ele não teria, fundamentalmente, qualquer sentido e careceria de verdadeira racionalidade. Seria uma racionalidade absurda. Ao mesmo tempo, São Gregório observa que Deus não fez um mundo petrificado dentro de uma racionalidade estática ou de um movimento circular idêntico. Pelo contrário, este é um mundo através do qual Deus produz um cântico que avança em seus temas melódicos. Isto é, Deus continua a nos falar através do mundo e a nos conduzir em direção a um objetivo. Ele não é apenas o criador deste vasto alaúde, mas também Aquele que toca através dele um cântico de vastas proporções e complexidade.

Mas, para São Gregório, esse conhecimento intelectual de Deus que foi racionalmente deduzido a partir do mundo ainda é insuficiente. Tal conhecimento precisa ser completado por um conhecimento superior que é um reconhecimento do próprio mistério de Deus, um conhecimento apofático, um modo superior de captar Sua infinita riqueza - uma que, precisamente por causa de Sua infinitude, não pode ser compreendida ou expressa. Falando como se em nome de Moisés que, em sua ascensão do Monte Sinai, se tornou a imagem de todos os que se elevam acima de um conhecimento de Deus derivado das criaturas ao conhecimento de Sua presença ilimitada e mística, São Gregório também fala desse conhecimento apofático, mas ele alterna sua descrição com uma descrição de conhecimento racional catafático ou afirmativo. Ele diz: "Eu estava correndo para alcançar [compreender] Deus, e assim subi ao monte, e afastei a cortina da nuvem, e entrei afastado da matéria e das coisas materiais, e até onde pude me recolhi dentro de mim. E então, quando olhei para cima, eu dificilmente vi as partes detrás de Deus, embora eu estivesse protegido pela rocha, a Palavra que se fez carne por nós. E quando olhei um pouco mais de perto, eu vi, não a natureza primeira e pura, conhecida por si mesma - conhecida pela própria Trindade, quero dizer; não aquela que permanece dentro do primeiro véu e é escondida pelos Querubins, mas apenas aquela parte dela que está na extremidade e chega até nós. E esta é, tanto quanto posso dizer, a majestade, ou como o santo David a chama, a glória que se manifesta entre as criaturas, que ela produziu e governa.[Sl 8:2] Pois estas [isto é, a majestade e a glória] são as partes detrás de Deus, que Ele deixa para trás como sinais de si mesmo, como as sombras e reflexos do sol na água, que mostram o sol aos nossos olhos frágeis, porque não podemos olhar para o próprio sol,  pois devido à sua luz pura, ele é forte demais para nosso poder de percepção." [3]

Como podemos ver, elevar-se acima das coisas do mundo não significa que as mesmas desapareçam; significa, através delas, elevar-se para além das mesmas. E uma vez que permanecem, o conhecimento apofático de Deus não exclui o conhecimento racional afirmativo. Mas, como São Gregório pode ir de um ao outro, o último conhecimento é imbuído do primeiro. No conhecimento apofático, o mundo permanece, mas tornou-se transparente para Deus. Esse conhecimento é apofático porque Deus, que agora é percebido, não pode ser definido; Ele é experienciado como uma realidade que transcende toda possibilidade de definição. No entanto, mesmo este é um conhecimento do Deus que desceu até nós, não um conhecimento do ser dEle em Si mesmo. Tal conhecimento é combinado com o tipo de conhecimento afirmativo racional de tal forma que é difícil dizer quando São Gregório está falando de um ou de outro.

Quão impossível é conter o brilho da presença mística de Deus - juntamente com certas características atribuídas a Deus - dentro das noções da mente humana é expressado por São Gregório de Nazianzo em outra descrição da experiência de Moisés no Monte Sinai. Aqui, novamente, é difícil distinguir entre os dois tipos de conhecimento: "Deus sempre foi, e sempre é, e sempre será. Ou melhor, Deus sempre 'É'. Pois 'Foi' e 'Será' são fragmentos de nosso tempo, e de natureza mutável, mas Ele é sempre "Aquele que É", e deu-se a Si mesmo este nome quando se dirigiu a Moisés na montanha. Pois em Si mesmo Ele reúne e contém todo o Ser, não tendo nem início no passado nem fim no futuro; como algum grande Mar de Ser, ilimitado e incontido, transcendendo toda concepção de tempo e natureza. Ele é apenas esboçado pela mente, e isso de forma muito vaga e insuficiente... não a partir de coisas que dizem respeito a Si próprio, mas de coisas que O rodeiam; uma imagem sendo obtida de uma fonte e outra de outra, e combinada em algum tipo de representação da verdade, que nos escapa antes de ser apreendida, e que nos foge antes de ser compreendida, resplandecendo sobre nossa faculdade-diretiva, mesmo quando esta está purificada, como um relâmpago que não permanece em seu percurso". [4]

A presença de Deus como pessoa - uma presença premente e da qual resplandece Seu infinito - não é a conclusão de um julgamento racional, como no caso do conhecimento que é intelectual, catafático ou negativo; antes, é percebida por alguém em um estado de sensibilidade espiritual revivificada e isso não pode acontecer enquanto o homem é dominado por prazeres corporais ou paixões de qualquer tipo. Exige que o homem eleve-se acima das paixões e seja purificado delas. Após uma purificação mais duradoura, a sutileza da sensibilidade espiritual, capaz de tal percepção da misteriosa realidade de Deus, também é mais duradoura. Toda uma gradação existe tanto em relação à purificação quanto em relação à profundidade e duração da percepção apofática de Deus. Isso não exclui, contudo, o conhecimento de Deus como criador e fonte da providência, mas é combinado com o mesmo. O conhecimento apofático não é irracional, mas supra-natural, pois o Filho de Deus é o Logos e contém em si as “razões” de todas as coisas criadas. Mas é supra-racional da mesma forma que a pessoa - como alguém que é o sujeito da razão e de uma vida que tem seu próprio significado para sempre - é supra-racional.

São Gregório de Nazianzo diz, ainda falando em nome de Moisés: “Agora quando eu subo avidamente ao Monte - ou, utilizando uma expressão mais verdadeira, quando eu tanto avidamente anseio e, ao mesmo tempo, temo (um devido à minha esperança e o outro devido à minha fraqueza), entrar dentro da nuvem, e conversar com Deus, pois assim Deus ordena - se algum for um Arão, que ele suba comigo, e que ele fique próximo, estando pronto, se for preciso, para permanecer fora da nuvem. Mas se algum for um Nadab ou um Abihu, ou da ordem dos Anciãos, que suba de fato, mas que fique afastado, seu lugar de acordo com sua pureza. Mas se algum for da multidão, que não é digno desse nível de contemplação, se for inteiramente impuro, que não se aproxime, pois isso seria perigoso para ele; mas se ele for apenas temporariamente purificado, que permaneça abaixo e escute apenas a voz, e a trombeta, as palavras simples de piedade..."[5]

O fato de que a purificação das paixões e o profundo senso da própria pecaminosidade e insuficiência são condições necessárias para esse conhecimento mostra que não é um conhecimento intelectual negativo como foi entendido no ocidente, isto é, a simples negação de certas afirmações racionais sobre Deus. Tem a ver com um conhecimento que vem através da experiência. De fato, os Pais Orientais chamam essa abordagem a Deus mais união do que conhecimento. Na experiência desse conhecimento apofático, Deus é percebido, por um lado, mas, por outro, aquilo que é percebido nos dá a entender que há algo ali além de toda percepção. Ambas as percepções são expressas através dos termos da teologia afirmativa e negativa.

São Gregório continua: “Parece-me que, através do que é compreensível, Ele me atrai para Si (pois o que é totalmente incompreensível não oferece nenhuma esperança e e não é buscado); e através do que é incompreensível, Ele desperta minha admiração; e sendo admirado, Ele é desejado mais; e sendo desejado, Ele nos purifica; e nos purificando, Ele nos torna deiformes; e com aqueles que se tornaram tais, Ele conversa como com os seus próximos, - falo com veemente ousadia - Deus se une aos deuses, e é assim conhecido, talvez tanto quanto já conhece aqueles que lhe são conhecidos. Portanto, Deus é infinito e difícil de ser contemplado. E somente isto é compreensível nele: que é infinito." [6]

Os Pais insistem em enfatizar que mesmo este infinito experimentado não é o ser de Deus, porque poderia ser identificado com a essência do universo ou do espírito humano, ou visto como estando em uma continuidade da natureza com estes, como no pensamento de Plotino. Mas Deus não é a essência do mundo nem do espírito humano; Ele transcende esses porque é incriado enquanto eles são criados. Sua transcendência é assegurada por seu caráter pessoal, capaz de ultrapassar um infinito que não é em si mesmo uma pessoa.

