quarta-feira, 31 de março de 2021

Neo-Eurasianismo de A. Dugin e a Fé dos Pais da Igreja

NEO-EURASIANISMO E A FÉ DOS PAIS 
por Eduard Zibnitsky

(publicado originalmente em https://pravoslavie.ru/39.html)

O ensino de Alexander Dugin, apesar da abundância de empréstimos terminológicos e conceituais e uma ampla gama de fontes e tradições envolvidas, é construído de forma bastante lógica como um conjunto integrado, cobrindo, em essência, todo o campo espiritual, geopolítico e social. Para analisar a doutrina de Dugin, o que naturalmente não pretendemos fazer devido à abundância de material a ser estudado, é necessário retirar toda a sua estética peculiar e todo o refinado sistema retórico de alusões e referências, os quais também são uma parte integrante de sua filosofia. Nesse caso, encontramos as categorias principais nas quais todo o seu pensamento está enraizado, e essas categorias estão inter-relacionadas. Portanto, as categorias básicas do sistema filosófico de Alexander Dugin são: 

* Eurásia-Atlântida, como incorporação dos vários princípios espirituais e culturais fundamentais. Elas também são chamados de civilizações da Terra e do Mar, às vezes são usadas imagens bíblicas do Behemoth e do Leviatã. A "Matriz mágica da tradição" e o individualismo atlante são o conteúdo desta oposição. 

* Esoterismo-Exoterismo. No primeiro caso, a tradição mística, a conexão com o mundo sobrenatural absoluto, mas apenas para os escolhidos; no segundo, a "adaptação" das verdades assim obtidas para todos, com nivelamento e a distorção inevitável delas. A intensidade mística do esoterismo é contrastada ao terreno, ao equilíbrio do exoterismo com sua organização "externa" desenvolvida. Porém, o exoterismo, segundo Dugin, não é um mal absoluto, pois tem origem espiritual. Mas a ação continuada do princípio "profano" leva à perda do sagrado para o completo declínio espiritual. 

* Tradição-Modernidade. A tradição (às vezes pré-moderna) é entendida como uma tradição qualquer, usualmente, verticalmente e hierarquicamente estruturada que possua um aspecto místico, certa qualidade espiritual e a modernidade europeia dos Novos Tempos, que ocasionou o desenvolvimento da ciência positivista racionalista, realizando consistentemente a secularização total, o nivelamento de todas as estruturas tradicionais. A modernidade traz a dessacralização, o domínio da razão pragmática sobre a intuição mística e o comércio [mercado] acima dos valores do Estado nacional. 

* Iniciação-Contra-iniciação. A iniciação é uma forma de transição do "escolhido" ao nível espiritual mais elevado por meio do ritual mágico de comunhão com o Absoluto. Este conceito foi mais desenvolvido por René Guénon, que escreveu sobre a mítica Hiperbórea como a cultura iniciática mais elevada, e acerca da civilização Védica como o repositório mais íntimo do conhecimento secreto antigo. A contra-iniciação é uma decadência espiritual associada com a civilização burguesa.






PROJETO "EURÁSIA" 

Em 1993, Dugin, junto com o Eduard Limonov, fundou o Partido Bolchevique Nacional, um projeto, concebido pelos fundadores do partido, destinado a combinar em um único corpo de ideias, o nacionalismo radical e o socialismo radical. O próprio nome do partido já esconde um paradoxo chocante. O bolchevismo não era inicialmente nacional, mas era dirigido precisamente contra o nacional, como retrógrado, reacionário para construir uma sociedade mundial em princípios completamente novos. O bolchevismo russo tornou-se nacional por causa do paradoxo e da contradição da própria vida, da prática histórica, quando a teoria pura interage com a realidade. Assim, o bolchevismo, tendo vencido na Rússia, não poderia deixar de se tornar russo, assim como o comunismo chinês difere do latino-americano ou do europeu, qualquer coisa — caindo em um ambiente estranho —, entra em interação com ele, em uma reação. Os nacional-bolcheviques clássicos (se nos referirmos principalmente aos "smenovekhovitas") eram nacionalistas russos, cuja teoria colidiu, em primeiro lugar, com a mais dura realidade da própria vitória dos comunistas, com que tiveram de lidar, e, em segundo lugar, com metamorfoses gradativamente naturais e progressivas do próprio bolchevismo russo, cuja profundidade e potência pareciam ter aumentado. O nacional-bolchevismo era o resultado esperado, condicionado pelas circunstâncias concretas da realidade política. Os nacional-bolcheviques não eram realmente bolcheviques-marxistas, mas permaneceram como parte da intelligentsia patriótica russa, a outra parte — embora permanecendo em posições de lealdade — viu na destruição do regime de Lenin-Stalin benefício para a Rússia, ainda que por meio, digamos, do apoio à Alemanha nazista. No entanto, a genealogia do Partido Bolchevique Nacional (chamados como nazibols) remonta à cooperação tática temporária entre os nazistas e a PCA (Partida Comunista da Alemanha) na década de 1920 na Alemanha. 

Lembro-me da afirmação de A. Losev: “tudo no mundo vive por contradição”. Nesse sentido, o projeto neo-eurasiano não só vive, mas também captura o espaço intelectual em um tempo acelerado. Limonov disse uma vez que estava igualmente orgulhoso dos marinheiros revolucionários e do reacionário Leontiev. A ecleticidade e paradoxalidade do nacional-bolchevismo neo-eurasiano foi desde o início reconhecido como o princípio básico do projeto, em que o amálgama ideológico de alta concentração forma uma espécie de vórtice, envolvendo com força monstruosa qualquer mente suficientemente receptiva, mas instável. Esse pluralismo também pode ser justificado de forma puramente pragmática, como a criação de algum tipo de "sopa primária" ideológica no qual deve nascer um novo sistema de valores, suficientemente dinâmico e moderno, capaz em todas as direções de criar uma alternativa real ao globalismo liberal do ocidente. Dugin acompanha de perto o desenvolvimento do pensamento sociopolítico e filosófico no Ocidente. Ele está muito interessado em qualquer oposição, seja de direita ou de esquerda, da crescente hegemonia político-cultural dos Estados Unidos. Seguindo o princípio do pluralismo, o enriquecimento mútuo elementar e a síntese, desde o início no projeto neo-eurasiano haviam sido incluídas diferentes tradições. Na base da nova ideologia antiglobalista, Dugin estabelece os eurasianos clássicos, a tradição dos velhos-crentes russos [Nota do Tradutor: No contexto da história da Igreja Ortodoxa Russa, os velhos-crentes são aqueles que se separaram da Igreja Russa Ortodoxa oficial no século XVII como um protesto contra as reformas litúrgicas introduzidas pelo Patriarca Nikon], a experiência da revolução e do nacional-socialismo na Rússia, os buscadores-de-Deus na Idade de Prata [N. do T.: Idade da Prata é um termo tradicionalmente aplicado pelos filólogos russos para a última década do século 19 e para primeiras décadas do século 20. Buscadores-de-Deus - Bogoiskatelstvo - foi um movimento filosófico e religioso entre a intelligentsia russa do final do século XIX - início do século XX. Representado por autores como - N. Berdyaev, S. Bulgakov, D. Merezhkovsky, V. Rozanov], bem como a trajetória antiliberal ocidental de Nietzsche, Julius Evola com seu "imperialismo pagão", Rene Guénon, Herman Wirth, que promove a antiga tradição germânica. O Judaísmo conservador e o Islã místico (sufismo) "continental" também são atraídos como aliados estratégicos. Claro, para criar uniformidade entre coisas diferentes, é necessário derivar algum tipo de princípio superior que subordine a si mesmo todos os elementos díspares do estrato "inferior". O que é considerado aqui como o princípio superior? 

O projeto eurasiano no nível de uma perspectiva estratégica global é baseado na ideia de uma união geopolítica Berlim-Teerã-Tóquio, a futura Eurásia é pensada como um "Império de complexidade decrescente" precedendo o Fim. Mas falando sobre a Eurásia, seja qual for o contexto e plano de nossa discussão, nós, é claro, entendemos que a Rússia deve desempenhar um papel especial aqui como uma verdadeira força espiritual e histórica, capaz de ser o centro e o único país eurasiático adequado. O messianismo russo permeia toda a história e cultura russa em suas maiores realizações: desde o Ancião Filoteu, passando pelos eslavófilos clássicos [N. do T.: movimento intelectual do século XIX] e Dostoiévski e, posteriormente até em Khlebnikov, Klyuev, Platonov, que viram na Rússia uma alternativa ao caminho sem saída do oeste. No entanto, seguindo o princípio do envolvimento mais amplo das forças de resistência à dominação mundial da civilização mercadológica sem-alma, Dugin entra em conflito com o eurasianismo clássico, que nunca perdeu contato com a fé dos Pais [da Igreja], porque a Rússia, que está inevitavelmente implícita como centro da Eurásia, é um país com uma auto-identidade espiritual claramente definida. Se a Rússia é inevitavelmente pensada como o centro da Eurásia, então o centro da Rússia, e especialmente, portanto, sua grandeza, está indubitavelmente em sua fé, que é apenas o cristianismo Ortodoxo. Dugin não vai contestar isso de forma alguma, ele se autodenomina como um cristão Ortodoxo, correligionário; mas no contexto de um novo projeto civilizacional, que se baseia em certo componente espiritual e metafísico, surge a questão relativa ao princípio superior, como mencionado acima, e a necessidade de professar a mesma fé dos Pais. Interesse por tradições diferentes, disposição para um diálogo respeitoso e capacidade de falar outros idiomas, tudo isso não pode de forma alguma ser imputado. Nosso interesse deve ser ​​apenas na lógica do próprio ensino de Dugin. 

TIPOS METAFÍSICOS 

Em uma de suas obras, "As Raízes Metafísicas das Ideologias Políticas", Dugin expõe com bastante clareza o seu conceito, num contexto que torna mais transparente o restante de suas obras estritamente temáticas, que por vezes operam com categorias e fontes muito obscuras. A premissa de seu raciocínio é, sem dúvida, uma afirmação correta de que, na base de todos os fenômenos da vida social — se deixarmos de lado o elemento das necessidades materiais humanas —, encontra-se uma visão consciente ou inconsciente do mundo místico-religioso, uma intuição puramente irracional, aquilo que Alexei Losev chama de mito em um contexto semelhante. De fato, conceitos da ciência política clássica como "direita e esquerda", "democracia e totalitarismo", "comunismo e fascismo", "progressismo e reacionarismo" não são capazes de — reduzindo tudo à ideologia, isto é, a construções racionais, exteriormente lógicas, a "emblemas" e "rótulos" — explicar muitos processos paradoxais na história. Também é verdade que a fundamentação teórica da posição social de alguém é secundária e frequentemente acidental. 

