quarta-feira, 21 de agosto de 2019

A Recuperação da Deificação pelo Ocidente Cristão (Paul L. Gavrilyuk)

Como um arcaísmo antes desprezado se tornou um desideratum ecumênico

No início do século XX, a noção de deificação (theōsis, theopoiesis) representava tudo o que era geralmente considerado exótico e equivocado em relação à teologia ortodoxa. Em sua magnum opus História do Dogma, Adolf von Harnack, um importante historiador protestante da época, lamentou a direção errada que a teologia cristã adotou no século II: “Quando a religião cristã foi representada como a crença na encarnação de Deus e como a esperança segura da deificação do homem, uma especulação que originalmente esteve apenas na margem do conhecimento religioso foi transformada no ponto central do sistema e o conteúdo simples do Evangelho foi obscurecido”. [1] Para Harnack, a idéia de deificação era um sintoma de um mal mais grave, a saber, a helenização, que provocou a distorção e obscurecimento da simples mensagem bíblica da "Paternidade de Deus e da irmandade dos homens" pela metafísica grega. A conclusão do historiador alemão foi típica do seu tempo. [2]

Do outro lado do espectro teológico protestante, Karl Barth [3] também foi igualmente indiferente. Aceitar a divinização, sustentava Barth, era encorajar uma conversa muito abstrata sobre a natureza humana de Cristo e mudar o "centro cristológico" da soteriologia para a esfera nebulosa de uma "antropologia desagradável". [3] Os principais alvos da crítica sinuosa de Barth são os projetos de apoteose de Hegel e Feuerbach, [4] e que Barth viu como “a ameaça, no luteranismo, de uma divinização da natureza humana de Jesus Cristo e uma paralela des-divinização de sua divindade” [5]. A impressão geral é que Barth foi muito propenso a tornar a theosis culpada por associação, especialmente quando ele lista “a deificação da criatura” entre “as características da cristologia ebionita” [6] (uma verdadeira pirueta de imaginação histórica) e considera a (deplorável) devoção católica ao coração de Jesus como um exemplo de deificação. [7] Aparentemente, a desenvoltura polêmica às vezes liberta os teólogos da desanimadora responsabilidade de verificar a evidência histórica.

Parcialmente em reação a esse tipo de crítica, tornou-se comum os teólogos ortodoxos insistirem que a doutrina da deificação representa uma abordagem caracteristicamente “ortodoxo” do mistério da salvação e contrastarem essa doutrina com as teorias de redenção (na opinião deles, deficiente) que foram desenvolvidas por teólogos ocidentais do segundo milênio. [8] [...] É notável que, apesar de seu status exaltado, o conceito de deificação não seja mencionado explicitamente nas definições dogmáticas dos primeiros Sete Concílios Ecumênicos. A falta de precisão dogmática contribuiu para a considerável fluidez do conceito.

O final do século XX testemunhou uma mudança dramática na atitude dos teólogos ocidentais em relação ao conceito de deificação. A noção que antes era percebida pela maioria dos observadores ocidentais como estranha, através dos esforços conjuntos de numerosos estudiosos da última geração, está gradualmente sendo arrastada para o interior da tradição teológica ocidental. Agora é dito que um número crescente de teólogos ocidentais - Agostinho, Anselmo de Cantuária, [10] Tomás de Aquino, [11] João da Cruz, [12] Martinho Lutero, [13] João Calvino, [14] Lancelote Andrewes, [15] João e Carlos Wesley, [16] Jonathan Edwards, [17] até os Reformadores Radicais e assim por diante - ensinaram uma versão de deificação. [A] Esta é uma reversão formidável do destino, especialmente à luz das acusações de obscurecimento, idolatria e heresia contra a deificação em tempos menos ecumênicos. Embora seja prematuro falar em aceitação universal - e é improvável que alguns dos opositores convictos sejam convencidos [18] - vale a pena repetir que um número crescente de mentes teológicas ocidentais consideram a doutrina profundamente atraente. Este artigo discutirá alguns exemplos representativos dessa tendência e os fatores que explicam a crescente popularidade da doutrina.

Os primeiros críticos usualmente construíam a noção patrística de deificação como sendo apenas uma melhoria insignificante em relação à apoteose pagã, seguindo o modo dos antigos heróis gregos e imperadores romanos. Nessa leitura, não há muita diferença entre a observação do imperador Vespasiano, prematuramente morrendo de diarreia excessiva - “Eu acho que estou prestes a me tornar um deus” [19] - e a fórmula de permuta antiga, que aparece em  Irineu de Lyon: o Filho de Deus "tornou-se o que somos para nos tornar o que ele é" (Adv. Haer. 5. Praef.). Para o crédito deles, a maioria dos críticos atuais da deificação reconhece que a apoteose pagã e a theosis cristã não são exatamente a mesma coisa.

Em um estudo pioneiro, La divinization du chrétien d'aprés les pères grecs (1938, tradução inglesa publicada em 2002), Jules Gross argumentou que, ao desenvolver a doutrina da deificação, os Padres gregos utilizaram dos recursos filosóficos e religiosos do helenismo e transcenderam seu contexto pagão. A noção de que a felicidade humana consiste em alcançar semelhança com Deus (homoiose theō) era amplamente compartilhada na antiguidade tardia. Mas a teologia cristã transformou essa expectativa comum colocando-a no contexto da metafísica trinitária, tornando a encarnação fundacional para alcançar a semelhança divina, e insistindo que, qualquer que seja o significado de deificação, a noção não implica que um ser criado possa se tornar incriado.

Respondendo a Harnack e outros, Gross afirmou que, longe de ser uma instância de rendição intelectual ao helenismo pagão, a deificação foi um desenvolvimento legítimo das idéias bíblicas de filiação divina e incorporação em Cristo. A Deificação é “participar da natureza divina” (2 Pedro 1: 4), entendido como conformidade com as perfeições divinas, particularmente incorruptibilidade e imortalidade, e tornando-se pela graça o que Deus é por natureza. Gross concluiu que “a partir do quarto século a doutrina da divinização é fundamental para a maioria dos Padres gregos. Forma uma espécie de centro de sua soteriologia ”. [20]

A obra de Norman Russell, The Doctrine of Deification in the Greek Patristic Tradition (2004), baseia-se no estudo de Gross, superando-o em escopo e precisão metodológica. Russell oferece uma cuidadosa análise textual do vocabulário de deificação e contextualiza as contribuições de autores patrísticos individuais, considerando problemas teológicos mais amplos que eles tiveram que confrontar. Ele distingue o uso da linguagem de deificação em nominal (deificação como um título de honra), analógica (humanos tornam-se pela graça o que os Filho de Deus é por natureza), ética (imitação dos atributos morais de Deus), e realista (enfatizando transformação e participação em Deus) em várias fontes, mostrando como, por volta do quarto século, esses usos são integrados em uma visão amadurecida. [21] Com Gross, Russell vê o século IV como um período durante o qual a noção de deificação tornou-se um tema central na soteriologia patrística. Ao contrário de Gross, que conclui seu tratamento com João de Damasco, Russell propõe que a teologia de Máximo, o Confessor, é um ponto culminante no desenvolvimento da doutrina da deificação. O estudioso britânico também fornece um breve tratamento de autores bizantinos posteriores, como Simeão o Novo Teólogo e Gregório Palamas. Sendo amplamente expositivo, o importante trabalho de Russell não aborda explicitamente a crítica da deificação na teologia moderna não-ortodoxa. Essa tarefa é realizada em vários estudos históricos aos quais nos voltamos agora.

Em The Ground of Union: Deification em Aquinas e Palamas (1999), Anna Williams [B] compara dois pensadores, cujos projetos teológicos passaram a simbolizar a divisão dos caminhos entre o Ocidente e o Oriente. Mais especificamente, o método teológico escolástico de Aquino é comumente contrastado com a dependência de Palamas na experiência religiosa; a insistência de Palamas de que as energias divinas são incriadas parece contradizer a suposição de que a graça é criada; por fim, o otimismo de Aquino de que o intelecto beatificado pode "ver" a essência de Deus é improvável de ter sido compartilhado por Palamas, que insiste que a essência divina, ao contrário das energias incriadas, permanece incognoscível até mesmo no eschaton.

Williams argumenta que os sistemas teológicos de Tomás de Aquino e Palamas não estão tão distantes como se pensava anteriormente, e que a “base da união” entre eles reside precisamente na doutrina da deificação. Embora Williams admita que Tomás de Aquino raramente menciona a deificação pelo nome, ela, apesar disso, acha a ideia de deificação implícita não apenas no ensino de Aquino sobre virtudes e hábitos, e na santificação, mas também na estrutura geral da Summa Theologiae. [22] De acordo com Williams, os projetos de Aquino e Palamas convergem em uma tentativa comum de defender os dois pólos da doutrina da deificação: a transcendência de Deus e a participação da criatura em Deus. Williams sustenta que as diferenças entre Aquino e Palamas resultam do fato de que, no processo de elaborar suas respectivas visões, um teólogo se inclina demais em um pólo, enquanto negligencia o outro. [23] Na maioria dos casos, como ela argumenta, as diferenças são questões de ênfase e semântica, ao invés de discordância substancial. 

Introduzindo seu estudo, Williams reconhece que sua abordagem histórica é impulsionada por uma preocupação ecumênica para reverter a tendência de colocar Tomás de Aquino contra Palamas. [24] O projeto de Williams parece mais uma tentativa de um teólogo sistemático para aprimorar as teologias de Tomás de Aquino e Palamas, criando um domínio mais elevado no qual suas diferenças poderiam ser reconciliadas. Este domínio, como Williams argumenta de maneira convincente, é a metafísica participativa. É difícil ver, no entanto, como as diferenças substanciais nos projetos de Tomás de Aquino e Palamas poderiam ser reduzidas a questões de semântica. Por exemplo, os comentários de Palamas sobre a natureza do conhecimento teológico não chegam perto do rigor especulativo da cientia aristotélica de Aquino. É igualmente pouco convincente que a distinção essência / energia de Palamas seja puramente nocional e não real: afinal, as pessoas deificadas, mesmo no eschaton, participam da realidade das energias divinas, mas não na realidade da essência divina. Pode ser inteiramente legítimo interpretar a descrição de virtudes e hábitos de Tomás de Aquino como analogias de perfeição divina à luz da deificação - mas o próprio Tomás de Aquino não faz essa conexão. Lendo Aquino, Williams utiliza a mais ampla definição de deificação possível - participação em Deus - e então encontra vários exemplos dessa ideia na teologia de Tomás. Como o leitor verá, esse ampliamento do conceito de deificação é característico não apenas do estudo de Williams, mas também de outros trabalhos que buscam descobrir os pontos de contato entre os Padres Orientais e os teólogos ocidentais do segundo milênio.

Esse ampliamento do conceito [da theosis] é legítimo ou ele deveria ser definido de forma mais restritiva? Quanto do contexto de crenças e práticas concretas associadas à deificação nos Padres Gregos deve ser mantido? A maioria dos primeiros autores patrísticos nos deixa apenas com alusões dispersas sobre o significado da deificação. Somente no começo do século VI, Pseudo-Dionísio, o Areopagita, dá o que parece ser a mais antiga definição explícita na Hierarquia Eclesiástica 1. 3: “deificação é a obtenção da semelhança de Deus e a união com ele na medida do possível.” [25] Aqui o autor do Corpus Dionysiacum identifica a deificação com o apogeu da ascensão divina, a união mística. Mas outros autores (e Pseudo-Dionísio em outros lugares) tratam a deificação de forma mais expansiva, e incluem não apenas a união mística, mas todas as etapas do processo que leva a tal união como parte da theosis.

Parece ser relativamente incontroverso que os conceitos ontológicos de participação, semelhança divina e união com Deus sejam constitutivos da noção de deificação. Uma definição minimalista, assumida por Williams e outros, sustenta que a deificação é a participação em Deus.[26] Um corolário dessa definição, sob o pressuposto da metafísica participativa, é que todas as coisas são deificadas em um grau não especificado: participando do ser, todas as coisas existentes participam em Deus. Sendo tão central a noção de participação para entender a deificação, é necessário uma maior precisão no uso do termo.

Minha discussão sobre uma definição viável da deificação até agora careceu de uma referência cristológica explícita. É geralmente aceito que a fórmula de permuta “Deus se tornou homem para que o homem pudesse se tornar deus” (e suas numerosas versões) fundamenta a deificação na encarnação. Deve-se notar que o significado da fórmula de permuta, quaisquer que sejam seus méritos retóricos, está longe de ser auto-evidente. No contexto da controvérsia ariana, a fórmula de permuta pretendia expressar a crença de que na encarnação o Filho de Deus, permanecendo inteiramente Deus, assumiu a natureza humana; conseqüentemente, esse ato divino permitiu que os seres humanos, permanecendo seres criados, se tornassem semelhantes a Deus pela graça. Há também um conjunto de noções e práticas que esclarecem várias dimensões da deificação. A lista de tais noções inclui adoção filial, libertação, batalha espiritual, libertação do poder do demoníaco, purificação, perdão, justificação, reconciliação, iluminação, perfeição, cura, santificação, transfiguração, glorificação, regeneração, imitação de Cristo, incorporação em Cristo, comunhão, segunda criação, eleição, consumação escatológica, recapitulação, deiformidade, apropriação, sofianização, união mística e assim por diante. Em alguns contextos, a deificação funciona como um termo abrangente que cobre a maioria dessas noções, enquanto em outros contextos a deificação é colocada lado a lado com essas noções como algo completamente distinto delas. No entanto, é comum que os teólogos não-ortodoxos contemporâneos simplesmente reduzam a deificação em uma dessas categorias. Em um artigo recente, Roger Olson questiona este movimento: “É confuso encontrar 'deificação' sendo usada como algo que por muito tempo tem sido chamado 'santificação' ou 'união com Cristo', ou 'comunhão com Deus', ou mesmo 'estar pleno de Deus '. Por que agora adotar a terminologia da deificação se alguém não está disposto a assumir o antigo significado de elevação acima da humanidade na bondade criada através das energias divinas?” [27] [C] Olson segue Vladimir Lossky e Georgios Mantzaridis na suposição de que uma doutrina adequada da deificação deve incluir a distinção essência / energia de Palamas como seu elemento constitutivo. [28]

Para complicar ainda mais as coisas, o contexto patrístico mais amplo da theosis pressupõe também certos pressupostos e práticas antropológicas conducentes à deificação. Autores patrísticos comumente assumem que a luta ascética e a participação na vida sacramental da Igreja são pré-requisitos da deificação. Tal suposição, por sua vez, depende da compreensão sinérgica da operação da graça e do livre arbítrio, bem como de uma visão “elevada” dos sacramentos. Na maioria das discussões sobre deificação nos autores ocidentais, essas suposições antropológicas e sacramentais são convenientemente ignoradas.

Consideremos, por exemplo, a sensacional reinterpretação da doutrina de justificação de Lutero à luz da deificação proposta por um grupo de estudiosos finlandeses chefiados por Tuomo Mannermaa. [29] É revelador que esta linha de interpretação surgiu como resultado da participação de Mannermaa no diálogo ecumênico entre os representantes da Igreja Evangélica Luterana da Finlândia e da Igreja Ortodoxa Russa. [30] De acordo com Mannermaa, a theosis “como expressão de uma estrutura fundamental na teologia de Martinho Lutero” era “improvável até como uma linha de questionamento” uma geração atrás, e “é de fato um tipo extremo de formulação”. [31] Deve ser observado que Mannermaa exagera um pouco o caráter revolucionário de sua descoberta, já que, como o leitor pode recordar, a presença da noção no vocabulário da teologia luterana causou a ira de Karl Barth no início do século.