Somente a Pessoa transcendente assegura um infinito, cuja essência não é contínua com a essência do mundo ou do espírito humano; antes, existe dentro de uma continuidade possibilitada pela graça e por uma participação humana que depende da benevolência da Pessoa divina e o esforço de nosso próprio ser. Neste caso, a participação do nosso ser no infinito implica a alegria da comunhão - sem sua anulação como pessoa - na perspectiva de tal comunhão se tornar uma realidade eterna. Se assim não fosse, o infinito apenas garantiria a realidade pessoal de maneira momentânea. É por isso que São Máximo o Confessor diz: “.. as obras de Deus que começaram a existir no tempo são todas aquelas que existem através da participação... Além disso, as coisas de Deus que não começaram a existir no tempo são aquelas que são participadas, uma participação através da graça, por aquelas coisas que participam. Tais, por exemplo, são a bondade - e tudo o que está contido no logos da bondade - e, em suma, toda a vida, imortalidade, simplicidade, permanência, infinitude e todas as coisas que são concebidas como existentes em sua essência ao redor de Deus.” [7] Conhecemos essas obras através de uma participação consciente nelas - embora as coisas em si não dependam do nosso ser -, mas não conhecemos o próprio ser de Deus; antes, percebemos que estamos em comunhão com Sua Pessoa.

O neoplatonismo considerava a divindade idêntica a essas coisas e, portanto, confundia a divindade com a essência do mundo ou do espírito humano, considerando que o espírito humano, uma vez elevado de sua preocupação com a multiplicidade das coisas, se identificaria com a divindade como uma unidade e uma simplicidade que eram desprovidas de toda determinação e, portanto, apofática. O neoplatonismo considerava, portanto, que a divindade é conhecida em sua essência. Esta foi a base para a afirmação dos eunomianos de ter conhecimento exato do ser de Deus. Isso implicava, no entanto, uma negação do caráter transcendental e pessoal de Deus. Se Deus é transcendente, ele é pessoal. O conhecimento cristão apofático implica que Deus desceu ao encontro da capacidade do homem de compreendê-Lo, assim como também implica a transcendência de Deus. Deus desce através de Suas energias ao passo que Seu caráter pessoal assegura Sua transcendência. Sua pessoa transcende até mesmo Sua infinitude.

Nesse sentido, Deus não é idêntico a nenhuma daquelas coisas que nomeamos como Suas qualidades; Ele não é idêntico ao infinito, à eternidade ou à simplicidade, mas transcende tudo isso. Elas não são nem a essência de Deus nem as pessoas nas quais Seu ser subsiste integralmente, mas estão “ao redor do ser de Deus”. Assim, a idéia de que ao conhecermos a infinitude de Deus não conhecemos Deus plenamente, São Gregório teólogo baseia no fato de que o ser de Deus não pode ser identificado com simplicidade, da mesma forma que o nosso não é idêntico à composição. Se isto fosse verdade, a distinção entre a divindade e nós mesmos seria apenas de modo, não de essência.

Como Deus é pessoa, entre Ele e nós é estabelecida uma relação de amor que mantém tanto Deus quanto nós mesmos como pessoas. Experimentamos esse amor não como um infinito sempre idêntico, mas como um infinito com a perspectiva de uma novidade contínua, como um oceano de riqueza sempre nova, onde sempre avançaremos. Nosso conhecimento de Deus nos faz procurar conhecê-Lo ainda mais; e nosso amor por Ele nos estimula a um amor ainda maior. Porque Deus é pessoa, o conhecimento dEle através da experiência está relacionado à extensão de nossa purificação em relação ao apego apaixonado e cego às coisas finitas. Mas é precisamente isto que nos faz ver que, para além dessa riqueza sempre nova que percebemos, sua fonte existe e esta fonte não entra dentro do alcance de nossa experiência.

Podemos dizer que existem dois tipos de apofatismo: o apofatismo do que é experimentado, mas não pode ser definido; e o apofatismo daquilo que não pode nem mesmo ser experimentado. Estes dois são simultâneos. O que é experimentado também tem um caráter inteligível, na medida em que é expresso em termos intelectuais - embora estes sejam afirmativos e negativos. No entanto, essa inteligibilidade é sempre inadequada. O ser que permanece além da experiência, que ainda assim sentimos ser a fonte de tudo o que experimentamos, subsiste na pessoa. Subsistindo como pessoa, o ser é uma fonte viva de energias ou de atos que nos são comunicados. Portanto, o apofático tem, como base fundamental, a pessoa; e assim mesmo esse apofatismo não significa um encerramento total de Deus em Si mesmo.

São Gregório de Nissa fala também sobre os dois tipos de conhecimento de Deus, às vezes distinguindo-os e outras vezes combinando-os. Mas ele fala mais sobre o conhecimento apofático, pois, a seu ver, o conhecimento catafático (racional afirmativo) está incluído no conhecimento apofático. Os primeiros capítulos da Grande Oração Catequética são dedicados ao conhecimento racional de Deus. Mas mesmo falando de conhecimento catafático, São Gregório diz que, mesmo nele, Deus se revela como um mistério que não pode ser definido - o que o torna equivalente ao início do conhecimento apofático e ao desejo de uma experiência mais profunda do último. "E assim, aquele que estuda seriamente as profundezas do mistério, recebe secretamente em seu espírito, de fato, uma quantidade moderada de apreensão da doutrina da natureza de Deus, mas ele é incapaz de explicar claramente em palavras a profundidade inefável deste mistério.” [9]

Mas São Gregório de Nissa, persistindo na descrição do conhecimento apofático, não o vê sempre separado da contemplação das coisas. Por outro lado, ele também exige, como condição para esse conhecimento, a purificação da alma das paixões, de modo que aquele que deseja contemplar não mais permaneça encerrado exclusivamente dentro do horizonte visível das coisas materiais.

São Gregório também faz uso da subida de Moisés na montanha como uma imagem da ascensão da alma em direção à intimidade com Deus: "Quando aquele que foi purificado e afiou a audição de seu coração ouve este som (refiro-me ao conhecimento do poder divino que provém da contemplação da realidade), ele é conduzido por ele até o lugar onde sua inteligência o permite entrar onde Deus está. Isso se chama trevas pela Escritura, que significa, como eu disse, o desconhecido e invisível". [10] "Por isso João o sublime, que penetrou na treva luminosa, diz: Ninguém jamais viu Deus (Jo 1,18), afirmando assim que o conhecimento da essência divina é inalcançável não só pelos homens, mas também por toda criatura inteligente." [11]

Mas São Gregório de Nissa nos oferece uma razão mais profunda pela qual deve haver primeiro uma passagem através do conhecimento das coisas criadas antes que a treva seja alcançada e que a incompreensibilidade de Deus seja confrontada. Nessa treva, Moisés viu o tabernáculo não feito por mãos, e este é "Cristo que é o poder e a sabedoria de Deus" (1 Cor 1,24) que " abrange tudo em si mesmo". "Pois o poder que abrange o universo, no qual habita a plenitude da divindade (Col 2,9), o protetor comum de todos, que abrange tudo dentro de si mesmo, é corretamente chamado de 'tabernáculo'." [12] Mas é através da contemplação de todas as coisas que crescemos na direção de sermos capazes de contemplar tudo nEle que abrange todas as coisas numa maneira simples e concentrada. O som da trombeta que Moisés ouve do alto, antes de entrar nas trevas onde Deus se encontra e onde ele vê o tabernáculo celestial, ou o poder de Deus que abrange todas as coisas, é interpretado por São Gregório como a manifestação da glória de Deus nas criaturas. Sem vê-lo, ninguém pode se elevar à experiência da presença incompreensível de Deus. "Quando aquele que foi purificado e afiou a audição de seu coração ouve este som (estou falando do conhecimento do poder divino que provém da contemplação da realidade), ele é conduzido por ele até o lugar onde sua inteligência o permite entrar onde Deus está. Isso se chama trevas pela Escritura (Ex 20:21), que significa, como eu disse, o desconhecido e invisível. Ao chegar lá, ele vê o tabernáculo não feito por mãos..." [13]