A obra identifica os três princípios aos quais, segundo Dugin, reduzem-se toda a variedade das intuições e experiências místico-religiosas e, consequentemente, os fenômenos da vida política. Ele cita as três posições: 

1. O Polo-Paraíso ou Direita Absoluta. Ela é revelada pelo próprio autor da seguinte forma: “A essência desta posição se resume à afirmação do Sujeito da natureza Divina, posicionado ao centro (no pólo, no meio), tendo um cosmos sacralizado completamente subordinado a ele (e, portanto celestial!), um cosmo-espelho, no qual nada se reflete exceto este próprio Sujeito, o sal da Terra e do Céu. Este Sujeito Divino não tem fora de si (nem acima de si, nem ao seu redor, nem abaixo de si) nenhum princípio metafísico superior com o qual seria necessário considerar espiritualmente e, portanto, é absolutamente livre e inseparável de Deus. Deus está dentro dele. (Para esta posição corresponde à máxima do Antigo Testamento confirmada por Cristo no Evangelho: "Eu disse: vocês são deuses.") Fora dele não há Deus. Então, no cosmos, na natureza, na terra há apenas o seu reflexo e, portanto, a natureza é aqui sinônimo de Paraíso, não é um obstáculo à sua Vontade, mas uma continuação de sua Vontade, uma objetificação de sua Vontade, seu ‘grande corpo’." 

Dugin acrescenta ainda que pessoas do tipo polar tomam posições radicais na história, visando devolver o cosmos a um estado paradisíaco, restaurando seu estado de "espelho", reflexão, continuação do Sujeito mencionado. A polaridade implica no caráter escatológico da cosmovisão, pois o homem não pode aceitar a imperfeição, a descentralização do mundo. A polaridade também pressupõe a possibilidade de iniciação, uma hierarquia de iniciação dos eleitos, e é necessariamente de natureza esotérica. 

2. "O segundo tipo de ideologia é a do "Criador-Criação", que também pode ser chamada de puramente conservadora. Ela corresponde ao lado exotérico, ou seja, a parte externa de um ensinamento religioso. A forma mais pura dessa ideologia pertence às organizações eclesiásticas de estilo católicas ou do tipo de Ummah islâmica (principalmente sunita). Geralmente, os conceitos de "teocracia" ou “clericalismo” são aplicados com mais precisão para eles. Também é possível definir este tipo como a cosmovisão do “Paraíso Perdido”. Ao contrário do princípio polo-paraíso, este tipo de cosmovisão coloca o sujeito não no centro do mundo (o pólo), mas em sua periferia; o próprio mundo é identificado aqui não com o paraíso, mas com a Criação, separando o sujeito do Criador. Naturalmente, este sujeito periférico, o indivíduo após a queda, após a expulsão do Paraíso, não é mais reconhecido como o Mestre, para quem o cosmos está completamente subordinado (como extensão de sua vontade). Ele se torna um exilado, separado do Criador pela Criação, que agora se torna uma categoria ambígua, seja porque, por um lado, esta Criação esconde o Criador (aspecto negativo), e por outro, ela carrega o selo do Criador, o que significa que indiretamente o revela (aspecto positivo). A partir deste postulado, começa o desenvolvimento do pensamento religioso, que de diversas maneiras pode ir desde o puro apofatismo (negação da possibilidade de conhecer o Criador através da Criação) até ao puro catafatismo (afirmando a possibilidade de conhecer o Criador na Criação até sua identificação pelos "panteístas")”. 

Deve-se acrescentar que Dugin aponta a irreconciliabilidade destas duas posições, acrescentando que o conteúdo essencial da história é uma luta entre elas, na qual cada um dos lados no campo político às vezes faz uma aliança estratégica com o terceiro princípio: 

3. Esquerda Absoluta, "Matéria Mágica". Essa posição em sua forma pura foi realizada no materialismo dos Novos Tempos [N. do T.: período da história situado entre o séc. XVI e início do séc. XX], que negou deliberadamente qualquer princípio espiritual e reduziu a natureza humana à fisiologia. Nesta posição, o homem é pensado como parte do cosmos. A teoria da evolução é a expressão mais precisa da cosmovisão da Esquerda Absoluta. Qualquer sociedade de consumo e desintegração da matéria está associada à "Matéria Mágica", onde o corpóreo prevalece sobre o espiritual, como na sociedade moderna industrial do Ocidente e também no socialismo norte-coreano do tipo Juche. Dugin também considera Teilhard de Chardin e Nikolai Fedorov como portadores da ideologia da "Matéria Mágica". 

Deve-se observar que Dugin associa a posição polar com gnose, mesmo no sentido histórico específico deste termo, no sentido de movimentos heréticos dentro do cristianismo, e o exoterismo com a fé, pois o exotérico separado do Absoluto faz um esforço de romper para chegar até o Criador. O esoterista, por outro lado, já está no estado de "Deus em mim" e não precisa de fé; portanto, é um portador de conhecimento diretamente recebido. 

Dugin em seu livro "Metafísica da Boa Nova", bem como em outras obras, correlaciona a posição polar esotérica no Cristianismo com a Ortodoxia, e a posição exotérica com o Catolicismo Romano. 

Entretanto, é óbvio que a oposição entre a Gnose e a fé (se elas se opõem), a ideia de um Paraíso perdido, o apofatismo como uma característica fundamental da teologia, todos esses sinais nos obrigam — falando do Centro Absoluto — a entender a ortodoxia cristã ortodoxo, ou seja, o Cristianismo Ortodoxo como foi proclamada nos escritos dos Santos Pais e nos decretos dos concílios. Mas aqui, talvez, alguma digressão seja necessária. 

Os gnósticos estavam extasiados, praticando a contemplação emocional-sensorial, procurando preencher aquela lacuna entre Criador e criação sobre a qual Dugin escreve, e que, de acordo com os ensinamentos dos Pais, existe por causa do estado decaído do homem. Os Pais ensinaram que o homem é derrotado em seu próprio ser, em suas próprias faculdades do sentido e mente. Portanto, consideraram como uma qualidade necessária do asceta a capacidade de perceber criticamente os fenômenos da vida espiritual. Foi a ausência do pessimismo dos Santos Pais em relação ao homem que permitiu aos gnósticos cultivar em si mesmos, sem a devida sobriedade, uma agitação emocional e um arrebatamento de seu intelecto e imaginação sensual. Tudo isso combinado com a identificação da matéria com o mal, uma característica do paganismo helênico. Orígenes, em suas homilias sobre o "Cântico dos Cânticos", escreveu que existe um amor terreno e um amor celestial: o primeiro do diabo, o segundo de Deus. Esta ideia foi posteriormente desenvolvida com radicalismo extremo nos movimentos gnósticos, o que acabou levando à negação do casamento. 

A Igreja tem lutado constantemente contra o desejo de denegrir o lado físico do casamento, e tem defendido a pureza do leito conjugal contra os hereges. Isto se repetiu de século em século, com alguma regularidade em diferentes partes do mundo cristão, e foi repetido que a ideia da natureza "diabólica" da matéria e, portanto, do sagrado matrimônio, levou à prática de rituais de orgia, de devassidão ("deleite" para os sectários russos). A "experiência erótica radical"(!!), à qual Dugin faz referência em um de seus artigos sobre a Idade da Prata (em "O tom marrom-avermelhado da Idade da Prata", 1997), no contexto de sua aproximação com o radicalismo místico é visto de forma bastante natural. 

O interesse por sectários, por formas extremas de escapismo escatológico, é uma característica típica de Dugin. Não é por acaso que ele nota o mesmo interesse em Lenin, que, segundo Dugin, se dirigiu a Bonch-Bruyevich para ler os manuscritos sectários. Este interesse pelos "saltadores" data da época em que Dugin e Limonov ainda eram co-fundadores do Partido Nacional Bolchevique (NBP). Limonov zombou: por que um nacional-bolchevique deveria necessariamente ler um livro (o partido tinha uma lista de livros obrigatórios) sobre a influência do sectarismo na literatura russa? Quando, por sugestão de Dugin, os membros do partido começaram a costurar longas camisas pretas "para se parecerem com os velhos-crentes", Limonov deu de ombros: para que um revolucionário precisa de tudo isso? Para Dugin, porém, isto não foi acidental: Dugin pensava na revolução como uma forma de ativismo místico-religioso, uma projeção social da teologia gnóstica. É desnecessário dizer que somente o fermento orgíaco gnóstico, a religiosidade sensível-histérica, é capaz de inspirar uma revolução, ou seja, a mesma prática orgíaca, projetada para o domínio político. A propósito, a revolução também foi uma tentativa de destruir a instituição familiar. 

A questão do casamento e da castidade sempre esteve associada à defesa da dignidade da criação de Deus, enquanto os gnósticos, em nome de um espírito abstrato, blasfemaram da criação, identificando a natureza, a matéria com o mal, em que a Igreja viu nisso um retorno ao dualismo pagão, incapaz de compreender que "o Verbo se fez carne" e que "todas as coisas são puras". Dugin, é claro, dominou bastante a dialética da economia a partir dos livros, mas, simpatizando com os gnósticos, admite que o "radicalismo polar" e aversão à matéria os levaram à ideia de um "criador maligno", o Demiurgo, o que significa a rejeição do Deus bíblico de Israel. 

Também é necessário dizer que a fé (se for oposta ao conhecimento) é um caminho direto e radical para Deus. A fé, é claro, requer esforço, mas somente através desse esforço o homem supera sua limitação (estado do Exilado). É por isso que é um podvig [N. do T.: feito ascético], além disso, foi a fé que o Senhor imputou a Abraão como justiça. A gnose, se entendida como algo que é o oposto da fé, não é capaz de avançar, porque é mediada no caminho para o Criador e sem a ajuda da fé leva a um beco sem saída. Na Ortodoxia, uma síntese de fé e conhecimento é concretizada (Losev a chama de gnose), porém, a fé é geralmente percebida como um esforço da vontade, como um avanço que precede o conhecimento de Deus. Para adorar o Salvador em seu nascimento vieram primeiro os pastores (o caminho da fé), seguindo o chamado direto do Anjo, e depois os Magos (o caminho do conhecimento), cujo caminho era longo, conduzidos pelo deserto, e não foi o Anjo anunciando a boa nova, mas o cálculo e o estudo dos livros que os induziram a seguir a estrela de Belém. Uma fé que começa do zero, como uma folha em branco, um esforço que atravessa a criação até o invisível é o começo das virtudes. Se Dugin opõe este tipo de fé à gnose do "Sujeito Absoluto", significa que ele define a Ortodoxia como o "Centro Absoluto" ou ele interpreta a própria Ortodoxia de uma forma contrária à própria Igreja. (A referência ao palamismo não conta aqui: a possibilidade de deificação é possível somente por meio da fé correta. E não é possível conciliar a contemplação dos gnósticos e a prática extática dos sectários com o hesicasmo, pela semelhança dos epítetos utilizados. Satanás, como sabemos, veste-se com roupas de luz). 

É impossível combinar a fé de Abraão com a gnose dos intelectuais helênicos do passado, os quais deram início ao surgimento das heresias gnósticas. Abraão não teve nenhuma "iniciação", nem nenhuma "soma de conhecimento sagrado". Ele era uma folha em branco, uma membrana sensível, capaz de reconhecer o sopro do Espírito de Deus, por isso, ele conversou sem esforço com Deus, enquanto Jacó lutou com Ele. 

Os gnósticos estavam todos em contemplação de imagens poéticas inspiradas por variações sobre o tema da cosmogonia pagã dualista, tudo em um mundo de especulação escatológica e fantasia, tentando constantemente sintetizar o cristianismo e a sabedoria pagã. A Ortodoxia expressou sua essência na declaração de um dos antigos ascetas: "A leitura de tais ensinamentos sobre Deus secará suas lágrimas."

As inclinações gnósticas de Dugin não podem deixar de levantar a questão de sua falta de fé, bem como sua oposição óbvia à tradição da Igreja e à estrutura canônica, a qual ele define como "exoterismo". E, claro, desde o início, é uma falta de tato imperdoável, se não pior, tratar de assuntos sagrados em termos inadequados. Nisso, se apenas Dugin é responsável pelo que escreveu, poderíamos parar, mas talvez possamos ir mais longe. 