Os estudiosos finlandeses - mais notavelmente, Mannermaa, Risto Saarinen e Simo Peura - argumentam que Lutero defendia uma versão da metafísica participativa e que a justificação para ele envolvia uma transformação ontológica do fiel como resultado da união com Cristo na fé. É relativamente incontestável que, especialmente em seus primeiros escritos, Lutero recorreu ao conceito de deificação. No entanto, as confissões luteranas posteriores encontraram muito pouco lugar para essa noção. Ainda é um assunto de debate nos estudos sobre Lutero o quão essencial essas noções são para a explicação de Lutero da justificação e se a postura filosófica de Lutero era consistentemente realista.

Está além do escopo deste artigo argumentar a favor ou contra a interpretação finlandesa. Em vez disso, gostaria de voltar à questão metodológica de como o significado da deificação é tanto ampliado quanto deslocado nesta discussão. Consistente com fontes patrísticas, duas idéias são consideradas constitutivas da theosis: participação em Deus e a habitação de Cristo. [32] A extensão da noção de deificação leva a dois problemas.

Primeiro, a deificação é subordinada a um conceito mais geral de justificação - algo que não é feito por nenhum dos autores patrísticos. De fato, na maioria dos tratamentos patrísticos da theosis, a justificação não desempenha nenhum papel. À luz da definição da theosis como a participação em Deus, o segundo ponto parece ser um engano de categoria embaraçoso: todas as coisas participam em Deus, mas somente os seres racionais podem ser justificados. Parece, portanto, que a noção de justificação não pode abranger a deificação (como definida anteriormente).

Em segundo lugar, “a deificação pela graça somente através da fé somente” tem muito pouco valor na Ortodoxia. A maioria dos autores patrísticos simplesmente se recusam a interpretar “obras” como se estivessem em competição causal com a graça. A primazia soteriológica e a necessidade da graça não são enfraquecidas pelo fato de que a aceitação humana da ajuda divina envolve muita luta e esforço ascético. Mas a insistência de Lutero na aceitação passiva da graça não deixa muito espaço para o paradoxo patrístico da passividade humana e a cooperação ativa do livre-arbítrio com a graça - um ponto no qual as antropologias patrística e luterana gregas se separam. Da mesma forma, a ênfase na fé, embora presente em alguns tratamentos patrísticos da deificação, nunca deve excluir a importância de outras virtudes. Para os Padres Gregos, a deificação envolve uma batalha espiritual ao longo da vida, a superação dos vícios e a subida da escada das virtudes (comumente avançada na linguagem que permite uma leitura tanto agostiniana quanto pelagiana). Os pressupostos e práticas antropológicas associadas à deificação em Lutero estão em uma categoria própria. Por mais ecumênico que a discussão sobre a theosis na versão de Lutero da metafísica participativa possa ser, a profunda mudança no significado da deificação não deve ser ignorada.

Em Calvin, Participation and the Gift (2007), Todd Billings explora a possibilidade de que a teologia de Calvino também possa conter um tema de deificação. O ponto central do Billings é semelhante ao de Williams e Mannermaa, já que ele também foca no entendimento de Calvino sobre a participação humana em Deus. No entanto, ao contrário de Williams e Mannermaa, Billings argumenta que poderia haver uma maneira distinta, porém legítima, de falar sobre deificação no Ocidente, que não segue o Oriente Bizantino em detalhes. [33] Billings corretamente adverte que a presença dos temas de união, participação e adoção em um dado autor da Reforma não é suficiente para atribuir ao autor uma doutrina da theosis similar àquela encontrada entre os Padres Gregos.[34] Billings reconhece que a rejeição de Calvino ao sinergismo da graça e do livre arbítrio, assim como a insistência de Calvino na imputação da justiça de Cristo ao fiel, torna a consideração do Reformador sobre a deificação bastante distinta daquela dos Padres Gregos. Eu também acrescentaria que a teologia sacramental de Calvino, apesar de todas as suas complexidades e ambiguidades, carece da ênfase distintiva da teologia patrística na Eucaristia como principal veículo da deificação.

Uma importante coleção de ensaios, co-editada por Michael Christensen e Jeffrey Wittung sob o título Partakers of the Divine Nature: The History and Development of Deification in the Christian Tradition (2007) é baseada nos artigos entregues em uma conferência realizada na Drew University em maio de 2004. [35] Este volume historicamente estruturado, de autoria conjunta de dezoito colaboradores, abrange fontes bíblicas selecionadas (epístolas Paulinas e Petrinas), material patrístico (incluindo Efraim e o autor sírio e copta-árabe Bulus al Bushi), bem como Anselmo, Lutero, Calvino, João Wesley, Sergius Bulgakov e Karl Rahner. Embora vários períodos recebam cobertura desigual - por exemplo, a discussão dos teólogos medievais ocidentais é limitada principalmente a Anselmo - o volume supera todos os trabalhos publicados anteriormente sobre deificação no âmbito histórico. Os contribuintes para o volume baseiam-se nos estudos discutidos anteriormente e também se aventuram em campos antes inexplorados.

Infelizmente, as considerações de espaço permitem-me discutir apenas duas contribuições para este importante volume. Refletindo sobre o lugar da deificação na teologia ortodoxa, Andrew Louth propõe que para a Ortodoxia, a theosis não é um theologoumenon isolado (ou seja, opinião teológica), mas um tema de significado estrutural, um fio condutor presente nas doutrinas da encarnação, cosmologia, escatologia, antropologia e soteriologia. À luz da deificação como o telos da criação, a encarnação se torna mais do que uma operação de resgate divina destinada a reverter as conseqüências da Queda. A deificação fornece o contexto para recuperar o significado cósmico da encarnação: a união das naturezas divina e humana em Cristo torna-se o fundamento da união escatológica de todos os seres criados em Deus. [36]

Examinando o estado atual das pesquisas sobre deificação nos autores ocidentais, Gösta Hallonsten oferece uma nota de cautela que há muito precisava ser dita. O autor observa que há uma falta de definição clara da theosis no trabalho de Williams sobre Tomás de Aquino. A deificação é identificada de forma variada com participação em Deus, união com Deus e santificação. No entanto, como Hallonsten observa corretamente, a presença da doutrina da santificação em Aquino, mesmo que compatível com alguns aspectos da doutrina ortodoxa da theosis, não implica que Tomás de Aquino tenha uma doutrina de deificação.[37] Hallonsten expressa reservas semelhantes no caso da compreensão de Lutero sobre a incorporação em Cristo. Hallonsten propõe uma distinção útil entre tema e doutrina da theosis. A deificação como tema pode envolver noções tais como participação na natureza divina, adoção filial, união com Deus e assim por diante. A doutrina da theosis, insiste Hallonsten, precisa ser definida com mais precisão. A doutrina propriamente dita deve incluir certos pressupostos antropológicos e uma visão soteriológica completa.[38] A valiosa distinção de Hallonsten entre tema e doutrina foi adotada por Billings em seu trabalho sobre Calvino.

A recuperação da deificação em autores ocidentais empreendida por estudiosos contemporâneos segue duas linhas: alguns enfatizam que o significado da deificação em um determinado autor ocidental é fundamentalmente idêntico ou contínuo ao uso patrístico do conceito (Williams, Mannermaa); enquanto outros falam mais cautelosamente de uma distinta reinterpretação ocidental do tema da deificação (Hallonsten, Billings, Olson). A segunda interpretação é mais plausível historicamente, embora talvez menos atraente ecumenicamente.

Além da distinção de Hallonsten entre tema e doutrina da deificação, deve-se também acrescentar a tipologia útil de Norman Russell de usos nominais, analógicos, éticos e realistas da linguagem da deificação. A definição mais ampla da deificação inclui ideias como participação em Deus, semelhança de Deus e união com Cristo, juntamente com a fórmula de permuta. Uma compreensão consideravelmente mais desenvolvida da deificação inclui a antropologia sinérgica, o realismo sacramental e a distinção essência / energia.

De acordo com os estudos históricos pesquisados anteriormente, o consenso sobre a deificação entre Palamas, Aquino, Lutero e Calvino equivale à proposição de que cada teólogo adotou uma versão da metafísica participativa. [39] Assim, o consenso é alcançado apenas para a mais ampla definição possível da deificação e não para a definição mais desenvolvida. Às vezes, esses quatro teólogos recorrem às mesmas imagens bíblicas em suas respectivas soteriologias. Deve-se enfatizar, entretanto, que as diferenças em suas pressuposições antropológicas, em suas compreensões da operação da graça e em suas teologias sacramentais não podem ser reduzidas à semântica.

A recuperação atual do tema da deificação em um número impressionante de autoridades teológicas ocidentais não pode ser atribuída simplesmente ao diligente trabalho de escavação histórica. É provavelmente mais preciso descrever a recuperação da deificação como um feito teológico disfarçado de teologia histórica. Por exemplo, a insistência de Mannermaa de que a theosis é uma "estrutura fundamental" na teologia de Lutero, quaisquer que sejam os méritos históricos de tal afirmação, teve o impacto de lançar uma luz muito diferente, talvez até mesmo incoerente, na doutrina luterana da justificação forense. Portanto, a descoberta da theosis em Lutero não deve ser interpretada incorretamente como um exercício ecumênico benigno. É uma tentativa corajosa de revisar a doutrina “sobre a qual a igreja [luterana] fica de pé ou cai”. Duas coisas acontecem no processo: a explicação padrão da soteriologia de Lutero sofre uma alteração e o significado da deificação muda consideravelmente. A justificação não é mais uma "ficção legal"; a theosis é agora uma espécie de justificação. Tais movimentos envolvem uma constante ida e vinda entre a exposição histórica dos escritos de Lutero e a teologia construtiva. Embora as conseqüências de se falar de theosis em Aquino, ou em alguns teólogos anglicanos e nos Wesleys, sejam menos sísmicas, o tamanho do ampliamento conceitual que tal movimento exige coloca os estudos recentes em uma categoria mista de exposições-históricas-que-se-tornaram-propostas-ecumênicas.

Surge uma pergunta: o que explicaria tal apelo transconfessional da idéia de deificação hoje? Minhas respostas a essa pergunta serão reconhecidamente parciais e provisórias. Obviamente, há agora um interesse mais sistemático entre os teólogos ocidentais na herança do cristianismo do oriente. As rejeições simplistas das distintas afirmações teológicas da tradição ortodoxa, tão comuns no tempo de Harnack, são raras hoje em dia. As acusações retóricas de que a doutrina da deificação é uma heresia ou um absurdo poético estão ausentes das discussões contemporâneas.

Há fortes indícios de que estamos vivendo uma nova onda de ressourcement. Ao contrário da primeira onda, que produziu a nouvelle théologie no catolicismo romano, esta nova onda é transconfessional, envolvendo estudiosos da Igreja Católica Romana, Evangélica, Protestante e Anglicana. O resultado é uma reformulação do campo da teologia sistemática, informada por um envolvimento mais profundo com recursos patrísticos e maior sensibilidade ecumênica. Nesse sentido, Deification and Grace (2007), de Daniel Keating, publicado como parte da série “Introduções à Doutrina Católica” é uma exposição bem informada e lúcida das riquezas da noção patrística da deificação, que, como Keating argumenta, deveria ser totalmente possuída pelo Ocidente. [40] Na teologia católica romana, os predecessores de Keating, que também procuraram recuperar a noção de deificação, incluem Teilhard de Chardin, Hans von Balthasar e Catherine Mowry LaCugna. Entre os luteranos, os resultados controversos da pesquisa finlandesa foram adotados por Carl Braaten e Robert Jenson. Em outras comunhões cristãs, o interesse em nosso tema é igualmente forte. [41]

A deificação oferece uma visão de redenção que move a discussão para além dos opostos tradicionais de, digamos, teorias de substituição penal e influência moral da expiação. Certamente, a ênfase no caráter transformador dos dons da graça, característica do movimento carismático, pode ser melhor adaptado em categorias terapêuticas, como a deificação, do que em categorias jurídicas. Além disso, a linguagem da deificação tende a promover o uso de categorias ontológicas mais abrangentes na soteriologia, e não apenas categorias jurídicas e morais. Quando a noção de participação da criatura em Deus é colocada no coração da teologia - seja como pressuposição, ou como meta, ou ambos - a relação entre as ordens natural e sobrenatural, teologia natural e revelada, liberdade e graça, esferas secular e sagrada, é reconcebida.

Como um exemplo de tal reconceituação, considere o seguinte manifesto teológico: “O arcabouço teológico central da ortodoxia radical é a participação desenvolvida por Platão e reelaborada no cristianismo, porque qualquer configuração alternativa forçosamente reserva um território independente de Deus. Este último pode levar apenas ao niilismo (embora em diferentes formas). A participação, no entanto, recusa qualquer reserva de território criado, ao passo que permite às coisas finitas sua própria integridade.” [42] Embora seja duvidoso se a metafísica participativa é a única ontologia que evita as armadilhas do niilismo, não se pode duvidar que essa ontologia é incompatível com a pressuposto moderno da esfera auto-enclausurada, autoexplicativa e autoperpetuadora do secular.

O renascimento do tema da theosis na teologia sistemática contemporânea é uma medida da disposição dos teólogos ocidentais de se engajar construtivamente com uma idéia tipicamente “oriental”. Claramente, a noção de theosis não é mais “propriedade” do Oriente cristão, se tal propriedade unilateral fosse alguma vez uma possibilidade histórica. Como enfatizei neste artigo de revisão, nas discussões ecumênicas o significado da deificação é freqüentemente ampliado indefinidamente. Se eu puder arriscar uma previsão condicional, a deificação, desde que suas implicações completas sejam realizadas, funcionará como uma bomba-relógio no devido tempo produzindo uma "destruição criativa" das visões soteriológicas desenvolvidas pelas Igrejas da Reforma. Se a idéia terá o poder de aproximar essas igrejas ao Oriente cristão em outros aspectos, por exemplo, desenvolvendo uma compreensão sacramental do mundo ou uma antropologia sinérgica, o tempo mostrará.

Paul L. Gavrilyuk - The retrieval of Deification: How a once-despised archaism became an ecumenical desideratum 


NOTAS


[A] Nota do tradutor. Acrescento aqui um comentário pertinente do teólogo ortodoxo Andrew Louth: 
A doutrina da deificação deixou de ter um papel central na teologia ocidental a partir do século XII, embora tenha tido um lugar continuado entre os místicos. Tal abandono implicou sua marginalização, e suspeita, e também fascinação. (Embora ainda seja importante no místico Bernardo de Claraval, está ausente em Pedro Lombardo, e Aquino só usa a linguagem da deificatio em relação à natureza humana de Cristo, não dos seres humanos.) Não faz mais parte do padrão da teologia católica ou protestante contemporânea; nas tentativas ocidentais de compreendê-la, consequentemente, assimilaram-na a um quadro estranho, e não surpreendentemente, ela se encaixa ali de maneira muito desajustada. (Andrew Louth, “The Place of Theosis in Orthodox Theology”) 

[B] Nota do tradutor. 

Sobre o livro The Ground of Union: Deification in Aquinas and Palamas da A.N. Williams que tenta conciliar o pensamento de Tomás de Aquino e São Gregório Palamas acrescento duas críticas. A primeira feita pelo David Bradshaw, autor do livro Aristotle East and West. A segunda pelo teólogo católico romano Gösta Hallonsten. Esse teólogo faz uma importante distinção entre o tema da theosis e a doutrina da theosis, pois, como foi dito no artigo acima: "a deificação como tema pode envolver noções tais como participação na natureza divina, adoção filial, união com Deus e assim por diante. A doutrina da theosis, insiste Hallonsten, precisa ser definida com mais precisão. A doutrina propriamente dita deve incluir certos pressupostos antropológicos e uma visão soteriológica completa."