Deve-se observar que, seguindo a Escritura, São Gregório de Nissa mantém que Moisés alcançou a visão do tabernáculo celestial depois que ele entrou nas trevas da consciência da incompreensibilidade de Deus.  Isto nos leva a entender que uma vez que Moisés chegou à experiência do mistério incompreensível de Deus, ele o vê através de ou à parte das coisas criadas, ou então ele passa de uma para a outra, em um plano sempre mais elevado.  As coisas em si mesmas tornam-se cada vez mais transparentes para a glória de Deus que se revela através delas - pois entre as "razões" [logoi] das coisas e Deus não há contradição. "Então, ao subir mais alto em sua ascensão, ele ouve os sons das trombetas. Daí, ele penetra no santuário interior do conhecimento divino. E ele não permanece lá, mas ascende para o tabernáculo não feito por mãos (Heb 9.11).  Aqui, aquele que se elevou através dessas ascensões encontra o término." [14]

O conhecimento de Deus mantém continuamente um caráter paradoxal; na medida em que alguém ascende no conhecimento de Deus, ele ascende na compreensão do Seu mistério incompreensível. "Este é o verdadeiro conhecimento do que se busca; este é o ver que consiste em não ver, porque o que se busca transcende todo conhecimento, estando separado por todos os lados pela incompreensibilidade como que por um tipo de trevas". [15] “Quando, portanto, Moisés cresceu em conhecimento, ele confessa que vê Deus nas trevas, isto é, então ele sabe que Deus é por natureza além de todo conhecimento e compreensão... A palavra divina em primeiro lugar proíbe que o Divino seja comparado a qualquer das coisas conhecidas pelos homens, pois todo conceito formado pelo entendimento aproximado (phantasia périleptikè) para tentar alcançar e definir a natureza divina somente consegue moldar um ídolo de Deus, e não O torna conhecido." [16]

Isto mantém a ascensão ao conhecimento de Deus permanentemente aberta.  Toda compreensão a respeito de Deus deve ter uma certa fragilidade, uma transparência, uma falta de fixidez, deve ela mesma nos incitar a revogar esta compreensão e nos estimular a outra, mas na sua direção.  Se tal compreensão permanece fixa em nossa mente, colocamos limites a Deus correspondentes aos limites desta compreensão em particular, ou até mesmo esquecemos de Deus, com toda a nossa atenção concentrada nesta compreensão particular ou nas palavras que O expressam. Nesse caso, nossa "compreensão" se torna um "ídolo", um falso deus.  A compreensão ou a palavra que usamos deve sempre tornar Deus transparente, como Aquele que não está contido nela, como Aquele que transcende toda compreensão e se revela ora sob um aspecto de Sua infinita riqueza e ora sob outro.

Dionísio, o Areopagita, diz: "É por isso que tantos permanecem incrédulos diante das explicações dos mistérios divinos, pois nós os contemplamos somente por meio dos símbolos perceptíveis com os quais eles estão conectados. O que é necessário é desvelá-los, vê-los em sua total nudez. Ao contemplá-los desta maneira, podemos venerar esta "Fonte de vida" que se derrama em si mesma e que permanece em si mesma, esta Potência única e simples, fonte de seu próprio movimento e atividade, que não sai de si mesma, mas que constitui em si o conhecimento de todos os conhecimentos, porque jamais cessa de contemplar a si mesma." [17] De fato, é através de palavras e significados que devemos sempre passar para além das palavras e significados. Esta é a única maneira de perceber a presença cheia de mistério de Deus. Se nos apegamos demais a palavras e significados - e isto ocorre quando nos mantemos sempre com as mesmas palavras e os mesmos significados - então estes se interpõem entre nós e Deus e nós  permanecemos neles, tratando estas coisas como se elas mesmas fossem Deus.

Por um lado, temos necessidade de palavras e significados porque elas são emprestadas das criaturas de Deus e é nelas que se manifestam Seus poderes e através delas que Ele desceu ao nosso nível; por outro lado, porém, devemos ir para além delas para que possamos ascender acima das criaturas de Deus e de Suas obras e nos encontrarmos diante do próprio Deus como fonte das mesmas. Mesmo as obras de Deus, experimentadas como poderes que fizeram e guiam as coisas criadas, são elas mesmas superiores a essas coisas criadas e, portanto, também a essas palavras emprestadas delas.

Por um lado, devemos ascender aos significados ainda mais sublimes das coisas e das palavras que as expressam - até mesmo as palavras da Sagrada Escritura. Por outro lado, devemos nos elevar para além destas à experiência do mistério de Deus e de Suas operações. Todas as coisas criadas e as palavras emprestadas delas são símbolos em comparação com as operações de Deus e Sua realidade Pessoal como sua fonte. [18] Mas dentre estes símbolos existem vários níveis de significados, níveis que são sobrepostos uns aos outros e - até alcançá-los - desconhecidos por nós. Devemos estar sempre ascendendo a mais significados destes símbolos e a mais níveis e, em última instância, devemos elevar-nos acima de todos os seus significados. Quanto mais usamos palavras de maior sutileza e quanto mais ascendemos a seus significados mais sublimes, maior é nossa compreensão de Deus como Aquele que transcende todas as coisas e como Aquele que - como única fonte de suas razões - é pleno de todo o potencial de profundidade e complexidade delas. É precisamente por esta razão que Ele nos convida a deixar todos os símbolos para trás, a abandonar as palavras e seus significados. Mesmo quando as palavras se referem às operações da economia de Deus, ainda assim devemos ascender em nossa compreensão de seus significados e passar continuamente para outros que são mais adequados e então deixá-los para trás também; pois mesmo estas operações em si são ilimitadas: "Seus julgamentos são inescrutáveis", diz São João Crisóstomo, "seus caminhos são insondáveis, sua paz ultrapassa toda compreensão, seu dom é indescritível, aquilo que Deus preparou para aqueles que o amam não foi percebido pelo coração do homem, sua grandeza não tem limites, seu entendimento é infinito. Serão todos estes incompreensíveis, ao passo que somente o próprio Deus pode ser compreendido? ... O herege responde que Paulo não está falando da essência de Deus, mas de sua governança do universo. Muito bem, então. Se ele está falando sobre a governança do universo, nossa vitória é ainda mais completa. Pois se sua governança do universo é incompreensível, tanto mais é o próprio Deus para além de nossos poderes de compreensão."[19]

Deus é a fonte de poder e luz que nos atrai sempre mais para o alto no conhecimento e na perfeição da vida. Ele não é um teto que põe um fim à nossa ascensão. Ele é o Supremo, mas Sua supremacia é uma que é sem fim e inesgotável na atração que Ele exerce sobre nós e os dons que Ele derrama sobre nós. Na realidade, nada disso é possível a menos que Deus seja pessoa e nosso relacionamento com Ele seja um relacionamento de amor. Uma natureza impessoal é, em muitos aspectos, finita. Caso contrário, ela não estaria sujeita a uma lei. O amor do ser humano, além disso, se desenvolve através da virtude e isso pressupõe a liberdade. Portanto, o progresso na união com Deus tem mais do que apenas o caráter de um conhecimento teórico. A compreensão é alimentada pelo livre esforço da virtude (e vice-versa). E no relacionamento com Deus, o homem recebe o poder que para isso. Vemos aqui novamente que o conhecimento apofático não é alcançado no encerramento do espírito em relação à realidade do mundo e às pessoas de nossos semelhantes. É em relação a elas que crescemos em virtude.

Tal é o ensinamento tanto de São Gregório de Nissa quanto de São João Crisóstomo. O primeiro diz: "Da mesma forma, a alma se move na direção oposta. Uma vez libertada de seu apego terreno, ela se torna leve e rápida para seu movimento ascendente, elevando-se desde baixo até as alturas. Se nada vem do alto para impedir seu impulso para cima (pois a natureza do Bem atrai a si aqueles que a buscam), a alma se eleva cada vez mais alto e sempre voará ainda mais alto - por seu desejo das coisas celestiais avançando para as que estão adiante (Fil 3.14), como diz o Apóstolo. Feita para desejar e não abandonar a altura transcendente pelas coisas já alcançadas, ela faz seu caminho ascendente sem cessar, sempre através de suas conquistas anteriores renovando sua intensidade para o vôo. A atividade voltada para a virtude faz com que sua capacidade cresça através do empenho; este tipo de atividade por si só não diminui sua intensidade pelo esforço, mas a aumenta." [20]

Somente através de um esforço de purificação é que a sutileza do espírito aumenta e é somente esta sutileza que pode renunciar a qualquer compreensão sobre Deus que já tenha sido alcançada, ou a tendência indolente de permanecer fixa nela, ou a tendência adicional de torná-la um ídolo e assim imobilizar o espírito com a adoração de sua realidade limitada. A alma é carregada para cima por uma sede contínua e "ora a Deus para que ele se mostre a ela". As coisas já alcançadas são sempre símbolos ou imagens do arquétipo e é em direção a um maior conhecimento do arquétipo que essa alma se esforça incessantemente. E o arquétipo é Deus como suprema realidade Pessoal. Os símbolos básicos são as coisas do mundo e estas estão sempre sendo penetradas pela luz proveniente de significados mais sublimes.