SUJEITO POLAR 

Agora, voltemos ao primeiro tipo metafísico deduzido por Dugin. É bastante óbvio que o próprio Dugin se identifica plenamente com a posição polar, que pressupõe o Sujeito da natureza Divina. Que tipo de sujeito é esse? Seu relacionamento com Deus é muito ambíguo. “Não há Deus fora dele”, como escreve Dugin, mas claramente este não é o próprio Deus. Quando o Senhor se dirigiu a Moisés, chamou a si mesmo: “Eu sou o Deus de Abraão, Isaque, Jacó, o Deus que criou o céu e a terra”. Aqui não há ambiguidade. Portanto, Deus é uma pessoa. Ele é livre. Ele é a Vontade Suprema e tudo o que existe é relativo a Ele. Ele é o primordial. Ele permanece em Si Mesmo, comandando o mundo, embora rejeitando a coerção. 

A personalidade, por outro lado, é sempre igual e auto-idêntica. A frase de Dugin acerca do Sujeito "não há Deus fora Dele" significa que ou Deus não é superior ao Sujeito, porque Deus como pessoa, permanecendo em Si mesmo, tem pelo menos autonomia, ou seja, não sendo sendo referido ao Sujeito, ele deve permanecer em Sua essência fora do Sujeito. Como o Sujeito não lhe oferece tal possibilidade segue-se que, segundo Dugin, o Sujeito é superior a Deus, ou que o Sujeito abarca todo o Deus, ou seja, ou é superior a Deus ou personifica Deus. Isto significa que Deus não é uma pessoa, mas uma massa passiva que precisa ser personificada e moldada, ou uma ideia abstrata concretizada no Sujeito. 

O Deus bíblico é vivo e real, Ele é uma pessoa e não precisa de nenhuma personificação, Ele comanda os trovões e é capaz de incinerar qualquer pessoa com o sopro de Sua boca. Tal era o Deus conhecido por Abraão, Isaac, Jacó, os profetas e apóstolos. 

Deus, manifestando-se no mundo visível e sensorial, age livremente, exercendo sem restrições a Sua vontade. No entanto, a posição polar de Dugin sugere que o próprio sujeito polar ("não há nada acima dele") determina a posição de Deus em relação a si mesmo, "Deus está dentro dele", "Não há Deus fora dele". Porque de outra forma a vontade de Deus seria primária, o que significa que haveria algo acima do Sujeito, a vontade de Deus, colocando-o (digamos) em uma posição “dentro de Deus”. Mas o Sujeito pretende ser precisamente o Centro Absoluto, o pólo do mundo, e não o Exilado, esperando que Deus o atraia para Si ou para dentro de Si Mesmo. Assim, Deus no conceito de Dugin é passivo e representa uma espécie de condicionalidade, uma abstração, não uma pessoa, mas uma qualidade, um acréscimo ao Sujeito.

Agora deixemos Dugin definir o "Sujeito Divino Absoluto" quem é ou o que é, e onde você pode aprender acerca dele. Em particular, "na tradição hermética do Ocidente medieval, o símbolo central era o 'Rei alquímico', 'Enxofre Vermelho', e na tradição hindu há toda uma escola de prática de iniciação e realização espiritual chamada 'raja ioga', 'ioga real'. Além disso, é o termo 'Rei', 'Monarca', 'Csar' que é o mais comum na maioria das escolas esotéricas, tanto entre os místicos cristãos ('Rei Celestial') quanto por muçulmanos (especialmente entre os xiitas), lamaístas, judeus gnósticos (cabalistas), etc." O autor nos leva mais longe, até o presente: "... na Alemanha nos anos 10-20, os esoteristas das organizações secretas herméticas com especificidade racial, herdeiros dos Templários e Gibelinos (portadores da ideologia do polo-paraíso na Idade Média) participaram ativamente da formação do nacional-socialismo". 

O princípio polar-monárquico é assim realizado no conceito xiita do Imã Oculto (é uma linha contínua da monarquia sagrada) e no Führerprinzip nazista. Ele encontra algo semelhante entre os Rosacruzes. 

Note que Dugin insiste na unidade essencial dos ensinamentos por ele citados, os quais carregam, em sua opinião, a mesma ideia: ele fala de várias "escolas esotéricas", isto é, os portadores de "conhecimentos secretos". O que é comum aqui (o que Dugin chama de "polaridade") é, pode-se dizer, uma tensão mística particular, o pathos de transformar o mundo de acordo com o modelo sagrado e receber (seguindo Guénon) certas energias de natureza supra-humana e sobrenaturais por meio de iniciação. Portanto, a fé e a divindade em si não são importantes nestas tradições; o essencial é passar por esta ou aquela iniciação em sua totalidade e suas manifestações mais elevadas que possuem o conhecimento sagrado. O ditado de Nietzsche vem à mente involuntariamente: "o super-homem pode permitir-se ter crenças". Isto é, o mais importante é ser sobre-humano, enquanto a própria fé e os dogmas não são importantes.

Desnecessário dizer que as simples conclusões em relação à atitude do Sujeito Polar com Deus, agora que sabemos pelas palavras do próprio Dúgin o que e a quem ele se refere por sujeito polar, nos levam à definição de Deus não como uma pessoa, que na história age como uma pessoa, com sua própria face; mas como uma massa passiva transcendental e sem face, que se manifesta de diversas formas, sob diferentes máscaras. O que é primordial aqui, o concreto, ativo, mais real, e apenas um manifesto, é o Sujeito, que, por magia (iniciação, mistério), subordina Deus a si mesmo através de sua própria vontade. Chega-se à conclusão de que os ensinamentos de Dugin não são mais do que magia pagã. 

Um Deus pessoal com quem se pode falar (Moisés, Abraão), fazer uma aliança, lutar (Jacó), fugir Dele (Jonas), ficar indignado (Antão, o Grande) um Deus assim, ou seja, um Deus cristão, não pode existir aqui.

MODERNO PRÉ-MODERNO 

Assim, Dugin identifica todas as doutrinas, crenças ("escolas esotéricas") mencionadas de acordo com o princípio de um esquema comum, ou melhor, de acordo com o princípio de uma tipologia mental comum dos participantes das tradições (pathos escatológico, extremismo místico, prática extática). 

Identificar religiões completamente diferentes, ou construir correspondências entre elas em certos elementos é, a propósito, um traço característico da Modernidade, em relação à qual Dugin parece estar em forte oposição. É necessário romper radicalmente com a Idade Média, com a Revelação, para abordar essas coisas tão misteriosas sem tremor interior com as quais Dugin simplesmente faz malabarismos. É impressionante sua capacidade de encontrar "correspondências" em diferentes religiões, o que também exige a superação de uma determinada barreira. Para começar a trabalhar na síntese das religiões, é necessário fazer algo semelhante ao que Descartes fez em sua filosofia - colocar o "eu" operacional no centro do universo, dividir qualquer experiência religiosa em elementos abstratos (qualidades, funções) e corajosamente começar a manipulá-los. Ou você precisa ser o pagão mais ingênuo e imediato, como o Zyrian em Leskov, para quem "Nicola ao lado, e o sol ao lado, e a lua ao lado!". 

E assim, como Dugin ensina seguindo Guénon, o conhecimento sagrado secreto aparece em diversas formas históricas. Se concordamos com esta proposição, então tomamos o próprio conteúdo como a forma, e a forma, tipologia cultural e psicológica, e a construção esquemática (e tudo isso é completamente condicional) como o conteúdo. Assim, ele define os cismáticos russos que não aceitaram as reformas de Nikon como "seção polar", juntamente com os xiitas, alquimistas e nacional-socialistas. Então, ao que parece, você pode ler Avvakum e não entender nada. [N. do T.: Avvakum Petrov (1620/21 - 1682) foi um russo que liderou a oposição às reformas do Patriarca Nikon da Igreja Ortodoxa Russa. Considerado o principal líder dos primeiros velhos-crentes] Para os velhos-crentes russos, o conteúdo principal de sua fé não era a polaridade, mas Cristo, a Igreja de Cristo. Avvakum e outros líderes do movimento dos velhos-crentes defendiam a preservação de todo o antigo sistema eclesiástico, a tradição sagrada, tal a maneira como eles entendiam essa preservação. A fé deles era a fé dos sete concílios ecumênicos e dos Santos Padres que Dugin chamou de "Centro Absoluto". Sim, a estrada dos velhos-crentes leva à fuga, aos bespopovtsy [N. do T.: velhos-crentes que rejeitam o sacerdócio], às florestas. Na realidade, quanto mais adiante os velhos crentes foram, sob a força da aplicação e pensamento não-ortodoxo, a ainda ortodoxa escatologia e cânones se afastaram da verdadeira eclesialidade, mais próximos estavam ao ideal de Dugin. E, claro, sempre que Avvakum visse algo espiritualmente próximo a qualquer forma de Islã, ele o rejeitaria com a mesma paixão que intitulou a Igreja Católica de "a prostituta de Roma". Avvakum acreditava em Cristo, e na fé, como o amor, significa a insubstituibilidade do Único Tu. Para Dugin, o relacionamento mais íntimo, não abstrato-intelectual, mas o relacionamento pessoal do homem com a Divindade, com Cristo, pessoalmente com o Deus de Abraão é apenas uma forma historicamente condicionada, enquanto o absoluto é um esquema perfeito, onde o sujeito está no centro e o objeto ("espaço sacralizado") está nos lados, e nenhum intermediário. E o Sujeito, como já aprendemos, pode ser tanto o Imã Oculto (monarca sagrado dos xiitas) e o Fuhrer do povo alemão e o Enxofre Vermelho. Duvido que um xiita aceitasse facilmente a substituição do imã Ali que ele reverencia com qualquer analogia do hinduísmo. Se assim for, ele não é um seguidor de Abraão. 

E se você possui uma tradição, então você não reduzirá sua tradição a um esquema, pois ela é concreta e absoluta para você. Na Índia, há belas estátuas de divindades hindus com seus genitais arrancados. Isto foi feito por pessoas de tradição muçulmana. Eu dou este exemplo sem nenhum sarcasmo. Esta é a reação normal de um muçulmano à impureza de um ídolo. Os budistas consideram Krishna como o rei dos demônios. Para unir o Islã e o Hinduísmo e outras tradições no conceito de "pré-modernidade" é preciso tomar uma posição modernista. Ninguém, exceto os racionalistas e panteístas, considera possível fazer analogias entre sua religião e uma religião completamente diferente de acordo com o princípio da polaridade, a posição absoluta do sujeito reinante, ou seja, de acordo com o princípio do esquema geral. Porque o principal para eles não é a centralidade, mas quem está no centro. E para Dugin, o que importa é a centralidade ("polaridade") em si mesma, extraída de tradições concretas, ou seja, o esquema. Abstraindo-se da compreensão íntima, pessoal e concreta do divino, Dugin reduz tudo a um esquema. Para um cristão, a centralidade de Cristo é uma qualidade de Cristo, enquanto para Dugin, Cristo é uma das qualidades ou manifestações da centralidade, uma versão possível da centralidade. Para raciocinar desta forma, é preciso percorrer e aceitar a escola da modernidade para se constituir como juiz de todas as religiões, sem aceitar nenhuma; isto é precisamente característico da filosofia Iluminista (Lessing e outros). Dugin, ao que parece, é a continuação desta tradição metodológica. 