David Bradshaw - The Ground of Union: Deification in Aquinas and Palamas por A.N. Williams. Journal of the History of Philosophy 38 (2000), 586-88.
A importância de Palamas para a história da filosofia reside no fato de que ele apresenta uma versão do pensamento cristão que é profundamente enraizado na tradição, e totalmente ortodoxo, mas não deve nada ao escolasticismo ocidental. Uma rápida comparação com Aquino revela vários pontos de divergência. (1) Enquanto Aquino mantém  que todos os atributos e atividades divinas são idênticos à essência divina, sendo as distinções entre eles meramente quoad nos, Palamas mantém que a distinção entre a ousia (essência) divina e energeia não é apenas imposta por nossa perspectiva, mas é verdadeiramente presente em Deus. (2) Enquanto Aquino pouco fala sobre deificação e explicitamente reserva a visão da essência divina para a vida após a morte, Palamas insiste que a deificação é possível nesta vida e que a condição daqueles que a experimentam é similar (embora, claro, não idêntica) a dos bem-aventurados após a ressurreição. (3) Enquanto que Aquino permite que os bem-aventurados, em última análise, alcancem uma visão da essência divina, Palamas mantém que a ousia (essência) divina é intrinsecamente incognoscível para as criaturas. [...] 
The Ground of Union: Deification in Aquinas and Palamas por A.N. Williams, é a primeira comparação de tamanho de livro dessas duas figuras fundamentais. É uma revisão da tese de doutorado da autora, e tem uma certa rigidez característica do gênero; no entanto, é claro e bem informado, e Williams deve ser elogiada por sua tentativa de compreender ambos autores com simpatia. Sua tese geral é que Aquino e Palamas são muito mais próximos do que parecem à primeira vista. Em particular, Tomás de Aquino possui uma doutrina de deificação, embora raramente use o termo, e a distinção de Palamas entre ousia (essência) e energeia é "nominal" em vez de "real". 
Eu não acho que a tentativa de reconciliação seja um sucesso. É verdade que, para Aquino, a graça é "uma participação da natureza divina" e, portanto, um meio de deificação. Mas isso não apaga as diferenças consideráveis entre os dois autores em sua compreensão do que é a deificação e como ela ocorre. Aquino distingue incisivamente entre as operações inferenciais da razão natural e da fé e a visão direta da essência divina (S.T. I Q. 12, art. 11-13; S.C.G.III.39-40, 47). Nesta vida presente há apenas o primeiro; qualquer conhecimento mais direto de Deus só pode ocorrer num estado de êxtase que abandona os sentidos e é "separado desta vida mortal". Para Palamas, em contraste, a luz incriada pode ser vista com olhos corporais, e essa percepção elevada é a condição normal e duradoura daqueles que a alcançaram. Subjacente a essas diferenças está outra: para Palamas, com sua ênfase ascética e monástica, a deificação é uma transformação tanto da carne como da alma. É surpreendente que Williams diga quase nada sobre as diferentes atitudes de Tomás de Aquino e Palamas em relação ao corpo e aos sentidos, pois esta é certamente uma das diferenças cruciais entre eles. 
A ideia de que a distinção da ousia (essência) e energeia é meramente nominal também não se mantém após um exame cuidadoso. Williams defende essa ideia baseando-se na relutância de Palamas em falar da energeia como uma "realidade" que é distinta da mesma forma que a essência divina é distinta das três hipóstases. Mas falar assim apenas distrai o leitor da questão importante; a questão importante é se Palamas pensa que a distinção existe independentemente do pensamento humano ou é meramente quoad nos. A resposta é claramente a primeira (ou seja, é uma distinção independente do pensamento humano). Ele não apenas afirma uma relação causal entre a ousia e as energeiai (até mesmo seguindo Máximo, o Confessor, falando das energeiai como "obras" de Deus), ele também dá as energeiai atributos que não poderiam pertencer à ousia, como de ser plural e de vir a ser e passar no tempo.
Gosta Hallonsten  - Theosis in Recent Research: A Renewal of Interest and a Need for Clarity (Theosis em Pesquisas Recentes: Uma Renovação de Interesse e uma Necessidade de Clareza)
A monografia de A. N. Williams oferece referências mais extensas às doutrinas patrísticas e ortodoxas da deificação, mas ela nunca define expressamente o que ela quer dizer com doutrina da theosis. Ela freqüentemente usa essa terminologia como uma caracterização não apenas da teologia de Gregório Palamas, mas também da de São Tomás. Ela admite, no entanto, que o próprio Thomas raramente fala sobre theosis expressis verbis. Além disso, embora o título do livro pareça equiparar a deificação à união com Deus, às vezes a autora, quase de passagem, define a theosis como santificação. Embora essas duas doutrinas não sejam mutuamente exclusivas, a doutrina da theosis tradicionalmente inclui a santificação e é, de fato, muito mais abrangente. Se encontrarmos em Tomás uma doutrina de santificação que é compatível com o conceito de santificação incluído na doutrina ortodoxa da theosis, isso não significa que a doutrina da santificação em São Tomás necessariamente implique uma doutrina da theosis. [...]

Devemos também considerar aqui o que exatamente se entende por doutrina da deificação no sentido ortodoxo. A escola finlandesa, assim como Williams e muitos outros estudiosos contemporâneos, parecem pensar que o cerne da doutrina da deificação é a participação na vida divina. Essa conclusão parece óbvia, uma vez que se toma como ponto de partida o tema da theosis, que de fato lida principalmente com o objetivo em termos de participação na vida divina. Além disso, isso é sugerido pelas duas principais referências das escrituras. No entanto, se a doutrina da theosis de acordo com os Padres Gregos ou a teologia ortodoxa atual é examinada, será percebido que a deificação como doutrina não é apenas sobre o objetivo final, mas é concebida como uma doutrina abrangente envolvendo toda a economia da salvação. [...] 
Referindo-se à comparação de Williams entre Tomás de Aquino e Palamas, o mais surpreendente é que ela deixa de lado todo esse problema. Sua tese é que ambos os pensadores têm uma doutrina de participação dos seres humanos na vida de Deus, o que é verdade. Como foi dito anteriormente, o simples fato de ter uma doutrina de participação de qualquer tipo, junto com o uso de palavras como deificação, participação da natureza divina, adoção e filiação, para Williams equivale a ter uma doutrina de deificação. O que falta em seu livro é uma discussão real das diferenças entre os dois tipos de participação que Aquino e Palamas ensinam, respectivamente. Esta é uma conseqüência inevitável, tanto quanto eu posso ver, de falta de compreensão da doutrina integral da theosis de acordo com a tradição oriental. [...] Eu acho que a discussão da deificação poderia ser beneficiada com a idéia de que há três nomes diferentes para ela, ou mais precisamente, que a theosis pode se referir a três fenômenos diferentes, que podem estar interconectados - mas nem sempre. Eles são os seguintes: 
1. Primeiro, há o tema da theosis, que na maioria das vezes está relacionado com temas escriturais similares, como adoção e filiação. Embora o tema da theosis seja certamente encontrado na maioria dos escritores cristãos ao longo das eras, isso não deve, entretanto, nos induzir ao erro de falar sobre uma doutrina da theosis. Por uma questão de clareza, gostaria de salientar aqui que o tema da theosis inclui o tema da "permuta feliz"; o admirável commercium.  
2. Segundo, a theosis está conectada a uma certa antropologia, freqüentemente baseada na distinção entre imagem e semelhança e sempre teleologicamente orientada de maneira dinâmica em relação ao protótipo. Este protótipo, a verdadeira imagem de Deus, é Cristo. Assim, a importância da Encarnação como ponto central na economia da salvação. Essa antropologia, além disso, baseia-se ou implica uma visão da relação entre a criação e seu Criador, que é caracterizada pela causalidade formal e implica a presença e ação contínuas da graça ou das energias de Deus desde o início até o fim. 
3. Terceiro, a theosis é uma doutrina abrangente que envolve toda a economia da salvação. Todo o plano de Deus e sua realização da criação através da encarnação, salvação, santificação e o eschaton estão incluídos nesta visão abrangente.. 
Os pontos 2 e 3 estão intimamente juntos, enquanto o ponto 1 é mais independente. Não há dúvida de que existem outras classificações, pois a abrangência desse tópico é um tanto elusiva. No entanto, espero que meu ponto principal leve a uma discussão mais aprofundada, a saber, que uma distinção deve ser feita entre o tema e a doutrina da theosis, e que o rótulo “doutrina da theosis” deveria preferencialmente ser reservado para a doutrina integral da deificação apresentada pela tradição ortodoxa. Promover a compreensão cristã mútua é uma coisa boa. Nós não alcançamos esse objetivo, no entanto, simplesmente por meio da interpretação de similaridades como identidades.

[C] Nota do tradutor. "Bondade criada" não tem a ver com a deificação. O autor citado aqui, Roger Olson, aparentemente se engana. O homem participa nas energias incriadas (incluindo a bondade) de Deus. A definição de deificação utilizada aqui já uma versão diluída se o autor de fato pensa que a bondade é criada. 

1   Adolf von Harnack, History of Dogma, trans. Neil Buchanan (Boston, MA: Little, Brown, and Company, 1901), Vol. 2, p. 318. Como Fergus Kerr observa, “basta apenas rastrear as referências à deificação no índice do ótimo trabalho de Hamack para ver como o tema o deixa irritado.” Veja Fergus Kerr, After Aquinas: Versions of Thomism (Oxford: Blackwell, 2002), p. 155.

2 Veja Stephen Finlan e Vladimir Kharlamov, eds. Theosis: Deification in Christian Theology (Eugene, OR: Pickwick Publications, 2006), p. 8 n. 20, 21.

3   Karl Barth, Church Dogmatics, W. 2. The Doctrine of Reconciliation, editado por G. W. Bromiley
e T. F. Torrance, (Edinburgh: T. & T. Clark, 1958), §64, pp. 81-82. 

4 Karl Barth, CD, I.2. §22, p. 759.

5 Karl Barth, CD, W. 2. §64, p. 68; IV. 1. §59, 181.

6 Karl Barth, CD, I. 2. §1, p. 19.

7 Karl Barth, CD, I. 2. §15, p. 138.

8 Veja Vladimir Lossky, “Redemption and Deification,” em In the Image and Likeness of God, editado por John H. Erickson e Thomas E. Bird,(Crestwood, NY: St Vladimir’s Seminary Press, 1974/2001), p. 99, onde a deificação é nitidamente contrastada com a teoria da satisfação de Anselmo. Mais recentemente, veja Robert G. Stephanopoulos, “The Doctrine of Theosis,” em The New Man: an Orthodox and Reformed Dialogue (New Brunswick, NJ: Agora Books, 1973), pp. 149-161; Daniel B. Clendenin, “Partakers of Divinity: The Orthodox Doctrine of Theosis,” Journal of the Evangelical Theological Society 37/3 (September, 1994), pp. 365-379; at p. 365.

9 Veja, e.g., Emil Bartos, Deification in Eastern Orthodox Theology (Eugene, OR: Wipf & Stock, 1999); Georgios I. Mantzaridis, The Deification of Man (Crestwood, NY: St Vladimir’s Semi­nary Press, 1984).

10 N. R. Kerr, “St Anselm: Theoria and the Doctrinal Logic of Perfection,” em M. J. Christensen e Jeffrey A. Wittung, eds., Partakers of the Divine Nature: The History and Development of Deification in the Christian Traditions (Grand Rapids, MI: Baker Academic, 2007).

11  A. N. Williams, The Ground of Union (Oxford: Oxford University Press, 1999).

12 David B. Hart “The Bright Morning of the Soul: John of the Cross on Theosis,” Pro Ecclesia 12/3 (Summer, 2003), pp. 324-344.

13 Carl E. Braaten and Robert W. Jenson,eds., Union With Christ: The New Finnish Interpretation of Luther (Grand Rapids, MI: Wm. B. Eerdmans Publishing Company, 1998).

14  J. Todd Billings, Calvin, Participation, and the Gift: The Activity of Believers in Union with Christ
(Oxford: Oxford University Press, 2008).

15 A. M. Allchin, Participation in God: A Forgotten Strand in Anglican Tradition (Wilton, CT: Morehouse-Barlow, 1984).

16 S. T. Kimbrough, “Theosis in the Writings of Charles Wesley”, St Vladimir’s Theological Quarterly 52 (2008), pp. 199-212.

17   Richard B. Steele, “Transfiguring Light: The Moral Beauty of the Christian Life According to
Gregory Palamas and Jonathan Edwards,” St Vladimir’s Theological Quarterly 52 (2008), pp. 403-439.

18   Por exemplo, Professor Bruce McCormack do Princeton Theological Seminary chamou a idéia de deificação “idólatra” numa palestra pública dada no Providence College como parte do simpósio “Divine Impassibility and the Mystery of Human Suffering” em Março 30-31, 2007.

19  Suetonius, Life of Vespasian, 23.4.

20  Jules Gross, The Divinization of the Christian According to the Greek Fathers, trans. Paul A. Onica (Anaheim, CA: A & C Press, 2002), p. 271.

21  Russell, The Doctrine of Deification, p. 9.

22  Williams, The Ground of Union, pp. 158-159.

23  Williams, The Ground of Union, pp. 173-174.

24  Williams, The Ground of Union, pp. 8-27.

25  Russell, The Doctrine of Deification, p. 1.

26 Cf. Williams, The Ground of Union, p. 32: “Primeiro, podemos dizer com segurança que, onde encontramos referências à participação humana na vida divina, certamente temos uma afirmação específica da theosis.”

27 Roger E. Olson, “Deification in Contemporary Theology,” Theology Today 64/2 (July, 2007), pp. 186-200; at p. 193.

28  Vladimir Lossky, Mystical Theology of the Eastern Church (Crestwood, NY: Saint Vladimir’s
Seminary Press, 1976/ 1998); Georgios I. Mantzaridis, The Deification of Man (Crestwood, NY: Saint Vladimir’s Seminary Press, 1984); Olson, “Deification in Contemporary Theology,” p. 199.

29 Os resultados desta pesquisa, que tem sido realizada desde 1970, são convenientemente resumidos pelos principais contribuidores em Carl E. Braaten e Robert W. Jenson, eds., Union With Christ (1998).

30  Tuomo Mannermaa, The Christ Present in Faith: Justification and Deification; la contribution to the Ecumenical Dialog, (Hannover, 1989) [Trad. inglesa The Christ Present in Faith: Luther’s View of Justification, trans. Thomas S. Obersat (Minneapolis, MN: Fortress Press, 2005.]; “Why is Luther So Fascinating? Modem Finnish Luther Research,” em Union with Christ: The New Finnish Interpretation of Luther, p. 1.

31 Tuomo Mannermaa, “Theosis as a Subject of Finnish Luther Research,” Pro Ecclesia 4/1 (Winter, 1994), pp. 37-47; at p. 37.

32 Tuomo Mannermaa, “Theosis as a Subject of Finnish Luther Research”, p. 42.

33 J. Todd Billings, “John Calvin: United to God through Christ,” in Partakers of the Divine Nature: The History and Development of Deification in the Christian Tradition, p. 201.

34 J. Todd Billings, Calvin, Participation and the Gift, p. 55.

35 Dois contribuidores para o volume, Stephen Finlan e Vladimir Kharlamov, coeditaram simultaneamente sua própria coleção: Theosis: Deification in Christian Theology (Eugene, OR: Pickwick Publications, 2006). Esta coleção, contendo contribuições de sete estudiosos, é mais modesta em escopo e de menor qualidade do que Partakers of the Divine Nature. O volume inclui uma introdução bem documentada, um capítulo dedicado ao Antigo Testamento, um capítulo sobre 2 Pedro, os próximos seis capítulos sobre autores patrísticos e os dois últimos capítulos dedicados a T. F. Torrance e Vladimir Soloviev.

36 Andrew Louth, “The Place of Theosis in Orthodox Theology,” in Partakers of the Divine Nature, editado por Michael J. Christensen and Jeffery A. Wittung, (Grand Rapids, MI: Baker Academic, 2008), p. 43.

37 Gösta Hallonsten, “Theosis in Recent Research: a renewal of interest and a need for clarity,” pp. 282-283.

38 Ibid., p. 287.

39 Minha conclusão se baseia na valiosa discussão em William T. Cavanaugh, “A Joint Declaration? Justification as Theosis in Aquinas and Luther,” The Heythrop Journal 41/3 (July, 2000), pp. 265-280.

