segunda-feira, 30 de abril de 2018

A Oração Pelos que Partiram (David C. Ford, Ph.D)




- O texto a seguir faz parte do livreto "Prayer and Departed Saints"-
Este livreto foi escrito pelo professor do Seminário St. Tikhon (EUA), David C. Ford, e é dedicado a discutir e apontar as bases bíblicas da oração pelos mortos. Além de grande clareza, o texto traz um forte caráter catequético. 


A Oração Pelos que Partiram 

“Papai, o que acontece quando alguém morre?” 

Não é uma pergunta fácil de responder - especialmente quando está pergunta foi feita em decorrência da perda de um membro da família, ou de um amigo próximo. Para muitos, não há resposta. A morte é o grande desconhecido, o destruidor, o inimigo invencível, cuja aparência inoportuna, para muitos, assinala apenas a cessação da vida. A Bíblia ensina que a resposta para o mistério da morte é encontrada na vida de Jesus Cristo, o Filho de Deus, e Um da Santíssima Trindade. Através do Seu nascimento, vida, morte e ressurreição, a própria morte foi vencida e o poder da sepultura foi vencido. A morte foi “tragada na vitória” (1 Coríntios 15:54), diz São Paulo. A alegria da vida eterna é oferecida àqueles que vivem n'Ele. Todos os cristãos concordam com essa faceta central da fé. No entanto, existem muitas opiniões divergentes sobre a natureza da vida além do véu. Embora os cristãos não olhem para a morte com a mesma sensação de desesperança e pavor que os “que não têm esperança” (1 Tessalonicenses 4:13), ainda há muitas questões que surgem. Sabemos que em Cristo a morte não é invencível. Mas ainda pode aparecer como um inimigo poderoso e temeroso, cuja presença é cercada pelo mistério e pelo desconhecido. Os cristãos podem perguntar: O que acontece quando um crente morre? Seu espírito vai imediatamente para o céu? As almas dos mortos são conscientes? Eles estão ativamente envolvidos no que está acontecendo ao seu redor? ou permanecem dormindo até o dia da ressurreição? Será que nossos amigos e entes queridos em Cristo se lembram de nós? Eles estão cientes do que está acontecendo aqui na terra? Eles ainda estão envolvidos de alguma forma no nosso dia-a-dia? Os santos do passado - aqueles que viveram vidas especialmente dedicadas ao serviço de Deus - ainda desempenham um papel ativo na Igreja hoje em dia? É possível pedir-lhes que orem por nós e intercedam em nosso favor? Para a Igreja Ortodoxa, questões como as acima não são aspectos periféricos da Fé. As respostas da Igreja a essas perguntas formam a base para elementos importantes de sua adoração e espiritualidade. A preocupação que a Igreja tem por aqueles que partiram em Cristo, flui do amor todo-abrangente e sem fim que ela tem para todos os seus membros, aqueles que ainda estão vivos nesta terra, e aqueles que nos precederam no mundo além. Eu gostaria de abordar dois aspectos dessa importante questão da vida após a morte, de um ponto de vista ortodoxo. Na primeira parte, desejo abordar questões relativas ao estado da alma após a morte e à vida daqueles que morreram em Cristo. Na Parte Dois, vou me concentrar em questões relativas ao nosso relacionamento com os santos no céu e, em particular, a intercessão dos santos. Todas essas questões são aspectos importantes da doutrina frequentemente referida como “a comunhão dos santos”. As práticas Ortodoxas nessa área são frequentemente mal interpretadas. Os protestantes frequentemente temem sua semelhança com as práticas católicas romanas, contra as quais os reformadores reagiram tão fortemente. E os católicos romanos muitas vezes ficam perplexos com as semelhanças e as diferenças que as práticas Ortodoxas parecem ter em comparação com as suas próprias. Vamos dar uma olhada em algumas dessas questões críticas de uma perspectiva Ortodoxa. 

Parte I 
O ESTADO DA ALMA APÓS A MORTE 

A alma, uma vez que deixou o corpo no momento da morte física, permanece atenta e consciente do que está acontecendo ao seu redor? 

Quando nos voltamos para as Escrituras, o fato da consciência contínua da alma após a morte é repetidamente confirmada. Tomemos, por exemplo, Hebreus 12: 22-24: “Mas chegastes ao monte Sião, e à cidade do Deus vivo, à Jerusalém celestial, e aos muitos milhares de anjos; À universal assembleia e igreja dos primogênitos, que estão inscritos nos céus, e a Deus, o juiz de todos, e aos espíritos dos justos aperfeiçoados; E a Jesus, o Mediador de uma nova aliança, e ao sangue da aspersão, que fala melhor do que o de Abel”. As palavras que eu coloquei em itálico nesta passagem, se referem àquelas almas que amam a Deus e passaram desta vida para estarem com Cristo na próxima. Eles fazem parte da Igreja no céu (o que alguns chamariam de “Igreja Triunfante”), vivendo conscientemente com Cristo, embora ainda aguardando Sua Segunda Vinda, quando serão revestidos com seus corpos glorificados na ressurreição dos mortos. Certamente, esta passagem não diria que na adoração da Igreja estamos na presença de anjos, Deus Pai, Jesus e “os espíritos dos justos aperfeiçoados”, se esses espíritos estivessem, de alguma forma, inativos e inconscientes! Esta passagem dos Hebreus não é isolada. Encontramos muitas outras indicações nas Escrituras, de que os espíritos daqueles que morreram estão em alerta e conscientes do que está acontecendo, tanto no céu quanto na terra. Considere, por exemplo, o seguinte: 

* As palavras de Jesus em Lucas 20:37, 38, onde Ele declara: “também o mostrou Moisés junto da sarça, quando chama ao Senhor Deus de Abraão, e Deus de Isaque, e Deus de Jacó. - Ora, Deus não é Deus de mortos, mas de vivos; porque para ele vivem todos." 
* A parábola do homem rico e Lázaro (Lucas 16: 19-31), na qual Jesus relata a conversa de Abraão, no Paraíso, com o homem rico falecido cuja alma desceu ao Hades. 
* A promessa de Jesus ao ladrão na cruz: “Hoje estarás comigo no paraíso” (Lucas 23:43). 
* O Livro do Apocalipse, que nos mostra os santos no céu, antes da Grande Tribulação, sendo muito ativos - caindo sobre seus rostos em adoração diante do trono de Deus, lançando suas coroas ao Rei da Glória, cantando Seus louvores e falando Dele (Apocalipse 4: 4, 10, 11; 5: 8-10, 13; 6: 9-11; 7: 9-12). 
* O testemunho pessoal de São Paulo. Quando escreveu aos Filipenses, São Paulo expressou a fé de que estaria vivo com Cristo após a sua morte: “Mas de ambos os lados estou em aperto, tendo desejo de partir, e estar com Cristo, porque isto é ainda muito melhor. Mas julgo mais necessário, por amor de vós, ficar na carne”(Filipenses 1:23, 24). Escreveu aos Coríntios da mesma forma: “Estamos confiantes, sim, bem mais satisfeitos em ausentar-nos do corpo e estar presentes com o Senhor” (2 Coríntios 5: 8). 
* Os relatos evangélicos da Transfiguração (Mateus 17: 1-9; Marcos 9: 2-10; Lucas 9: 28-36), que demonstram claramente que os fiéis que partiram continuam a viver, pelo fato de que Moisés e Elias lá apareceram e falaram com Jesus! 
* Hebreus 12: 1, que nos exorta: “Portanto, nós também, visto que estamos cercados por tão grande nuvem de testemunhas [incluindo os heróis da fé do Antigo Testamento listados no capítulo 11], deixemos de lado todo peso, e o pecado que tão facilmente nos enlaça”. Essas “testemunhas” são os santos de todas as idades, conhecidos e desconhecidos, canonizados e não canonizados. Certamente eles não teriam sido chamados de “testemunhas” se eles estivessem inconscientes de seus arredores. 

Os Adventistas do Sétimo Dia e alguns outros grupos protestantes mantêm uma doutrina chamada “sono de alma” - que afirma que após a morte a alma está adormecida, ou de alguma outra forma inconsciente, que não deve ser despertada até que a trombeta anuncie a Segunda Vinda de Cristo. O que dizer sobre isso? 

Esse ensinamento é estranho à Ortodoxia cristã histórica e não apareceu até a época da Reforma Protestante. A passagem bíblica chave usada para apoiar esta visão é 1 Tessalonicenses 4: 13-18, onde São Paulo diz que aqueles que "dormem em Jesus" precederão aqueles que ainda estão vivos na terra na ressurreição dos mortos, quando Cristo retornar. Em seu contexto apropriado, no entanto, essa passagem deve ser vista como descrevendo a morte do ponto de vista daqueles deixados para trás, não do ponto de vista dos que partiram. Como diz São Paulo no início destes versos: “Não quero, irmãos, que ignoreis os que dormiram, para que não sofrais como os que não têm esperança” (versículo 13). Para aqueles de nós que permanecem, a morte é um mistério. Para nós, os mortos “dormem”; eles estão em silêncio, imóveis, sem vida. Mas, como já vimos claramente nas Escrituras, eles estão longe de “adormecer” em termos de sua própria consciência e atividade. A essência da questão é esta: Jesus Cristo conquistou a morte. Todos os que vivem n'Ele compartilham desta vitória. Como Ele disse: “Eu sou a ressurreição e a vida. Quem acredita em mim, embora possa morrer, viverá. E quem vive e crê em mim nunca morrerá ”(João 11:25, 26). Assim, para aqueles que estão em Cristo, a morte física causa apenas uma separação física e temporária entre os que já estão com Ele na próxima vida (a Igreja no céu) e os que restam na terra. A morte, no entanto, não causa uma separação espiritual entre os mortos e os vivos, pois Jesus ainda é o Senhor dos dois grupos. Juntos, estes dois grupos, a Igreja no céu e a Igreja na terra (às vezes chamada de “a Igreja militante”), constituem a única Igreja inteira, indivisível, que São Paulo chama de “Seu corpo [de Cristo]” (Efésios 1:22). 23). O amor que une em perfeita unidade esses dois aspectos do Corpo de Cristo prevalece para sempre, pois “o amor nunca falha” (1 Coríntios 13: 8). Como também diz São Paulo: “Pois estou convencido de que nem a morte nem a vida, nem anjos, nem principados nem poderes, nem o presente, nem o porvir, nem altura nem profundidade, nem qualquer outra coisa criada poderão nos separar do amor de Deus, que está em Nosso Senhor Jesus Cristo ”(Romanos 8:38, 39). 

Que outras evidências existem para apoiar a afirmação de que aqueles que partiram estão conscientes e envolvidos com os assuntos do céu e da terra? 