A modernidade surgiu com a queda do escolasticismo, em geral com a crise do barlaamismo [N. do T.: referência a Barlãao, monge italiano que se opôs ao hesicasmo], quando tentaram substituir a ausência de uma experiência viva e plena de fé pela gnose racional. René Guénon também foi um produto da modernidade. Para Guénon, sua conversão ao Islã não foi a mesma que a de Maomé, quando em uma visão um anjo começou a estrangulá-lo com um pergaminho. Guénon não vem de uma experiência pessoal, não de um encontro pessoal, é um ato racionalmente pensado derivado de sua filosofia puramente europeia. Essa ação intelectual, quase de vanguarda, foi dirigida não contra o Divino, mas contra a Europa profana de sua época. O Islã pode ter sido muito atraente para Guénon por seu charme estético, mas, em geral, a fuga para o exótico Oriente é uma característica clássica do romantismo europeu. O fato de Guénon não ter se tornado muçulmano prova que ele continuou seus vários estudos em diversas tradições, incluindo o hinduísmo. Toda a sua cosmogonia e escatologia são baseadas no cinclos do hinduísmo. Ele permaneceu um filósofo racionalista europeu em oposição à modernidade, ou seja, um pós-moderno e não um pré-moderno. 

E, se uma pessoa professa o Alcorão, ou o Tao, ou o Zen, ou o Talmud, ou quando se refere a Lenin e a Marx, isso é compreensível, significa que é muçulmano, ou judeu, ou budista, ou socialista. Mas quando ele cita palavras de todas as fontes, é óbvio que ele coloca acima de tudo apenas seu próprio intelecto, ao qual ele atribui a possibilidade de finalmente sintetizar e explicar o significado e a posição de todas as escrituras e ensinamentos, alinhar Jesus, e Maomé, e Avakum, e Lênin, e Nietzsche. Nós ortodoxos temos o Evangelho no trono, Dugin tem o Evangelho e o Nomocano na prateleira, juntamente com o Corão, os Vedas, Nietzsche, Guénon, e teólogos judeus.

IGREJA E TRADIÇÃO 

Parece que tudo deveria estar claro a respeito de Dugin. Ele é um gnóstico, um pagão, um pós-modernista. Entretanto, ele aparece no Concílio da Igreja Ortodoxa Russa da Hierarquia Belokrinitsa (Moscou, 1998) [N. do. T.: velhos-crentes] e faz um discurso que começa assim: "Reverendos bispos, veneráveis padres e irmãos"! Ele se dirige a uma alta assembleia religiosa falando sobre a necessidade de enfrentar o perigo espiritual e político que vem do Ocidente, de se voltar para a fé dos Pais: "E diante desta nova e terrível ameaça, a ameaça da perda final por nosso povo, nossa sociedade, nosso Estado, nossa Fé dos laços com o grande passado, com a missão que Deus confiou a nossos antepassados e a nós, seus descendentes diretos por sangue e Fé, os cristãos velho-ortodoxos, os bons e corajosos guardiões das antigas alianças, não podem ficar de lado. O inimigo que deturpou nossos ritos, que enviou invasores impuros como Paisius Ligarides ou Arsenius, o grego, que trouxe ao trono do perverso Pedro ..." e assim por diante, e ainda mais: “o inimigo da raça humana ... toma cada vez mais novas fronteiras. Mas os portões da Igreja de Cristo continuam invencíveis, incapazes de quebrar e confundir o ‘pequeno rebanho’. E enquanto houver alguma oportunidade de professar a verdade e a salvação da Velha-Fé Ortodoxa, devemos fazê-lo", e muitas outras belas palavras. E como tudo isso pode estar vinculado ao princípio integrador do neo-eurasianismo (princípio polar universal), com René Guénon, o gnosticismo, e as escolas esotéricas? 

Em seu livro, Metafísica da Boa Nova, Dugin também insere a Ortodoxia no esquema de uma linha contínua de iniciação, que René Guénon deriva da Hiperbórea e que é realizada em várias formas históricas. Assim, com uma impressionante falta de tato, Dugin começa a se intrometer no campo dos sacramentos e escreve suas explicações em termos de certa mitologia universal: “Entre os sacramentos ortodoxos, o ritual iniciático dos ‘Mistérios Menores’ corresponde ao rito do batismo... O batismo tem todos os atributos da iniciação. Ao realizar o rito, o sacerdote proclama liturgicamente que neste momento sacramental a pessoa batizada ‘é sepultada e crucificado com Cristo’, ou seja, passa por aquela morte iniciática, que é a primeira fase dos ‘Mistérios Menores’. Isto corresponde à tripla imersão do convertido na fonte. Este é o ‘batismo com água’ ou a passagem de um ser no nascimento e morte em três mundos do Universo criado - em dois mundos das ‘Águas Baixas’ e no mundo das ‘Águas Superiores’”. 

Se na primeira frase Dugin não vê blasfêmia, então não há nada a ser falado. Esta última é completamente uma invenção. Trindade na Igreja significa devoção à Santíssima Trindade. Não é possível aprofundar mais o significado de trindade, a trindade simbolicamente, e Dugin tenta fazer isso se referindo à cosmologia pagã. Em geral, equiparar o sacramento do Batismo a algum tipo de "mistério" pode ser qualificado como blasfêmia na boca de um cristão. Ver, seguindo os críticos mais vulgares do cristianismo, uma analogia com os sacramentos em ritos pagãos selvagens está bem dentro do espírito da modernidade. Toda tribo na Oceania ou na África tem iniciações. Obviamente a cultura negra não é a "tradição frísia (ariana)" que Dugin promove seguindo Hermann Wirth, mas o batismo não é uma tradição ariana, nem é uma tradição semítica. Foi instituído pelo Filho Único de Deus. Cristo Jesus nasceu e morreu uma vez sob Pôncio Pilatos, e foi batizado uma única vez, santificando a natureza das águas para o batismo dos fiéis. Um Cristo, uma Igreja, um batismo. Não pode haver paralelos, correspondências e analogias em ascendente e descendente. O mundo não tem outro Salvador, não há outro banho de vida. O pensamento de Dugin com as suas analogias, "correspondências", paralelos no contexto da ciclologia guenoniana não é apenas não cristão, não é apenas anticristão, mas também é psicologicamente difícil em extremo retornar ao Evangelho para aqueles que estão acostumados a pensar à maneira de Dugin. Neste contexto, pode-se recordar o julgamento do eurasianismo clássico, do príncipe Nikolai Trubetskoy sobre a Índia: “... do ponto de vista cristão, a Índia é o baluarte mais forte de Satanás". Explicando seu pensamento ele escreve que em virtude do ensinamento assimilado sobre avatares (encarnações) de Vishnu "... o conceito de que o Filho de Deus veio em carne é imediatamente introduzido por qualquer hindu em uma série de "outras" encarnações do "deus" Vishnu [gostaríamos de acrescentar de nós mesmos: em uma série de outras "entidades polares” E.Z.]..., ou no ciclo natural de transmigração das almas, e, assim, a encarnação do Filho de Deus deixa imediatamente de ser aquele ato irrepetível, único, de significado cósmico, que é para o cristão." 

É surpreendente a imprudência de Dugin, sem qualquer reverência ao sagrado, apesar de toda sua etiqueta verbal e das fórmulas piedosas cuidadosamente escolhidas. No livro, "Metafísica da Boa Nova", ele se compromete a explicar toda a doutrina ortodoxa, invadindo áreas tão misteriosas, onde os Santos Pais só entrariam se fossem forçados a fazê-lo. No livro "Mistérios da Eurásia", Dugin interpreta a Ortodoxia em termos de esoterismo, utilizando o aparato de Guénon. Um cristão buscaria uma explicação de seus ensinamentos, de sua fé, de um latino convertido ao maometanismo, que escreve nas categorias do hinduísmo? E como a Avvakum trataria Guénon? E em "Mistérios da Eurásia" afirma-se que o xiismo e a Ortodoxia são esoterismo, e o sunismo e o Catolicismo Romano são exoterismo. Como podemos ver, os pares dualistas que citamos (como Esoterismo / Exoterismo, etc.) são a mais alta camada da realidade para Dugin, ele simplesmente nos hipnotiza com eles, tudo deve de alguma forma estar associado a este esquema dualista, encontrar um lugar nele. Para ele, o Evangelho na história é apenas um fragmento, que está inserido em uma cadeia iniciática, cujo início está em algum lugar em Hiperbórea. E em outras obras ele não tem vergonha de explicar o significado do tantrismo (prática mágica do ritual sexual no hinduísmo) aos "profanos", para que eles não pensem em distorcê-lo, entendê-lo "profanamente", não como é descrito por Julius Evola.

É interessante fazer a pergunta: como surgiu um livro tão venenoso como "A metafísica da Boa Nova"? É muito simples. É impossível contornar o tema da Ortodoxia. Dugin não negaria a Ortodoxia, porque simplesmente não pode, por razões internas. Sua piedade pela fé dos Pais, devemos presumir, é sincera. Mas é necessário avaliá-la através do prisma de Guénon, o professor que "nos mostrou o caminho em Kali Yuga", como ele pomposamente o descreve: "Guénon, então, nos dá as chaves mais importantes para esse tesouro, a respeito do qual os próprios representantes autorizados da Tradição, mesmo aqueles que seguem estritamente suas letras, geralmente desconhecem". Em outras palavras, Guénon vai agora nos explicar o que Santo Inácio Brianchaninov e São João de Kronstadt não entenderam na Ortodoxia! Além disso: "É especialmente importante para nós descobrir este segredo, tesouro do Espírito vivo, da Presença viva no seio dessas duas religiões que são dominantes em nosso Estado, a Igreja Cristã e a Ummah Islâmica". Não há mais nada a comentar aqui: a ideia é tão antiga quanto o mundo, e a resposta cristã a ela também pode ser encontrada na antiguidade. São Teodósio (século XII) escreveu em seu Testamento: "Quem enaltece a fé alheia é como blasfemar a sua própria fé. Se alguém enaltece a sua e a de outro, ele tem dupla crença e está muito próximo da heresia". É o que Teodósio escreveu sobre o latinismo, e o que falar do maometanismo! E o mesmo Teodósio: "Se o oponente te diz: a tua fé e a nossa são de Deus; então tu, filho, responde assim: Krivover (Crente torto)! Ou você acha que Deus também tem duas crenças?"

Finalmente, chegamos ao "Edinoverie" de Dugin. Seguindo nossas palavras citadas, ele segue: “O cristianismo Ortodoxo, que, ao contrário do Catolicismo, nunca perdeu sua dimensão interior completamente, será a escolha lógica na esfera da Religião para os seguidores russos de Guénon(!). E deve ser especialmente salientado que muitas vezes em suas obras Guénon enfatizou a necessidade (!) de pertencer a uma tradição viva e autêntica, sem a qual não é possível nem a realização esotérica nem a iniciação autêntica.” 

Constata-se que o eurasiano vem à Igreja Ortodoxa seguindo as instruções de Guénon, implementando o "projeto tradicionalista" nas "condições locais"! E preste atenção à frase: "escolha lógica na esfera da religião". Consideremos os Evangelhos e os Atos dos Apóstolos: ali a conversão a Cristo nunca foi uma "escolha lógica"! Foi sempre um Encontro. 