São Gregório de Nissa descreve esta ascensão em parte da seguinte forma: "Tal experiência me parece pertencer à alma que ama o que é belo. A esperança não cessa de atrair a partir da beleza que se viu até à que está mais alem, sempre acendendo o desejo pelo escondido através do que é constantemente percebido. Portanto, o amante ardente da beleza, embora recebendo o que é sempre visível como uma imagem do que deseja, ainda assim anseia por ser preenchido com o próprio selo do arquétipo. E isto é o que quer a súplica audaz que ultrapassa o limite do desejo: desfrutar da beleza, não através de espelhos e reflexos, mas face a face." [21]

Deus não pode ser capturado em noções porque Ele é vida ou, mais precisamente, a fonte da vida. Além disso, nenhuma pessoa também pode ser definida, porque cada pessoa é viva e, em certa medida, uma fonte de vida. Muito menos [pode ser definida], então, a suprema realidade Pessoal. Qualquer um que pensa que conhece Deus, o que significa dizer que ele limita Deus por suas próprias noções, está - do ponto de vista cristão - espiritualmente morto. É assim que São Gregório de Nissa interpreta as palavras em Êxodo 33.20: "Porque homem nenhum verá a mim e viverá". "As Escrituras não indicam que isso causa a morte daqueles que olham, pois como seria a face da vida a causa da morte para aqueles que se aproximam dela?  Pelo contrário, o Divino é, por sua natureza, vivificante.  No entanto, a característica da natureza divina é transcender todas as características. Portanto, aquele que pensa que Deus é algo a ser conhecido não tem vida, porque se desviou do Ser verdadeiro para o que ele considera pela percepção sensorial ter ser.   O Ser verdadeiro é vida verdadeira. Este Ser é inacessível ao conhecimento. Se então a natureza vivificante transcende o conhecimento, o que é percebido certamente não é vida.  . . .  Ele aprende com o que foi dito que o Divino é, por sua própria natureza, infinito, circunscrito por nenhum limite. Se o Divino é percebido como se estivesse limitado por algo, deve-se por todos os meios considerar juntamente com esse limite o que está além dele..." [22] "Portanto, não se levará em consideração qualquer coisa que limite a natureza infinita.  Não está na natureza do que não é limitado ser compreendido... .   Esta é verdadeiramente a visão de Deus: nunca estar saciado no desejo de vê-lo." [23]

Dionísio, o Areopagita é considerado como tendo dado mais ênfase ao conhecimento apofático do que qualquer outro Pai da Igreja.  No entanto, se lermos seus escritos com atenção, vemos que ele combina em todos os lugares o conhecimento apofático com o catafático. Isto decorre do fato de que ele também fala de um progresso espiritual naquele que conhece a Deus. No conhecimento que pode ser dado expressão, portanto, ele não vê meramente uma soma de afirmações intelectuais, em parte positivas e em parte negativas - como a teologia escolástica praticou estes dois modos de conhecimento - mas sim, e sobretudo, o conhecimento oriundo da experiência que recorre a termos de afirmação e negação apenas para se expressar, na medida em que a consciência do mistério de Deus está simultaneamente envolvida nas coisas que são conhecidas sobre Deus. Somente considerando que Dionísio, o Areopagita, separa o conhecimento que pode ser expresso do conhecimento apofático, os teólogos Católicos puderam censurar a tradição oriental por ter se apropriado apenas da teologia apofática de Dionísio, isto é, como uma teologia intelectual negativa. [24]

Em sua obra Os Nomes Divinos, Dionísio o Areopagita enfatiza particularmente os termos de afirmação no conhecimento racional. Mas mesmo aqui Dionísio não separa as afirmações das negações, pois estes termos afirmativos também ou se baseiam em uma experiência apofática que simultaneamente evidencia o mistério de Deus ou estão ligados à experiência de Seu mistério, pois, por um lado, todos os poderes que criaram e sustentam os vários aspectos do mundo provêm de Deus e, por outro lado, Deus é uma unidade superior a estes. "Portanto, no que diz respeito ao ser supra essencial de Deus - situado além da substância e do bem - nenhum amante da Verdade que transcende toda verdade buscará louvá-lo como palavra ou poder ou mente ou vida ou ser. Não. Ele está totalmente afastado de toda condição, movimento, vida, imaginação, opinião, nome, discurso, pensamento, concepção, ser, estabilidade, princípio, unidade, limite, infinidade, a totalidade da existência. Mas, posto que é verdade que enquanto substância do Bem absoluto ela é a causa de tudo, é preciso louvá-la como Providência, Princípio teárquico de todo bem." [25]

Nem os atributos de Deus são conhecidos apenas a partir de deduções racionais, mas a partir de Suas operações refletidas no mundo, através da participação nelas. A luz delas é projetada no mundo e, de certa maneira, experimentada. Isto não entra em conflito com a consideração de que Deus é a causa do mundo. Esta última consideração é a razão pela qual mesmo Dionísio, o Areopagita, não separa completamente o conhecimento racional do conhecimento apofático - uma separação que também não é feita pelos outros Pais - mas alterna falando sobre ambos, mesmo descrevendo a experiência destas operações nos termos de uma teologia intelectual de afirmação. Falando da beleza de Deus, diz Dionísio: "Quando se trata do Belo supra-essencial, ele também é chamado Beleza, por causa desta potência de embelezamento que dispensa a todo ser na medida própria de cada um e porque, do mesmo modo que a luz, ele faz brilhar sobre todas as coisas, para revesti-las de beleza, as efusões desta fonte iluminadora que brota dele mesmo." [26]

Dionísio fala sempre de uma certa participação em Deus. Mas, no que nos é comunicado por Deus, experimentamos o fato de não participar dEle ou, melhor, o fato de que, em Sua essência, Deus permanece para nós como Aquele em Quem não podemos participar. No entanto, através do que Ele nos comunica, Deus nos atrai cada vez mais alto para o mistério do conhecimento de Sua existência: "Observarás que muitos teólogos não louvaram (a Divindade) ape­nas chamando-a invisível e incompreensível, mas ainda inexplorável e inescrutável, porque aqueles que pe­netraram até sua infinitude secreta não deixaram nenhum traço. E, contudo, o Bem em si não perma­nece totalmente incomunicável a todo ser, porque de sua própria iniciativa e como convém à sua Bondade ele manifesta continuamente este esplendor supra-essencial que nele permanece, iluminando cada criatura proporcionalmente a seus poderes receptivos, e assim atrai mentes santificadas para o alto à sua possível contemplação, à participação e ao estado de se tornar semelhante a ele." [27]

Assim, em união com essa luz que está além da natureza, as mentes purificadas recebem ao mesmo tempo a consciência de que ela é a causa de todas as coisas; e isto é o que as incita a expressá-la nos termos afirmativos de alguns dos atributos que podem ser considerados como causas de qualidades do mundo. Com esta experiência apofática, portanto, tudo é dado: a experiência das operações de Deus; a consciência de Seu ser como Aquele que transcende toda acessibilidade; a impossibilidade de qualquer expressão plenamente adequada destas operações; a evidência de que elas são as causas das coisas e, como tal, podem ser expressas em termos análogos àqueles usados na descrição das qualidades das coisas criadas; e, simultaneamente, a necessidade de corrigir estas expressões intelectuais afirmativas, negando-as.