Através dos séculos, uma maneira pela qual a Igreja experimentou essa grande verdade cristã é que, às vezes, pessoas especialmente semelhantes a Cristo, após suas mortes, apareceram para as pessoas que vivem na Terra. Já nos referimos à ocasião em que Pedro, Tiago e João viram e ouviram Moisés e Elias, quando apareceram e conversaram com Cristo no Monte da Transfiguração (Mateus 17: 1-8). Talvez o primeiro testemunho sobre tal acontecimento depois da era apostólica esteja registrado em “O Martírio de Inácio”. Este é um relato de testemunha ocular sobre Santo Inácio, o terceiro bispo de Antioquia, que foi lançado aos leões pelos romanos por volta de 110 dC [1].Os escritores dessa narrativa relatam: “Nós mesmos fomos testemunhas oculares dessas coisas [seu martírio]. . . passamos a noite inteira chorando em casa e tendo suplicado ao Senhor, com os joelhos dobrados e muita oração. . . aconteceu que, ao cairmos em um breve sono, alguns de nós viram o abençoado Inácio, de repente, nos observando e abraçando-nos, enquanto outros o viram rezando por nós, e outros ainda o viram caindo de suor, como se ele tinha acabado de vir de seu grande trabalho, estando junto ao Senhor. Quando, portanto, com grande alegria testemunhamos estas coisas e comparamos nossas diversas visões, cantamos louvores a Deus ”. [2] Um exemplo muito mais contemporâneo desse tipo de evento vem do século XX. São Nektarios, amado bispo de Pentápolis, Egito, e fundador do Convento da Santíssima Trindade, na ilha grega de Egina, morreu em 9 de novembro de 1920, em um hospital de Atenas. Desde então, ele apareceu muitas vezes, seja em sonhos ou visões, enquanto continua seu ministério em seu rebanho terrestre, dando conselhos espirituais e sendo um instrumento do poder de cura de Deus. Como o biógrafo de São Nektarios relata: “Ficou bem conhecido que muitos cristãos Ortodoxos gregos que estavam incuráveis, doentes, sofrendo e próximos da morte, viram um velho monge vivo, de touca, aparecer para eles. Não importa quem eles são, ou de onde eles são, muitas vezes ele foi visto em países distantes, que não a Grécia. Ele sempre sorri suavemente e os consola assegurando-lhes que recuperarão a saúde e não temam, porque Deus não os abandonará. Ele simplesmente os lembra de ter paciência e fé. "E quem é você, meu velho?" muitos perguntam em um momento de espanto. "Eu sou o ex-bispo de Pentápolis, Nektarios de Aegina", o monge responde e depois desaparece.[3] 

Por que a Igreja Ortodoxa encoraja seus membros a orarem pelos mortos? Alguns diriam que tal prática é, na melhor das hipóteses, supersticiosa e talvez até herética. 

As Escrituras proíbem estritamente qualquer tentativa de convocar os espíritos dos mortos, ou tentar envolvê-los em conversações (ver, por exemplo, Levítico 19:31 e 20: 6, bem como 1 Samuel 28). Mas, sabendo que nossos pais, avós, filhos, irmãos, irmãs e amigos cristãos vivem com Cristo depois que morrem, e lembrando-se da grande união que ainda temos com eles, como membros do Corpo de Cristo, a Igreja nada encontra nas Escrituras que proíba os cristãos de expressar amor e manter um senso de comunhão com aqueles que morreram. E que maneira melhor temos de expressar nosso amor, do que orar por eles? [4] Alguém pode objetar: “Se eles já estão no céu, como podem precisar de nossas orações? Seu destino eterno já está estabelecido!”. Verdade! O destino eterno - se alguém passa a eternidade no céu ou no inferno - é determinado pela forma como alguém acredita e vive nesta vida. A Igreja Ortodoxa não afirma que as orações por alguém que morreu, em oposição a Deus, pode salvar essa alma do inferno, já que as Escrituras ensinam claramente que não há chance de arrependimento após a morte (Lucas 16: 19-31, Hebreus 9:27, etc). Embora, acreditando firmemente nisso, a Igreja ainda ensina que a oração pelos mortos em Cristo é útil para eles. Por quê? Porque, na visão Ortodoxa, a santificação é vista não como uma ocorrência pontual, mas como um processo que nunca termina. Como diz São Paulo: “Mas todos nós, com rosto descoberto, refletindo como um espelho a glória do Senhor, somos transformados de glória em glória na mesma imagem, como pelo Espírito do Senhor”(2 Coríntios 3:18). E em 1 Coríntios 1:18, que a versão King James traduz como “Porque a pregação da cruz é loucura para os que perecem; mas para nós, que somos salvos, é o poder de Deus.”, no grego original é sozomenois, que significa literalmente :“que está sendo salvo ”. Por essa razão, os cristãos Ortodoxos consideram a própria salvação como um processo dinâmico, um crescimento contínuo em santidade, pureza e proximidade com Deus, que continua até mesmo no céu. Já que somos seres criados, e somente Deus é Incriado, como podemos imaginar que homens e mulheres alguma vez compreenderão completamente a Deus, ou estarão totalmente cheios com Sua Santidade, Sua Vida Incriada? Ele é Amor infinito e Santidade infinita: aqueles com Ele no céu são abençoados para crescer neste Amor e Santidade, infinitamente. Há outro aspecto desse processo contínuo de santificação. Cristãos, de todas as épocas, têm percebido, em sua luta contra os impulsos pecaminosos da carne e as tentações do diabo, que quando cometemos pecados infligimos feridas em nós mesmos: “Porque o salário do pecado é a morte” (Romanos 6:23). Naturalmente, a Ortodoxia também considera os pecados como a quebra dos mandamentos de Deus, o que requer arrependimento e perdão. Mas a Igreja percebe, a partir de uma longa experiência pastoral, que o pecado grave aleija e enfraquece nossa alma, distorcendo a imagem de Deus em nós. O pecado pode deixar cicatrizes duradouras, mesmo depois que o perdão de Deus é concedido e aceito. Os efeitos do pecado mantido - o nosso próprio e o dos outros - não desaparecem simplesmente quando aceitamos o perdão de Deus, embora essa remissão da nossa culpa seja certamente o primeiro passo crucial para a cura total. Somente através de uma vida contínua de fé em Cristo, gradualmente nos purificamos e curamos, pela Graça do Espírito Santo, destas feridas do pecado. Isso acontece à medida que gradualmente nos tornamos mais e mais impregnados com a luz e o amor de Deus, assim participando, de maneira mais completa, da natureza divina (2 Pedro 1: 4). Assim como esse processo nunca é completado na vida de qualquer pessoa, enquanto ela estiver na terra - ninguém se torna sem pecado -  o entendimento Ortodoxo é de que a santificação continua, de alguma forma, no mundo além - especialmente nos estágios iniciais da próxima vida. A Igreja acredita que nossas orações pelos que partiram podem ajudá-las nesse processo de cura e purificação. Há ainda outra dimensão para essa questão. Não somente nossas orações ajudam os que partiram, mas orar por elas também nos ajuda. Ela (oração) mantém sua lembrança viva em nós, ajudando nossos corações a permanecerem aquecidos e cheios de amor para com eles. Isso nos dá uma maneira de sentir a presença deles, já que a oração é muito mais do que simplesmente fazer pedidos. Ela (a oração) os mantém diante de nossos olhos, como exemplos vivos de fé cristã, que devemos imitar. A oração pelos que partiram, também nos oferece uma outra maneira de nos envolvermos em um incrível privilégio, participando da obra de salvação contínua de Deus, santificação e glorificação de toda alma que Ele atrai para Si (Efésios 6:19; Colossenses 1: 3-12; 1 Tessalonicenses 5:17, 2 Tessalonicenses 1: 11,12). E uma lembrança vívida daqueles que vivem com Cristo no céu, pode nos assegurar mais e mais profundamente que realmente existe vida após a morte, o que pode ajudar a diminuir qualquer medo da morte que possamos ter. Podemos ver, então, que nossas orações pelos que partiram ajudam a preservar e aumentar a unidade entre a Igreja na terra e a Igreja no céu - o que ajuda ambos os aspectos da Igreja. Como o teólogo Ortodoxo britânico, bispo Kallistos Ware, diz: “Assim como os cristãos ortodoxos aqui na Terra oram uns pelos outros e pedem as orações uns dos outros, eles oram também pelos fiéis que partiram e pedem aos fiéis que partiram que orem por eles. A morte não pode cortar o vínculo de amor mútuo que liga os membros da Igreja juntos”.[5] 

A Igreja Ortodoxa ensina a doutrina do Purgatório? 

Na verdade, os ortodoxos têm lutado fortemente contra essa doutrina católica romana. Esta inovação não foi oficialmente pronunciada até 1274, no Concílio de Lyon, sendo amplamente expandida no Concílio de Florença em 1439. Incluiu a ideia de que os mortos no Purgatório (entendidos como um lugar separado e específico) sofrem punições para expiar por todos os seus pecados cometidos na terra - até mesmo pecados confessados e arrependidos - pelos quais eles não tinham sofrido punição enquanto ainda viviam na terra. A Ortodoxia rejeita firmemente tais ideias. São Marcos, bispo Ortodoxo de Éfeso, declarou, em oposição às visões latinas propostas no Concílio de Florença, que as almas crentes que haviam cometido pecados enquanto estavam na terra “devem ser limpas deste tipo de pecados, mas não por meio de algum purgatório, fogo ou uma punição definida em algum lugar (pois isso, como já dissemos, não nos foi transmitido). [6] Essa purificação pode ser vista como uma espécie de “castigo do Senhor” (Hebreus 12: 5-11), uma experiência adicional do “fogo do ourives” do Senhor (Malaquias 3: 2, 3; 1 Pedro 1: 6, 7; Jó 23:10; Salmo 66:10) que todos os cristãos experimentam repetidamente durante esta vida. Essa depuração/purificação é parte da antecipação da glória e da paz do céu, que as almas justas já desfrutam, enquanto aguardam sua plena glorificação no Reino dos Céus, após o Juízo Final. Este processo de purificação não envolve, de modo algum, sofrer punições por pecados confessados e arrependidos. Para os Ortodoxos, o amor e a misericórdia ilimitados de Deus, tornam essa ideia bastante absurda. Por outro lado, para aqueles que morrem afastados de Deus, a morte física traz um antegozo do inferno, enquanto aguardam o julgamento final na volta de Cristo. Depois do Concílio de Florença, a Igreja latina desenvolveu a idéia ainda mais censurável de que as pessoas na terra poderiam comprar indulgências em favor dos mortos, o que aliviaria ou deteria completamente seu sofrimento expiatório no Purgatório. Foi explicado que as indulgências se baseavam no extra merits dos santos que já estavam no céu - aquelas pessoas excepcionalmente santas, que haviam merecido mérito suficiente para garantir sua própria salvação. Do ponto de vista Ortodoxo, os reformadores protestantes corretamente abominavam e denunciavam essa prática de comprar indulgências baseadas em um suposto “depósito de mérito” dos santos. Além da graça de Cristo, não há como "merecer" a própria salvação, seja pessoalmente, seja pelas boas obras de um santo. Mas, ao pôr fim a essa prática em suas próprias igrejas, os reformadores reagiram exageradamente e abandonaram as práticas antigas e universalmente mantidas de orar pelos que partiram e honrarem os santos. Em seu zelo para corrigir o erro, os reformadores foram longe demais. 