40 Daniel A. Keating, Deification and Grace (Naples, FL: Sapientia Press, 2007).

41 Veja Olson, “Deification in Contemporary Theology,” pp. 188-189. As listas abrangentes de Olson incluem também um teólogo anglicano A. M. Allchin, o teólogo reformado Jürgen Moltmann e teólogos evangélicos como Clark Pinnock, Stanley Grenz, Robert Rakestraw, Daniel Clendenin e Veli-Matti Kärkkäinen.

42 John Milbank, Graham Ward and Catherine Pickstock, “Introduction”, in J. Milbank et al. (eds.) Radical Orthodoxy (London: Routledge, 1999), p. 3.

segunda-feira, 19 de agosto de 2019

Notas sobre o Purgatório


Uma parte significativa dos debates no Concílio de Ferrara-Florença foi dedicada à questão do purgatório e, mais amplamente, à questão do perdão dos pecados após a morte. Tanto latinos quanto gregos concordaram que há cristãos que fazem parte do chamado "estado intermediário" e que, auxiliados pelos sufrágios da Igreja, se juntarão, no devido tempo, ao grupo dos salvos. Mas eles discordaram sobre como essas almas alcançarão a salvação. Os latinos enfatizavam a justiça divina, a punição e a satisfação. A justiça divina exige que aqueles que falharam em oferecer plena satisfação pelos pecados perdoados nesta vida terão que passar por uma punição por meio do fogo no purgatório, até que a satisfação devida seja finalmente oferecida. Os gregos, por outro lado, enfatizavam o amor e o perdão de Deus. Eles repudiaram a idéia do purgatório e do fogo material que queima as almas (imateriais), e rejeitaram a concepção latina de que as almas são punidas pelos pecados já perdoados. Eles argumentaram que as almas das pessoas que morrem com pecados menores e não perdoados experimentarão sofrimentos espirituais na vida após a morte, os quais, no entanto, não são punições divinas, mas consequências auto-infligidas desses pecados. Essas almas serão eventualmente purificadas e salvas graças ao amor e perdão de Deus.[...] 

Apesar de suas diferenças, no entanto, latinos e gregos concordaram em dois pontos fundamentais. Primeiro, há um estado intermediário das almas que estão, por assim dizer, entre o Céu e o Inferno. Em segundo lugar, as orações, as liturgias e os sufrágios em geral da Igreja contribuem para a salvação delas.

No entanto, claramente, os gregos e latinos discordaram sobre o porquê e como essas almas são purificadas e conduzidas à salvação. Os latinos propuseram um princípio metafísico que enfatizava a justiça divina, que exige a punição dos pecadores que já haviam sido perdoados, em nome da satisfação. [...] Os latinos entenderam a purgação principalmente como um processo punitivo por meio de fogo material, no final do qual a justiça divina é satisfeita e a alma é finalmente autorizada a entrar no Paraíso. Neste contexto, os sufrágios dos cristãos devem ser entendidos como oferendas vicárias de satisfação, que reduzem assim a quantidade de tempo que as almas dos falecidos terão que passar no purgatório. A doutrina latina bastante controversa das indulgências se encaixa muito bem dentro deste sistema teológico.

Os gregos abordaram a questão a partir de um ângulo diferente. Como André de Halleux argumentou, eles reagiram "contra uma teologia escolástica que os latinos apresentaram como a fé da Igreja". Embora se referissem repetidamente à justiça divina, a ênfase deles era no amor divino, na purificação e no perdão. [Os gregos] entendiam os sofrimentos das almas não como punições divinas, mas como consequências auto-infligidas do pecado. Eles acreditavam que, através de suas dolorosas experiências após a morte, as almas são purgadas e perdoadas pelo amor divino, com a ajuda das orações e, em geral, com os sufrágios da Igreja. [...]

Ao comentar a concepção latina, Jugie argumentou que uma alma no purgatório é como um prisioneiro. Ela é enviada para cumprir uma certa quantidade de tempo e, depois disso, é liberada quase automaticamente e transferida para o Paraíso. Mas de acordo com Marcos de Éfeso - Jugie continua - embora haja uma purificação das almas graças aos seus sofrimentos pós-vida, a liberação vem apenas de Deus, de fora, ab extrinseco. A observação de Jugie está correta. Para os latinos, a punição vem de Deus, enquanto a liberação vem por si mesma. Para os gregos, a punição vem por si mesma, sendo uma conseqüência do pecado, enquanto o perdão e a liberação da punição vêm somente de Deus. As duas abordagens são claramente diferentes. A ênfase latina é na justiça e punição de Deus. A ênfase grega está no amor e perdão de Deus.

O exame dos textos em latim e grego sobre o purgatório no Concílio de Ferrara - Florença levou-me à conclusão de que as seguintes observações de John Meyendorff não estão longe da verdade:
O debate sobre o purgatório entre gregos e latinos, no qual Marcos foi o principal porta-voz grego, expôs uma radical diferença de perspectiva. Enquanto os latinos tomaram por certo sua abordagem legalista da justiça divina - que, segundo eles, requer uma retribuição por todo ato pecaminoso - os gregos interpretaram o pecado menos em termos dos atos cometidos e mais em termos de uma doença moral e espiritual que seria curada pela clemência e amor de Deus. [...] O legalismo, que aplicava ao destino humano individual a doutrina anselmiana da "satisfação", é a ratio theologica da doutrina latina do purgatório. Para Marcos de Éfeso, porém, a salvação é comunhão e "deificação".
[...] As concepções gregas sobre o purgatório apresentaram um poderoso desafio ao sistema medieval penitencial católico-romano, sua projeção para a vida após a morte e a teologia que o sustentava. Marcos e os gregos deram o melhor de si para serem ouvidos pelos latinos. Mas eles não foram. ... A Igreja latina havia desenvolvido um sistema penitencial completo, que estendia seu poder neste mundo e no próximo. [...] Assim, as doutrinas latinas sobre o purgatório que os gregos contestaram no Concílio unionista de Ferrara - Florença estão por trás do surgimento do protestantismo e da subsequente, e provavelmente irreversível, destruição da unidade do cristianismo ocidental. Nas palavras de Le Goff, "graças ao Purgatório, a Igreja desenvolveu o sistema de indulgências, uma fonte de grande poder e lucro, até que se tornou uma arma perigosa que por fim voltou-se contra a Igreja". Até mesmo Gill teve que admitir que "o Concílio de Florença tornou a Reforma inevitável".

Fonte: Love, Purification, and Forgiveness versus Justice, Punishment, and Satisfaction: The Debates on Purgatory and the Forgiveness of Sins at the Council of Ferrara – Florence por Demetrios Bathrellos

* * * 

Em seu livro A Alma após a Morte Pe. Serafim Rose faz o seguinte comentário introdutório sobre as homilias de São Marcos que refutam o fogo purgatorial: 

O ensinamento ortodoxo sobre o estado das almas após a morte é algo que muitas vezes não é totalmente compreendido, mesmo pelos próprios cristãos ortodoxos; e o ensinamento latino relativamente tardio do "purgatório" causou ainda mais confusão na mente das pessoas. A doutrina ortodoxa em si, no entanto, não é de todo ambígua ou imprecisa. Talvez a exposição ortodoxa mais concisa seja encontrada nos escritos de São Marcos de Éfeso, no Concílio de Florença, em 1439, composta precisamente para responder ao ensinamento latino sobre o "purgatório". Estes escritos são especialmente valiosos para nós, uma vez que são do último dos Padres Bizantinos, antes da era moderna com todas as suas confusões teológicas. Ambos nos apontam para as fontes da doutrina Ortodoxa e nos instruem sobre como abordar e entender essas fontes. Essas fontes são: as Escrituras, as homilias patrísticas, os ofícios da Igreja, as Vidas dos Santos e certas revelações e visões da vida após a morte, como as contidas no Livro IV dos Diálogos de São Gregório Magno.

Os teólogos acadêmicos de hoje tendem a desconfiar dos últimos dois ou três tipos de fontes, e é por isso que freqüentemente se sentem desconfortáveis ao falar sobre esse assunto e às vezes preferem manter uma "reticência agnóstica" em relação a ele (Timothy Ware, The Orthodox Church, p. 259). Os escritos de São Marcos, por outro lado, mostram-nos o quanto "em casa" estão os genuínos teólogos com essas fontes; aqueles que estão "desconfortáveis" com elas revelam talvez uma infecção insuspeita de incredulidade moderna.

Das quatro respostas de São Marcos sobre o purgatório, compostas no Concílio de Florença, a Primeira Homilia contém o relato mais conciso da doutrina ortodoxa, contra os erros latinos, e é principalmente dela que esta tradução foi compilada. As outras respostas contêm sobretudo material ilustrativo para os pontos discutidos aqui, assim como respostas a argumentos latinos mais específicos.

O "Capítulo Latino" ao qual São Marcos responde são aqueles escritos pelo cardeal Juliano Cesarini (tradução russa em Pogodin, pp. 50-57), que expõe o ensinamento latino, definido anteriormente no Concílio de "União" de Lyon (1270), sobre o estado das almas após a morte. Esse ensinamento choca o leitor ortodoxo (como de fato chocou São Marcos) devido ao seu caráter inteiramente "literalista" e "legalista". Os latinos nessa época passaram a considerar o céu e o inferno como "finais" e "absolutos" e aqueles que estavam neles já possuíam a plenitude do estado que terão após o Juízo Final; assim, não há necessidade de orar por aqueles que estão no céu (cujo destino já é perfeito) ou por aqueles no inferno (pois eles nunca podem ser libertos ou purificados do pecado). Mas como muitos dos fiéis morrem num estado "intermediário" - não suficientemente perfeito para o céu, mas não suficientemente mau para o inferno - a lógica dos argumentos latinos exigia um terceiro lugar de purificação ("purgatório"), onde mesmo aqueles cujos pecados já tinham sido perdoados tinham que ser punidos ou oferecer "satisfação" por seus pecados antes de serem suficientemente purificados para entrar no céu. Esses argumentos legalistas de uma "justiça" puramente humana (que na verdade nega a suprema bondade de Deus e o amor da humanidade) os latinos passaram a defende-los através de interpretações literalistas de certos textos patrísticos e várias visões; quase todas essas interpretações são bastante arbitrárias e inventadas, porque nem mesmo os antigos Padres latinos falaram de um lugar como "purgatório", mas apenas da "purificação" dos pecados após a morte, que alguns deles referiam (provavelmente alegoricamente) como por "fogo".

Na doutrina ortodoxa, por outro lado, que São Marcos ensina, os fiéis que morreram com pequenos pecados não confessados, ou que não produziram frutos de arrependimento pelos pecados que confessaram, são purificados destes pecados ou no processo da própria morte com seu medo, ou após a morte, quando eles estão confinados (mas não permanentemente) no inferno, pelas orações e Liturgias da Igreja e boas ações executadas para eles pelos fiéis. Mesmo os pecadores destinados ao tormento eterno podem receber um certo alívio de seu tormento no inferno por esses meios também. Não há fogo que atormenta os pecadores agora, nem no inferno (pois o fogo eterno começará a atormentá-los somente depois do Juízo Final), nem muito menos em qualquer terceiro lugar como o "purgatório"; todas as visões de fogo que são vistas pelos homens são, por assim dizer, imagens ou profecias do que será na era futura. Todo perdão dos pecados após a morte vem somente da bondade de Deus, que se estende até aos que estão no inferno, com a cooperação das orações dos homens, e nenhum "pagamento" ou "satisfação" é oferecida pelos pecados que foram perdoados.

Deve-se notar que os escritos de São Marcos dizem respeito primariamente ao ponto específico do estado das almas após a morte e pouco falam sobre os eventos que ocorrem à alma imediatamente após a morte. Sobre isso há uma literatura ortodoxa abundante, mas este ponto não estava em discussão em Florença.

* * * 

Sobre alguns conceitos da teologia Católica Romana
Os comentários abaixo foram retirados de uma discussão no forum orthodoxchristianity (http://www.orthodoxchristianity.net/forum/index.php/topic,13820.0.html)

O Purgatório existe para lidar com a expiação da pena temporal devido ao pecado pessoal pós-batismal, aquela parte da pena que a pessoa não pôde expiar enquanto esteve na terra.

O propósito do purgatório é a expiação do pecado, ou a quitação da dívida da pena temporal (Trento, Sessão 6, Canon 30). O Catecismo da Igreja Católica fala sobre "aqueles que estão expiando seus pecados no purgatório" (parágrafo 1475). "Expiar" significa reparar uma ofensa ou injúria. Essa expiação é alcançada através do sofrimento da alma. A menos que seja completada na terra, "a expiação deve ser feita na próxima vida através do fogo e tormentos ou purificação por punições". E novamente, aqueles "que não ofereceram satisfação com a penitência adequada de seus pecados e omissões são purificados após a morte com punições destinadas a expurgar suas dívidas" (Vaticano II, Constituição Apostólica sobre a Revisão de Indulgências, 1967).

* * * 

Sobre a pena temporal
Que a pena temporal é devida ao pecado, mesmo depois que o próprio pecado foi perdoado por Deus, é claramente o ensino da Escritura. Deus de fato tirou o homem de sua primeira desobediência e lhe deu poder para governar todas as coisas (Sabedoria 10: 2), mas ainda o condenou a "comer seu pão com o suor de sua testa" até que ele volte ao pó. Deus perdoou a incredulidade de Moisés e Arão, mas como punição os manteve fora da "terra da promessa" (Números 20:12). O Senhor perdoou o pecado de Davi, mas a vida da criança foi levada porque Davi fez os inimigos de Deus blasfemarem Seu Santo Nome (2 Samuel 12: 13-14). Tanto no Novo Testamento como no Velho, a esmola e o jejum e, em geral, os atos penitenciais são os verdadeiros frutos do arrependimento (Mateus 3: 8; Lucas 17: 3; 3: 3). Todo o sistema penitencial da Igreja testifica que a assunção voluntária de obras penitenciais sempre fez parte do verdadeiro arrependimento e o Concílio de Trento (Sess. XIV, can. Xi) lembra aos fiéis que Deus nem sempre perdoa a punição total devida a pecado junto com a culpa. Deus requer satisfação e punirá o pecado, e essa doutrina envolve como conseqüência necessária a crença de que o pecador que não fizer penitência nesta vida pode ser punido em outro mundo e, assim, não ser afastado eternamente de Deus. (Enciclopédia Católica - http://www.newadvent.org/cathen/12575a.htm)

* * * 

O Papa Bento XVI reconhece uma diferença substancial entre os ortodoxos e a posição da igreja católica romana sobre o assunto:
Há ainda um motivo que deve ser mencionado aqui, porque é importante para a prática da esperança cristã. No antigo judaísmo, existe também a ideia de que se possa ajudar, através da oração, os defuntos no seu estado intermédio (cf. por exemplo, 2Mac 12,38-45: obra do I século a.C.). A prática correspondente foi adotada pelos cristãos com grande naturalidade e é comum à Igreja oriental e ocidental. O Oriente não conhece um sofrimento purificador e expiatório das almas no « além », mas conhece diversos graus de bem-aventurança ou também de sofrimento na condição intermédia. Às almas dos defuntos, porém, pode ser dado « alívio e refrigério » mediante a Eucaristia, a oração e a esmola. O fato de que o amor possa chegar até ao além, que seja possível um mútuo dar e receber, permanecendo ligados uns aos outros por vínculos de afeto para além das fronteiras da morte, constituiu uma convicção fundamental do cristianismo através de todos os séculos e ainda hoje permanece uma experiência reconfortante. (Carta Encíclica - Spe Salvi) 
* * * 

Essa definição dual de 'pena' é estranha à teologia ortodoxa:
1473. O perdão do pecado e o restabelecimento da comunhão com Deus trazem consigo a abolição das penas eternas do pecado. Mas subsistem as penas temporais. O cristão deve esforçar-se por aceitar, como uma graça, estas penas temporais do pecado, suportando pacientemente os sofrimentos e as provações de toda a espécie e, chegada a hora, enfrentando serenamente a morte: deve aplicar-se, através de obras de misericórdia e de caridade, bem como pela oração e pelas diferentes práticas da penitência, a despojar-se completamente do «homem velho» e a revestir-se do «homem novo» (83). (Catecismo da Igreja Católica)  
* * * 
Sobre a natureza do fogo do purgatório

O padre Hardon tem sido um dos principais defensores da fé católica nos últimos 40 anos. Seus trabalhos estão em toda parte, na EWTN, etc., O pe. Hardon serviu como consultor para a elaboração do Catecismo da Igreja Católica, promulgado pelo papa João Paulo II em 1992: 
Os escritores da tradição latina são bastante unânimes em afirmar que o fogo do purgatório é real e não metafórico. Eles argumentam a partir do ensino comum dos Padres latinos, de alguns Padres gregos e de certas declarações papais como a do papa Inocêncio IV, que falou de “um fogo transitório” (DB 456). ("A Doutrina do Purgatório" do Pe. John A. Hardon,)

sábado, 17 de agosto de 2019

O dogma católico romano da Imaculada Conceição

Nenhum dos antigos Santos Padres diz que Deus, de maneira miraculosa, purificou a Virgem Maria enquanto ainda estava no ventre; e muitos indicam diretamente que a Virgem Maria, assim como todos os homens, suportara uma batalha contra o pecado, mas foi vitoriosa sobre as tentações e foi salva por Seu Divino Filho.
São João Maximovitch (A Veneração Ortodoxa à Mãe de Deus)

A Igreja Ortodoxa, que exalta imensamente a Mãe de Deus em seus hinos de louvor, não se atreve a atribuir-lhe aquilo que não foi comunicado sobre Ela pela Sagrada Escritura ou Tradição. 
O ensino de que a Mãe de Deus foi purificada antes de Seu nascimento, para que dela possa nascer o Puro Cristo, não tem sentido; porque se o Puro Cristo pudesse nascer somente se a Virgem tivesse nascido pura, seria necessário que Seus pais também fossem puros do pecado original, e eles também teriam que nascer de pais purificados, e indo mais longe nesta lógica, alguém chegaria à conclusão de que Cristo não poderia ter se encarnado, a menos que todos os Seus antepassados na carne, até Adão inclusive, tivessem sido purificados de antemão do pecado original. Mas então não teria havido necessidade da própria encarnação de Cristo, visto que Cristo desceu à terra para aniquilar o pecado.