De qualquer forma, na experiência das operações de Deus (uma experiência que transcende o entendimento) também é dada uma experiência delas como causas das coisas da criação e, portanto, a necessidade de expressar o que é experimentado tanto em termos afirmativos como negativos, juntamente com a consciência de que as operações em si transcendem estes termos. Por si mesmos, os termos negativos são tão inadequados quanto os afirmativos. Uma síntese entre eles deve ser sempre realizada. Na base desta síntese, porém, se encontra uma experiência que transcende tanto os termos de afirmação quanto os de negação que a expressam. Deus possui em Si tanto o que corresponde aos termos de afirmação quanto o que corresponde aos termos de negação, mas Ele os possui de uma forma absolutamente superior aos termos em si. E isto é uma questão de experiência, não de mera especulação. "A ela devemos referir e  dela devemos afirmar todos os atributos do que existe, por ser Causa de todas as coisas, mas com mais razão se lhe devem negar todos eles, na medida em que ela ultrapassa todo ser. Não por supor que as negações se opõem às afirmações, mas antes por que a causa é de longe anterior e superior às privações, e está para além de toda negação, para além de toda afirmação." [28]

O fato de que tanto as afirmações intelectuais quanto as negações têm uma base na experiência das operações de Deus no mundo atenua, tanto no caso de Dionísio como no dos outros Pais da Igreja, a distinção muito rigorosa entre o conhecimento intelectual e o conhecimento apofático de Deus. O conhecimento intelectual do Logos é a participação em Sua atividade que dá razão e sustenta. Se a teologia Católica Romana reduz todo o conhecimento de Deus a um conhecimento à distância, a teologia oriental o reduz a uma teologia de participação em vários graus que são ascendidos através da purificação.

Embora Dionísio afirme, por um lado, que as negações são mais adequadas a Deus do que as afirmações, ele afirma, por outro lado, que Deus transcende as negações muito mais do que as afirmações. Isto deve ser entendido como significando que em Si mesmo Deus é a realidade mais positiva. Mas Sua suprema positividade transcende todas as afirmações. E esta é mais uma razão para não deixar de falar sobre Deus em termos afirmativos.

Tem sido enfatizado muito o fato de que Dionísio chama Deus de "trevas", como sendo Aquele totalmente desconhecido. Mas Dionísio diz que o termo "trevas" também é inadequado para Deus. Ele está além das trevas e além da luz, não em um sentido privativo, mas como transcendendo-as. Ele é as trevas super-luminosa."A Treva divina é a 'Luz inacessível' onde se diz que 'Deus habita' (l Tm 6,16). E se o próprio excesso de sua claridade a torna invisível, se o transbordamento de suas efusões luminosas e supra-essenciais a subtrai a todo olhar, é todavia nela que nasce todo aquele que é digno de conhecer e de contemplar Deus. E é pelo próprio fato de não o ver e de não o conhecer que este olhar verdadeiramente se eleva além de toda visão e de todo conhecimento. Nada sabendo dele, a não ser que transcende totalmente o que é percebido e concebido..." [29]

Deus não é cognoscível, e ainda assim aquele que crê pode experimentá-Lo de maneira sensível e consciente. Este é um fato positivo. O homem está submerso no oceano incompreensível, indefinível e inexprimível de Deus; no entanto, ele está ciente disso. Deus é a realidade positiva para além daquilo que conhecemos como positivo; contudo, em comparação com o mundo criado, Ele é uma realidade negativa para além daquilo que conhecemos como negativo. Dionísio afirma isso também em sua caracterização paradoxal de Deus, embora o paradoxo não signifique que cada parte cancele a outra, mas sim que ambas as partes são transcendidas: "este Ser supra-existente. Mente além da mente, palavra inefável..." [30]

São Simeão, o Novo Teólogo, fala mais sobre a visão de Deus por parte daqueles que estão purificados, como uma luz que brilha através de todas as coisas. Ele observa continuamente, porém, que esta luz está acima de todo entendimento e por causa de seu caráter infinito mantém aberta a perspectiva de um progresso interminável nela. Ao mesmo tempo, São Simeão experimenta Deus como pessoa e o vê em Sua qualidade como causa de todos os bens. A luz tem um significado em si mesma e ela dá significado a todas as coisas:
e ele brilhará mais que os raios do sol visível;
assim como meu Senhor brilhou em Sua Ressurreição
e eis que os homens, estando diante d'Aquele que os glorificou,
ficarão estupefatos, pelo excesso da glória
e o incessante crescimento do esplendor divino,
o progresso será verdadeiramente infinito, no decorrer dos séculos,
porque a cessação do crescimento rumo a este fim infinito
seria nada mais do que a apreensão do inapreensível
e que aquele com o qual ninguém pode se saciar
se tornaria o objeto de saciedade:
pelo contrário, ser preenchido por Ele e ser glorificado em Sua luz
será um abismo de progresso e um começo sem fim;
da mesma forma que, embora possuindo Cristo que foi formado dentro
deles,
eles estão diante dAquele que brilha com uma luz inacessível,
assim mesmo neles o fim se torna o princípio da glória,
e - para te explicar melhor meu pensamento -
eles terão o começo no fim, e o fim no
começo. [31]
Aquele que resplandece para aqueles que, através da purificação, alcançaram a perfeição do amor, é Cristo como pessoa. Somente de uma pessoa vem uma luz inesgotável, uma contínua novidade de significados e amor:
Tu, ó Cristo, és o Reino dos Céus; Tu, a terra prometida aos mansos; Tu, as terras de pasto do paraíso;
Tu, o salão do banquete celestial...
E Tua graça, graça do Espírito de toda santidade, brilhará como o sol em todos os santos; e Tu, sol inacessível, brilharás no meio deles e todos resplandecerão, na medida da fé, da ascese, da esperança e do amor, da purificação e da iluminação deles pelo Teu Espírito. [32]
Ele é a causa de todas as coisas, mas Ele mesmo não é uma delas. Os termos afirmativos e negativos se completam uns aos outros, mas todos são a expressão de uma experiência apofática, não de uma reflexão especulativa realizada à distância.
Verdadeiramente, Tu não és nenhuma dessas criaturas, mas superior a
todas as criaturas, pois Tu és a causa de todas as criaturas,
uma vez que Tu és o Criador de todas
e é por isso que Tu estás à parte de todas elas,
muito elevado, para nossa mente, acima de todas as criaturas, invisível, inacessível, inapreensível, intangível, escapando de toda compreensão, Tu permaneces sem mudança,
Tu és a própria simplicidade e, no entanto, és toda diversidade...
e nossa mente é totalmente incapaz de compreender
a diversidade de Tua glória e o esplendor de Tua beleza.[33]
São Gregório Palamas concedeu uma precisão final à tradição patrística no que diz respeito ao conhecimento de Deus. Ele não nega que a mente natural é capaz de conhecer a Deus, mas mantém que os filósofos se desviaram do uso normal desse conhecimento. [34] Falando do conhecimento natural guiado pela razão que não foi desviado de seu uso natural, ele diz: "A visão e o conhecimento de Deus através das criaturas é chamado de lei natural. É por isso que, mesmo antes dos patriarcas e dos profetas e da lei escrita, esta lei natural chamou e trouxe de volta a Deus a raça humana e mostrou o criador àqueles que não se desviaram do conhecimento natural, como os filósofos gregos. Pois quem, possuindo a mente e percebendo tantas distinções de substâncias, os impulsos equilibrados dos movimentos opostos uns aos outros... não conhecerá Deus como a partir de uma imagem e do que é causado?... ele também terá o conhecimento de Deus através da negação. Assim, o conhecimento das criaturas trouxe a raça humana de volta a Deus antes da lei [ter sido dada]..."[35]

Evidentemente, uma vez que o Filho de Deus veio na carne, a fé que Ele nos trouxe nos elevou a um conhecimento superior. Além disso, qualquer pessoa que recuse este conhecimento é repreensível. Mesmo no Antigo Testamento existia uma fé que transcendia a razão, e através da Encarnação do Verbo essa fé foi ainda mais fortalecida. "De fato, esta fé é uma visão além da mente. E a posse do que é crido é uma visão além dessa visão que está além da mente. Mas o que é visto e possuído através desta última visão, estando além das coisas sensíveis e inteligíveis, não é a essência de Deus..." [36]

Aquele que ascendeu a este estado conhece Deus como a causa de tudo, não tanto através de sua própria razão, mas através de uma experiência do Seu poder.