E, finalmente, para definitivamente rejeitar essas inclinações neo-eurasianas perigosas, é necessário entender que, do ponto de vista do Cristianismo, a tradição em si não é um valor absoluto. E o cristianismo não é uma tradição, é um encontro com o Deus vivo, com Cristo pessoalmente. O próprio Salvador diz: Eu sou o caminho, a verdade e a vida. No entanto, Dugin não se oporá, mas apenas assentirá com a cabeça e dirá: "Os gnósticos judeus têm um conceito semelhante a este...", ou: "os xiitas iranianos têm um conceito semelhante". É assim que segue: "E Nicola ao lado, e o sol ao lado..."

Se você se familiarizar com o conteúdo do site do movimento "Arctogaia", que é liderado por Dugin, e clicar nos links, então a primeira e nada enganosa impressão é que você está em algum tipo de templo pagão: máscaras, cetros, suásticas, pentagramas, estátuas bizarras e horríveis, homem-bestas empalhados. Há uma cópia virtual do mausoléu de Lenin, um modelo do "Nautilus" de Júlio-Verne (interpretado como um símbolo fálico), mapas alquímicos, frascos com homúnculos, esquemas cabalísticos. Pessoas com cabeça de pássaro, ou mesmo sem cabeça. Os textos são bastante consistentes. Tudo isso ao mesmo tempo se assemelha a uma loja maçônica, a um kunstkamera* e um teatro de anatomia. E o mestre de tudo isso atua nos Concílios da Igreja!

* [N. do T: Museu na Rússia criado por Pedro o Grande. Possui uma coleção única de antiguidades que revela a história e a vida de muitas nações. Mas este museu é conhecido por muitos por sua coleção "especial" de raridades e anomalias anatômicas.

A partir dos escritos sobre a vida dos santos, nós sabemos que efeito uma palavra do Evangelho ouvida por acaso pode ter sobre uma pessoa, que efeito transformador colossal ela pode produzir, quando para uma pessoa nada mais existe a não ser Cristo. Dugin encontra outro uso para a palavra do Evangelho. Se alguém lê Dugin acriticamente, uma pessoa que é fascinada por ele — ao contrário do ateu, judeu, muçulmano, que ainda não descobriu o Evangelho —, já está imune à sua palavra: tudo o que existe de mais íntimo e misterioso, que é incompreensível até para os Anjos, Dugin espalha como pérolas preciosas na lama.

A situação atual na Rússia requer precisão espiritual absoluta, caso contrário, o edifício, não mais um estado, mas um único povo, o sujeito da história, entrará em colapso. Usando a comparação de Chesterton, podemos dizer que a torre da ideia nacional deve ficar apenas em um ângulos reto, não se desviando nem mesmo uma fração de grau. O movimento patriótico, tão heterogêneo, já reconquistou a própria ideia russa, o direito à sua existência, agora é a hora de construir. É possível tratar Dugin simplesmente como um escritor talentoso e interessante com um olhar profundo, fluente em uma variedade de assuntos, um analista, um especialista. Mas existe uma concepção assim: "território canônico". Além do aspecto geográfico, pode significar também aspecto histórico. Toda a história da Rússia, suas tradições sagradas são território canônico da Igreja Ortodoxa Russa. Não se trata de uma questão de poder e privilégios administrativos, mas de um pertencimento essencial. Se Dugin diz palavras-chave como Santa Rússia, Terceira Roma, Soberana e Restringente (Katechon), então, pronunciando estas palavras como uma senha militar, ele entra em terreno da Igreja Russa, seu território canônico. Levantando bandeiras, nas quais estão escritos os nomes, que só para os ortodoxos têm um significado sagrado, pelo menos, supra-histórico, é como se ele estivesse dizendo, e ele realmente está dizendo: “Eu sou o dono!” 

Este artigo não faria sentido se Dugin não tivesse se comprometido a "pastorear o povo", apelando para sua memória histórica e sagrada, para a fé dos Pais. Se ele se limitasse à geopolítica e à análise histórica, um estudo científico das tradições, então nossas acusações também seriam irrelevantes, mas Dugin invade o campo das noções místicas e muito audaciosamente, como um Mestre, atribui "retidão" e "injustiça" no passado e indica os caminhos "certos" no futuro. É por isso que, antes de "pastorear" a Santa Rússia, o próprio Dugin deve submeter-se ao julgamento pela fé dos Pais.

Eduard Zibnitsky

21 de dezembro de 2001



Tradução: Anton Sannikov


* * * 

Nota do blog: como complemento, acrescento abaixo um texto que revela as opiniões de A. Dugin em relação aos Velhos-Crentes e a Igreja Ortodoxa Russa. 
[Fonte: https://alyulka.livejournal.com/119427.html]

Em uma entrevista recente, o diácono Andrei Kuraev disse a respeito de Dugin: "Este é um inimigo mais perigoso do que qualquer Blavatsky (porque é mais inteligente e mais instruído). Assim como a Blavatsky, esta é uma tentativa de digerir a Ortodoxia no Kabbalismo." Conhecendo a avaliação de Kuraev sobre o significado da vida e do trabalho de Blavatsky, deve-se admitir que o que foi dito pelo Pe. André é um forte elogio a qualquer inimigo da Igreja de Cristo. E Dugin é, sem dúvida, um inimigo consciente da Igreja, inteligente, ativo e traiçoeiro. Isto deve ser demonstrado através dos textos de Dugin, mas no presente trabalho, isto é inadequado devido à sua extrema abundância. Uma revisão séria dos ensinamentos de Dugin exigiria muito tempo e muito espaço. Felizmente, uma análise parcial já foi feita [44], portanto, espero que com a ajuda de Deus os resultados do estudo correspondente logo se tornem de domínio público. No final do artigo, preparei uma surpresa especial para o leitor, que teve a força e a tenacidade de lê-lo até o fim.

[...] Vejamos que A.G. Dugin pensa na Igreja da qual ele é membro. Vejamos qual é, aos seus olhos, a definição e o significado do Edinoverie [Nota do tradutor: Edinoverie é um acordo entre certas comunidades de Velhos-Crentes russos e a Igreja Ortodoxa Russa oficial, em que as comunidades são tratadas como parte do sistema normativo da Igreja Ortodoxa, mantendo ao mesmo tempo seus próprios ritos tradicionais] a que ele pertence. Aqui estão os textos do site Arktogea.ru, no qual Dugin compartilha seus pensamentos:

Edinoverie não é um fato eclesiológico, é um processo eurasiático dentro da estrutura da Ortodoxia Russa. Edinoverie é o vetor do movimento ... do modernismo à Tradição, do Raskol [N. do T.: Raskol foi o cisma da Igreja Ortodoxa Russa em uma Igreja Oficial e os Velhos-Crentes, no século XVII] para os Velhos-Crentes. O movimento não é seu objetivo final. Mas a constelação das seitas dos Velhos-Crentes também não é um objetivo. Para nós, a fé é um centro radical. É um conteúdo politicamente incorreto em uma forma politicamente correta (relativamente) ... Com o Edinoverie, tudo é complicado. Ele foi estabelecido sob certas condições para atingir certo objetivo. Então, tudo mudou muitas vezes. Hoje o Edinoverie é um processo de retorno geral dos Ortodoxos russos pós-soviéticos às raízes de sua fé paterna. Edinoverie não é uma seita, não é uma Igreja separada, não é um departamento tático do Patriarcado de Moscou. 

Naturalmente, nenhuma renúncia à heresia de Nikon [N. do. T.: Patriarca Nikon foi aquele que introduziu reformas litúrgicas na Igreja Russa] ocorre quando um padre é estabelecido ... O Edinoverie não é um dado adquirido, mas uma tarefa. O ramo mais correto é a linha do padre Irinarch (Mikhailovskaya Sloboda) perto de Moscou ... Edinoverie é muito mais de direita [politicamente] e reacionário; mais de direita do que a maioria dos niconianos de direita. Infinitamente mais de direita. 

Ao mesmo tempo, há uma grande vantagem no Edinoverie: nada impede que ele seja universal e penetre no ambiente do Patriarcado de Moscou, onde Nikonianos convictos [N. do. T.: Nikonainos são aqueles que seguiram o Patriarca Nikon após o cisma russo dos velhos-crentes] são uma minoria insignificante (Radonezh and Co), e a maioria ou são curiosos esquerdistas ou pessoas que ingenuamente (erroneamente) acreditam que a Igreja Ortodoxa Russa como ela é, é uma continuação da verdadeira raiz da Ortodoxia Russa. 

Em vez de negá-lo de fora (do consenso das seitas da Velha-Fé em sua forma final), você pode explicar às pessoas, de forma suave e construtiva, como ele realmente é. Se onde você mora não há Edinoverie, forme uma comunidade ou tente criá-la por outros meios. De acordo com as disposições da reunião pré-conciliar de 1917, se a maioria dos paroquianos exigir servir da maneira antiga, isto é completamente legítimo e sua vontade deve ser satisfeita [45].
Aqui, embora de forma sutil e nebulosa, a coisa mais importante é dita. Edinoverie para Dugin é um "processo eurasiático" que tem uma espécie de "objetivo", para o qual é necessário "penetrar no ambiente do Patriarcado de Moscou". Os simpatizantes recebem a instrução correspondente - criar uma célula, uma comunidade. É um vocabulário cismático: "Nikonianos", "Shchepotniki"[N. do. T.: Palavra de insulto utilizada pelos velhos-crentes em relação aos crentes Ortodoxos que seguem a Igreja 'nikoniana'. Literalmente significa "aqueles que fazem sinal da cruz com três dedos"], "heresia nikoniana". Acreditar que "a Igreja Ortodoxa Russa comocomo ela é, é uma continuação da verdadeira raiz da Ortodoxia Russa" é ingênuo e erróneo? É necessário aproveitar a oportunidade, ou seja, formar uma comunidade Edinoverie. Para quê? É claro que não foi com o propósito de salvar a alma e não para fortalecer a Igreja Russa, mesmo que apenas como uma "entidade corporativa" [46]. Mas a "constelação das seitas dos Antigos Crentes" não é o que é necessário. O objetivo é outra coisa, algo sem nome. Entretanto, se não está no Patriarcado e não está na "Velha-Ortodoxia", então, normalmente está fora da Ortodoxia e de seus substitutos cismáticos!

Tudo isso é de domínio público. E isto é do ano 2000.

E aqui está o texto programático de Dugin "Velhos-Crentes e Edinoverie" do portal Eurasia, uma reimpressão da publicação Jornal Eurasiano No. 10 de 2003. No primeiro parágrafo, lemos:
O tópico do Edinoverie é muito importante, apesar da atitude muito complicada em relação a ele da parte dos próprios Velhos Crentes, que tradicionalmente consideram isto [Edinoverie] um estratagema do Patriarcado de Moscou contra eles. Na realidade, a história do Edinoverie é, ao contrário, uma linha estratégica para inserir a Velha-Fé (Ortodoxia genuína) na árvore da Igreja sinodal [47].
Isso é o que realmente é! E aqui está o "processo" mencionado:
Na realidade, Edinoverie é um processo - um processo de revolução conservadora em toda a Igreja ... Estou convencido de que somente no Edinoverie como neste processo existem perspectivas para a cura da Igreja Ortodoxa Russa, a oportunidade de retornar ao sólido terreno inabalável o qual qual nossa Igreja tem sido encontrada desde o final do século XVII.
Aqui não só aprendemos que a Igreja Russa do Patriarcado de Moscou, segundo Dugin, não está sobre a pedra da fé Ortodoxa, mas completamente fora do terreno sólido por centenas de anos, mas também recebemos informações adicionais sobre os objetivos de Dugin e daqueles que ele representa. Isto não é nem mais nem menos, mas uma revolução interna da igreja. Conservadora, ou seja, esta é a própria "tentação que vem da direita", sobre a qual o padre Andrei Kuraev escreveu. Não surpreendentemente, Alexander Gelievich apoiou essencialmente [48] a "Conversão" do bispo Diomede [49].