Parte II 
A INTERCESSÃO DOS SANTOS 

Por que a Igreja sustenta certos homens e mulheres como exemplos, e encoraja que honra e respeito especiais sejam dados a eles? 

Quando cristãos, particularmente dedicados, demonstram consistentemente ao longo de suas vidas um grande amor por Cristo e seus semelhantes, e quando eles vivem e morrem em uma esperança e alegria extraordinariamente vibrantes nEle, são lembrados com especial fervor por seus companheiros cristãos deixados para trás na Terra. Relatos de suas boas ações, suas palavras sábias e, muitas vezes, eventos milagrosos associados a suas vidas, são espalhados de boca em boca. Milagres ocorrem frequentemente nas sepulturas de tais indivíduos. Um excelente relato bíblico de tal ocorrência pode ser encontrado em 2 Reis 13:20, 21. Aqui, um homem foi ressuscitado simplesmente entrando em contato com os ossos de Eliseu. Além disso, milagres ocorrem frequentemente em relação às posses terrenas dos santos. Nos é dito, no Novo Testamento, que até mesmo os lenços de São Paulo se tornaram instrumentos da cura de Deus (At 19: 11,12). Um exemplo de tal evento nos últimos tempos ocorreu com a morte de São Nektarios. Logo depois da morte de Nektarios, as enfermeiras, trocando as roupas de cama, jogaram sua camiseta de lã sobre o leito de um homem paralisado no mesmo quarto; o inválido foi curado, levantando-se imediatamente e andando pela primeira vez em muitos anos.[7] O conhecimento de tais eventos é ainda mais difundido quando seus relatos são registrados e divulgados. Isso encoraja mais pessoas a pedir por suas intercessões celestes. Assim, a devoção à pessoa se espalha de maneira muito orgânica e espontânea. Tais desenvolvimentos geralmente levam a Igreja a honrar formalmente tais pessoas particularmente santas através do processo de canonização (frequentemente chamado de “glorificação” pelos Ortodoxos). Ao contrário da Igreja Católica Romana, que tem um procedimento muito detalhado, passo a passo, para canonização, a Igreja Ortodoxa simplesmente reconhece oficialmente a devoção popular que espontaneamente rodeou a memória do homem santo, mulher ou criança. [8] Geralmente isso é feito em nível regional ou nacional, onde a consciência da vida do santo tende a ser maior, mas as outras Igrejas Ortodoxas também podem anunciar seu reconhecimento da canonização. Tudo isso é feito para que a piedade popular em torno do santo seja canalizada e protegida sob o manto protetor da Igreja, e para que aqueles que vivem além da área local onde o santo viveu, possam se tornar conscientes dele ou dela. 

Que base existe para pedir aos santos que orem por nós? 

Como vimos, a Igreja tem em alta estima a memória de cristãos excepcionalmente santos, que durante suas vidas terrenas, muito ajudaram seus irmãos crentes, tanto física como espiritualmente. Portanto, não deve ser surpresa que ela encoraje os fiéis a buscar a intercessão contínua de tais indivíduos após sua passagem para o próximo mundo. Um exemplo de tal apelo está em um hino a São Sérgio de Radonej, um monge muito querido e pai espiritual para muitos na Rússia do século XIV: “O Espírito Santo tomou morada em ti e operando lá te adornou com beleza. Ó, tu que tens ousadia de aproximar-te da Santíssima Trindade, lembra-te do teu rebanho recolhido pela tua sabedoria e nunca o esqueceis, visitando os teus filhos, segundo a tua promessa, ó santo padre Sérgio”. [9] Um apelo semelhante é feito a São Herman, evangelizador Ortodoxo do Alasca no início de 1800: “Tendo um desejo de trazer pessoas incrédulas ao Deus Único, tu fostes todas as coisas a todos os homens: ensinando a Sagrada Escritura e cultivando uma vida de acordo com ela,  instruindo no trabalho manual e sendo um intercessor diante das autoridades, cuidando dos homens em tudo, como cuida-se de crianças, para que assim você possa levá-los a Deus; e não nos deixe a nós, que cantamos por ti ”. [10]. Desde que a morte foi derrotada por Cristo, por que tais pessoas não poderiam continuar seu ministério conosco, mesmo depois de terem se unido a Cristo no céu? Um padre Ortodoxo russo no início do século XX, certa vez repreendeu aqueles que não acreditam em uma verdadeira comunhão de oração com os que partiram: “Um punhado de terra e uma lápide tornaram-se obstáculos inconquistáveis para a comunhão com aqueles que partiram do mundo?" [11] Incontáveis cristãos, de todas as terras e idades, deram testemunho sobre receber ajuda de Deus através das orações e ministrações dos santos. Esta é uma forte indicação de que Deus está bem satisfeito com suas orações por nós e por nós para com eles. As Escrituras atestam a santidade de tais orações no livro do Apocalipse: “E, havendo tomado o livro, os quatro animais e os vinte e quatro anciãos prostraram-se diante do Cordeiro, tendo todos eles harpas e salvas de ouro cheias de incenso, que são as orações dos santos. ”(Apocalipse 5: 8). 

Mas a Bíblia não diz: “Porque há um só Deus e um só mediador entre Deus e os homens, o Cristo Homem Jesus” (1 Timóteo 2: 5)? Por que precisamos pedir aos santos que orem por nós? 

Sim, Cristo Jesus, homem e Deus, é o único que reconciliou a humanidade caída com Deus, o Pai, pela Sua vida, morte e ressurreição reconciliadora e redentora. Mas isso não significa que nunca pediremos aos outros que rezem por nós! Pedimos aos santos que partiram suas orações, da mesma maneira que pedimos aos nossos companheiros cristãos na Terra, que intercedam por nós. Já que os que partiram permanecem vivos em Cristo, por que deixarão de expressar seu amor e preocupação por nós, através da oração? Livres das preocupações da sobrevivência cotidiana na terra, livres das tendências pecaminosas da carne, e muito mais intimamente unidos a Cristo do que nós, os que partiram são capazes de interceder por nós com muito mais frequência e poder, do que os nossos amigos na terra podem orar por nós. Aqueles no céu são capazes de fazer continuamente o que nós na terra tentamos fazer, mas geralmente só conseguimos fazer fracamente e esporadicamente. Não é de admirar, portanto, que os cristãos desde os primeiros dias tenham pedido às pessoas que partiram, que orassem por eles. Isso de modo algum significa que só podemos alcançar Cristo passando pelos santos, como se eles fossem intermediários absolutamente necessários entre nós e Deus. Tal ideia é completamente estranha à Ortodoxia. São Paulo afirma claramente: “Vendo então que temos um grande Sumo Sacerdote que passou pelos céus, Jesus, o Filho de Deus. . . Vamos, pois, corajosamente ao trono da graça, para que obtenhamos misericórdia e encontremos graça para nos ajudar em tempos de necessidade” (Hebreus 4: 14-16). Mas só porque oramos, por nossa conta, diretamente a Deus, não significa que nunca pedimos a outras pessoas por suas orações! De fato, somos mandados muitas vezes nas Escrituras para orar uns pelos outros. São Paulo diz a Timóteo "Portanto, antes de mais nada, exorto as súplicas, as orações, as intercessões e as graças de todos os homens" (1 Timóteo 2: 1; veja também Colossenses 4: 2-4; Efésios 6:18, etc.). E nós somos ensinados por nosso Senhor Jesus, que o poder da oração é maior quanto mais pessoas estão orando juntas: "Também lhes digo que se dois de vocês concordarem na terra em qualquer assunto sobre o qual pedirem, isso lhes será feito por meu Pai que está nos céu”(Mateus 18:19). Assim, como nos sentimos confortados e fortalecidos quando pedimos a amigos, familiares e membros da Igreja aqui na Terra, para intercederem por nós em um momento de necessidade, quanto mais podemos nos sentir confortados e fortalecidos quando também pedimos à Igreja no céu por suas orações! (E não devemos deixar de pedir também aos anjos suas orações, pois eles são expressamente enviados para nós como “espíritos ministradores” [Hebreus 1:14; também Salmo 91:11 e Isaías 63: 9]). Pedindo aos santos, tanto os da terra, como os do céu,[12] por suas orações, e pedindo também aos anjos, tudo pode ser entendido simplesmente como reunir a maior quantidade de apoio de oração possível em um momento de necessidade! 


Os santos podem responder nossas orações diretamente? Está ao seu alcance para conceder nossos pedidos? 

As orações de nossos irmãos e irmãs em Cristo aqui na terra são eficazes apenas na medida em que Deus as responde. É o mesmo com as intercessões dos santos no céu. Eles nunca podem responder às orações por sua própria vontade ou em seu próprio poder; eles só podem suplicar a Cristo em nosso favor. Imaginar que a oração aos santos significa que eles podem conceder nossos pedidos separados de Cristo é uma ideia totalmente inaceitável de acordo com a teologia e prática Ortodoxa. Então, quando oramos aos santos, a compreensão é sempre clara de que estamos pedindo a eles que nos ajudem orando a Deus, e não pelo seu próprio poder ou ações à parte Dele. Por exemplo, um hino a Santa Nina (que, no início do século IV, trouxe a Fé Cristã para a Geórgia, no sul da Eurásia) conclui: “com os anjos tu louvais em canção o Redentor, orando constantemente por nós para que Cristo possa nos conceder a Sua graça e misericórdia ”. [13] Mas quanto à capacidade deles de ouvir nossos pedidos por suas orações, não devemos limitar os poderes da percepção espiritual daqueles que estão agora tão intimamente ligados a Deus. Se nós, na Terra, experimentamos a ajuda do Espírito Santo orando por nós e através de nós (Romanos 8:26, 27), quanto mais a ajuda do Espírito deve estar presente nos santos no céu? E devemos nos lembrar de que no céu, no reino espiritual, não há nenhuma das limitações de tempo, espaço ou mortalidade física, que tanto restringem a nós, que vivemos na terra. 

O que significa venerar um santo, e como isso difere de adorar a criatura em vez do Criador - o que a Bíblia proíbe estritamente? 