São João Maximovitch (A Veneração Ortodoxa à Mãe de Deus)

A doutrina sobre a ausência de pecado concedida por graça à Virgem Maria nega Sua vitória sobre as tentações, uma vitória que é digna de ser coroada com coroas de glória, e isto faz d'Ela um instrumento cego da Providência Divina.
São João Maximovitch (A Veneração Ortodoxa à Mãe de Deus)

Este dom que foi concedido a Ela pelo Papa Pio IX, e por todos que pensam na possibilidade de glorificar a Mãe de Deus ao buscar novas verdades, não promove uma exaltação ou uma glória maior, mas um rebaixamento d'Ela. A Santíssima Virgem Maria foi muito glorificada pelo próprio Deus, Sua vida na terra é tão exaltada quanto Sua glória no céu, de modo que nenhuma invenção humana poderia acrescentar mais glória e honra a Ela. Aquilo que as pessoas inventam apenas obscurece diante de seus olhos a face d'Ela. Vede que ninguém vos faça presa por meio de filosofias e vãs sutilezas, segundo a tradição dos homens, segundo os rudimentos do mundo, e não segundo Cristo, escreveu o apóstolo Paulo pelo Espírito Santo (Col 2,8).
São João Maximovitch (A Veneração Ortodoxa à Mãe de Deus)
“De todos os nascidos de mulheres, não há um único que seja perfeitamente santo, além do Senhor Jesus Cristo, que em um novo modo especial de nascimento imaculado, não experimentou mácula terrena”
Santo Ambrósio, Comentário sobre Lucas, cap. 2.
“Um só homem, o Intermediário entre Deus e o homem, está livre dos laços do nascimento pecaminoso, porque nasceu de uma virgem e porque ao nascer não experimentou o toque do pecado”
Santo Ambrósio, Contra Juliano, Livro 2.
“Agora estou temeroso, vendo que alguns de vocês desejaram mudar a condição de importantes matérias, introduzindo um festival novo e desconhecido na Igreja, não aprovado pela razão, injustificado pela antiga tradição. Somos nós realmente mais instruídos e pios que nossos padres? Vocês dirão, 'Deve-se glorificar a Mãe de Deus tanto quanto possível.' Isso é verdade; mas a glorificação oferecida à Rainha do Céu exige discernimento. Esta Virgem Real não precisa de falsas glorificações, possuindo como Ela possui verdadeiras coroas de glória e sinais de dignidade. Glorifiquem a pureza de Seu corpo e a santidade de Sua vida. Maravilhem-se com a abundância de dons desta Virgem, venerem Seu Divino Filho; exaltem Ela Que concebeu sem conhecer concupiscência e deu à luz sem conhecer a dor. Mas o que ainda é necessário adicionar a estas dignidades? O povo diz que deve-se reverenciar a concepção que precedeu ao nascimento glorioso; porque se a concepção não houvesse precedido-o, o nascimento também não seria glorioso. Mas o que aconteceria se alguém dissesse que, pelo mesmo motivo, deveria haver o mesmo tipo de veneração ao pai e à mãe da Santa Maria? Alguém poderia igualmente desejar o mesmo para Seus avós e bisavós, ao infinito. Além disso, como não haveria pecado num lugar em que houve concupiscência? Que alguém não diga que a Santa Virgem foi concebida pelo Espírito Santo e não por um homem. Eu digo decisivamente que o Espírito Santo desceu sobre Ela, mas não que Ele veio com Ela.”
Bernardo de Claraval (Santo Católico Romano pós-cisma) 
“Eu afirmo que a Virgem Maria não poderia ser santificada antes de Sua concepção, já que Ela não existia. Se, além disso, Ela não pudesse ser santificada no momento de Sua concepção devido ao pecado que é inseparável da concepção, então só resta acreditar que Ela foi santificada depois de ter sido concebida no ventre de Sua mãe. Esta santificação, se ela aniquila o pecado, torna santo Seu nascimento, mas não Sua concepção. A ninguém é dado o direito de ser concebido em santidade, pois apenas o Senhor Cristo foi concebido pelo Espírito Santo e somente Ele é santo desde Sua exata concepção. Exceto Ele, faz-se necessário reiterar a todos os descendentes de Adão o que um deles afirma sobre si mesmo, em reconhecimento da verdade e pleno de um espírito de humildade: Eis que em iniquidades fui concebido (Sal 50,7). Como alguém pode exigir que esta concepção seja santa, quando não foi obra do Espírito Santo, para não mencionar que ela vem da concupiscência? A Santa Virgem, claro, rejeita aquela glória que, evidentemente, glorifica o pecado. Ela não pode, de modo algum, justificar uma novidade inventada apesar da doutrina da igreja, uma novidade que é a mãe da imprudência, a irmã da descrença e a filha da irreflexão.” 
Bernardo de Claraval (Santo Católico Romano pós-cisma, Epístola 174) 

“Não há ninguém sem mácula perante Ti, nem que sua vida tenha durado apenas um dia, Tu sozinho salvas, Jesus Cristo nosso Deus, Que apareceste na terra sem pecado, e através de Quem nós todos confiamos obter a misericórdia e a remissão dos pecados”
(São Basílio, o Grande, Terceira Oração das Vésperas de Pentecostes).

"E no que se refere à excelente dignidade de Cristo, que Ele é o Redentor e Salvador de todos, e que Ele abre a porta para todos, e que somente Ele morreu por todos, a Virgem Maria não está excluída desta generalidade... E assim a mãe atesta, que deseja que o Filho seja mais exaltado e honrado do que ela mesma, o Criador que a criatura ".
Boaventura (Santo Católico Romano pós-cisma) 

Não é à toa que a Igreja Ortodoxa, em seus textos litúrgicos, chama David “o ancestral de Deus” e dá o mesmo nome de “ancestrais santos e justos de Deus” para Joaquim e Anna. O dogma católico romano da Imaculada Conceição parece romper esta sucessão ininterrupta de santidade do Antigo Testamento, que atinge seu cumprimento no momento da Anunciação, quando o Espírito Santo desceu sobre a Virgem para fazê-la apta a receber a Palavra do Pai em seu ventre. A Igreja Ortodoxa não admite a exclusão da Santíssima Virgem do resto da humanidade caída - a ideia de um "privilégio" que a torna um ser resgatado antes da obra redentora, em virtude dos futuros méritos de seu Filho.  
Vladimir Lossky (Panagia: a Toda-Santa

A doutrina da Imaculada Conceição, proclamada pelos católicos romanos em 1854, é rejeitada pela Igreja Ortodoxa, mas sem, de modo algum, diminuir a dignidade da Mãe de Deus. De fato, de acordo com os Padres, a herança de Adão não consiste em uma responsabilidade pessoal de todos os homens pelo pecado original, mas simplesmente na herança das conseqüências desse pecado: morte, corrupção e as paixões ... Portanto, os Ortodoxos não têm dificuldade em reconhecer que a Mãe de Deus era herdeira, como nós, das conseqüências do pecado de Adão - somente Cristo foi livre - mas ao mesmo tempo [reconhecer que ela era] pura e sem pecado pessoal, pois ela livremente manteve-se longe de toda atração pelo mundo e pelas paixões, e ela cooperou voluntariamente no desígnio de Deus, obedecendo a Sua vontade com docilidade: "Eis aqui a serva do Senhor; cumpra-se em mim segundo a tua palavra", ela respondeu ao anjo Gabriel (Lucas 1:38). 
(Synaxarion, Vol. II, p. 361)

* * *

Entrevista com o Patriarca Ecumênico Bartolomeu 

Em dezembro de 2004, o jornal do Vaticano Thirty Days publicou uma matéria sobre o 150º aniversário da proclamação romana da Imaculada Conceição como dogma. Como parte disso, eles entrevistaram o Patriarca Ecumênico Bartolomeu sobre o Akathiste Ortodoxo para a Theotokos - uma oração / poema / canção verdadeiramente bela - e de passagem perguntaram a ele sobre o dogma católico romano da Imaculada Conceição. O patriarca disse-lhes educadamente que o dogma estava errado e identificou corretamente suas raízes como sendo da noção [ocidental] do pecado original. É uma breve apresentação da posição ortodoxa:

(Pergunta): A Igreja Católica celebra este ano os cento e cinquenta anos da proclamação do dogma da Imaculada Conceição. Como é que a Tradição Cristã Oriental e a Bizantina celebram a Concepção de Maria e a sua plena e imaculada santidade?

Bartolomeu I: A Igreja Católica achou que precisava instituir um novo dogma para a cristandade cerca de mil e oitocentos anos após o aparecimento do cristianismo, porque havia aceitado um entendimento do pecado original - um entendimento equivocado para nós, Ortodoxos - de acordo com o qual o pecado original transmite uma mácula moral ou uma responsabilidade legal aos descendentes de Adão, em vez [de transmitir aquilo] reconhecido como correto pela fé ortodoxa - segundo o qual o pecado transmitiu através da herança a corrupção, causada pela separação da humanidade da graça incriada de Deus, que o fez viver espiritualmente e na carne. A humanidade moldada à imagem de Deus, com a possibilidade e destino de ser semelhante a Deus, escolhendo livremente o amor para com Ele e obedecendo a seus mandamentos, pode até depois da queda de Adão e Eva tornar-se amigo de Deus segundo a intenção; então Deus os santifica, assim como santificou muitos dos progenitores antes de Cristo, mesmo que a plena realização do resgate da corrupção, isto é, salvação deles, tenha sido atingida depois da encarnação de Cristo e através dEle.

Consequentemente, de acordo com a fé ortodoxa, Maria, a Mãe Santíssima de Deus, não foi concebida como isenta da corrupção do pecado original, mas amava a Deus acima de todas as coisas e obedecia aos seus mandamentos e assim foi santificada por Deus através de Jesus Cristo que encarnou-se a partir dela. Ela obedeceu como dos fiéis e dirigiu-se a Ele com a confiança de uma mãe. Sua santidade e pureza não foram prejudicadas pela corrupção, transmitida a ela pelo pecado original como a todo homem, precisamente porque ela renasceu em Cristo como todos os santos, santificada acima de todos os santos.

Sua restituição à condição anterior à Queda não ocorreu necessariamente no momento de sua concepção. Acreditamos que isso aconteceu depois, como consequência do progresso da ação da graça divina incriada através da visita do Espírito Santo, que causou a concepção do Senhor nela, purificando-a de toda mácula.

Como já foi dito, o pecado original pesa sobre os descendentes de Adão e Eva como corrupção, e não como responsabilidade legal ou mácula moral. O pecado trouxe corrupção hereditária e não uma responsabilidade legal hereditária ou uma mácula moral hereditária. Em conseqüência, a Toda-Santa participou da corrupção hereditária, como toda a humanidade, mas com seu amor a Deus e sua pureza - compreendida como uma dedicação imperturbável e sem hesitação no amor por Deus - ela conseguiu, através da graça de Deus, santificar-se em Cristo e tornar-se digna de se tornar a casa de Deus, como Deus quer que todos nós, seres humanos, nos tornemos.

Portanto, nós, na Igreja Ortodoxa, honramos a Santíssima Mãe de Deus acima de todos os santos, embora não aceitemos o novo dogma de sua Imaculada Conceição. A não aceitação deste dogma não diminui de forma alguma o nosso amor e veneração da Mãe Santíssima de Deus.

* * * 
Notas do blog skemmata:

[1] Confira o excelente ensaio do Vladimir Lossky sobre a Imaculada Conceição aqui

[2] O livro "A Veneração Ortodoxa à Mãe de Deus" de São João Maximovitch foi traduzido para o português e pode ser comprado pela editora Theotokos: http://editoratheotokos.com.br/livros.php



sexta-feira, 16 de agosto de 2019

São Fócio o Grande, o Concílio Fociano e as relações com a Igreja Católica Romana (Dr. David Ford)

Introdução


Há uma discussão considerável hoje dentro da Igreja Ortodoxa sobre o status do chamado "Concílio Fociano", realizado em Constantinopla em 879-880. Este é um concílio extremamente importante na história da Igreja Ortodoxa e, portanto, merece ser amplamente conhecido entre os fiéis ortodoxos. E este Concílio é de especial relevância para nossa Igreja Ortodoxa vis-à-vis a Igreja Católica Romana, pois ele 1), oficialmente proibiu qualquer adição ao Credo de Nicéia, rejeitando assim a cláusula Filioque, que estava em uso em muitas igrejas em Europa Ocidental naquela época (embora não em Roma até 1014); e 2), implicitamente rejeitou o princípio da Supremacia Papal, ou autoridade jurisdicional sobre as Igrejas Orientais, na medida em que este Concílio anulou o Concílio Inaciano pró-papal realizado em Constantinopla dez anos antes. Mas em uma das maiores ironias da história cristã, o Concílio Fociano foi reconhecido como legítimo pelo papado por quase 200 anos até o período da Reforma Gregoriana, quando os canonistas do papa Gregório VII (1073-1085) rejeitaram o Concílio Fociano e ressuscitaram o Concílo Inaciano para tomar o seu lugar.


Minha opinião pessoal é que essa substituição, 200 anos após o fato, foi facilitada pela Igreja Romana devido à circunstância de que a Igreja Oriental não havia proclamado o Concílio Fociano como o Oitavo Concílio Ecumênico. Há razões compreensíveis para essa circunstância, que discutirei no final deste artigo. Por ora, observarei simplesmente que essa substituição tornou a reconciliação entre a Igreja Católica Romana e a Igreja Ortodoxa tremendamente mais difícil ao longo dos séculos - já que o Filioque e a Supremacia Papal tem sido os dois maiores obstáculos que impedem a reconciliação até hoje.