E mais: 
Aquele na Igreja Ortodoxa Russa que se posiciona firmemente contra as posições dos Velhos-Crentes, mais cedo ou mais tarde ele encontrará sua essência cismática, anti-nacional, sectária... As autoridades oficiais da Igreja devem se arrepender sinceramente perante os Velhos-Crentes, devem obter o perdão.
E não são os cismáticos ou sectários, mas o Patriarca Nikon que se revela um sectário e quase o primeiro comunista [50]: "ele não apenas reduziu a sacralidade, ele contribuiu para a violação dos equilíbrios da Santa Rússia. De certa forma, ele estava perto dos flagelos - Nova Jerusalém, etc. É muito montanista, muito Munzeriano".

"Edinoverie é, na realidade, a Velha-Fé. Reconhecendo a retidão histórica e espiritual de Avvakum e seus seguidores, Edinoverie professa uma eclesiologia um tanto diferente." [51] 

E mais uma vez - este é um texto aberto e acessível ... A apologia direta dos cismáticos junto com a humilhação da Igreja, da qual o próprio Dugin é membro e da qual ele jura fidelidade mais de uma vez! Estes artigos não são refutados por Dugin em uma única palavra. Pelo contrário, suas antigas obras são atualizadas [52]. Textos de diferentes anos mostram que a atitude de Dugin em relação à Igreja não muda. Em uma entrevista de 2006 [53] - é tudo a mesma coisa, nas mesmas palavras.
Edinoverie se tornou aquele nicho espiritual que me integrou completamente na Velha-Fé ... Edinoverie é um processo que leva dos Novos Crentes à Velha Fé. Edinoverie hoje mudou sua função. Antes era chamada para levar as pessoas para longe dos Velhos-Crentes, mas agora não é assim ... Os Velhos-Crentes são o sal do povo russo ... A Rússia não renascerá sem a Igreja, e a Igreja não renascerá sem os Velhos-Crentes.

segunda-feira, 15 de março de 2021

A Doutrina da Graça na Igreja Ortodoxa (Vladimir Lossky)

União das Igrejas e a testemunha da Igreja Ortodoxa 

Antes de explorarmos a doutrina da graça na Igreja Ortodoxa, gostaria de fazer algumas observações preliminares a fim de evitar quaisquer possíveis mal-entendidos. A ausência de unidade no mundo cristão é uma realidade cruel, constantemente presente na consciência de todo cristão preocupado com o destino comum da humanidade. Quem poderia dizer, especialmente nos tempos em que vivemos, que o destino do cristianismo desunido nos deixa indiferentes sem incorrer na terrível condenação do Apocalipse? "Assim, porque és morno, e não és frio nem quente, vomitar-te-ei da minha boca" (Ap 3,16)?

A ferida causada por essas separações permanece virulenta e sangrenta para todos aqueles que, por um lado, não se deixam paralisar num estupor de autosuficiência e autocontemplação, mas que, por outro lado, não podem mais testemunhar a verdade que confessam no contexto de atividades voltadas para a "união das Igrejas". Gostaria de citar aqui algumas palavras de Karl Barth que expressam claramente meu pensamento:

Os movimentos super ou intereclesiais ou não valem nada, pois não levam a sério os problemas da doutrina, da constituição e da vida da Igreja, ou então têm algum valor. E se eles consideram estes problemas de forma séria, eles são forçados a abandonar a neutralidade e criar uma nova Igreja ou comunidade que se assemelha a ela. Portanto, se desejamos que o trabalho eclesiástico prossiga, ele deve proceder em seu centro cristão: nas Igrejas. Se realmente desejamos escutar Cristo como Aquele que é a Unidade da Igreja e em quem a Unidade já é realizada, devemos, portanto, reconhecer de forma concreta nossa experiência eclesiástica particular.

E ele escreve também:

Somente uma poderosa realidade eclesiástica pode motivar uma Igreja a abandonar a separação. Não o fará se isso significar abandonar um único ponto em um "i" que ela mantém como verdade em obediência a Jesus Cristo.
Não fazemos a união das Igrejas, mas a descobrimos. [2]

E gostaria de acrescentar a Barth: descobrimos esta união das Igrejas na condição de irmos até o fim na confissão clara e sincera da fé de nossas Igrejas ou comunidades específicas e históricas, às quais somente nós estamos comprometidos.

Assim, ao procurar apresentar aspectos da doutrina Ortodoxa da graça, certamente não procuraremos esconder ou minimizar as diferenças fundamentais que existem sobre este tópico em relação a outras confissões cristãs. Não queremos ser polêmicos, pois nosso objetivo é a compreensão mútua. Se neste artigo somos obrigados em vários pontos a contrastar os ensinamentos da Igreja Ortodoxa com os de outras confissões cristãs, não devemos ser acusados de nutrir pensamentos de hostilidade confessional, muito menos da mais leve intenção de ferir nossos irmãos separados.

Enquanto eu comparo o ensino da Igreja Ortodoxa com o de outros confissões cristãs, evitarei cuidadosamente entrar nos detalhes das controvérsias sobre a graça que criaram muitas correntes de diferentes opiniões no Ocidente. De fato, Khomiakov disse há quase um século que para nós Ortodoxos, o Ocidente dividido não pode ser senão como uma família, um grupo relativamente homogêneo.[3] Todas as divisões entre Roma e a Reforma são para nós senão rupturas internas dentro do cristianismo ocidental. Nossa separação de Roma consumada no século XI é do mesmo tipo que a dos Protestantes e de todas as comunidades que posteriormente se separaram do Patriarcado de Roma. Este é especialmente o caso com respeito à doutrina da graça, porque a separação de 1054, apesar de tudo que foi dito e escrito sobre este assunto por polemistas posteriores, baseou-se dogmaticamente nos ensinamentos a respeito do Espírito Santo, o Doador da Graça. 

Estamos agora prontos para abordar nosso tópico.

A questão da graça no Ocidente durante a Idade Média

Podemos afirmar de forma muito geral que a questão da graça foi mais frequentemente uma questão no Ocidente em um contexto funcional, o papel da graça na tarefa de nossa salvação. O interesse se concentrava especialmente na função da graça sem nunca questionar sobre a natureza da graça. Na clássica definição dos manuais teológicos, a graça é vista como "um dom sobrenatural de Deus concedido a uma criatura dotada de inteligência para o propósito da salvação eterna". As numerosas distinções de tipos de graça - santificante ou justificante, gratum faciens ou gratis data, habitual ou atual - têm como objetivo revelar funções diferentes da graça no sujeito que a recebe.[4]

Esta noção de graça, considerada especialmente como um relacionamento entre Deus e a criatura caída, encontra-se inevitavelmente ligada à questão do livre arbítrio humano e à predestinação divina. Esta questão crucial resultou em intermináveis disputas teológicas, começando na época de Pelágio e Santo Agostinho, transmitida por Gottschalt e Escoto Erígena [5] durante o grande período escolástico, e irrompendo novamente durante a Reforma, e se perpetuando mais tarde durante as controvérsias Jansenistas e Molinistas do século XVII. [6]

Diante destas diferentes abordagens, destas afirmações inconciliáveis, podemos questionar qual teria sido a doutrina da Igreja Ortodoxa [7] - mais uma doutrina, mais uma tentativa de harmonizar estes três elementos - livre arbítrio, graça e predestinação, onde a graça tão frequentemente desempenha o papel de uma quantidade desconhecida, um "x" nesta regra de três.

Devemos reconhecer um fato: o Oriente cristão permaneceu quase que inteiramente não envolvido nas controvérsias sobre o livre arbítrio e a graça. Mesmo antes da separação, o período da vida comum quando não havia oposição entre Oriente e Ocidente, a disputa Pelagiana era apenas um conflito local e, de modo geral, secundário. A questão principal para a Igreja no século V foi a de Cristo, o Deus-Homem, unindo duas naturezas e duas vontades, divina e humana, em uma só Pessoa. Após a confirmação deste dogma, o Pelagianismo desmoronou junto com o Nestorianismo, do qual o Pelagianismo era apenas um corolário antropológico. Quando as controvérsias sobre livre arbítrio e graça reavivaram no Ocidente no século IX, a vida da Igreja de Roma já estava quase divorciada da vida de suas Igrejas irmãs do Oriente. E mais tarde, após a divisão final, esta questão tornou-se proeminente na consciência da Igreja Oriental somente no século XVII, quando foi levantada, juntamente com muitos outros pontos da doutrina, pelo caso especial do Patriarca Cirilo Lukaris, o "Calvinista Oriental". E mesmo assim, este problema propriamente ocidental nunca teve um papel importante na vida dogmática da Igreja Ortodoxa, porque a doutrina da graça se desenvolveu em uma maneira diferente no Oriente, originando-se a partir de um ponto de partida completamente diferente daquele comum à cristandade ocidental.

A natureza da graça

Se, como vimos, no Ocidente a questão da graça é tratada primariamente em termos de função, a Igreja Ortodoxa, antes de inquirir sobre o papel da graça em nossa salvação, procura saber o que é graça. A graça é considerada aqui sobretudo, não como um correlativo do livre arbítrio humano, mas sim, podemos dizer, ontologicamente, em si mesma, como algo cuja natureza deve ser definida.

A expressão dogmática do ensinamento sobre a graça alcançou sua plena expressão no século XIV, durante o Concílio "Palamita" de Constantinopla, assim chamado com o nome de um Pai da Igreja, São Gregório Palamas, louvado pela Igreja Ortodoxa como "o pregador da graça". Isto não significa de forma alguma que esta doutrina não existia antes, muito antes do século XIV. Achamos este ensinamento, menos dogmaticamente bem definido, é verdade, na maioria dos Pais remontando aos primeiros séculos da Igreja. Foi precisamente esta tradição, preservada no Oriente, que se manifestou subitamente nos Concílios do século XIV - assim como uma fonte escondida que ouvimos sempre fluindo no subsolo e que de repente emerge das profundezas da terra.

Para a Igreja Ortodoxa, o fundamento doutrinário da graça está enraizado em noções mais gerais, especificamente na natureza de Deus.

Junto com as três Pessoas (hypostases) e a única natureza (physis), o pensamento patrístico distingue em Deus, na própria natureza comum às Pessoas da Trindade, a essência (ousia) ou natureza estritamente falando, incognoscível e inacessível - e "aquilo que está junto à natureza "[8] , as operações ou energias divinas, "o que pode ser conhecido sobre Deus", nas palavras de São Paulo: "seu eterno poder e divindade ... claramente percebido nas coisas que foram criadas" (Rm 1: 19-20).  Pois, "se as energias descem até nós, a essência permanece absolutamente inacessível", diz São Basílio.[9] No entanto, estas operações não são atos externos, obras da vontade divina, que, como tal, seriam como que estranhas à essência divina, como por exemplo o ato da criação do mundo, atos da Divina Providência, assim como outros atos nos quais Deus está presente apenas como Causa. As operações ou energias não são atos, mas sim "processões", "transbordamentos", poderíamos dizer, da natureza divina, pelas quais Deus existe fora de sua essência.  Essas energias não são atos, mas um modo de existência de Deus, em virtude do qual ele existe simultaneamente em sua essência inacessível e, fora da essência, "o Mesmo e o Outro" [10]. Pois se o Deus dos filósofos pode ser apenas uma essência, o Deus de Abraão, Isaac e Jacó, o Deus de Jesus Cristo é mais do que uma essência.