Quando alguém é oficialmente canonizado, a Igreja, em seus serviços de adoração, não ora mais pelo bem-estar de sua alma, mas pede publicamente as orações do santo. Os ícones do santo são feitos, hinos são escritos honrando e lembrando suas boas ações feitas, e pelo menos um dia do ano é designado como um dia de festa para aquele santo, quando seus ícones são exibidos, e hinos escritos para o santo são cantados. Um exemplo de tal hino é o seguinte, honrando a Santa Nina da Geórgia (chamada nos tempos antigos da Ibéria): “Ó, vem e canta a Nina, igual aos apóstolos, a iluminadora piedosa da Ibéria, pois ela baniu a sedução dos ídolos, levando-nos da escuridão para a luz, e nos ensinou a louvar a Trindade, Um em essência. Portanto, todos os fiéis celebram sua memória reverenciada e louvam o nosso Salvador ”.[14] Os hinos, os ícones, os dias de festa são todos aspectos importantes da veneração do santo, indicando profundo respeito e amor pela pessoa, mas de modo algum essas coisas significam que a pessoa está sendo adorada . Adoração, é claro, é devida somente a Deus. E, de fato, toda a veneração expressa a um santo é inteiramente baseada na proximidade dessa pessoa a Cristo. Todo santo tornou-se santo somente pela misericórdia e graça de Deus; é Ele quem é glorificado quando honramos Seus santos. Como o próprio Cristo orou no Jardim do Getsêmani: “E todos os meus são teus, e os teus são meus, e eu sou glorificado neles. . . e a glória que me deste eu lhes dei, para que sejam um, assim como nós somos um ”(João 17:10 e 22; minha ênfase). Outras indicações escriturísticas do amor transbordante de Deus por Seus santos, no qual Sua Igreja busca participar através de sua veneração e orações a elas, são dadas no Salmo 97:10 ("Ele preserva as almas de Seus santos"), Salmo 116: 15 (“Preciosa é à vista do Senhor a morte dos seus santos”), Salmo 149: 5, 9 (“Que os santos se alegrem com glória ... esta honra tem todos os Seus santos”), Provérbios 2: 8 (“Ele guarda os caminhos da justiça e preserva o caminho de Seus santos”), e Daniel 7:22 (“... até que veio o Ancião dos Dias, e um julgamento foi feito em favor dos santos do Altíssimo e chegou a hora de os santos possuírem o reino”). São Nicolau de Zicha, na Sérvia, que morreu na Pensilvânia em 1956, e que compilou curtos escritos sobre as vidas de santos para todos os dias do ano, descreve desta maneira este precioso relacionamento entre Cristo e Seus santos: “Os santos são um espelho polido, no qual se reflete a beleza, força e majestade de Cristo. Eles são o fruto naquela Árvore da Vida que é Cristo. . . Como o sol entre as estrelas e como um rei entre os seus nobres, assim é Cristo entre os seus santos. Isso funciona em ambas as direções - de Cristo para os santos e deles para Cristo: os santos recebem significado através de Cristo, e Cristo é revelado através dos santos”. [15] Embora pudéssemos dizer que a Igreja está mais plenamente segura da salvação das almas que ela oficialmente canoniza e venera, isso certamente não significa que a salvação e a santidade são limitadas apenas a elas! Assim, é perfeitamente aceitável pedir a outros, além dos santos canonizados, por suas intercessões. No entanto, isso não é feito publicamente nos serviços de adoração da Igreja, mas nas orações particulares de alguém. O bispo Kallistos (Ware) dá um exemplo: “Seria perfeitamente normal que uma criança Ortodoxa, se órfã, terminasse suas orações noturnas pedindo as intercessões não apenas da Mãe de Deus e dos santos, mas de sua própria mãe e pai". [16] 

Conclusão 
A COMUNHÃO DOS SANTOS 

A Divina Liturgia da Igreja Ortodoxa (o culto regular da manhã de domingo e do dia santo, sempre centrado na Sagrada Comunhão) é sempre oferecido de alguma forma para todos os mortos em Cristo. Embora os Ortodoxos nunca ofereçam serviços de adoração em nome de pessoas ou causas específicas, há as seguintes palavras na Liturgia de São João Crisóstomo (o serviço prestado na maioria dos domingos na Igreja Ortodoxa): “E novamente nós oferecemos a Ti este serviço, para todos aqueles que na fé se foram antes de nós e para o seu descanso: patriarcas, profetas, apóstolos, pregadores, evangelistas, mártires, confessores, ascetas, e todo espírito justo aperfeiçoado na fé, e especialmente pela toda santa, imaculada, abençoada e gloriosa senhora nossa, Theotokos e sempre virgem Maria”. Estas palavras afirmam a inefável unidade, que une a Igreja na terra com a Igreja no céu. A Igreja celestial é, seguramente, incluída quando a Igreja na terra se reúne para adorar, como vimos anteriormente, quando citamos Hebreus 12: 22-24 (uma passagem à qual esta citação da Liturgia obviamente se refere). Somos todos verdadeiramente um, em Cristo, através de quem e em quem a morte foi totalmente transcendida. Assim, quando Cristo oferece Seu Corpo e Sangue a nós na Sagrada Eucaristia, Ele o faz não somente para o benefício daqueles membros de Sua Igreja na terra, mas também para aqueles membros de Sua Igreja no céu. Já que nosso Senhor nos ama com muito mais amor do que podemos imaginar, certamente nossos irmãos e irmãs em Cristo, que estão sendo cada vez mais preenchidos do Seu amor, ao permanecer com Ele no céu, também nos amam mais do que imaginamos. Certamente, eles se regozijam em nossas contínuas expressões de amor por eles – em nossas várias lembranças e orações, por eles e para eles. Sem dúvida, no entanto, eles continuam a nos amar e a orar por nós, mesmo quando não nos lembramos deles. Eu, pessoalmente não tive uma visão de um santo ou um anjo (embora eu conheça pessoas que tiveram), mas, tenho certeza, pela experiência contínua, que eles estão sempre por perto. E sei que quanto mais tempo passamos em comunhão de oração com os santos, mais podemos sentir sua presença e sentir seu amor reconfortante. Ignorar a presença contínua, o amor fervoroso e as orações muito eficazes de nossos irmãos e irmãs cristãos, que se afastaram de nós, é uma perda trágica. Não só perdemos todos os benefícios da comunhão- e amizade- no Espírito com eles, mas diminuímos, em vez de aumentar, o grau de unidade que deveria ligar todos os que estão em Cristo, de ambos os lados da morte física. Minha fervorosa oração é que todos nós que cremos em Cristo, procuremos conhecer melhor os santos. E que uma crescente riqueza de comunhão com os Seus santos, nos ajude a aproximar-nos cada vez mais de nosso Senhor Jesus Cristo. 

Notas:
1-Antioquia foi o primeiro grande centro cristão após a queda de Jerusalém, em 70 dC; foi aqui que os seguidores de Cristo foram primeiramente chamados de “cristãos” (Atos 11:26). 
2-"O Martírio de Inácio", Padres Antenicenos (Grand Rapids, MI: Escrito 3-Eerdmans Publishing Company, 1981), vol. 1, p. 131 
3-Sotos Chondropoulos, São Nektarios, um Santo para os nossos tempos (Brookline, MA: Holy Cross Orthodox Press, 1989), p. 277 
4-Na verdade, há um claro precedente bíblico para orar pelos mortos. Este é o exemplo de Judas Macabeu, líder da revolta judaica contra o imperador Antíoco Epifânio em 167 aC, que orou e ofereceu uma oferta, pelo pecado de alguns de seus soldados que haviam caído em batalha. O texto diz: "Ao fazer isso, ele agiu muito bem e honrosamente, tendo em conta a ressurreição" (2 Macabeus 12: 39-45). Enquanto os dois livros dos Macabeus não estão na Bíblia Protestante, eles sempre fizeram parte das Escrituras Ortodoxa e Católica Romana. Isso porque eles foram incluídos na Septuaginta, a tradução grega das Escrituras Hebraicas que toda a Igreja primitiva usou. 
5-Kallistos Ware, A Igreja Ortodoxa (New York, NY: Penguin Books, 1984), p. 258 
6-Citado pelo Padre Serafim Rose em A Alma Após a Morte (Platina, CA: Saint Herman da Fraternidade do Alasca, 1980), p. 209 
7-Chondropoulos, p. 265 
8-É bom lembrar que os santos canonizados são de todas as idades e de todas as classes sociais, de soldado a monjas, de bispos a donas de casa. 
9-Troparion para a festa de São Sérgio, 25 de setembro. 
10-Hino de Stichera a Saint Herman do Alasca, das Grandes Vésperas, em 13 de dezembro. 
11-Padre Kyril Zaits, registrado em Conversas Missionárias com Sectários Protestantes, compilado e traduzido por Diácono Lev Puhalo e Vasili Novakshonoff (Jordanville, NY: Mosteiro da Santíssima Trindade, 1973), p. 35 
12- Só porque a Igreja Ortodoxa canoniza certas pessoas como “santos” (agioi) não significa que os seguidores de Cristo na terra também não possam ser, às vezes, referidos como santos (agioi), como por São Paulo em Efésios 6:18, Romanos 1: 7, etc. Na Divina Liturgia, o serviço prestado todos os domingos na Igreja Ortodoxa, pouco antes de os fiéis receberem a Sagrada Eucaristia (comunhão), o sacerdote proclama: “Os  santos dons para os santos [agiois]. “ 
 13-A Vida de Santa Nina, Igual aos Apóstolos e iluminadora da Georgia (Jordanville, NY: Mosteiro da Santíssima Trindade, 1988), p. 26. Este hino é do serviço das Matinas para 14 de janeiro. 
14-A vida de Santa Nina, p. 26. Ela é considerada a santa patronal da Geórgia até hoje. 
15- São Nicolau de Zicha, The Prologue de Ochrid (Birmingham, Inglaterra: Lazarica Press, 1985), vol. 1, p. 4. Este conjunto de quatro volumes é uma excelente fonte de conhecimento sobre centenas de santos Ortodoxos. 
16- Ware, p. 260. 