A visão de Deus na luz é mais elevada não apenas do que o conhecimento racional, mas também do que o conhecimento que vem através da fé. Assim, ela é também mais sublime do que o conhecimento que vem através da negação.  Pois seu apofatismo é uma visão que transcende todo tipo de conhecimento, mesmo o conhecimento negativo. Este apofatismo faz uso de palavras negativas a fim de expressar sua visão, mas a visão em si transcende estas palavras. Dirigindo-se a Barlaão, que afirmava que o mais elevado conhecimento de Deus é aquele através da negação racional, São Gregório Palamas diz: "A visão (contemplação), meu caro, é uma coisa e a teologia é outra, porque não é a mesma coisa dizer algo sobre Deus e alcançar e ver Deus.  Pois teologia negativa é também uma palavra. Mas as visões (contemplações) estão acima das palavras..." [37]

A visão e a experiência de Deus são expressas, porém, também em palavras negativas, não porque esta visão não é uma visão real dEle, mas porque ela transcende tudo o que as palavras expressam. Deus é expresso como "trevas" não porque Ele não é visto de maneira alguma, mas num sentido transcendente; que esta treva é Deus, no entanto, é algo que é conhecido. Palamas interpreta desta forma as palavras de Dionísio da Epístola a Doroteu: "A Treva divina é a 'Luz inacessível' onde se diz que 'Deus habita' (l Tm 6,16). E... se o trasbordamento de suas efusões luminosas e supra-essenciais a subtrai a todo olhar, é todavia nela que nasce todo aquele que é digno de conhecer e de contemplar Deus. E é pelo próprio fato de não o ver e de não o conhecer que este olhar verdadeiramente se eleva além de toda visão e de todo conhecimento. Nada sabendo dele, a não ser que transcende totalmente o que é percebido e concebido...[38]

Comentando estas palavras Palamas diz: "Aqui ele diz que a mesma coisa é tanto trevas quanto luz, que ele vê e não vê, que ele conhece e não conhece. Portanto, como é esta treva luminosa? 'Por causa da efusão de seu dom transcendente de luz', diz ele. Portanto, num sentido próprio, é luz, e num sentido transcendente (καθ' ύπεροχήν) é trevas, uma vez que é invisível para aqueles que quereriam se aproximar e vê-la através das obras dos sentidos e da mente." E a capacidade de entrar nessas trevas pertence àqueles que estão purificados das paixões egoístas, como Moisés que viveu apenas para Deus e para o cumprimento da vontade dEle para com o povo de Israel. "A teologia através da negação, no entanto, é própria para todo adorador de Deus... Mas aquele que alcançou essa luz vê, diz ele, e não vê. Como é que, ao ver, ele não vê? Porque, diz ele, ele vê além da visão. Assim, ele conhece e vê no sentido próprio e ele não vê no sentido transcendente (ούχ ορα ύπεροχικώς), uma vez que ele não vê através de alguma operação da mente e dos sentidos, pois ele transcendeu toda operação do conhecimento, alcançando além da visão e do conhecimento, isto é, ele vê e opera num nível superior ao nosso, como aquele que alcançou acima do homem e é deus pela graça; e, estando unido a Deus, ele vê Deus através de deus." [39]

Poderíamos resumir a tradição patrística sobre o conhecimento de Deus nos seguintes pontos:

a. Existe uma capacidade natural para um conhecimento racional de Deus que é tanto afirmativo quanto negativo, mas à parte da revelação sobrenatural e da graça, esta capacidade dificilmente pode ser mantida. Esta mesma capacidade também deve sua existência a uma evidência de Deus no mundo.

b. O conhecimento através da fé baseado na revelação sobrenatural é superior ao conhecimento natural da razão e fortalece, esclarece e expande este último. Este conhecimento contém dentro de si uma certa experiência consciente de Deus, como a de uma pressão exercida sobre as pessoas humanas pela presença pessoal de Deus. Esta experiência é superior àquela que provém do conhecimento natural e, como tal, é algo que transcende o conhecimento racional tanto afirmativo quanto negativo, embora ela recorra a termos afirmativos e negativos a fim de dar a si mesma uma certa expressão.

c. Através da purificação das paixões, o conhecimento que provém da fé se desenvolve em uma participação nas coisas que nos são comunicadas por Deus, que está acima do conhecimento. Este conhecimento pode ser chamado de ignorância [desconhecimento], ou conhecimento apofático de um nível superior ao do conhecimento apofático através da fé mencionado acima, porque este transcende tudo o que somos capazes de conhecer através dos sentidos e da mente, e envolve mais do que a mera pressão exercida pela presença de Deus como pessoa. Ele não exclui um conhecimento de Deus como causa ou a necessidade de expressá-Lo mesmo aqui em termos afirmativos e negativos, embora o conteúdo do que é conhecido transcenda o conteúdo de tais termos em muito maior medida do que o conhecimento dEle pela fé simples.

d. Aquele que tem esta visão ou experiência de Deus está ao mesmo tempo consciente de que, em essência, Deus transcende essa visão ou a experiência. Esta é a experiência mais intensa do relacionamento com Deus como pessoa, que como tal, não pode ser definido, sendo totalmente apofático.

e. Em geral, a experiência apofática de Deus é uma característica que dá definição à Ortodoxia em sua liturgia, sacramentos e sacramentais e é superior à experiência ocidental que é ou racional ou sentimental ou ambos de uma só vez. A experiência apofática é equivalente a um senso de mistério, que não exclui razão e sentimento, mas é mais profundo que eles.

Pe. Dumitru Staniloae,
teólogo Ortodoxo romeno
 

Conhecimento de Deus nas Circunstâncias Concretas da Vida

Se o conhecimento intelectual, tanto afirmativo quanto negativo, é mais o produto de uma reflexão teórica e é no conhecimento apofático que as pessoas crescem espiritualmente, então este último conhecimento é essencial para todos os cristãos em sua vida prática.

Todo cristão conhece Deus em Sua ação providencial pela qual ele é conduzido nas circunstâncias particulares de sua própria vida, às vezes sendo dotado de bens, às vezes sendo pedagogicamente privado deles. Esta última forma de conduzir São Máximos chama condução através do julgamento. Todos conhecem Deus através do apelo que Ele faz a pessoa, colocando-a em várias circunstâncias e em contato com várias pessoas que exigem que ele cumpra certos deveres e que testam sua paciência de maneiras difíceis. Todos conhecem a Deus nas reprimendas da consciência que sente pelos males cometidos e, por fim, cada um O conhece em seus próprios problemas e fracassos - temporários ou duradouros - em sua própria doença ou na daqueles próximos a ele que decorrem de certos males cometidos ou como meio de perfeição moral e fortalecimento espiritual; mas cada um também conhece a Deus na ajuda que recebe dEle para superar estas e todas as outras barreiras e dificuldades que se interpõem em seu caminho. Este conhecimento ajuda a conduzir cada homem em seu próprio caminho de perfeição.

É um conhecimento palpitante, pesado, doloroso e alegre; desperta dentro de nós nossa responsabilidade; ele aquece a oração e a aproxima de Deus.

Neste conhecimento, o nosso ser experimenta na prática a bondade, o poder, a justiça e a sabedoria de Deus, o Seu cuidado atencioso por nós, e o plano especial de Deus a este respeito.  Neste contexto, a pessoa humana experimenta uma relação de particular intimidade com Deus como suprema realidade Pessoal.  Neste conhecimento já não vejo Deus apenas como o criador e o guia providencial de todas as coisas, ou como o mistério que se faz visível a todos, preenchendo todos com uma alegria que é em maior ou menor grau a mesma em todos os casos; mas conheço-O no Seu cuidado especial em relação a mim, no Seu relacionamento íntimo comigo, no Seu plano pelo qual, através do sofrimento particular, exigências e orientação que Ele dirige a mim na vida, Ele conduz-me de uma forma especial ao objetivo comum. Este relacionamento íntimo que Deus tem comigo certamente não me afasta da solidariedade com os outros ou das obrigações que tenho para com os outros, em relação à família, à nação, ao meu lar, ao meu tempo, e ao mundo do meu tempo. Mas Deus dá-se a conhecer através dos apelos que dirige especialmente a mim, de modo a incitar-me a cumprir os meus deveres, ou através do remorso que sinto pelo não cumprimento de meus deveres especiais.