O contexto básico da história desses dois concílios 

São Fócio o Grande (815 - c. 891) tem sido chamado de "o pensador mais ilustre, o político mais destacado, e o mais hábil diplomata a ocupar o cargo de Patriarca de Constantinopla". [1]

Ele era da alta nobreza de Constantinopla. Seus pais, Sergios Georgios e Irene, sofreram como confessores da fé, pois defenderam a veneração dos ícones sagrados durante a segunda onda da heresia do Iconoclasmo e são santos em nossa Igreja. Eles foram exilados e separados de seu filho quando ele tinha cerca de nove anos de idade; eles aparentemente nunca mais o viram. A festa deles é 13 de maio. E o tio de Fócio era São Tarásio, o Patriarca de Constantinopla que presidiu o Sétimo Concílio Ecumênico, realizado em Nicéia em 787, que oficialmente defendeu os ícones contra os iconoclastas.

O jovem Fócio recebeu uma excelente educação clássica sob a supervisão de parentes. Logo no início mostrou interesse pelo monasticismo, mas decidiu seguir carreira de estadista, tendo excelentes conexões na corte imperial. No início, ele serviu como secretário imperial e depois como embaixador em Bagdá. Mais tarde, tornou-se professor da recém-revigorada Universidade de Constantinopla, que desempenhou um papel fundamental no grande renascimento da cultura e da aprendizagem que ocorreu em Bizâncio após o Triunfo da Ortodoxia em 843, que restaurou de uma vez por todas a veneração dos ícones sagrados.

Em 23 de outubro de 858, o patriarca Inácio de Constantinopla renunciou ao cargo, sob pressão do imperador Miguel III (filho da Imperatriz Santa Teodora), a pedido de César Bardas, irmão de Teodora e praticamente primeiro-ministro do governo, cuja relação com sua nora o Patriarca Inácio havia condenado como incestuosa - embora isso possa ter sido uma acusação infundada. De acordo com o proeminente historiador católico romano Francis Dvornik,  Inácio também renunciou “por conselho dos bispos que estavam desejosos em evitar um conflito entre a Igreja e o governo”. [2] Dvornik imediatamente diz que Inácio
pediu a seus partidários que selecionassem um novo patriarca. Em um sínodo local, os bispos de ambos os partidos [os rigoristas apoiando Inácio e os moderados apoiando Fócio] recomendaram ao imperador o leigo Fócio [cujo brilhante talento era conhecido], evitando a eleição de um bispo de cada partido rival. Fócio foi reconhecido como o legítimo patriarca por todos os bispos, até mesmo pelos cinco mais fiéis partidários de Inácio, depois que Fócio lhes deu certas garantias quanto à posição de Inácio após sua abdicação [3].
858: Consagração dos Fócio como Patriarca

Muito relutantemente, Fócio aceitou esta convocação completamente inesperada pela Igreja e pelo Imperador para ser o novo patriarca. E uma vez que a Natividade do Senhor estava se aproximando em breve, e um patriarca seria necessário para liderar os serviços, Fócio foi elevado à posição de Patriarca através de cerimônias de tonsura, ordenação diaconal e sacerdotal, e consagração como bispo em cinco dias consecutivos (Santo Ambrósio de Milão foi elevado de leigo para bispo da mesma forma rápida em 386, assim como São Tarasios em 784). Sua consagração como patriarca foi realizada pelo Bispo "Gregório Asbestos, líder dos liberais, e por dois bispos inacianos." [4]

Agora a situação complica! De acordo com Dvornik,
Cerca de dois meses após a ordenação de Fócio, os seguidores extremos de Inácio, reunidos na igreja de Santa Irene, recusaram a obediência ao novo patriarca e exigiram o restabelecimento de Inácio. A razão para essa ação pode ter sido interpretações divergentes da natureza das garantias dadas por Fócio aos cinco líderes do partido inaciano. Fócio convocou um sínodo na igreja dos Santos Apóstolos (859). A parte contrária impediu a condenação deles provocando uma rebelião (Zonnaras, PG 137: 1004f), que tinha um fundo político e que foi suprimida com derramamento de sangue pela polícia imperial. Fócio protestou contra a crueldade da polícia e ameaçou Bardas com sua abdicação [Dr. David Ford: certamente isso é uma clara indicação de sua falta de cobiça pela posição, como os críticos ocidentais tantas vezes o acusaram por séculos]. 
Depois que a paz foi estabelecida, o sínodo foi convocado novamente na igreja do palácio Blachernae. A fim de privar a oposição de qualquer alegação sobre a legitimidade do patriarcado de Inácio, o sínodo declarou, a pedido de Bardas, que todo o patriarcado de Inácio foi ilegítimo porque ele não havia sido eleito por um sínodo, mas foi simplesmente nomeado pela Imperatriz [Santa] Theodora [em 847]. Durante os tumultos, Inácio e alguns de seus seguidores foram presos. Inácio foi detido em vários lugares, por fim em um mosteiro na ilha de Terebinthus. Bardas, no entanto, deve ter se convencido de que Inácio não havia sido responsável pelos tumultos, porque permitiu que ele ficasse no palácio de Posis em Constantinopla, construído pela mãe de Inácio. 
Por causa desses problemas, somente em 860 Fócio foi capaz de enviar a carta [habitual] ao papa Nicolau I [e aos outros patriarcas - de Alexandria, Antioquia e Jerusalém] a respeito de sua entronização. Nessa comunicação, ele anunciou que aceitara sua eleição a contragosto após Inácio ter abdicado. [5]
Nesta carta, segundo Despina White, “Fócio, depois de confessar sua dedicação à Ortodoxia, afirmou que preferiria ficar com seus livros e seus dedicados alunos, mas concordou em tornar-se patriarca em 'obediência à vontade de Deus, que assim o puniu por suas transgressões.'"[6] Despina White continua a contar: “Em outra epístola, para Bardas, Fócio reclamou mais uma vez que ele foi forçado por Bardas a assumir a sé contra sua vontade.” [7]

Algum tempo depois, Fócio escreveu uma carta mais pessoal ao Papa Nicolau, na qual declarou:
Deixei uma vida tranquila, deixei uma doce calma… deixei minha tranquilidade favorita. Quando ficava em casa, mergulhava no mais doce dos prazeres, observando a diligência daqueles que estavam aprendendo, a seriedade daqueles que faziam perguntas e o entusiasmo dos que respondiam… E quando eu tinha que ir para minhas tarefas no palácio imperial, eles se despediam calorosamente e me pediam para não demorar muito ... E quando voltava, esse grupo estudioso estava me esperando na frente da minha porta; ... e tudo isso era feito com franqueza e sem malícia, sem intrigas, sem ciúmes. E quem, depois de ter conhecido tal vida, toleraria vê-la terminada e não lamentaria? É tudo isto que eu perdi, por tudo isso que choro... uma privação que me fez derramar lágrimas e me envolve numa névoa de tristeza. [8]
Certamente, essas cartas contradizem fortemente a típica acusação ocidental que Fócio cobiçava pelo cargo patriarcal e que ele, de alguma forma, havia usurpado-o.

Continuando com o relato de Dvornik: “O imperador Miguel e o Fócio também pediram ao papa que enviasse legados para um novo concílio em Constantinopla, que mais uma vez condenaria o iconoclasmo e confirmaria a decisão tomada por Theodora em 843 em relação ao restabelecimento do culto das imagens.”[9]

São Fócio, Patriarca de Constantinopla 


861: O Concílio em Constantinopla

O papa Nicolau, que se mostraria um dos papas mais fortes da história do papado romano, e um dos mais empenhados em ampliar a autoridade papal, já estava ocupado tentando consolidar e estender o poder do papado sobre as igrejas do Ocidente, que estava longe de ser consolidado naquele tempo. [10] Nicolau estava especialmente empenhado nisso, uma vez que esta era uma época em que o prestígio e a autoridade papal estavam particularmente em baixa, e ele era um ardente proponente e promotor da idéia e prática da Supremacia Papal sobre todas as Igrejas de Cristo. É bastante evidente a partir do modo como os acontecimentos se desenrolaram que ele percebeu essa controvérsia em Constantinopla como uma excelente oportunidade para tentar estender o poder papal sobre a Igreja Oriental também. Assim, em 861, ele aceitou avidamente o convite de Fócio para enviar legados papais a Constantinopla para participar do próximo concílio da Igreja, mas com a idéia de fazer disso uma ocasião para investigar e reconsiderar toda a questão da elevação de Fócio ao cargo de patriarca.

Em Constantinopla, indicando ainda mais seu interesse em manter boas relações com Roma, Fócio recebeu os legados papais com “grande respeito”, [11] convidando-os até mesmo a presidir o concílio. E como podemos ver nas cartas dele, o mais provável é que Fócio ficaria muito feliz em permitir Inácio voltar como patriarca.

Este Concílio, realizado em 861, foi de fato presidido pelos legados papais. Após uma investigação completa, o concílio determinou que Fócio era de fato o patriarca legítimo - e essa decisão foi mantida pelos legados papais. Mas quando os legados relataram o veredicto a Nicolau, ele se recusou a aceitar a decisão, uma vez que ele não forçou a Igreja Oriental a submeter-se à sua vontade de restabelecer Inácio.

863: O Concílio em Roma

Assim, papa Nicolau declarou que seus legados "haviam excedido os poderes". [12] Ele rejeitou a decisão deles e a do concílio de aceitar Fócio como o legítimo patriarca, e prosseguiu tentando julgar novamente o caso em um concílio realizado sob sua presidência em Roma em 863. Esse concílio proclamou de maneira bastante previsível que Inácio era o patriarca, declarando que “Fócio deve ser destituído de toda dignidade sacerdotal”. [13] Nicolau também afirmou que todo o clero ordenado por Fócio durante os cinco anos anteriores deveria ser destituído! “Esta afirmação da autoridade papal naturalmente foi uma grande ofensa a Constantinopla.” [14]

A prova de que o patriarcado de Constantinopla de modo algum aceitou as pretensões papais de ter autoridade jurisdicional sobre ele é o fato de que esses pronunciamentos do papa Nicolau e do Concílio de Roma de 863 foram completamente ignorados pela Igreja em Constantinopla; nenhuma resposta foi enviada a Nicolau! Uma brecha aberta agora existia entre Constantinopla e Roma - uma brecha que obviamente foi criada por Nicolau e seu concílio, e não por Fócio! Mas porque, do ponto de vista papal, Fócio estava desafiando a autoridade papal, esse cisma foi atribuído a ele. Portanto, desde então, no Ocidente, esse cisma é conhecido como o “Cisma Fociano”.

Presunções papais de Nicolau 

O papa Nicolau tentou alegar que um cânon do Concílio de Sardica (em 343) justificava suas ações no concílio em Roma em 863. Este cânon (cânon 3) permitia que apelos referentes a qualquer bispo sob condenação fossem feitos a Roma; mas Roma só está autorizada por este cânon a conceder um novo julgamento - se houvesse uma causa justa - contanto que esse fosse realizado na região adjacente à do bispo condenado. Ao exigir um novo julgamento após o Concílio de Constantinopla de 861, e sediando-o em Roma, o papa Nicolau excedeu em muito os limites deste cânon do Concílio de Sardica. [15]

Nicolau deixou suas intenções muito claras em 865 em uma carta que escreveu ao imperador Miguel, na qual declarou que a Igreja Romana tem autoridade “sobre toda a terra, isto é, sobre toda a Igreja”. [16] Como historiador católico-romano David Knowles escreveu,
para o imperador, foram feitas reivindicações a poderes até então nunca exercidos no Oriente, como o direito de Roma de convocar as partes para Roma para o exame do caso, embora nenhum apelo tivesse sido apresentado por elas. Nicolau usa uma linguagem sobre o papado que não foi excedida em força nem mesmo por Gregório VII [1073-1085]. Estabelecidos como príncipes em toda a terra, os papas são o epítome de toda a Igreja; todos os cristãos estão sujeitos ao governo papal; sem a Igreja de Roma não há cristianismo; o papa é o mestre dos bispos… O papa é mediador entre Cristo e o homem, e é através dele que os poderes dos imperadores e dos bispos fluem. [17]
O impasse foi intensificado pelo conflito em relação à obra missionária franco-alemã e grega entre os eslavos na Europa Oriental, onde uma obra missionária em paralelo estava sendo feita pelos alemães de língua latina e pelos bizantinos de língua grega (realizada de acordo com princípios muito diferentes). O confronto ocorreu na Bulgária, onde Khan Boris inicialmente se inclinou para os alemães, mas quando ameaçado por uma invasão militar bizantina, ele mudou de idéia e aceitou o batismo do clero grego (tomando Miguel como seu nome batismal, seguindo o imperador bizantino) em 865. Pouco tempo depois, o Patriarca Fócio escreveu a Khan Boris uma longa carta descrevendo todos os deveres de um príncipe e governante cristão; nesta carta ele incluiu uma história detalhada sobre os sete Concílios Ecumênicos. [18]

Mas Khan Boris queria que a nova Igreja em sua terra da Bulgária fosse tão independente quanto possível, então ele olhou para o Ocidente na esperança de melhores condições. Ele permitiu que os missionários latinos tivessem liberdade, e eles criticaram duramente o clero grego por ser casado, por ter diferentes regras de jejum, por permitir que os sacerdotes administrassem a Crisma (somente bispos estavam faziam isso no Ocidente, onde era conhecido como “confirmação”), e acima de tudo, por não usar o Filioque! Embora o Filioque ainda não fosse usado oficialmente em Roma (onde continuaria a ser resistido até 1014, quando foi usado pela primeira vez no culto público), o papa Nicolau não tentou impedir os alemães de usá-lo - aparentemente ele tinha menos reservas a respeito do Filioque que seu predecessor, o papa Leão III, que, embora tivesse permitido que Carlos e os francos o usassem, em 808 gravou o Credo Niceno original em placas de prata, exibidas com destaque na Basílica de São Pedro, no Vaticano.

 867: O Concílio de Constantinopla

Por volta de 867, quatro anos depois que o papa Nicolau e o Concílio de Roma de 863 tentaram depô-lo e anatematizá-lo, Fócio sentiu que não poderia mais se calar. Em uma carta encíclica a todos os patriarcas orientais, ele denunciou a presença de missionários latinos na Bulgária e suas várias práticas e crenças não-ortodoxas - especialmente o Filioque - e anunciou um sínodo vindouro que seria realizado em Constantinopla para tratar dessas questões. Aqui está um trecho desta carta sobre o Filioque: “No entanto, mesmo se não citarmos todas essas e outras inovações da Igreja de Roma, a simples citação da adição do Filioque ao Credo Niceno seria suficiente para submetê-los a mil anátemas. Esta inovação blasfema o Espírito Santo, ou mais corretamente, toda a Santíssima Trindade.”[19]

Podemos acrescentar aqui que São Fócio mais tarde escreveu um extenso ensaio criticando o Filioque, que ele dirigiu aos teólogos ocidentais, intitulado A Mistagogia do Espírito Santo [20]. Nesta obra, Fócio chama o Filioque de “embriaguez enganosa de impiedade!” E de “tagarelice blasfema que transforma a monarquia [dentro da Divindade] em muitos princípios e causas… em uma espécie de 'semi-sabelianismo' monstruoso” [21]. De acordo com o Dicionário Oxford da Igreja Cristã, a crítica do Filioque feita por Fócio “forneceu a todos os teólogos gregos subseqüentes suas objeções ao dogma ocidental” [22].