Fonte: David C. Ford, Ph.D, "Prayer and Departed Saints"

sexta-feira, 27 de abril de 2018

As Trevas Divinas (Vladimir Lossky)


Índice
1. Introdução: Teologia e Misticismo na Tradição da Igreja Oriental
2. As Trevas Divinas
3. Deus na Trindade
4. Energias Incriadas
5. Ser Criado
6. Imagem e Semelhança
7. A Economia do Filho
8. A Economia do Espírito Santo
9. Dois Aspectos da Igreja
10. O Caminho da União
11. A Luz Divina
12. Conclusão: A Festa do Reino

As Trevas Divinas


O problema do conhecimento de Deus foi exposto em seus fundamentos em um pequeno tratado cujo próprio título - Περὶ μυστικῆς θεολογίας – Sobre a Teologia Mística - é significativo. Este notável livro, cuja importância para toda a história do pensamento cristão não pode ser exagerada, é o trabalho do desconhecido autor dos chamados escritos areopagíticos: um personagem que a opinião comum durante um longo período de tempo procurou identificá-lo com o discípulo de São Paulo - Dionísio, o Aeropagita. Os defensores desta atribuição, no entanto, tiveram que levar em conta um fato perturbador: o silêncio completo reina por quase cinco séculos em relação a essas obras areopagíticas. Elas não foram citadas nem referidas por qualquer escritor eclesiástico antes do início do século VI, e foram heterodoxos - os monofisitas - que, ao buscarem apoiar-se em sua autoridade, primeiro deram-nas a conhecer. São Máximo, o Confessor tomou esta arma das mãos dos hereges no decurso do século seguinte, demonstrando em seus comentários (ou scholia) o significado ortodoxo dos escritos dionisíacos.[1] Desde então, essas obras têm desfrutado de uma autoridade incontestável na tradição teológica do Oriente, bem como na do Ocidente. Os críticos modernos, até então longe de concordar quanto à identidade do 'Pseudo Dionísio' e quanto à data da composição de suas obras, vagueiam em meio às mais diversas hipóteses.[2] A maneira pela qual as pesquisas críticas oscilam entre datas tão distantes do século III ao século VI mostra quão pouca concordância já foi alcançada em relação às origens desta obra misteriosa.


Mas sejam quais forem os resultados de toda essa pesquisa, eles não podem de modo algum diminuir o valor teológico da obra Areopagitica. Desse ponto de vista, pouco importa quem era o autor. O que é importante é o julgamento da Igreja sobre o conteúdo da obra e o uso que ela fez dela. Não diz o autor da epístola aos hebreus ao citar um salmo de Davi: "Mas em certo lugar testificou alguém...”? [3] Assim mostrando em que medida a questão da autoria é de importância secundária no caso de um texto inspirado pelo Espírito Santo. O que é verdadeiro para a Sagrada Escritura também é verdade para a tradição teológica da Igreja.


Dionísio distingue duas vias teológicas possíveis. Uma delas, a teologia catafática ou positiva, que prossegue por afirmações; a outra, a teologia apofática ou negativa, que prossegue por negações. A primeira nos leva a algum conhecimento de Deus, mas é uma via imperfeita. A via perfeita, a segunda, é a única via apropriada em relação a Deus, que é, em Sua própria natureza, incognoscível - que nos leva finalmente a ignorância total. Todo o conhecimento tem como objetivo aquilo que é. Mas Deus está além de tudo o que existe. Para aproximar-se dele, é necessário negar tudo o que é inferior a Ele, isto é, tudo aquilo que é. Se vendo Deus compreendemos o que vemos, então nós não vimos o próprio Deus, mas algo inteligível, algo que Ele é menor. É pela ignorância (ἀγνωσία) que alguém pode conhecer Aquele que está acima de todo objeto possível de conhecimento. Procedendo pelas negações, ascende-se dos níveis inferiores do ser aos mais elevados, ao deixar de lado progressivamente tudo o que pode ser conhecido, a fim de aproximar-se do Desconhecido na escuridão da ignorância absoluta. Pois até mesmo a luz, e especialmente a abundância de luz, torna a escuridão invisível; ainda mais, o conhecimento das coisas criadas e, em especial, o  excesso de conhecimento, destrói a ignorância, que é a única maneira pela qual se pode alcançar Deus em Si mesmo. [4]


Se transferirmos a distinção de Dionísio entre a teologia negativa e a afirmativa para o plano da dialética, somos confrontados com uma antinomia que, em seguida, buscamos resolver; na tentativa de fazer uma síntese das duas vias opostas, as unimos como um método único de conhecer Deus. É assim que São Tomás de Aquino reduz as duas vias de Dionísio para uma só, tornando a teologia negativa um corretivo para a teologia afirmativa. Ao atribuir a Deus as perfeições que encontramos nos seres criados, devemos (de acordo com São Tomás) negar o modo segundo o qual entendemos essas perfeições finitas, mas podemos afirmá-las em relação a Deus de um modo mais sublime, modo sublimiori. Assim, as negações correspondem ao modus significandi, ao meio sempre impreciso de expressão; as afirmações, à res significata, à perfeição que desejamos expressar, que está em Deus de um modo diferente do que está nas criaturas. [5] Podemos perguntar até que ponto essa invenção filosófica muito engenhosa corresponde ao pensamento de Dionísio. Se, para o autor do Areopagitica, há uma antinomia entre as duas "teologias" que ele distingue, ele admite esta síntese das duas vias? É possível, além disso, falando em termos gerais, opor-se as duas vias, lidando com elas no mesmo nível, colocando-as no mesmo plano? Dionisio não diz mais de uma vez que a teologia apofática supera a catafática? Uma análise do tratado sobre a teologia mística, que é dedicada a via negativa, mostrará o que esse método significa para Dionísio. Ao mesmo tempo, nos permitirá julgar a verdadeira natureza desse apofaticismo que constitui a característica fundamental de toda a tradição teológica da Igreja Oriental. [6]


Dionísio começa seu tratado com uma invocação da Santíssima Trindade, a quem ele ora para guiá-lo "ao alto supremo dos escritos místicos, que está além do que é conhecido, onde os mistérios da teologia, simples, incondicionais, invariáveis, são colocados à nu numa escuridão de silêncio além da luz". Ele convida Timóteo, a quem o tratado é dedicado, à "contemplação mística" (μύστικα θεάματα). É necessário renunciar ao sentido e ao funcionamento da razão, tudo o que pode ser conhecido pelos sentidos ou entendimento, tanto aquilo que é como aquilo que não é, para poder alcançar em perfeita ignorância a união com Ele que transcende todo ser e todo o conhecimento. Já é evidente que não se trata apenas de um processo de dialética, mas de outra coisa: é necessária uma purificação, uma κάθαρσις, é necessária. É preciso abandonar tudo o que é impuro e até tudo o que é puro. É preciso, então, escalar as alturas mais sublimes da santidade deixando para trás todos os luminares divinos, todos os sons e palavras celestiais. É somente assim que se pode penetrar na escuridão, onde Ele, que está além de todas as coisas criadas, faz a sua morada.[7]


Esse caminho de ascensão, no curso do qual somos gradualmente libertados do domínio de tudo o que pode ser conhecido, é comparado por Dionísio à ascensão de Moisés ao Monte Sinai para encontrar-se com Deus. Moisés começa por se purificar. Então ele se separa de tudo que é impuro. É então que ele ouve "as muitas notas das trombetas, ele vê as muitas luzes que emitem muitos raios puros; então ele é separado dos muitos, e com os sacerdotes escolhidos ele alcança a altura das ascensões divinas. Mesmo aqui ele não se associa com Deus, ele não contempla Deus (pois Ele não é visível), mas somente o lugar onde Ele está. O que significa, creio, que na ordem visível e na ordem inteligível, os objetos mais elevados e os mais sublimes são vistos e compreendidos não passam de razões hipotéticas dos atributos que convém Àquele que é totalmente transcendente, razões que revelam a presença Daquele que está fora de toda a captação mental, acima dos cumes inteligíveis de seus mais santos lugares.. É então que Moisés é libertado das coisas que vêem e são vistas (τῶν ὀρωμένων καὶ τῶν ὀρώντων): ele passa para a escuridão verdadeiramente mística da ignorância, onde ele fecha os olhos para todas as apreensões científicas, e atinge o que é inteiramente intocado e invisível, pertencendo não a si mesmo e não a outro, mas inteiramente Àquele que é acima de tudo. Ele é unido ao melhor de seus poderes com a quiescência inconsciente de todo conhecimento, e por esse mesmo desconhecimento ele conhece o que supera o entendimento (καὶ τῷ µηδὲν γινώσκειν, ὑπερ νοῦν γινώσκων).” [8]


Agora fica claro que a via apofática, ou teologia mística - pois tal é o título do tratado dedicado a via das negações - tem por objeto a Deus, na medida em que Ele é absolutamente incompreensível. Seria até impreciso dizer que tem Deus como seu objeto. A última parte da passagem que acabamos de citar mostra que, uma vez alcançada a altura extrema do cognoscível, é preciso libertar-se daquilo que percebe tanto quanto daquilo que pode ser percebido: isto é, do sujeito, bem como do objeto da percepção. Deus não se apresenta mais como objeto, pois não é mais uma questão de conhecimento, mas de união. A teologia negativa é, portanto, um caminho para a união mística com Deus, cuja natureza permanece incompreensível para nós.


O segundo capítulo da Teologia Mística opõe à via afirmativa, aquela de "posições" (θέσεις), a via negativa, aquela de sucessivas "abstrações" ou "distanciamentos" (ἀφαιρέσεις). A primeira é uma descida dos graus superiores do ser aos inferiores; a segunda, uma ascensão em direção à incompreensibilidade divina. No capítulo três, Dionísio enumera seus trabalhos teológicos, organizando-os em ordem de "prolixidade", que aumenta à medida que se desce das teofanias superiores para as mais inferiores. O tratado Sobre a Teologia Mística é o mais resumido de todos, pois trata da via negativa que leva ao silêncio da união divina. No quarto e quinto capítulos, Dionísio considera toda uma série de atributos emprestados do mundo dos sentidos e da inteligência e recusa-se a relacioná-los com a natureza divina. Ele conclui seu tratado reconhecendo que a Causa universal foge toda afirmação, bem como toda negação. “Quando fazemos afirmações e negações sobre as coisas que são inferiores a ela, afirmamos e não negamos nada sobre a Causa em si, que, sendo totalmente à parte de todas as coisas, está acima de toda afirmação, como a supremacia Daquele que, sendo em Sua a simplicidade liberto de todas as coisas e além de tudo, está acima de toda negação.” [9]