Este caráter palpitante do conhecimento de Deus, imbuído como ele é de temor e tremor, foi evidenciado vigorosamente por São João Crisóstomo. Na concepção de Crisóstomo, ele resulta em grande medida da experiência geral do terrível mistério de Deus. Mas este mistério é vivido especialmente nos estados de responsabilidade, consciência da pecaminosidade, necessidade de arrependimento, e nas insuperáveis dificuldades da vida. Os salmos do Antigo Testamento dão uma expressão particular a este conhecimento de Deus. Todas estas circunstâncias produzem uma sensibilidade e um refinamento no nosso próprio ser que o levam a perceber as realidades para além do mundo e a buscar pelo significado das mesmas.  Em tais circunstâncias, especialmente, o conhecimento de Deus é acompanhado pela responsabilidade, temor, e tremor. Elas tornam a alma mais sensível à presença de Deus, ou à presença de Deus que quer algo especial para mim, pois é o Seu plano especial para mim que as produz.  Não é em um estado de indiferença que Deus é conhecido. Ele não deseja ser conhecido em tal estado, pois a indiferença não me ajuda a atingir a perfeição. É por isso que Deus me coloca em circunstâncias como as descritas, e através delas Ele se faz transparente, em virtude do Seu interesse em mim.  É especialmente com este propósito em mente que Ele é o mysterium tremendum.

As circunstâncias difíceis que perfuram nosso ser como pregos nos impulsionam a uma oração mais profundamente sentida. E durante este tipo de oração, a presença de Deus é mais evidente para nós. Em geral, é bom que a oração seja feita em todas as circunstâncias, porque em si a oração é um meio de tornar a alma sensível à presença de Deus e de aprofundar nosso próprio autoconhecimento diante de Deus. São João Crisóstomo diz: "A oração está em primeiro lugar; depois vem a palavra de instrução. E isso foi o que disseram os apóstolos: 'Nos dedicaremos à oração e ao ministério da palavra' (Atos 6.4). Paulo faz isto quando ora no início de suas epístolas, para que, como a luz de uma lâmpada, a luz da oração possa preparar o caminho para a palavra. Se vos habituardes a orar fervorosamente, não precisareis de instruções de outros servos de Deus, porque o próprio Deus, sem intermediários, iluminará vossa mente." [40]

O estado de oração é uma condição na qual, através de um aumento da sensibilidade, percebemos Deus como um "Tu" que está presente. É precisamente por esta razão que na oração falamos diretamente a Deus, ao passo que, durante o tempo de sua própria reflexão, o crente se sente sozinho e fora de um relacionamento direto com Deus.

Neste estado de relacionamento direto com Deus, o poder de Deus também é sentido diretamente, especialmente quando aquele que crê solicita a ajuda de Deus, consciente de que tal ajuda somente pode vir dEle. Se há graus diferentes da presença que uma pessoa tem diante de nós, ela tem o grau mais intenso dessa presença quando está diante de nós como uma segunda pessoa e quando conversamos com ela. Além disso, esta presença alcança uma intensidade ainda maior quando sentimos que aquela pessoa está aberta ao nosso apelo a ela. É por isso que Deus, a Quem nos dirigimos em oração na convicção de que Ele nos ouve e está determinado a nos ajudar, é sentido no grau de presença mais pronunciada diante de nós.

São João Crisóstomo interpreta isto da seguinte forma: "Não estou falando de uma oração oferecida de forma leve e descuidada, mas de uma oração fervorosa, que procede de uma alma aflita e de um espírito contrito. Este é o tipo de oração que sobe até o céu... Assim também acontece com o espírito humano. Enquanto desfrutar de plena liberdade do temor, ele relaxa e se dispersa. Mas quando as circunstância de baixo o aflige e o pressiona com força, ele envia para o céu orações puras e intensas. Assim, para que saibam que as orações que são proferidas em tempo de aflição têm a melhor chance de serem ouvidas, ouçam o que o profeta diz: 'Na minha angústia clamei ao Senhor, e ele me ouviu' (Sl 119.1). Reanimemos, portanto, o fervor da consciência, aflijamos a alma com a lembrança de nossos pecados, aflijamo-la, não para atormentá-la, e sim para dispô-la de modo a ser ouvida, torná-la sóbria e vigilante e assim permitir-lhe atingir os céus. Pois nada afasta tanto o descuido e a negligência quanto a dor e a aflição fazem. Elas concentram inteiramente o espírito, fazendo-o voltar a si." [41] Então apelamos diretamente à fonte última de todos os poderes, que é experimentada como pessoa, que não pode permanecer indiferente. E esta fonte de todos os poderes deseja que você se dirija a ela com todo o seu poder. A plena relação entre pessoa e pessoa é uma relação de poder no bom sentido da palavra, uma relação de sentimento que é contrária à indiferença e à negligência.

Deus faz-se conhecido para nós em todas as nossas dificuldades se nos esforçamos para ver nossas transgressões que são os fundamentos das mesmas. Na maioria das vezes estas dificuldades surgem porque nos esquecemos de ver tudo o que temos como dons de Deus e, como uma consequência direta, de usá-los nós mesmos como dons em relação aos outros. Pois Deus quer nos tornar também doadores de Seus dons, para que possamos aumentar nosso amor para com os outros ao agirmos assim. Simeão Metafrastes diz que quando aqueles que te louvavam te abandonaram, e te caluniam e perseguem, tu deves pensar que "estas coisas vieram sobre ti pelo justo julgamento e mandamento do Deus que ama a humanidade, porque tu te mostraste ingrato a ele. Pois as coisas que tu deste a teu Benfeitor são as mesmas que tu recebeste. A medida que tu usaste para dar será a medida usada quando receberes e justo é o julgamento de Deus realizado no teu caso, alma ingrata e insatisfeita que tu és, porque te esqueceste das bênçãos de Deus. Pois tu esqueceste os grandes e ricos dons que teu Benfeitor te deu". [42] Quando as coisas vão bem conosco, portanto, e também quando vão mal, devemos pensar na responsabilidade que temos por nossos irmãos perante Deus. Em ambas as situações isso mantém o pensamento da realidade Pessoal de Deus vigilante em nossa consciência, nos preserva em relação a Ele e nos faz dirigir nosso pensamento a Ele. Este pensamento, além disso, aprofunda nossa consciência dEle. Na primeira situação, quando Deus nos dá coisas boas, Ele nos convida a nos unirmos em amor com Ele e com os outros. Na outra situação, Ele nos admoesta precisamente porque não temos feito isso, e nos aconselha a nos arrepender e a fazer no futuro o que não fizemos no passado. Em ambos os casos Deus está falando conosco, chamando-nos a responder a Ele por nossas obras.

Deus se dirige a nós e desperta nossa responsabilidade de uma forma extremamente penetrante através dos rostos dos necessitados. Ele mesmo disse isto (Mt 25.31-46). Deus enfatiza o valor incomensurável do homem como homem diante dEle; este valor é tão grande que Deus se identifica diretamente com a causa do homem. Em tais casos, devemos considerar que, assim como Deus nos pede para ajudar os outros, também Ele pede a outros que nos ajudem quando estamos precisando de ajuda. "Ó minha alma, ajude aquele que sofre injustiça, para que tu possas escapar da mão dos injustos. Não demore em socorrê-lo para que Deus também possa te ajudar a ser libertada das mãos daqueles que te afligem." [43]

Em toda pessoa pobre, oprimida ou doente, é Cristo que nos encontra, pedindo - através de uma descida - a nossa ajuda. Na mão estendida dos pobres está a mão estendida de Cristo; na sua voz fraca ouvimos a voz fraca de Cristo; por causa da carência e humilhação em que o mantemos, seu sofrimento é o sofrimento de Cristo na cruz, que prolongamos. Em todas as coisas Deus desce até nós e se revela para nós. É esta mesma descida que torna evidente Seu mistério que ultrapassa todo entendimento, e torna evidente Seu amor que ultrapassa todos os amores do mundo. Todas as circunstâncias e pessoas através das quais Deus nos fala são apelos dEle, imagens vivas e transparentes dEle; o Deus que é simples desce até nós em uma infinidade de formas e situações, adequadas em todas as situações e formas de nossas vidas. E ainda assim, embora conhecido através de todas estas coisas, Seu mistério, no entanto, permanece além de todo entendimento. O mistério apofático de Deus se impõe mais dolorosamente no sofrimento do justo. Jó é atormentado não só pela dor, mas também por não compreender suas causas. Através do exemplo de Jó, Deus mostra que o amor por Ele e o amor pelo próximo deve passar pela prova do fogo do sofrimento.