Foi assim que Fócio descreveu na mesma carta a todos os patriarcas os missionários alemães que entraram na Bulgária:
Pois os búlgaros não haviam sido batizados nem mesmo dois anos antes quando homens desonrosos emergiram das trevas [isto é, o Ocidente], e caíram como granizo - ou melhor, atacaram como javalis selvagens a recém plantada vinha do Senhor. Eles a destruíram com cascos e dentes, isto é, por suas vidas vergonhosas e dogmas corrompidos. Os missionários papais e o clero queriam que esses cristãos ortodoxos se afastassem dos dogmas corretos e puros de nossa fé irrepreensível. [23]
Em 1948, o escolar católico romano Francis Dvornik publicou um livro meticulosamente pesquisado intitulado The Photian Schism: History and Legend [24]. Esta obra corajosamente pioneira fez muito para amenizar a hostilidade e rancor que o Ocidente mantém contra o Fócio por mais de mil anos. Mas ainda assim, neste livro, Dvornik chama essa carta do Patriarca Fócio de “um ataque fútil”, “um lapso imprudente, apressado e grande, com consequências fatais”. [25] Mas, como observa o Bispo Kallistos Ware, foi o Ocidente que foi o agressor a respeito do Filioque, com Roma permitindo seu uso pelos Francos. Como Fócio estava convencido de que era heresia, ele teve que agir. [26]

Assim, neste importante ano de 867, um grande concílio se reuniu em Constantinopla. Em torno de 1000 bispos, sacerdotes e monges estavam presentes. O concílio declarou o papa Nicolau deposto, anátema e excomungado; ele foi chamado de “um herege que destrói a vinha do Senhor”. [27] E de acordo com Dvornik, “Nicolau foi condenado e pediu-se que o Imperador [Romano-Germânico] Luís II depusesse-o”, [28] o Filioque foi condenado como heresia, e a interferência romana nos assuntos internos da Igreja Oriental foi denunciada como ilegal.

Em 23 de setembro de 867, Basílio, o Macedônio, o co-imperador, ao ouvir um boato de que o imperador Miguel estava planejando matá-lo, assassinou o imperador (que era conhecido, não sem motivo, como Miguel, o Bêbado) e assassinou Caesar Bardas também, e usurpou o trono, estabelecendo uma nova dinastia - a dinastia macedônia. A fim de ganhar o favor e apoio de Roma, especialmente porque ele literalmente tinha "sangue em suas mãos" devido a sua usurpação assassina do trono, ele depôs Fócio e restabeleceu Inácio como Patriarca de Constantinopla. A comunhão com Roma foi restaurada, com tanto Basílio como Inácio escrevendo cartas extremamente respeitosas ao papa Nicolau - cartas que pareciam reconhecer a supremacia papal até mesmo sobre a Igreja do Oriente. [29]

Em 13 de novembro, no mesmo ano, o papa Nicolau morreu, antes de ouvir sobre sua  excomunhão pelo Concílio de Constantinopla, realizada no início daquele ano. Ele foi sucedido pelo papa Adriano II (867-872), que provou ser um papa relativamente forte, mas não tão forte quanto Nicolau. Ainda assim, ele supervisionou um concílio em Roma, realizado em 869, com a participação de delegados gregos, que condenaram o Concílio de Constantinopla de 867 e queimaram seus atos publicamente!

O "Concílio Inaciano" em Constantinopla em 869-870

Em 869-870, outro concílio foi realizado em Constantinopla, desta vez sob Patriarca Inácio. Foi convocado pelo imperador Basílio e submetido à pressão imperial por ele. Este concílio abriu com apenas doze bispos (mais tarde aumentando para 103). Seu pequeno número foi devido ao fato de que “a grande maioria da hierarquia e do clero permaneceu fiel a Fócio”. [30] Conhecido como o “Concílio Inaciano”, este encontro condenou e anatematizou Fócio. Ele foi então enviado para o exílio, mesmo sem seus livros. [31] No todo, este concílio foi o concílio mais pró-Roma já realizado dentro da Igreja Ortodoxa. Afirmava que “na Sé Apostólica [isto é, em Roma], a religião católica sempre foi mantida imaculada e seu ensinamento mantido santo. Desejosos de não sermos separados desta fé e doutrina ... esperamos poder estar associados a vós na Comunhão única que a Sé Apostólica proclama, na qual reside toda a verdade e perfeita segurança da religião cristã." É fácil entender por que esse concílio foi citado no Vaticano I, que declarou que a infalibilidade papal é um dogma em 1870. [32]

Alguém poderia pensar que este concílio bastante pró-Roma teria satisfeito o papado. Mas este concílio também pediu ao imperador Basílio que resolvesse o status da recém-formada Igreja búlgara e, não surpreendentemente, ele atribuiu [a Igreja búlgara] à autoridade do Patriarcado de Constantinopla. O patriarca Inácio desafiou protestos católicos romanos sobre isso, e nomeou um arcebispo e bispos para os búlgaros, expulsando todo o clero latino. Os búlgaros aceitaram esse desenvolvimento, pois finalmente perceberam que sua Igreja teria mais independência sob Constantinopla do que sob Roma. Mas Roma ameaçou Inácio com ex-comunicação, e as relações entre as duas Igrejas se tornaram tensas novamente.

Conciliação de Fócio com o Imperador Basílio e o Patriarca Inácio 

Em 873, Fócio foi retirado do exílio pelo imperador Basil, que a essa altura já havia transferido sua lealdade dos conservadores radicais da Igreja para o partido mais moderado que ainda apoiava Fócio. A essa altura Basílio estava firmemente instalado no poder e não precisava mais do apoio do partido Inaciano ou de Roma. Chegou a fazer de Fócio o tutor de seus filhos Leão (o futuro imperador) e Alexandre, e Fócio retomou suas aulas na Universidade.

Nos anos seguintes, Inácio e Fócio se reconciliaram; e quando Inácio estava próximo da morte, ele estabeleceu que queria que Fócio o sucedesse como patriarca. Isso de fato aconteceu, pois depois da morte de Inácio, em 23 de outubro de 877, Fócio retornou ao trono patriarcal. E logo depois, Fócio trabalhou para a canonização oficial de Inácio como santo - seu dia de festa é 23 de outubro.

O "Concílio Fociano" de Constantinopla em 879-880

Em 879-880, outro concílio foi realizado em Constantinopla, com 383 bispos presentes, que anulou as decisões do menor e mais politicamente motivado Concílio Inaciano de 869-870, que havia afirmado que Inácio, e não Fócio, era o legítimo patriarca de Constantinopla. Os legados papais presentes neste concílio, conhecido como Concílio Fociano, aparentemente estavam em plena aprovação. De fato, eles se juntaram nesta declaração da última sessão do Concílio: “Se alguém se recusa a reconhecer Fócio como o santo patriarca e recusa estar em comunhão com ele, seu destino será junto com Judas, e ele não será incluído entre os cristãos!”[33]

De acordo com um historiador ocidental do século XIX, geralmente antagônico em relação a Fócio, "este concílio foi, no todo, um evento verdadeiramente majestoso, como nunca visto desde o Concílio de Calcedônia." [34] Este concílio proibiu estritamente qualquer alteração do Credo Niceno, rejeitando assim o Filioque: "O Credo não pode ser subtraído, acrescentado, alterado ou distorcido de qualquer forma." [35] O texto verdadeiro do horos, ou proclamação, do concílio relativo ao Credo Niceno é como segue:
Assim pensamos; nesta Confissão de Fé fomos batizados; através desta palavra de verdade, toda heresia é despedaçada e cancelada. Registramos como irmãos e pais e co-herdeiros da cidade celestial aqueles que pensam assim. Se alguém, no entanto, ousar reescrever e chamar de Regra de Fé alguma outra exposição além daquela do Símbolo sagrado que foi propagada do alto por nossos abençoados e santos Padres até nós mesmos, e arrebatar a autoridade da Confissão daqueles homens divinos, e impor sobre ele suas próprias frases inventadas (ἰδίαις εὑρεσιολογίαις) e levar adiante essas como uma lição comum para os fiéis ou para aqueles que retornam de algum tipo de heresia, e exibir a audácia de falsificar completamente (κατακιβδηλεῦσαι ἀποθρασυνθείη) a antiguidade deste sagrado e venerável Horos (Regra) com palavras ilegítimas, ou acréscimos, ou subtrações, tal pessoa deve, de acordo com o voto dos Sínodos sagrados e Ecumênicos, que já foram aclamados antes de nós, ser submetido a completa excomunhão se ele for um dos clérigos, ou ser expulso com um anátema se ele for um dos leigos. [36]
Além disso, “este concílio também argumentou que o papa era um patriarca como todos os outros patriarcas, que ele não possuía autoridade sobre toda a Igreja e, portanto, não era necessário que o patriarca de Constantinopla recebesse a confirmação do pontífice romano”. [37] Nas palavras do Dicionário Oxford de Bizâncio sobre este concílio, “embora os 'privilégios' de Roma tivessem sido reconhecidos [como sendo o 'primeiro entre iguais'], a autoridade canônica e judicial do papa e do patriarca foi definida em termos de igualdade (cânon 1). A jurisdição papal sobre a Igreja Bizantina foi assim excluída.”[38]

O papa agora era João VIII (872-882), sucessor do papa Adriano II. De acordo com Vasiliev, “Muito irritado, João enviou um legado a Constantinopla para insistir na anulação de qualquer medida aprovada no concílio que fosse desagradável ao papa. O legado também deveria obter certas concessões em relação à Igreja búlgara. Basílio e Fócio se recusaram a ceder em qualquer um desses pontos, e chegaram ao ponto de prender o legado.” [39]

No fim, o papa João aceitou as decisões desse concílio, mesmo que com relutância, em parte por causa de seu antagonismo contra os alemães. Ele não pressionou pelo Filioque, não pressionou pelas reivindicações alemãs ou romanas na Bulgária e aceitou Fócio como o legítimo patriarca. Aparentemente, ele reconheceu que as políticas e a atitude agressiva de Nicolau foram destrutivas para a unidade cristã.

Este Concílio Fociano foi o concílio (e não o Concílio Inaciano que foi anulado) que trouxe a paz entre Roma e Constantinopla que durou até o Grande Cisma de 1054. Mas essa relação [entre as igrejas] foi severamente tensionada pela interferência do Papa Nicolau e de seus dois sucessores na vida interna da Igreja de Constantinopla. Pe. Schmemann reflete o ponto de vista ortodoxo a respeito dessa interferência quando escreveu: “Seria difícil imaginar mais incompreensão, intolerância e arrogância do que o que o papa Nicolau e seus sucessores demonstraram em sua intervenção nas dificuldades internas da Igreja bizantina”. [40]

Os últimos anos de Fócio

Fócio serviu como patriarca por mais seis anos, até que, em 886, o novo imperador Leão ( 886-912), filho de Basílio I, imediatamente o depôs, provavelmente por motivos pessoais. É sabido que Fócio se aliou a Basílio em uma disputa que o imperador teve com seu filho Leão pouco antes da morte de Basílio.

São Fócio morreu em relativa obscuridade, no mosteiro de Armeniakon [41] por volta do ano 891.

A aceitação e posterior rejeição do Concílio Fociano por Roma 

O Concílio Fociano e sua autoridade não foram questionados em Roma pelos próximos quase 200 anos. Uma forte evidência disso é dada pelo escritor católico romano Daniel J. Casellano quando afirmou: “No ocidente, os primeiros canonistas, mais notavelmente Santo Ivo de Chartres (final do século XI) e Graciano (século XII), consideraram que o Sínodo Fociano de  879-880 foi devidamente aprovado pelo Papa João VIII.”[42]

Mas durante o tempo do papa Gregório VII (1073-1085), no período conhecido como Reforma Gregoriana, como mencionei no começo deste artigo, os juristas canônicos papais voltaram às tempestuosas décadas das décadas de 860 e 870, e substituíram o Concílio Fociano pelo Concílio Inaciano de dez anos antes. Nas palavras do Dicionário de Oxford de Bizâncio, o Concílio Fociano tinha sido "reconhecido como ecumênico por Roma até a Reforma Gregoriana, quando a tradição romana oficial foi abandonada em favor do Concílio de 869" (p. 513).

O escolar ortodoxo Pe. George Dragas pergunta:
Como aconteceu que os Católicos Romanos passaram a ignorar esse fato conciliar? Seguindo Papadopoulos Kerameus, Johan Meijer - autor de um estudo aprofundado sobre o Concílio Constantinopolitano de 879/880 - apontou que os canonistas Católicos Romanos no início se referiam ao Oitavo Concílio Ecumênico (o Inaciano) no começo do século XII. Em consonância com Dvornik e outros, Meijer também explicou que isso foi feito deliberadamente porque esses canonistas precisavam naquela época do cânone 22 desse Concílio. [43] De fato, no entanto, eles negligenciaram o fato de que "este Concílio havia sido cancelado por outro, o Concílio Fociano de 879-880 - os atos dos quais também foram mantidos nos arquivos pontifícios". [44] 
Repercussões para as relações Ortodoxo-Católicas Romanas

Quão diferente teriam sido as relações nos séculos seguintes, e até o presente, entre a Ortodoxia e o Catolicismo Romano, se a Igreja Romana tivesse continuado a aceitar o Concílio Fociano como legítimo, e se ela tivesse cumprido plenamente seus decretos! Pois se a Igreja Romana reafirmasse a legitimidade do Concílio Fociano, rejeitando assim o Concílio Inaciano, os dois maiores obstáculos à reconciliação da Igreja Romana com a Ortodoxia seriam instantaneamente removidos: o Filioque, e as reivindicações da Igreja Romana de uma autoridade jurisdicional sobre as Igrejas Orientais.

Como Pe. John Meyendorff observa, comentando sobre o levantamento mútuo dos anátemas de 1054 pelo Papa e pelo Patriarca de Constantinopla em 1965,
Quão imensamente mais significativo, por exemplo, seria a restauração na lista dos Concílios Ecumênicos reconhecidos por Roma do Concílio de Constantinopla de 879-880, a única tentativa realmente bem-sucedida de reunião entre o oriente e o ocidente. Pois um dos resultados mais empolgantes da pesquisa histórica contemporânea (especialmente os estudos de F. Dvornik) foi a descoberta de que esse concílio, apoiado e aprovado pelo Patriarca Fócio e pelo Papa João VIII, permaneceu nas listas ocidentais dos Concílios Ecumênicos até a século XI [ou pelo menos havia sido aceito como plenamente legítimo, substituindo o Concílio Inaciano], quando os canonistas latinos arbitrariamente o substituíram pelo Concílio de 869-870. Uma decisão desse tipo certamente mudaria fundamentalmente as relações entre a Ortodoxia e Roma. [45]
E se eu puder me aventurar numa especulação: se a Igreja Ortodoxa agora designasse oficialmente o Concílio Fociano como o Oitavo Concílio Ecumênico, talvez a Igreja Romana fosse pressionada a fazê-lo também ela mesma, no interesse de uma reunião com a Santa Ortodoxia. Mas mesmo que isso não aconteça, fazendo do Concílio Fociano o Oitavo Concílio Ecumênico e os Concílios Palamitas, o Nono Concílio Ecumênico; e tendo serviços litúrgicos em memória deles, junto com, claro, a veneração dos Pais destes concílio; a tremenda importância desses concílios ficaria impressa sobre os fiéis ortodoxos, que poderiam então se beneficiar espiritualmente aprendendo sobre suas decisões.

Além disso, através dessas ações, acredito que o atual diálogo entre nossa Igreja e a Igreja Romana seria bastante beneficiado, pois três das mais importantes questões seriam trabalhadas, colocadas em maior relevo, e os participantes seriam estimulados a lidar com elas mais decisivamente - as questões de 1), um credo niceno imutável; 2) independência jurisdicional para nossas várias Igrejas Ortodoxas - liberta da supervisão do papado, exceto em relação a restauração da antiga compreensão da primazia de honra do bispo romano como o “primeiro entre iguais”; e 3), a distinção dogmática crucial entre a Essência e as Energias de Deus, e a compreensão da salvação / santificação / deificação como consistindo na participação do homem nas Energias Divinas.