Houve muitas tentativas de fazer de Dionísio um neoplatonista. De fato, se compararmos o êxtase dionisíaco com o que encontramos descrito no final da Sexta Enéada de Plotino, devemos registrar algumas semelhanças impressionantes. Para aproximar-se do Uno (ἑν) é necessário, de acordo com Plotino, "alcançar o que é primeiro, separar-se dos objetos sensíveis, que são as últimas coisas, e ser liberto de todo mal porque se está ansioso pelo Bom; voltar ao começo dentro de si mesmo, e tornar-se um em vez de muitos na contemplação do começo e do Uno". [10] É o primeiro passo na subida, onde nos encontramos livres das coisas do sentido e recolhidos na inteligência. Mas é necessário ir além da inteligência, uma vez que a obtenção de um objeto superior a ela está em questão. "Não é algo, mas antes de tudo; nem é ser, pois aquilo que está sendo tem a forma de seu ser; mas isto é sem forma, faltando até mesmo forma inteligível. Pois, uma vez que a natureza do Uno procria todas as coisas, ele próprio não faz parte delas.” [11] A esta natureza são aplicadas definições negativas que lembram as da Teologia Mística de Dionísio: "não é algo, nem é de nenhum tipo ou grau; não é mente, não é alma; não se move nem permanece parado; não é nem no espaço nem no tempo; é em si mesmo, de um tipo, ou melhor, sem tipo, antes de todo tipo, antes do movimento, antes da quietude, pois todas essas coisas dizem respeito ao ser e o torna muitos." [12]


Aqui aparece uma idéia que nunca se encontra em Dionísio, e que traça uma linha de demarcação entre o misticismo cristão e a filosofia mística dos neoplatonistas. Se Plotino rejeita os atributos próprios do ser em busca de alcançar a Deus, não é, como com Dionísio, por causa da incognoscibilidade absoluta de Deus: uma incognoscibilidade obscurecida por tudo o que pode ser conhecido nas criaturas. É porque o reino do ser, mesmo em seus níveis mais elevados, é necessariamente múltiplo: ele não tem a simplicidade absoluta do Uno. O Deus de Plotino não é incompreensível por natureza. Se não podemos compreender o Uno pela razão discursiva nem pela intuição intelectual, é porque a alma, quando apreende um objeto pela razão, se afasta da unidade e não é absolutamente uma só.[13] Portanto, é necessário recorrer ao caminho do êxtase, à união em que somos totalmente um com o nosso sujeito, em que toda multiplicidade desaparece e a distinção entre sujeito e objeto não existe mais. "Quando se encontram eles não passam de um: é só quando separados que são dois .... Como afirmar que ele é um objeto diferente de nós mesmos, mesmo que não o víssemos como diferente, mas unido a nós quando o contemplávamos?"[14] O que é descartado na via negativa de Plotino é a multiplicidade, e chegamos à unidade perfeita que está além do ser - já que o ser está ligado à multiplicidade e é subsequente ao Uno.


O êxtase de Dionísio é uma saída do ser como tal. O de Plotino é antes uma redução do ser à simplicidade absoluta. É por isso que Plotino descreve seu êxtase por um nome que é muito característico: o da "simplificação" (ἅπλωσις). Trata-se de uma reintegração na simplicidade do objeto de contemplação que pode ser definido positivamente como o Uno e que, nessa capacidade, não se distingue do sujeito contemplativo. Apesar de todas as semelhanças exteriores (devido principalmente a um vocabulário comum), estamos muito longe da teologia negativa da Areopagitica. O Deus de Dionísio, incompreensível por natureza, o Deus dos Salmos: "que fez das trevas seu lugar secreto", não é a unidade de Deus primordial dos neoplatonistas. Se Ele é incompreensível, não é por causa de uma simplicidade que não pode chegar a um acordo com a multiplicidade com a qual todo conhecimento relativo a criaturas está contaminado. É, por assim dizer, uma incompreensibilidade que é mais radical, mais absoluta. De fato, Deus não seria mais incompreensível por natureza se essa incompreensibilidade fosse, como em Plotino, enraizada na simplicidade do Uno. Ora, é precisamente a qualidade de incompreensibilidade que, em Dionísio, é a única definição própria de Deus - se podemos falar aqui de definições próprias. Em sua recusa em atribuir a Deus as propriedades que compõem a matéria da teologia afirmativa, Dionísio está apontando expressamente para as definições neoplatônicas: "Ele não é nem Um, nem Unidade" (οὐδὲ ἑν, οὐδὲ ἑνότης ) .[15] Em seu tratado Sobre os Nomes Divinos, ao examinar o nome do Uno, que pode ser aplicado a Deus, ele mostra sua insuficiência e compara com outro nome "mais sublime" - o da Trindade, que nos ensina que Deus não nem um nem muitos mas que Ele transcende essa antinomia, sendo incognoscível no que Ele é. [16]


Se o Deus da revelação não é o Deus dos filósofos, é esse reconhecimento de Sua incognoscibilidade fundamental que marca a fronteira entre as duas concepções. Tudo o que pode ser dito em relação ao platonismo dos Padres, e especialmente em relação à dependência do autor da Areopagitica sobre os filósofos neoplatonistas, limita-se às semelhanças externas que não vão à raiz de seus ensinamentos, e se relacionam apenas com um vocabulário que era comum à época. Para um filósofo da tradição platonista, embora ele fale da união extática como o único caminho pelo qual alcançar Deus, a natureza divina é, não obstante, um objeto, algo que pode ser explicitamente definido – o ἑν -, uma natureza cuja incógnita reside acima de tudo no fato da fraqueza de nossa compreensão, inseparável como é da multiplicidade. Como acabamos de dizer, essa união extática será uma redução à simplicidade, e não uma saída do reino dos seres criados, como em Dionísio. Pois fora da revelação nada se sabe sobre a diferença entre o criado e o incriado, da criação ex nihilo, do abismo que deve ser cruzado entre a criatura e o Criador.  As doutrinas heterodoxas com as quais Orígenes foi acusado tinham sua raiz em certa insensibilidade diante da incognoscibilidade de Deus por parte deste grande pensador cristão. Uma atitude que não era fundamentalmente apofática, fazia do professor alexandrino um filósofo religioso e não um teólogo místico, no sentido próprio da tradição oriental. Para Orígenes, de fato, Deus é "uma natureza simples e intelectual que não admite nenhuma complexidade em si mesma... Ele é Mônada (μονάς) e Unidade (ἑνάς) e Espírito; a fonte e a origem de toda natureza intelectual e espiritual."[17] É interessante notar que Orígenes era igualmente insensível à criação ex nihilo: um Deus que não é o Deus absconditus da Escritura não presta-se facilmente às verdades da revelação. Com Orígenes, o helenismo tenta infiltrar-se na Igreja. Essa concepção vinda de fora tem sua origem na natureza humana, nos modos de pensamento próprios dos homens - "aos gregos e aos judeus". Esta não é a tradição na qual Deus se revela e fala à Igreja. É por essa razão que a Igreja teve que lutar contra o "origenismo", como sempre lutou contra doutrinas que, ao atacar a incompreensibilidade divina, substituíram a experiência das profundezas insondáveis de Deus por conceitos filosóficos.


É a base apofática de toda verdadeira teologia que os grandes Capadócios estavam defendendo em sua controvérsia com Eunômio. Este último manteve a possibilidade de expressar a essência divina naqueles conceitos inatos pelos quais se revela à razão. Para São Basílio, não só a essência divina, mas também as essências criadas não poderiam ser expressas em conceitos. Ao contemplar qualquer objeto, analisamos suas propriedades: é isso que nos permite formar conceitos. Mas esta análise não pode em caso algum exaurir o conteúdo do objeto de percepção. Haverá sempre um "resíduo irracional" que escapa à análise e que não pode ser expresso em conceitos; é a incognoscível profundidade das coisas, aquilo que constitui sua essência verdadeira e indefinível. Em relação aos nomes que aplicamos a Deus, estes revelam suas energias que descem em nossa direção, mas não nos aproximam de sua essência, que é inacessível.[18] Para São Gregório de Nissa, todo conceito relativo a Deus é um simulacro, um falsa semelhança, um ídolo. Os conceitos que formamos de acordo com o entendimento e o julgamento que são naturais para nós, baseando-nos em uma representação inteligível, criam ídolos de Deus em vez de nos revelar o próprio Deus.[19] Há apenas um nome pelo qual a natureza divina pode ser expressa: a maravilha que se apodera da alma quando ela pensa em Deus.[20] São Gregório Nazianzeno, citando Platão sem nomeá-lo ("um dos gregos divinos"), corrige uma passagem do Timeu sobre a dificuldade de conhecer a Deus e a impossibilidade de expressar sua natureza, da seguinte maneira: "É difícil conceber Deus, mas defini-lo em palavras, é impossível.” [21] Esse rearranjo de uma frase de Platão por um autor cristão que muitas vezes é considerado um platonizador, demonstra por si mesmo até que ponto o pensamento dos Padres é aquele dos filósofos.


O apofatismo, como uma atitude religiosa em relação à incompreensibilidade de Deus, não pertence exclusivamente ao Areopagitica, mas é encontrado na maioria dos Padres. Clemente de Alexandria, por exemplo, diz no Stromata que podemos alcançar a Deus não naquilo que Ele é, mas naquilo que Ele não é.[22] A própria consciência da inacessibilidade do "Deus desconhecido" não pode, segundo ele, ser adquirida exceto pela graça: "por essa sabedoria dada por Deus que é o poder do Pai". [23] Essa consciência da incompreensibilidade da natureza divina corresponde, assim, a uma experiência: a um encontro com o Deus pessoal da revelação. No poder dessa graça, Moisés e São Paulo experimentaram a impossibilidade de conhecer a Deus: o primeiro, quando penetrava nas trevas da inacessibilidade; o último, quando ouvia as palavras que transmitiam a inefabilidade divina.[24] O tema de Moisés se aproximando de Deus nas trevas do Sinai - um tema que já encontramos em Dionísio e que foi adotado em primeiro lugar por Filo de Alexandria como uma imagem de êxtase, é o símbolo favorito dos Padres para transmitir a experiência da incompreensibilidade da natureza divina. São Gregório de Nissa dedica um tratado especial à Vida de Moisés, [25] no qual a ascensão do Monte Sinai em direção às trevas da incompreensibilidade representa o caminho da contemplação, superior ao primeiro encontro de Moisés com Deus quando Ele apareceu a ele na sarça ardente. Então Moisés viu a Deus em luz; agora ele entra na escuridão, deixando para trás tudo o que pode ser visto ou conhecido; resta a ele apenas o invisível e incognoscível, mas nesta escuridão está Deus.[26] Pois Deus faz Sua morada ali onde nosso entendimento e nossos conceitos não podem ser admitidos. Nossa ascensão espiritual nos revela, cada vez mais claramente, a incompreensibilidade absoluta da natureza divina. Preenchida de um desejo sempre crescente, a alma cresce sem cessar, sai de si mesma, estende-se além de si mesma e, ao fazê-lo, é cheia de um desejo ainda maior. Assim a ascensão se torna infinita, o desejo insaciável. Este é o amor da noiva no Cântico dos Cânticos: ela estende as mãos em direção à fechadura, ela busca Aquele que não pode ser agarrado, ela o chama a quem ela não pode alcançar ... ela alcança a Ele na percepção de que a união é sem fim, a subida sem limite.[27]