Em sua explicação da visão que o profeta Isaías teve sobre os serafins que cobriam seus rostos ao olhar para Deus (Is 6.3) São João Crisóstomo diz: "Se, portanto, assegura o profeta que eles não podem sustentar a visão de Deus, mesmo em sua condescendência, não afirma outra coisa senão que eles não suportam o conhecimento claro, perfeito e compreensivo, e não ousam olhar fixamente sua essência tal qual é em sua integridade e pureza, nem mesmo em Sua condescendência." [44]

Esta experiência existencial de Deus é combinada com a experiência apofática dEle, embora dê mais ênfase ao caráter comovente e pessoal de Deus em seu relacionamento conosco do que a experiência apofática que vê a luz de Deus como num tipo de inundamento do mundo.  A experiência existencial também se combina com o conhecimento de Deus como criador e guia providencial do mundo (conhecimento catafático). Como resultado, ela torna Deus conhecido nestas capacidades de uma forma mais íntima para o homem, mas ao mesmo tempo a experiência existencial é ampliada por meio do conhecimento catafático. A combinação destes três tipos de conhecimento pode ser vista no caso de Jó ou em muitos lugares nos Salmos. Para Jó, que deseja entender por que Deus lhe enviou seu sofrimento, Ele mostra Suas maravilhas da natureza para que Jó possa aceitar o mistério de Seus atos que transcendem todo entendimento. O salmista também, conhecendo a partir de tantas circunstâncias de sua vida a presença de Deus que transcende o entendimento, louva-O ao mesmo tempo pela grandeza de Seus atos na natureza.

Através destes três tipos de conhecimento, o interesse pessoal que Deus demonstra pelo homem, juntamente com Seu mistério e Sua grandeza que estão além do entendimento, vêm à tona. Através dos três, Deus é conhecido como Aquele que ama de acordo com a medida de nosso amor por Ele e por nosso próximo.

Traduzido do livro 'Orthodox Dogmatic Theology: The Experience of God, Vol. 1: Revelation and Knowledge of the Triune God' (Capítulo VI)

Notas

1. O teólogo grego Christos Yannaras também nota a distinção entre as teologias negativas ocidentais e orientais, e ele inclui tanto as teologias negativas como as afirmativas do Ocidente dentro do quadro geral da teologia racional ocidental. Yannaras, entretanto, não atribui nenhum valor à teologia afirmativa, ao passo que nós reconhecemos uma certa necessidade para expressar a experiência apofática, embora estejamos sempre cientes de sua insuficiência. Yannaras diz: "É evidente aqui que a atitude apofática não pode ser identificada com a teologia das negações. Historicamente, esta identificação foi feita no apofatismo ocidental. Ela tem como pressuposto o conhecimento natural-afirmativo e sua negação simultânea...". De l'absence et de l'inconnaissance de Dieu (Paris 1971), pp. 87-88,
2. Oração 28.6, PG 36.32C-33A; ET E. R. Hardy/C. Richardson, Christology of  the Later Fathers, LCC 3 (Philadelphia 1954), pp. 139-40.
3. Oração 28.3, PG 36.29A-B: ET Hardy/Riehardson, pp. 137-38.
4. Oração 38.7, PG 36.317B-C; ET C. G. Browne/J. E. Swallow, NPNF 2ª Série, vol. 7, p. 346.
5. Oração 28.2,   PC 36.28Λ-Β; ET Hardy/Richardson, pp. 136-37.
6. Oração 38.7, PG 36.317C-D; ET Browne/Swallow, pp. 346-47
7. Capítulos Gnósticos 1.48-49, PG 90.1100C-D.
8. Tanto Lossky como Yannaras explicaram a teologia apofática oriental pelo ponto de partida do caráter pessoal de Deus. O que distingue a nossa posição da deles é que não nos retemos exclusivamente a um conhecimento de Deus que é apófático, mas que o consideramos como uma combinação do apófático e do catafático. O problema se estende por todo o Yannaras, De l'absence et de l'inconnaissance de Dieu, e cf. Lossky, The Mystical Theology, pp. 23-43.
9. Grande Oração Catequética 3, PC 4S.17C-D; ET W. Moore/H. A. Wilson, NPNF 2ª série, vol. 5, p. 477.
10. A Vida de Moisés, PG 44.380A; ET Malherbe/Ferguson [= 169], pp. 96-97.
11. Ibid. PG 44.377A; ET Malherbe/Ferguson [= 163], p. 95.
12. Ibid. PG 44.381A-D; ET Malherbe/Ferguson [= 174-77], pp. 98-99.
13. Ibid. PG 44.38GA; ET Malherbe/Ferguson [= 169], pp. 96-97.
14. Ibid. PG 44.377C-D; ET Malherbe/Ferguson [= 167], p. 96.
15. Ibid. PG 44.377A; ET Malherbe/Ferguson 163], p. 95.
16. Ibid. PG 44.377A-B; ET Malherbe/Ferguson [ = 164-65]. pp.95-%.
17. Carta 9.1, PG 3.1104B-C, ET Cohn Luibheid/Paul Rorem, Pseudo-Dionysius The Complete Works (NY/Mahwah, 1967), p.281.
18. Dionísio o Aeropagita, Os Nomes Divinos 2.8, PG 3.645C; ET Luibheid/Rorem, p. 64: " pois os causados trazem dentro de si apenas tais imagens das suas fontes de origem, tanto quanto lhes for possível...”
19. João Crisóstomo, A Natureza Incompreensível de Deus 1.5, PG 48.706; ET Harkins [ = 1,30-31], p. 64.
20.  A Vida de Moisés, PG 44.4Q1A-B; ET Malherbe/Ferguson [= 224-26], p. 113.
21. Ibid. PG 44.401D404A; ET Malherbe/Ferguson [= 231-32], pp. 114-15.
22. Ibid. PG 44.404A-B; ET Malherbe/Ferguson [= 234-36], p. 115.
23. Ibid. PG 44.404CD; ET Malherb/Ferguson [= 238-39], p. 116.
24. M. J. Le Cuillou, “Reflexions sur ia theologie trinitaire a propos de quciques livres anciens et rficents,”  Istina  17 (1972) p. 460.
25.  Os Nomes Divinos  1.5, PG 3.593C-D; ET Luibheid/Rorem, p. 54.
26. Ibid. 4.7, PG 3.701C; ET Lubbeid/Rorem, p. 76.
27. Ibid. 1.2, PG 3.588C-D; ET Luibheid/Rorem, p. 50.
28.  The Mystical  Theology  122, PG 3.1000B, ET Luibheid/Rorem, p. 265
29.  Carta 5, PG 3.1073A; ET Luibheid/Rorem, p. 265.
30.  Os Nomes Divinos 1.1, PG 3.588B; ET Luibheid/Rorent, p.50.
31. Simeão o Novo Teólogo,  Hino  1.175-190, ed. J. Koder,  SC  156, pp. 170/172: ET George A. Maloney, Hymns of  Divine Love by Saint Symeon the New Theologian  (Denville, NJ, 1976), p. 15.
32. Simeão o Novo Teólogo,  Hino 1.132-133,141-146, ed. Koder, p. 168; ET Maloney, p. 14.
33. Simeão o Novo Teólogo,  Hino 15.71-79. ed. Koder, p. 282; ET Maloney, pp. 52-53.
34. Defesa dos Santos Hesicastas  1.1.19-20, ed. P. Christou, Γρηγορίοϋ του Παλαμα. Συγγράμματα, vol. I (Thessalonike, 1962), pp. 382.20-38424; ET J. Meyendorff/N. Gendle,  Gregory Palamas, The Triads  (NY/Mahwah, 1983), pp. 27-28,
35. Defesa dos Santos Hesicastas 2.3.44, ed. Christou, vol. 1, p. 578.4-11,19-20, 21-24.
36. Defesa dos Santos Hesicastas 2.3.41, ed. Christou, vol. 1, p. 574.25-29.
37. Defesa dos Santos Hesicastas 2.3.49, ed. Christou, vol. 1, p. 582.3-6.
38. Carta 5 PG 3.1073A.
39. Defesa dos Santos Hesicastas 2.3.51-52, ed. Christou, voL 1, pp. 583.31-584.4,
14-23.
40.  A Natureza Incompreensível de Deus 3.6, PG 48.725-726; ET Harkins [= 3.35], p. 11.
41. Ibid. 5.6, PG 48.744; ET Harkins [ = 5.46-47], p. 157.
42. Simeão Metafrastes, Κατάνυζις (Athens, 1875), p. 381.
43. Ibid. p. 150.
44. João Crisóstomo, A Natureza Incompreensível de Deus, IV; P.G. 48, col. 731.