Avaliação de Fócio hoje

Estudiosos ocidentais, influenciados pela perspectiva papal veementemente anti-fociana, há muito afirmam que Fócio foi a principal figura culpada em causar o cisma temporário de 863 a 867 com a Igreja Romana, razão pela qual até hoje é chamado no Ocidente de “Cisma Fociano” - como mencionei anteriormente. Adrian Fortescue, autor do artigo sobre "Fócio" na Enciclopédia Católica de 1911, [46] até o acusa de ser a principal fonte e causa do Grande Cisma de 1054! Fortescue termina seu artigo com estas palavras:
Talvez se possa resumir sobre Fócio dizendo que ele foi um grande homem com uma mácula em seu caráter - sua ambição insaciável e inescrupulosa. Mas essa mácula cobre sua vida de tal forma que eclipsa tudo o mais e faz com que ele mereça nosso julgamento final como um dos piores inimigos que a Igreja de Cristo já teve, e a causa da maior calamidade que já aconteceu com ela.
Felizmente, com o grande estudo de Francis Dvornik de 1948 ao qual me referi anteriormente, hoje Fócio é  geralmente mais aceito no Ocidente como, nas palavras de Dvornik, “um grande homem da Igreja, um humanista instruído e um cristão genuíno, suficientemente generoso para perdoar seus inimigos, e dar os primeiros passos para a reconciliação.” [47] Ele ainda é visto sob uma luz negativa, por todos os defensores das reivindicações papais de governo sobre todas as Igrejas de Cristo, devido à sua resistência inflexível contra o que nós Ortodoxos entendemos ser o erro fundamental da Igreja Romana.

A posição de São Fócio na Ortodoxia dificilmente poderia ser maior, uma vez que ele é honrado, juntamente com São Marcos de Éfeso e São Gregório Palamas, como um dos Três Pilares da Ortodoxia. Essa designação parece ser intencionalmente paralela à veneração dada a São Basílio, o Grande, São Gregório, o Teólogo, e São João Crisóstomo, como os Três Santos Hierarcas.

O dia da festa de São Fócio é celebrado na Santa Igreja Ortodoxa em 6 de fevereiro.

Por que o Concílio Fociano não tem sido considerado ecumênico pela Igreja Ortodoxa?

Foi convocado pelo imperador; teve representação de todo o mundo Ortodoxo, incluindo legados de Roma; foi grande; seus atos foram assinados por todos os Patriarcados; e referiu a si mesmo como “este Sínodo santo e ecumênico”. E como o Dicionário Oxford de Bizâncio afirma: “As decisões do Concílio foram inseridas em toda coleção Ortodoxa de direito canônico subseqüente, e normalmente seguem as dos sete primeiros concílios ecumênicos. É referido como "ecumênico" por alguns autores bizantinos". [48]

No entanto, seu foco principal foi numa questão administrativa / jurisdicional - concernente à afirmação da legitimidade plena da eleição de um patriarca oriental - ao invés de uma questão cristológica urgente, que cada um dos sete Concílios Ecumênicos anteriores havia abordado - embora se possa afirmar que a Triadologia e, portanto, a Cristologia, foram de fato abordadas, na medida em que o Filioque foi proibido por este concílio.

Além disso, o próprio Fócio pode ter hesitado em proclamá-lo como o Oitavo Concílio por razões de humildade, já que esse o exonerou totalmente; e também porque ele ainda tinha a intenção de garantir que o Concílio de Nicéia de 787 fosse plenamente reconhecido como o Sétimo Concílio Ecumênico - o que também foi afirmado neste concílio.

Mas quaisquer que sejam as razões pelas quais a Igreja Ortodoxa ainda não designou o Concílio Fociano como o Oitavo Concílio até agora, por que esta questão não poderia ser reconsiderada em nosso tempo, com oração, estudo e coragem, o que poderia resultar no discernimento que talvez o Espírito Santo está tentando mover nossa Igreja nesta direção, por razões ecumênicas pastorais e evangelísticas sólidas?

Esforços contemporâneos na Ortodoxia para que seja reconhecido como o Oitavo Concílio Ecumênico

Aqui está uma lista parcial de exemplos do fato de que muitos no mundo Ortodoxo estão defendendo que o Concílio Fociano seja oficialmente designado como Oitavo Concílio Ecumênico:

"Em uma entrevista com a Interfax-Religion, o chefe do Departamento Sinodal de Relações Igreja-Sociedade e Mídia de Massa, Vladimir Legoida, nos deu uma idéia do próximo concílio e sua preparação, e também falou de como ele difere de um Concílio Ecumênico e como a crítica deste fórum deve ser percebida:
Em primeiro lugar, é importante enfatizar que os concílios são a norma da vida da Igreja e não sua distorção. Os Sete Concílios Ecumênicos - as assembleias mais importantes de bispos no período do cristianismo antigo - tornaram-se firmemente incorporados em nossa consciência. No entanto, houve outros concílios extremamente importantes de hierarcas ortodoxos. Por exemplo, o Quarto Concílio de Constantinopla, também conhecido como o Concílio de Hagia Sofia, convocado em 879 sob a presidência do Patriarca de Constantinopla São Fócio. Este Concílio, entre outras coisas, incluiu o Segundo Concílio de Nicéia em 787 entre os Concílios Ecumênicos. As decisões do Concílio de 879 tornaram-se parte da lei canônica da Igreja Ortodoxa. Alguns santos consideraram este Concílio como o Oitavo Concílio Ecumênico. E embora não houve um concílio posterior na história da Igreja que afirmou que este concílio teve tal status elevado, a importância atribuída ao Concílio de Hagia Sofia deve ser levada em conta, especialmente quando observamos o fato de que as pessoas dizem que a vida conciliar da Igreja Ortodoxa terminou com os Sete Concílios Ecumênicos. Este não é o caso. [49]"
De “Reconhecimento Oficial do 8º e 9º Sínodo Ecumênico”:
Há alguns anos foi decidido pela Igreja da Grécia que iniciassem o processo de oficialização do Oitavo e do Nono Sínodo Ecumênico, mas desde então a questão foi deixada de lado. Sua Eminência Metropolita Serafim de Pireu, que defendeu esse reconhecimento e o apresentou ao Patriarcado Ecumênico, decidiu avançar com [a defesa] em sua própria metrópole em nível local. Abaixo está traduzida a Declaração de Sua Eminência, e abaixo estão as duas Encíclicas para cada um dos dois Sínodos Ecumênicos, estabelecendo a celebração da Santa Memória dos 383 Padres portadores-de-Deus do 8º Sínodo Ecumênico no Segundo Domingo de Fevereiro, e os Padres portadores-de-Deus do 9º Sínodo Ecumênico no Segundo Domingo da Grande Quaresma. [50]
O mesmo Metropolita Serafim de Pireu escreveu ao Patriarca da Sérvia a respeito da proposta do Patriarca Irineu aos primazes das Igrejas Ortodoxas Autocéfalas para oficialmente reconhecer o Concílio de 879-880 em Constantinopla como o Oitavo Concílio Ecumênico, e o Concílio Palamita de 1351 como o Nono Concílio Ecumênico: “Você fez a obra do Espírito Santo. Você realizou a obra do Deus Triúno vivo.”[51]

Pe. John Romanides defendeu enfaticamente o reconhecimento do Concílio Fociano como o Oitavo Concílio Ecumênico, e a série de Concílios Palamitas como o Nono Concílio Ecumênico. [52]

De "Metropolita Hierotheos Vlachos de Nafpaktos sobre o diálogo atual com Roma": [53]
Durante o primeiro milênio, a Igreja Ortodoxa enfrentou a questão do reconhecimento de honra do papa de Roma. Isto ocorreu durante o Concílio no tempo de Fócio o Grande (879-880), que é considerado por muitos Ortodoxos como o Oitavo Sínodo Ecumênico. Esses dois tipos de eclesiologia - isto é, do papismo e da Igreja Ortodoxa - foram apresentados durante este Concílio. O Patriarca Fócio reconheceu uma primazia de honra para o Papa, mas somente dentro da estrutura eclesiológica Ortodoxa - ou seja, o Papa tem uma primazia de honra dentro da Igreja, mas não pode ser colocado acima da Igreja. Portanto, na discussão relativa à primazia do Papa, a decisão deste Concílio deve ser seriamente levada em conta. 
Naturalmente, durante este Concílio, a questão do filioque também foi discutida, juntamente com a questão da primazia; portanto, quando discutimos a questão da primazia hoje, devemos examiná-la através do prisma da primazia de honra, como deveríamos no caso do filioque.
Além disso, veja o artigo do Metr. Hierotheos Vlachos, “Fócio o Grande e Oitavo Sínodo Ecumênico”, publicado no Mystagogia de 6 de fevereiro a 19 de fevereiro de 2016 (em sete partes).

Além disso, o prolífico escritor ortodoxo moderno Pe. George Metallinos afirma o Concílio Fociano como o Oitavo Concílio Ecumênico.

De acordo com o artigo da Orthodoxwiki intitulado “O Oitavo Concílio Ecumênico”,
Uma das primeiras referências como "Oitavo Concílio Ecumênico" foi feita no século XV por São Marcos de Éfeso, que expressa a visão teológica geral da época em Constantinopla durante o chamado "Concílio Ladrão" em Ferrara - Florença (sendo referenciado nos comentários do Pedalion como 879-880 "Sínodo reunido em Agia Sophia"). 
Além disso, a Encíclica dos Patriarcas Orientais de 1848 refere-se explicitamente ao “Oitavo Concílio Ecumênico” em relação ao sínodo de 879-880; e foi assinado pelos patriarcas de Constantinopla, Jerusalém, Antioquia e Alexandria, bem como pelos Santos Sínodos dos três primeiros.
Pe. George Dion. Dragas escreveu em seu “Oitavo Concílio Ecumênico: Constantinopla IV (879/880) e a Condenação da Adição e Doutrina do Filioque”, postado no Orthodox Outlet for Dogmatic Inquiries em 28 de dezembro de 2009:
Estes concílios [incluindo o de Constantinopla 879/880, o "Oitavo Ecumênico", como se chama no Tomos Charas (Τόμος Χαρᾶς) do Patriarca Dositheos, que publicou pela primeira vez seus procedimentos em 1754 e também pelo Metropolita Nilus Rhodi, cujo texto é citado na edição de Mansi não foram nomeados [como sendo "Ecumenicos"] no oriente por causa da antecipação Ortodoxa da possível cura do cisma de 1054, que foi buscada pelos Ortodoxos até a captura de Constantinopla pelos turcos em 1453. Existem outros motivos óbvios que impediram a nomeação, a maioria dos quais se relacionam com os anos difíceis que a Igreja Ortodoxa teve que enfrentar após a captura de Constantinopla e a dissolução do Império Romano que a apoiava. 
Michael Prokurat, Bispo Alexander (Golitzin) e Michael D. Peterson escrevem no Dicionário Histórico da Igreja Ortodoxa: “Por um acordo que parece estar em vigor no mundo Ortodoxo, possivelmente o concílio realizado em 879 que absolveu o Patriarca Fócio em alguma data futura será reconhecido como o oitavo concílio.”[54] E mais, “Dada a convocação de outro concílio ecumênico, a Igreja Ortodoxa certamente reconheceria o sínodo de 879 como o Oitavo Concílio Ecumênico. [55]

St. Photios the Great, The Photian Council, and Relations with the Roman Church por Dr. David Ford

Notas

[1] G. Ostrogorsky, History of the Byzantine State, p. 199; citado em Bp. Kallistos Ware, The Orthodox Church, ed. revisada [1993], p. 52.

[2] “Photios, Patriarch of Constantinople,” in the New Catholic Encyclopedia [1967], vol. 11, p. 327.

[3] Ibid.

[4] Ibid.

[5] Ibid.

[6] Despina S. White, Photios [Brookline, Mass.: Holy Cross Orthodox Press, 1981], p. 23; veja também pp. 72-73.

[7] Ibid.

[8] Ibid. pp. 72-73.


[9] Ibid.

[10] As igrejas na Alemanha (no Sacro Império Romano) foram especialmente resistentes a serem submetidas sob a autoridade do bispo romano, como é muito evidente a partir da história de São Metódio de Panônia e Morávia (com seu irmão São Cirilo, eles são conhecidos como os apóstolos dos eslavos).

[11] Ware, The Orthodox Church, p. 53.

[12] Ibid.

[13] Ibid.

[14] The Oxford Dictionary of the Christian Church, 2nd ed., p. 1087.

[15] Ware, p. 54.

[16] Ibid., p. 53.

[17] The Christian Centuries [New York: Paulist Press, 1969], vol. 2, pp. 78-79.

[18] PG 110.1048ff; Trad.para o inglês por Despina S. White e Joseph R. Berrigan, Jr., e entitulado The Patriarch and the Prince [Brookline, Mass.: Holy Cross Orthodox Press, 1982.]

[19] Holy Apostles Convent, The Lives of the Pillars of Orthodoxy [Buena Vista, Colo.: Holy Apostles Convent, 1990], p. 66.

[20] Trad.para o inglês por Holy Transfiguration Monastery, Brookline, Mass. (1983), e por Joseph P. Farrell (Holy Cross Orthodox Press, Brookline, Mass., 1987).

[21] Mystagogia, para. 9.

[22] Second ed., p. 1088.

[23] Holy Apostles Convent, p. 64; e outros trechos estão  na pp. 64-67.

[24] Cambridge: Cambridge Univ. Press, 1948.

[25] p. 433.

[26] Ware, p. 55.

[27] Ibid.

[28] Dvornik, p. 328.

[29] Veja A. A. Vasiliev, History of the Byzantine Empire [Madison: Univ. of Wisconsin Press, 1952], vol. 1, p. 330.

[30] Ibid.

[31] Veja sua Carta 17 no livro de Despina White, p. 161.

[32] Veja Neuner e Dupuis, The Christian Faith in the Doctrinal Documents of the Catholic Church (New York: Alba House, 1981), p. 232.

[33] Vasiliev, vol. 1, p. 331.

[34] Joseph Hergenrother; citado por Ibid.

[35] Mansi 17:516C; Oxford Dictionary of Byzantium, p. 786.

[36] Tradução por Pe. George Dragas, em “The Eighth Ecumenical Council: Constantinople IV (879/880) and the Condemnation of the Filioque, Addition and Doctrine,” postado em inglês Dec. 28, 2009, no Orthodox Outlet for Dogmatic Enquiries (oodegr.co).

[37] Vasiliev, vol. 1, p. 331.

[38] p. 513.

[39] Vasiliev, vol. 1, pp. 331-332.

[40] Historical Road of Eastern Orthodoxy (SVS Press, 1977), p. 246.

[41] De acordo com Dvornik, p. 329.

[42] “Comentário sobre o Quarto Concílio de Constantinopla”, arcane knowledge.org, 2013.

[43] Este cânone proibia o uso da "investidura leiga", pela qual leigos (nobres, duques ou reis) nomeavam padres ou bispos para suas capelas, igrejas, abadias e bispados, em vez de permitir que a Igreja fizesse tais tais nomeações. Esta foi a principal preocupação do papa Gregório VII durante o seu pontificado.

[44] “The Eighth Ecumenical Council: Constantinople IV (879/880) and the Condemnation of the Filioque, Addition and Doctrine”; no site Mystagogy. 

[45] Orthodoxy and Catholicity (New York: Sheed and Ward, 1966), pp. 168-169.

[46] Disponível de forma fácil na internet no site popular newadvent.org.

[47] The Photian Schism, p. 432.

[48] p. 513.

[49] Postado em mospat.ru., 6 de Janeiro, 2016, sob o título, “Councils are the Norm of Church Life and Not Its Distortion.”

[50] Postado no site de John Sanidopoulos, Mystagogy, 15 Jan, 2014 http://www.johnsanidopoulos.com/2014/01/an-official-recognition-of-8th-and-9th.html.

[51] Em um artigo de nome “Serbian Church Proposes for the Recognition of the 8th and 9th Ecumenical Synods,” postado no site de John Sanidopoulos, Mystagogy, 30 de Set., 2015.

[52] Veja seu “The Myth of Only Seven Ecumenical Councils” and “What are the Criteria for an Ecumenical Council?” no Mystagogy.

[53] Escrito em 2009; no Mystagogy.

[54] No artigo de nome “Ecumenical Councils; (Lanham, MD: Scarecrow Press, 1996), pp. 114-115.

[55] No artigo de nome “Photios;” Ibid., p. 263.