São Gregório Nazianzeno retoma as mesmas imagens, especialmente a de Moisés. "Eu avançava", diz ele, "para conhecer Deus. É por isso que me afastei da matéria e de tudo o que é corporal, eu me recolhi o quanto pude para dentro de mim mesmo e subi em direção ao cume da montanha. Mas, ao abrir os olhos, mal pude ver o que estava atrás, mesmo estando coberto pela rocha, quer dizer, pela humanidade do Verbo encarnado para nossa salvação. Não fui capaz de contemplar a natureza primeira e toda pura que não é conhecida a não ser por si mesma, ou seja, a Santíssima Trindade. Porque não posso contemplar aquilo que se encontra detrás do primeiro véu, oculto pelos querubins, mas somente aquilo que desce em nossa direção, a magnificência divina que se torna visível nas criaturas." [28] Quanto à essência divina em si mesma, é “o Santo dos Santos que permanece oculto mesmo dos Serafins".[29] A natureza divina é como um mar de essência, indeterminado e sem limites, que se espalha muito além de toda noção de tempo ou de natureza. Se a mente tenta formar uma débil imagem de Deus, considerando-O não em Si mesmo, mas naquilo que o circunda, essa imagem lhe escapa antes mesmo de tentar apreendê-la, iluminando as faculdades superiores como um relâmpago que ofusca os olhos. [30] São João Damasceno se expressa da mesma maneira: "Deus, então, é infinito e incompreensível, e tudo o que é compreensível sobre Ele é Sua infinitude e incompreensibilidade. Tudo o que podemos dizer catafaticamente a respeito de Deus não mostra a Sua natureza, mas as coisas que se relacionam com a Sua natureza (τὰ πєρ τὴν ϕύσιν)…. Deus não pertence à classe das coisas existentes: não que Ele não tenha existência, mas que Ele está acima de todas as coisas existentes, até mesmo acima da própria existência. Pois, se todas as formas de conhecimento têm a ver com o que existe, seguramente, aquilo que está acima do conhecimento certamente também deve estar acima da essência; e, inversamente, aquilo que está acima da essência também estará acima do conhecimento." [31]


Seria possível continuar indefinidamente encontrando exemplos de apofatismo na teologia da tradição oriental. Nós nos limitaremos a citar uma passagem de um grande teólogo bizantino do século XIV, São Gregório Palamas: “A natureza super-essencial de Deus não é um assunto para fala ou pensamento ou mesmo contemplação, pois está muito distante de todas as coisas que existe e mais do que incognoscível, sendo fundado sobre o poder não circunscrito dos espíritos celestiais - incompreensível e inefável a todos para sempre. Não há nome pelo qual possa ser nomeada, nem nesta era nem na era por vir, nem na palavra encontrada na alma e proferida pela língua, nem no contato sensível ou intelectual, nem ainda em qualquer imagem que possa proporcionar qualquer conhecimento sobre ela, se não for aquela perfeita incompreensibilidade que se professa ao negar tudo o que pode ser nomeado. Ninguém pode nomear corretamente sua essência ou natureza, se está realmente buscando a verdade que está acima de toda a verdade.''[32] "Pois, se Deus é a natureza, então tudo o mais não é natureza. Se aquilo que não é Deus é natureza, Deus não é natureza e, do mesmo modo, Ele não é, se ou outros seres são. " [33]


Frente a frente com esse apofatismo radical, característico da tradição teológica do Oriente, podemos perguntar se corresponde ou não a uma abordagem extática: se existe uma busca de êxtase sempre que o conhecimento de Deus é buscado por meio de negações. Essa teologia negativa é necessariamente uma teologia do êxtase ou é suscetível de uma interpretação mais geral? Vimos, ao examinar a Teologia Mística de Dionísio, que o caminho apofático não é meramente uma busca intelectual, que é algo mais que um jogo de abstrações. Como nos platonistas extáticos, com também em Plotino, trata-se de uma κάθαρσις: de uma purificação interior. Há, no entanto, essa diferença: a purificação platônica é, acima de tudo, de natureza intelectual, destinada a libertar a compreensão da multiplicidade inseparável do ser. Para Dionísio, por outro lado, é uma recusa em aceitar o ser como tal, na medida em que oculta o não-ser divino: é uma renúncia ao domínio das coisas criadas a fim de obter acesso àquele do incriado; uma libertação mais existencial envolvendo todo o ser daquele que quer conhecer a Deus. Em ambos os casos, é uma questão de união. A união com o ἑν (Uno) de Plotino pode significar, de fato, uma percepção da união primordial e ontológica do homem com Deus: em Dionísio, a união mística é uma nova condição que implica um progresso, uma série de mudanças, uma transição do criado para o incriado, a aquisição de algo que não é até então possuído pela natureza. De fato, ele não só sai de si mesmo (pois isso também acontece em Plotino), mas ele pertence completamente ao Incognoscível, sendo deificado nesta união com o incriado. Aqui união significa deificação. Ao mesmo tempo, enquanto intimamente unido a Deus, ele O conhece apenas como Incognoscível, em outras palavras, como infinitamente separado por Sua natureza, permanecendo, mesmo na união, inacessível naquilo que Ele é em Seu ser essencial. Embora Dionísio fale de êxtase e união, embora sua teologia negativa, longe de ser um exercício puramente intelectual, envolva uma experiência mística, uma ascensão para Deus; ele deixa claro que, apesar de atingirmos os picos mais altos acessíveis aos seres criados, a única noção racional que podemos ter de Deus ainda será a da incompreensibilidade Dele. Consequentemente, a teologia deve ser menos  uma busca de noções positivas sobre o ser divino do que  uma experiência que supera todo entendimento. "Falar de Deus é algo bom, mas ainda melhor é se purificar para Deus", diz São Gregório Nazianzeno. [34] O apofatismo não é necessariamente uma teologia do êxtase. É, acima de tudo, uma atitude mental que se recusa a formar conceitos sobre Deus. Tal atitude exclui totalmente toda a teologia abstrata e puramente intelectual que gostaria de adaptar os mistérios da sabedoria de Deus aos modos de pensar humanos. É uma atitude existencial que envolve todo o homem: não há teologia à parte da experiência; é necessário mudar, tornar-se um novo homem. Para conhecer a Deus, é preciso aproximar-se Dele. Ninguém que não siga o caminho da união com Deus pode ser um teólogo. O caminho do conhecimento de Deus é necessariamente o caminho da deificação. Aquele que, seguindo este caminho, imagina, num dado momento, que ele sabe o que é Deus, esse tem um espírito depravado, de acordo com São Gregório Nazianzeno. [35] O apofatismo é, portanto, um critério: o sinal seguro de uma atitude mental conformada à verdade. Nesse sentido, toda verdadeira teologia é fundamentalmente apofática.


Será naturalmente perguntado qual é a função da teologia "catafática" ou afirmativa, a teologia dos "nomes divinos" que encontramos manifestada na ordem da criação. Ao contrário da via negativa, que é uma ascensão em direção à união, esta é uma via que desce até nós: uma escada de "teofanias" ou manifestações de Deus na criação. Pode até ser dito que é uma e a mesma via que pode ser seguida em duas direções diferentes: Deus condescende em direção a nós nas "energias" nas quais Ele é manifestado; nós nos aproximamos dEle nas "uniões" nas quais Ele permanece incompreensível por natureza. A "suprema teofania", a perfeita manifestação de Deus no mundo pela encarnação do Verbo, conserva para nós seu caráter apofático. "Na humanidade de Cristo", diz Dionísio, "o supra-essencial manifestou-se na substância humana, sem deixar de se esconder depois dessa manifestação, ou para me expressar segundo uma maneira mais celestial, nessa própria manifestação". [36] "As afirmações de que a humanidade sagrada de Jesus Cristo é o objeto têm toda a força das negações mais formais." [37] Tanto mais as teofanias parciais de grau inferior escondem Deus naquilo que Ele é, enquanto O manifesta naquilo que Ele não é por natureza. A escada da teologia catafática, que revela os nomes divinos extraídos, acima de tudo, da Sagrada Escritura, é uma série de passos que a alma pode subir para a contemplação. Essas não são as noções racionais que formulamos, os conceitos com os quais nosso intelecto constrói uma ciência positiva da natureza divina; elas são, antes, imagens ou idéias destinadas a nos guiar e se adequar às nossas faculdades para a contemplação daquilo que transcende todo o entendimento. [38] Especialmente nos níveis inferiores, essas imagens são formadas a partir dos objetos materiais menos propensos a desencaminhar as mentes não treinadas na contemplação. De fato, é mais difícil confundir Deus com pedra ou fogo do que ser identificado com inteligência, unidade, essência ou bondade. [39] O que parecia evidente no início da ascensão - "Deus não é pedra, Ele não é fogo" - é menos e menos ainda quando atingimos as alturas da contemplação, impulsionadas pelo mesmo espírito apofático que agora nos leva a dizer: 'Deus não é ser, Ele não é o bem'. A cada passo dessa ascensão, à medida que alguém se depara com imagens ou idéias mais elevadas, é necessário evitar fazer delas um conceito, "um ídolo de Deus". Então pode-se contemplar a própria beleza divina: Deus, na medida em que Ele se manifesta na criação. A especulação gradualmente dá lugar à contemplação, conhecimento à experiência; pois, ao rejeitar os conceitos que prendem o espírito, a disposição apofática revela horizontes ilimitados de contemplação em cada passo da teologia positiva. Assim, há diferentes níveis na teologia, cada um apropriado às diferentes capacidades dos entendimentos humanos que alcançam os mistérios de Deus. Neste contexto, São Gregório Nazianzeno retoma a imagem de Moisés no Monte Sinai: "Deus ordena que eu entre na nuvem e converse com Ele; se algum for Arão, suba comigo, e fique perto, estando pronto, se for assim, para ficar fora da nuvem. Mas se algum for um Nadabe ou um Abiú, ou da ordem dos anciãos, suba de fato, mas que fique de longe… Mas se alguém for da multidão, indigno dessa altura de contemplação, se ele for completamente impuro, que ele não se aproxime, pois seria perigoso para ele; mas se ele for pelo menos temporariamente purificado, que ele permaneça abaixo e ouça a voz apenas, e a trombeta, as palavras nuas de piedade, e que ele veja a montanha fumegando e iluminando… Mas se existe uma besta maligna e feroz, quero dizer aos homens incapazes de especulação e de teologia que não ataquem os dogmas com fúria… que se afastem o máximo possível da montanha, ou serão apedrejados.’[40]


Este não é um ensinamento mais perfeito ou esotérico escondido do profano; nem é uma separação gnóstica entre aqueles que são espirituais, psíquicos ou carnais, mas uma escola de contemplação na qual cada um recebe sua parte na experiência do mistério cristão vivido pela Igreja. Esta contemplação dos tesouros ocultos da Sabedoria divina pode ser praticada em graus variados, com maior ou menor intensidade: seja uma ascensão do espírito em direção a Deus, distanciando-se das criaturas, o que permite que Seu esplendor se torne visível; seja uma meditação sobre as Sagradas Escrituras em que Deus se esconde, como se estivesse atrás de uma tela, sob as palavras que expressam a revelação (Gregório de Nissa); seja através dos dogmas da Igreja ou através de sua vida litúrgica; seja, finalmente, através do êxtase que penetramos no mistério divino, esta experiência de Deus será sempre o fruto dessa atitude apofática que Dionísio nos recomenda em sua Teologia Mística.