Essência e energia 

Apesar da real distinção entre essência e energias, estas não devem ser separadas da essência, da qual elas são "processões naturais" - uma vez que a distinção não significa separação ou fragmentação. Os raios do sol são diferentes do disco solar, mas são inseparáveis dele, pois são as energias naturais deste disco luminoso. Mas qualquer comparação será necessariamente imperfeita: a distinção entre essência e energias é mais radical e, ao mesmo tempo, sua unidade é infinitamente maior, até mesmo ao ponto de identidade. O mesmo Deus inacessível - Deus absconditus - em Sua essência se torna cognoscível e acessível, permitindo-nos participar em Sua perfeição, entregando-se a nós em Suas energias.

Assim, a doutrina da graça deriva necessariamente do dogma mais amplo das energias. "A graça ou iluminação deificante não é a essência, mas sim energia divina", diz São Gregório Palamas [11] - energia que nos une a Deus, que realiza nossa "deificação". É por esta razão que a energia deificante é frequentemente chamada simplesmente de "divindade" na teologia Ortodoxa.

Uma vez que as energias são processões naturais de Deus, comuns às três Pessoas da Trindade, assim como a essência é comum a todas, devemos concluir, da mesma forma que a graça, que é uma energia concedida aos humanos, deve ser comum às três Pessoas - Pai, Filho e Espírito Santo - ainda assim comunicada a nós pela Pessoa do Espírito Santo. Esta é a razão pela qual Cristo, anunciando a descida do Espírito Santo, diz a seus discípulos: "Ele me glorificará, porque há de receber do que é meu, e vo-lo há de anunciar." (João 16:14). "O que é meu", segundo a interpretação dos Pais [12] , é a natureza comum ao Filho, ao Pai e ao Espírito Santo, natureza na qual somos chamados a participar, nas energias, ou, dizendo a mesma coisa, pela graça, segundo as palavras de São Pedro - divinae consortes naturae [participantes da natureza divina] (2 Pedro 1: 4).

Uma conclusão adicional é necessária: a Pessoa do Espírito Santo, que concede Sua graça, o Dom deificante, é distinta deste Dom, assim como as Pessoas da Santíssima Trindade são distintas de Sua natureza e das energias próprias desta natureza.

A ontologia medieval

Esta é, em algumas breves palavras, a natureza da graça na tradição Ortodoxa. Ela foi veementemente atacada no século XVII por Denis Pétau (ou Petavius), [13] que mostrou uma completa falta de compreensão da doutrina sobre essência e energias. Mas Pétau não foi o único no Ocidente que não conseguiu compreender o próprio fundamento da tradição do Oriente Ortodoxo. Para não me aventurar muito no âmbito da história das ideias teológicas, [14] direi simplesmente que esta incompreensão foi a herança dos grandes séculos escolásticos, que, em sua notável síntese, forjaram uma concepção bastante filosófica da essência divina.

De fato, a noção tomista de Deus como "ato puro" não admite que nada divino possa existir fora da essência, que não seria Deus - Senhor, Sabedoria, Vida, Verdade - estão analogamente relacionados com a essência, como seus atributos abstratos. Eles não designam poderes ou energias reais nos quais Deus se faz conhecido como Sabedoria, Vida, etc. Deus se encontra, por assim dizer, limitado por Sua essência. Tudo o que é externo à essência é externo a Deus, e está relacionado com o âmbito do ser criado. Operações só podem ser consideradas, de acordo com esta linha de pensamento, como atos externos, fora da essência. O ensino Ortodoxo parecia ser um absurdo, uma "loucura", para os teólogos da Igreja Romana, discípulos de Aristóteles.

A consequência desta doutrina para a questão da graça é clara: a graça seria, para a teologia latina, ou a essência divina em si, incomunicável por definição - ou então um efeito criado que Deus produz em nossa alma. Em nenhum dos casos há participação real na natureza divina, nenhuma união real entre Deus e os homens. O abismo permanece aberto, intransponível. E isto é verdade para a teologia da Igreja de Roma, assim como para a da Reforma (veja por exemplo o Barthianismo, que é muito categórico sobre este assunto).

A doutrina tomista da graça criada

A diferença fundamental na doutrina sobre a graça é que para a Igreja Ortodoxa a graça é incriada, ao passo que para a Igreja de Roma e para as outras confissões cristãs que se separaram de Roma, a graça é criada.

No entanto, é necessário ser mais preciso neste ponto a fim de evitar possíveis mal-entendidos. Os manuais teológicos da Igreja Romana fazem distinção entre a graça criada e a graça incriada. Cito por acaso o livro de Padre Plus, Dieu en nous:

Que existe um elemento criado na graça, as faculdades sobrenaturais que nos permitem realizar atos sobrenaturais, não está em dúvida; mas a Igreja não afirma nada mais enérgico do que que o Espírito Santo, ipsissima persona Spiritus Santi [a própria pessoa do Espírito Santo] (Cornelius a Lapide) acompanha este dom criado. [15]

Assim, o que se entende aqui pelo termo "graça incriada" é a própria Pessoa do Espírito Santo, o doador da graça, ao passo que o "elemento criado", que nos confere as faculdades sobrenaturais, corresponde exatamente ao que a teologia Ortodoxa designa pela própria palavra "graça" ou energia divina. A teologia ocidental não conhece energias divinas, daí a conseqüência inevitável: o que é dado não é idêntico ao que os seres humanos recebem. É o paradoxo da graça santificante: por Seu infinito amor Deus se dá sobrenaturalmente aos humanos, mas tudo o que os humanos podem apreender, podem receber desta presença divina na alma, é apenas um efeito criado. A graça santificante é uma ação divina sobre a alma, um ato que pode ser comparado com a criação, embora não seja de modo algum criação ex nihilo: a graça santificante tem por seu material a alma humana, ou para ser mais preciso, as "faculdades obedientes", de acordo com São Tomás de Aquino, [16] faculdades que se tornam capazes de realizar atos meritórios sobrenaturais que nos conduzem à salvação. É um meio de salvação, uma ajuda que Deus produz em nós  visando a salvação eterna.

No entanto, segundo a doutrina Católica, a habitação da Trindade em nossa alma permanece oculta, insensível e incognoscível. Só pode ser objeto de fé - exceto para algumas "almas privilegiadas" às quais a experiência mística da habitação divina é ocasionalmente concedida em um estado de êxtase. Mas normalmente, até a hora da morte, os justos possuem a graça como uma herança desconhecida, que só desfrutarão após a morte, quando a graça será reforçada pela "luz da glória", gloriae lumen, que instila a visão de Deus presente na alma deles. Entretanto, semelhante à graça, esta luz da glória também é criada; ela permite que alguém veja Deus, se regozije em Sua presença, mas não transforma verdadeiramente os justos em "deuses pela graça", em "seres deificados", em "co-herdeiros da natureza divina", segundo as palavras de São Pedro [cf. 2 Pedro 1: 4].

Os escritos dos místicos da Igreja Romana sobre a presença de Deus na alma são muito característicos neste sentido. As almas santificadas pela graça são comparadas com o céu, com o paraíso, o lugar da habitação divina, com o cálice de Belém que recebeu o Menino Jesus. Uma pessoa em estado de graça é um "portador de Deus " [17] O que mais chama a atenção nestas comparações é sua natureza inerte e estática: a criatura permanece o que era e não adquire nada de divino; não há penetração do criado pelo Incriado. E as palavras um tanto severas de São Bernardo são especialmente significantes neste contexto: um jumento permanece sempre um jumento, mesmo que carregue Cristo nas costas.

Em contraste, as descrições da pessoa que possui graça são completamente diferentes nos autores Ortodoxos. A natureza humana penetrada pela graça é mais frequentemente comparada ao ferro que se torna avermelhado pelo fogo e que ele mesmo se torna fogo sem deixar de ser ferro; ao ar inundado pela luz que recebe, etc.  Estas analogias destacam em particular uma relação dinâmica entre a graça e a natureza humana, a penetração do ser criado pela divindade, uma verdadeira deificação da pessoa pela graça. Na doutrina Ortodoxa, o que os teólogos latinos chamam de "graça santificante", o efeito da presença da Trindade, é visto como graça incriada, simplesmente graça, o Dom ou Dons do Espírito Santo, verdadeiramente dado, cedido e verdadeiramente recebido, adquirido, apropriado pela pessoa.

A união das duas naturezas na Pessoa do Verbo

Uma pergunta surge espontaneamente: como esta doutrina Ortodoxa concebe a possibilidade do ser criado participar na divindade, se queremos evitar tanto o panteísmo platonizante quanto a aniquilação da criatura no Ser Divino?

Não devemos esquecer uma distinção fundamental entre natureza e pessoa - uma doutrina comum a todos os cristãos que confessam o dogma da Santíssima Trindade e o da Encarnação. Assim como em Deus distinguimos entre as Pessoas e Sua natureza comum, devemos distinguir nos seres humanos, criados à imagem e semelhança de Deus, a pessoa - imagem da hipóstase divina - e a natureza na qual e pela qual a pessoa criada vive.

Entre as duas naturezas, a de Deus e a da criatura, existe um abismo intransponível, uma distância infinita nas palavras de São João de Damasco. Mas ainda assim as duas naturezas se uniram, sem se fundirem, na única Pessoa do Verbo encarnada. Embora permaneçam distintas, não misturadas, elas são as duas naturezas de uma Pessoa, a divindade e a humanidade do único Jesus Cristo. Não apenas isso: unidas hipostaticamente, as duas naturezas de Cristo permanecem separadas uma da outra como essências diferentes, mas as energias divinas penetram na humanidade de Cristo; e são estas energias que iluminam sua natureza humana deificada, transfigurada pelo brilho da luz incriada no Monte Tabor. Este é o Reino de Deus vindo com poder, nas palavras do Evangelho (Mc 9:1). E os Pais testemunham que, por Sua Transfiguração, o Senhor mostrou a seus discípulos o estado deificado a que todos são chamados, todas as pessoas humanas.

Cristo é uma Pessoa divina incriada que assumiu a natureza humana criada. Mas, nas palavras de Santo Irineu, repetidas por quase todos os Pais, "Deus se fez homem, para que o homem pudesse se tornar Deus". Assim, as pessoas humanas criadas são também chamadas a reunir em si mesmas as duas naturezas, divina e humana, e a possuir pela graça tudo o que Deus possui por natureza própria. Como pessoa, o homem deificado é um ser criado e permanece assim, mesmo participando na natureza divina, ainda que a natureza humana seja transfigurada pelas energias incriadas. Assim, Cristo, uma Pessoa divina, permanece Deus mesmo tendo assumido uma natureza criada, mesmo tendo sofrido e morrido na cruz como um ser humano.

