quarta-feira, 2 de junho de 2021

Metafísica perenialista e trinitarismo Ortodoxo (Vincent Rossi)

O texto a seguir é um trecho do artigo "Presence, Participation, Performance: The Remembrance of God in the Early Hesychast Fathers" por Vincent Rossi.

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Schuon delineia acima várias dicotomias que sem dúvida fundamentarão todas as nossas discussões: metafísica x teologia, intelectual x sentimental, esoterismo x exoterismo, unitarismo x trinitarismo, transparência metafísica de formas x formalismo doutrinário opaco e, acima de tudo, centro divino x margem humana. Todas estas dicotomias, ou melhor, dualidades hierárquicas, pois é isso que elas são de fato, estão enraizadas na dualidade epistêmica fundamental: gnosis (conhecimento) x pistis (fé), sendo o primeiro mais elevado na escada epistêmica do que o segundo. O conhecimento x fé, de acordo com Schuon, é a dualidade básica de toda expressão religiosa. A simples observação destas dualidades e a colocação mecânica de cada pensador ou tradição que encontramos em uma ou outra, não nos leva automaticamente a uma clareza perfeita. Por exemplo, o que Schuon chama de "teologia" ou "metafísica sentimental" não é claramente o que os primeiros Padres de Hesicastas conhecem como teologia, que como uma expressão que indica união com Deus transcende até mesmo o que Schuon chama de "a mais elevada metafísica". Mais uma vez, o que Schuon chama de "trinitarismo extremo" é característico de todos e cada um dos primeiros Padres de Hesicastas com os quais estaremos explorando a prática da recordação de Deus.

A metafísica sufi, representada por um pensador como Schuon, está fundamentada em uma concepção logicamente hierárquica e essencialista da realidade: Além-Ser, Ser, Existência. Somente o Absoluto, o totalmente não qualificado, a Essência não-manifesta, é Além-Ser. Isto é Aquilo que é "o Um". A Trindade, nesta concepção, não pode representar a Essência totalmente não qualificada. A Trindade está necessariamente no nível do Ser, o princípio igualmente não-manifesto, mas proto-determinado da Existência. Ser é, portanto, o "reino" do Deus "pessoal", que é a primeira determinação do Absoluto, chamado por Schuon de Absoluto relativo. Como as hipóstases da Trindade nesta concepção são determinações do Um, e relativas umas às outras, elas necessariamente não podem estar no nível do Absoluto absoluto, mas devem ser relativas a ele, isto é, à Essência, mas ainda absolutas com respeito ao mundo criado; daí a noção de Schuon de Ser como o Absoluto relativo. Tal abordagem é altamente congenial e talvez até inteiramente representativa da "mais elevada metafísica" dos Sufis, mas é inaceitável para os Hesicastas do Oriente Cristão, cujo próprio entendimento da mais elevada metafísica é paradoxalmente trinitário, hipostático/pessoalista ao invés de logicamente essencialista. Isto explica a crítica implícita de Schuon aos cristãos que são trinitários "extremos". Ele é crítico, não do trinitarismo deles em si, mas da insistência ilógica deles de que a Trindade é a forma mais apropriada de falar do Absoluto ("como se as três dimensões do espaço fossem dispostas em uma única dimensão"), e da insistência deles de que Pessoa/hipóstase em Deus descreve melhor o Incircunscritivel do que uma metafísica essencialista. Esta insistência dos hesicastas cristãos é inexplicável à metafísica logicamente hierárquica dos tradicionalistas sufis, na qual o princípio intelectual da não-contradição lógica é primário; ou isso é explicável nos termos de Schuon apenas como a teimosa insistência dos teólogos "bhakticos" [bhakti] de um "direito divino" à irracionalidade e à ilogicidade. Entre os Hesicastas, entretanto, o princípio revelador do paradoxo e da antinomia é superior ao princípio da não-contradição lógica. Os Hesicastas não ignoravam a natureza paradoxal de suas expressões trinitárias, como até mesmo uma leitura superficial do Corpus Areopagiticum ou das obras de São Máximos o Confessor deve mostrar. Assim, o trinitarismo deles não pode ser caracterizado justamente como "desprovido de penetração metafísica" ou como uma forma de teologia "sentimental" ou "bhaktica" [bhakti], impermeável aos brilhos sutis da luz metafísica. Além disso, em minha leitura dos maiores mestres hesiscastas, santos como Dionísio, o Areopagita, Máximos, o Confessor, ou João de Damasco, a insistência e expressão da unidade divina em seu trinitarismo não parece de forma alguma inferior aos mais radicais dos unitaristas do Islã. Também não se vê em seus escritos (e seria fácil fornecer dezenas de textos mostrando isso) a mínima indicação de que em seu "trinitarismo" eles são culpados do maior dos pecados islâmicos contra a Unidade Divina, associação ou evasiva. 