Tudo o que dissemos sobre o apofatismo pode ser resumido em poucas palavras. A teologia negativa não é meramente uma teoria do êxtase. É uma expressão dessa atitude fundamental que transforma a totalidade da teologia em uma contemplação dos mistérios da revelação. Não é um ramo da teologia, um capítulo ou uma introdução inevitável sobre a incompreensibilidade de Deus, da qual se passa tranquilamente a uma exposição doutrinária na terminologia usual da razão e da filosofia humanas em geral. O apofatismo nos ensina a ver, acima de tudo, um significado negativo nos dogmas da Igreja: proíbe-nos seguir os modos naturais de pensar e formar conceitos que usurpam o lugar das realidades espirituais. Pois o cristianismo não é uma escola filosófica para especular sobre conceitos abstratos, mas é essencialmente uma comunhão com o Deus vivo. É por isso que, apesar de toda a sua aprendizagem filosófica e inclinação natural à especulação, os Padres da tradição oriental, permanecendo fiéis ao princípio apofático da teologia, nunca permitiram que seu pensamento cruzasse o limiar do mistério, ou substituísse os ídolos de Deus por Deus mesmo. É também por isso que não há filosofia mais ou menos cristã. Platão não é mais cristão que Aristóteles. A questão das relações entre teologia e filosofia nunca surgiu no Oriente. A atitude apofática deu aos Padres da Igreja aquela liberdade e liberalidade com a qual empregaram termos filosóficos sem correr o risco de serem mal interpretados ou de cair em uma "teologia de conceitos". Sempre que a teologia é transformada numa filosofia religiosa (como no caso de Orígenes), é sempre o resultado do abandono do apofatismo que é verdadeiramente característico de toda a tradição da Igreja Oriental.


Incognoscibilidade não significa agnosticismo ou recusa em conhecer a Deus. No entanto, esse conhecimento só será alcançado no caminho que leva não ao conhecimento, mas à união - à deificação. Assim, a teologia nunca será abstrata, operando através de conceitos, mas contemplativa: elevando a mente àquelas realidades que ultrapassam todo entendimento. É por isso que os dogmas da Igreja freqüentemente se apresentam à razão humana como antinomias, tanto  mais difíceis  de resolver quanto mais sublime é o mistério que expressam. Não se trata de suprimir a antinomia adaptando o dogma à nossa compreensão, mas de uma mudança de coração e mente que nos permita alcançar a contemplação da realidade que se revela a nós quando nos eleva a Deus e nos une, de acordo com nossas diversas capacidades, a Ele.


O ponto mais alto da revelação, o dogma da Santíssima Trindade, é eminentemente uma antinomia. Para alcançar a contemplação dessa realidade primordial em toda a sua plenitude, é necessário alcançar o objetivo que ela colocou diante de nós: atingir o estado de deificação; pois, nas palavras de São Gregório Nazianzeno, "serão herdeiros da luz perfeita e da contemplação da Santíssima e Soberana Trindade aqueles que se unirem totalmente ao Espírito total, e assim será, segundo acredito, o Reino Celeste”. A via apofática não leva a uma ausência, a um vazio absoluto; pois o incognoscível Deus do cristão não é o Deus impessoal dos filósofos. É para a Santíssima Trindade, "superessencial, mais que divino e mais que bom" [42] que o autor da Teologia Mística se recomenda ao entrar no caminho que o levará a uma presença e uma plenitude sem medida.




NOTAS
1 Scholia ou comentários sobre o Corpus Dionysiacum que estão sob o nome de São Máximo são, em grande parte, obra de João de Cipótolis (fl. 530-40) cujas notas foram confundidas com as de Máximo por copistas bizantinos. O texto da Scholia apresenta uma estrutura em que é praticamente impossível desvendar a parte que pertence ao próprio São Máximo. Veja sobre este assunto as pesquisas de S. Epiphanovitch, Materiais para o estudo da vida e obra de São Máximo o Confessor, Kiev, 1917 (em russo); e um artigo do pe. von Balthasar intitulado "Das Scholienwerk des Johannes von Scythopolis", em Scholastik, XV (1940), pp. 16-38.

2 Assim, para H. Koch, os escritos areopagíticos foram obra de um falsificador do final do século V, "Pseudo-Dionysius Areopagita in seinen Beziehungen zum Neoplatonismus und Mysterienwesen" (Forsch. zu christl. Litter. und Dogmengeschichte 86, I, 1 and 2, Mainz, 1900). A mesma data é aceita por Bardenhewer (Les Pères de l'Eglise; Paris, 1905). Pe. Stiglmayr identificaria o Pseudo-Dionísio com Severus de Antioquia, um monofisita do século VI, "Der sogennante Dionysius areopagita und Severus von Antiochen" (Scholastik III, 1928). Ao criticar esta tese, M. Robert Devreesse transporta a data da composição dos escritos de Dionísio para um período antes do ano 440, "Denys 1'Aréopagite et Sévère d'Antioche" (Archives d’histoire doctrinale et littéraire du moyen age, IV 1930). M. H.-Ch. Puech reivindicou a atribuição dos escritos a uma data no final do quinto século, Liberatus de Carthage et la data d'apparition des écrits dionysiens (Annuaire de l'École des Hautes Etudes, 1930-1931). Para Monsenhor Atenágoras, Dionísio foi um discípulo de Clemente de Alexandria. Ele identifica-o com Dionísio, o Grande, bispo de Alexandria (meados do século III),  γνήσιος συγγραφεὺς τῶν εἰς Διονύσιον τὸν Ὰρεοπαγίτην ἀποδιδομένων συγγραμμάτων, Athènes, 1932 ; Διονύσιον ὁ μέγας, ὲπίσκοπος Ὰλεξανδρείας, ὁ συγγραφεὺς τῶν ἀρεοπαγιτικῶν σηγγραμμάτων, Alexandrie, 1934. Finalmente, pe. Ceslas Pera, em seu artigo 'Denys le Mystique et la θεομαχαα' (Revue des sciences philosophiques et théologiques, XXV, 1936), detecta a influência do pensamento capadócio nos escritos dionisíacos, e procura atribuí-los a um discípulo desconhecido de São Basílio.
3 Heb. ii, 6.

4 Ep. I., Migne P.G., III, 1065.

5 Quaestiones disputatae, VII, 5.

6 A ‘Teologia Mística’ é publicada na Migne III, 997–1048. Há uma versão em ingles por C. E. Rolt (S.P.C.K. translations of Christian Literature, London, 1920), e uma versão em francês mais recente por  M. de Gandillac, Oeuvres complètes du pseudo-Denys l’Aréopagite, Aubier, 1943.

7 ‘Mystical Theology’, I, 3, P.G., III, 1000.

8 Ibid. 1000–1001.

9 Ibid., 1048 B.

10 Enn., VI, ix, 3.

11 Ibid.

12 Ibid. 

13 Enn., VI, ix, 4.

14 Enn., VI, ix, 10.

15 P.G., III, 1048 A.

16 Of the Divine Names, XIII, 3; P.G., III, 981 A.

17 ‘П ρί ἀρχ ν’, P.G. XI, 125 A.

18 ‘Adversus Eunomium’, I, i, c. 6, P.G., XXIX, 521–4; I. ii. c. 4. 570–80; I. ii. c., 648 ‘Ad Amphilochium, Epist. 234’, P.G., XXXII, 869 A C. Cf. Gregory of Nyssa, ‘Con. Eunom’, X, P.G., XLV, 828.

19 ‘De Vita Moysis’, P.G., XLIV, 377 B., new edition by J. Daniélou, S.J., Series Sources chrétiennes (Paris, 1955), p. 82. ‘Con. Eunom.’, III, P.G., XLV, 604 B-D; XII, ibid., 944 C.

20 ‘In Cantica Canticorum. Homil.’, XII, P.G., XLIV, 1028 D.

21 Oratio XXVIII (theol. II) 4, P.G., XXXVI, 29–32. Ed. A. J. Mason (The Five Theological Orations of Gregory of Nazianzus), Cambridge, 1899, p. 26.

22 ‘Stromata’, V, 2; P.G., IX, 109 A.

23 Ibid., V, 13, 124 B–125 A.

24 Ibid., V, 12, 116–124.

25 P.G., XLIV, 297–430. Ed. J. Daniélou, Sources Chrétiennes, 1bis.

26 Veja o artigo por M. Henri-Charles Puech, ‘La ténèbre mystique chez le pseudo-Denys l’Aréopagite et dans la tradition patristique,’ in Etudes Carmélitaines, Oct. 1938, pp. 33–53.

27 ‘In Cant. Canticorum’, P.G., XLIV, 755–1120.

28 ‘Oratio XXVIII (theologica II)’, 3, P.G., XXXVI, 29 AB.

29 ‘Oratio XXXVII, In Theophaniam’, 8, ibid., 320 BC. Cf. ‘Or. XLV, In sanct. Pascha’, 4, ibid., 628D–629 A.

30 ‘Oratio XXXVIII’, 7, ibid., 317 BC; ‘Oratio XLV’, 3, 625–628 A.

31 ‘De fide orthodoxa’, I, 4, P.G., XCIV, 800 BA.

32 ‘Theophanes’, P.G., CL, 937 A.

33 ‘Capita 150 physica, theologica, moralia et practica, cap. 78’, P.G., CL, 1176 B.

34 ‘Oratio XXXII, 12, P.G., XXXVI, 188 C.

35 ‘Carmina moralia. X: П ρί ἀρ τ ’, P.G., XXXVII, 748.

36 ‘Epist. III’, P.G., III, 1069 B.

37 ‘Epist. IV’, ibid., 1072 B.

38 Gregory of Nyssa, ‘Con. Eunom.’, P.G., XLV, 939–41.

39 ‘De Coel. hier., II, 3–5’, ibid., 140–5.

40 ‘Oratio XXVIII (theologica II), 2’; P.G., XXXVI, 28 AC.

41 ‘Oratio XVI’, P.G., XXXV, 945 C.

42 ‘Myst. Theology, I, 1’, P.G., III, 997.