A distinção entre pessoa e natureza no ser criado corresponde àquela entre a "imagem" e a "semelhança" da qual fala a Revelação (Gn 1: 26-27). A imagem - uma pessoa única para cada ser humano, insubstituível, indefinível porque absolutamente original - está ligada à natureza comum de todos os seres humanos. Ela se manifesta na natureza e por natureza. A pessoa humana, chamada a viver em comunhão com Deus, à luz da Trindade, perdeu este tesouro quando nossa natureza, manchada pelo pecado, deixou de ser a "semelhança" de Deus. A pessoa humana, imagem de Deus, ligada à natureza, seguiu sua queda e se envolveu na escuridão do pecado com a natureza. Ao invés de viver à luz da Face de Deus, a pessoa (ou as pessoas), após o pecado original, só pode viver de acordo com sua natureza, uma natureza agora profundamente manchada. Embora permanecendo a imagem de Deus, a pessoa não conhece mais a Trindade porque o conhecimento é uma função da natureza e a natureza está obscurecida. Ainda que sempre livre, a pessoa retém apenas a liberdade de escolha, pois a vontade é uma energia da natureza, dilacerada por desejos conflitantes. Apesar de aspirar a grandes e divinos objetivos, a pessoa é quase cega e impotente, incapaz de escolher bem, muitas vezes agindo apenas de acordo com as inclinações da natureza, subserviente ao pecado.

Tendo assumido nossa natureza humana caída, Cristo, por Sua morte na Cruz e Sua Ressurreição, concede à natureza a possibilidade de se tornar a "semelhança" de Deus, de ser natureza pura, capaz de receber o Espírito Santo. E o Espírito Santo, descendo sobre os discípulos e sobre cada membro da Igreja no sacramento da confirmação, confere seu dons incriados a cada pessoa humana, a graça deificante que pode transfigurar a natureza. Assim, a pessoa humana na Igreja, apesar de todos os seus pecados, apesar de todas as suas falhas provocadas pela natureza rebelde, na lenta e dolorosa ascensão para Deus, traz dentro de si duas naturezas, criada e incriada, e duas vontades, nossa vontade ainda cega e enfraquecida, e a de Deus. Ao seguir a vontade de Deus, a pessoa transforma a natureza pela graça, "adquire" a graça. As duas vontades, divina e humana, são as duas asas que nos levam à perfeita união com Deus, diz Máximo, o Confessor.

O ensinamento sobre a graça, que aqui delineei em termos gerais, nos permite afirmar que para a Igreja Ortodoxa, ao contrário de outras confissões cristãs, a graça não é apenas uma ajuda divina, um meio de nossa justificação ou santificação, mas o próprio objetivo da vida cristã. Pode-se dizer com certa ousadia que para a teologia Ortodoxa a habitação de Deus em nós (nossa adoção ou "santificação" no sentido Católico Romano), seria antes um meio, e a aquisição da graça incriada, transformando nossa natureza, o fim.[18]

Consequências da doutrina Ortodoxa 

Três consequências cruciais para a vida espiritual decorrem deste princípio: 

1. A presença invisível de Deus em nós, concedida pela descida do Espírito Santo ou pelo sacramento da Santa Crisma, não pode ser destruída pelos pecados atuais. A Igreja Ortodoxa não reconhece uma distinção entre pecados veniais e mortais, o que nos privaria desta presença (o "estado de graça" na doutrina Católica Romana).[19] Mas qualquer pecado pode tornar esta presença ineficaz e abstrata, ao escurecer nossa natureza, tornando-a mais ou menos impermeável às energias divinas, à graça deificante. Esta é a luta constante, o oscilar entre os estados de luz e os impulsos escuros das forças não purificadas de nossa natureza, a lenta e laboriosa jornada em direção à Luz do Dia Eterno.

2. Segunda consequência: A graça não pode ser desconhecida, não sentida, apenas um objeto de fé. Deve ser uma experiência.[20] É por esta razão que a Igreja Ortodoxa não conhece as "almas privilegiadas" que, excepcionalmente, se beneficiam da experiência da graça. Cada cristão deve desfrutar, na medida que lhe for apropriado, da experiência da graça. A aquisição da graça não é um processo inconsciente. Esta é também a razão pela qual nossos ascetas nunca consideram que a "noite mística", uma "aridez de alma", é um estado normal, um passo necessário para aqueles que buscam a união com Deus. A atitude heroica dos grandes santos do cristianismo ocidental, sujeitos ao sofrimento da trágica separação, é desconhecida na espiritualidade Ortodoxa. E no entanto, se alguns de nossos santos, em sua luta pela da Luz divina, passam pelo agonizante estado de tristeza ("acedia"), de desespero, esta condição é sempre vista como a suprema tentação que coloca o ser humano no limiar da morte espiritual. Aqueles que emergem triunfantes na luta têm a experiência contínua e cada vez mais forte da Luz deificante. Assim foi São Serafim de Sarov no século XIX, cujo rosto brilhava com uma luz que era insuportável para os olhos humanos.

3. Terceira consequência: A Igreja Ortodoxa não faz distinção entre teologia e misticismo. Todo misticismo nada mais é do que a experiência do dogma revelado à Igreja, assim como, por outro lado, todo ensinamento teológico é inseparável da experiência mística, dada a todos os membros do Corpo de Cristo, embora em graus diferentes, proporcional à ascensão individual de cada um em direção ao estado de humanidade perfeita, à medida da estatura completa de Cristo (Ef 4: 13).

* * * 

Estes são, na medida em que é possível expor em uma apresentação geral, os pontos principais da doutrina Ortodoxa da graça. Se quiséssemos fazer um diagrama dos diferentes graus da presença da graça no mundo criado, de acordo com a crescente plenitude da união, faríamos quatro círculos concêntricos, dos quais o centro representaria a plenitude do ensino, bem como da experiência da graça. Os quatro círculos seriam o mundo pagão ou "leigo"; o mundo vivendo de acordo com a Lei revelada ou lei natural; o mundo cristão em geral; e finalmente, o centro místico do universo onde os santos podem alcançar a plenitude da graça, união perfeita com Deus.

Estes quatro círculos corresponderiam àqueles mencionados por São Máximo o Confessor, numa época em que o cristianismo conhecia apenas uma doutrina de graça:

O Espírito Santo está presente incondicionalmente em todas as coisas, na medida em que Ele abrange todas as coisas, provê tudo e vivifica as sementes naturais dentro delas. Ele está presente de maneira específica em todos os que estão sob a Lei, na medida em que lhes mostra onde eles violaram os mandamentos e os ilumina sobre a promessa a respeito de Cristo. Em todos que são cristãos, ele está presente também de outra forma, na medida em que os torna filhos de Deus. Mas em nenhum deles ele está plenamente presente como autor da sabedoria, exceto naqueles que têm compreensão, e que por seu modo de vida santo se tornaram dignos da habitação deificante do Espírito Santo. [21]

Traduzido a partir do inglês "Introduction and translation: Vladimir Lossky, “The Doctrine of Grace in the Orthodox Church”" (Versão em inglês pode ser obtida aqui)

Notas 

2. Karl Barth, “L’Église et les Églises,” Oecumenica 3.2 (1936). 

3 A tese de Khomiakov (veja especialmente sua Église latine et protestante) é abordada por Basil Zenkovsky. [Lossky pode ter em mente uma coleção de artigos de Khomiakov na primeira edição francesa publicada em Lausanne em 1872 sob o título L'Église latine et le protestantisme au point de vue de l'Église d'Orient. A referência a Zenkovsky pode ser a sua obra História da Filosofia Russa (em russo em 1948; em inglês tr., Routledge e Kegan Paul, 1953)].

4. Mesmo na Summa theol. [de Aquino] I-II, questão 110, apesar do título promissor "De gratia Dei quam ad ejus essentiam" [Da Graça de Deus no que diz respeito a sua Essência], a questão da natureza da graça em si não é considerada; São Tomás se limita a considerações sobre as relações da graça com a alma humana.

5. [Gottschalk de Orbais (c. 808-867) foi um teólogo, monge e poeta saxão. Ele foi um dos primeiros defensores da doutrina da dupla predestinação e seus escritos foram mais tarde referidos pelos jansenistas. Johannes Scotus Eriugena (c. 815-c. 877) foi um teólogo, filósofo e poeta neoplatonista irlandês, conhecido em particular por ter traduzido para o latim e feito comentários sobre os escritos de Pseudo-Dionísio].

6. [Jansenismo, nomeado por causa do teólogo holandês e bispo Cornelius Otto Jansen (1585-1638), enfatizava o pecado original, a depravação humana, a necessidade da graça divina e a predestinação, temas principais da Reforma, especialmente do Calvinismo. O molinismo, nomeado por causa de Luis de Molina (1535-1600), um jesuíta espanhol, tenta conciliar a providência divina com o livre arbítrio humano].

7. Veja sobre este tópico o excelente artigo de Mme Lot-Borodine, "La doctrine de la grâce et de la liberté dans l'orthodoxie gréco-orientale" (Besançon, 1939) [reimpresso em Myrra Lot-Borodine, La Défication de l'homme (Paris: Le Cerf, 1970)].

8. São João de Damasco, De fide orthodoxa I, 4 (PG 94, 800). Veja também São Gregório de Nazianzus, Or. 38 in Theoph. (PG 36, 317). 

9. Ad Amphilochius (PG 32, 869). 

10. São Dionísio o Aeropagita, De div. nom. 9, 1 (PG 3, 909).

11. Capit. Phys. 68–69 (PG 150, 1169). 

12. São Fócio, Mystagogia Spiritus Sancti 20 (PG 3, 909).

13. [Denis Pétau (1583-1652), também conhecido como Dionysius Petavius, foi um teólogo jesuíta francês]. 

14. A fonte primária e única de todos esses mal-entendidos subsequentes está no dogma da processão do Espírito Santo ab utroque [lit. "a partir de ambos" - o filioque], confessado pela Igreja de Roma. A doutrina da graça específica ao cristianismo ocidental está intimamente relacionada a este dogma. Mas esta questão complexa deve ser objeto de um estudo mais específico.

15. Raoul Plus, SJ, Dieu en nous (Toulouse, 1931): 142. [Cornelius Cornelii a Lapide (1567-1637) foi um jesuíta flamengo e estudioso bíblico].

16. De veritate Q. 27, R. 3 [Lossky pode estar se referindo à seguinte passagem em De veritate 27, 3: "A vontade do homem é alterada pela graça, pois é a graça que prepara a vontade do homem para o bem, segundo Agostinho"]. 

17. Veja os exemplos citados no excelente pequeno livro do Padre Plus, op. cit., 36-44.

18. Veja a "Conversação de São Serafim com N. A. Motovilov" [em Lazarus Moore, St Seraphim of Sarov: A Spiritual Biography (New Sarov Press, 1994). Na internet: http://orthodoxinfo.com/praxis/wonderful.aspx.]

19. E ainda assim, esta doutrina, tomada emprestada a partir de doutores latinos, pode ser encontrada em alguns manuais teológicos Ortodoxos, por exemplo, na Confissão de Pedro Moghila. 

20. São Simeão, o Novo Teólogo, até mesmo afirma que todo cristão deve ter esta experiência in via se ele ou ela deseja desfrutar da Luz divina in patria.

21. São Máximo, Capita theologica et oeconomica, Centuria 1 (PG 90, 1209). Tradução inglesa retirada de São Máximo o Confessor, "Various Texts on Theology, the Divine Economy, and Virtue and Vice," em The Philokalia, The Complete Text, Volume 2 (Londres: Faber and Faber, 1982), First Century, 73: 180-81].