[...]

O significado desta passagem gira em torno da percepção de que, para os hesicastas, Deus está para sempre além do conhecimento humano, e ainda assim Ele de alguma forma revela a Si mesmo àqueles que O buscam com fervor e constância. Além disso, embora para sempre além do conhecimento humano, para os Hesicastas do Oriente Cristão, Deus está para sempre presente, não como Essência transpessoal, que é imparticipável, ou como a "primeira determinação" da Essência Divina, como quereria a metafísica tradicionalista/Sufi, mas como Pessoa transcendente. Este é o verdadeiro significado do "trinitarismo extremo" dos hesicastas, que insiste em que a Essência Divina absoluta, apesar de totalmente além do ser, não é um princípio impessoal ou não-pessoal que transcende tudo o que se lhe segue, mas subsiste apenas enquanto a mesma é "en-hipostatizada" nas três Pessoas da Trindade. Para os hesicastas, a Pessoalidade Divina en-hipostatizando a Essência Divina é o princípio absolutamente transcendente, não a Essência Divina enquanto princípio não-hipostatizado estando sozinha. Na experiência da presença Divina, a Trindade expressa a primazia absoluta do Deus tri-hipostático sobre a Essência Divina entendida anhipostaticamente. Pessoa essencializada e Essência en-hipostatizada, é o mistério último. Para os hesicastas, então, o Absoluto não é a Essência transpessoal, mas a Divindade trans-essencial e hiper-pessoal, ou seja, o Um tri-hipostático hiper-essencial. 2) A certeza do Hesicasta de que Deus está supremamente presente como Pessoa nos leva à segunda pergunta: Quem está praticando a recordação? A resposta dada pelos Hesicasta é que a pessoa criada que é feita à imagem e semelhança de Deus é capaz de recordar-se de Deus precisamente porque, assim como Deus, ele é uma pessoa. Uma pessoa, criada ou Incriada, é um mistério, nunca totalmente circunscrito por uma definição, ou seja, como uma essência ou um "o quê". Uma pessoa não é um "o quê", mas um "quem", e "quem" você é, assim como Quem Deus é, é em última instância indefinível, indeterminado, e de infinita profundidade. Dizer "o quê" algo é, é circunscrever esse algo em termos de essência ou definição essencial; dizer "quem" é falar, não de alguma "coisa" que pode ser definida em termos de sua essência, mas de algum "alguém", um "quem" em última análise incircunscritivel e indefinível. Dizer "um", neste sentido, é dizer "quem" e não "o quê". Neste mesmo sentido, então, o Um Absoluto é o supremamente incircunscritivel, indeterminado, indefinível Quem, que está "infinitamente além de todo ser, potencialidade e atualização". Na Trindade dos hesicastas, repetindo, a essência não transcende a pessoa, mas é sempre en-hipostatizada; tampouco a pessoa transcende a essência, como teólogos personalistas Ortodoxos como John Zizioulas parecem estar dizendo, mas é essencializada: este é o coração equilibrado da mais elevada metafísica da teologia cristã, que não deve ser confundida com a "metafísica sentimental" que alguns tradicionalistas sufis chamam de teologia. No entanto, aquele feito à imagem de Deus só pode se aproximar da presença de Deus quando sua pessoalidade se torna semelhante à presença de Deus, ou seja, quando seu "quem" se torna semelhante ao "Quem" de Deus. Em termos de metodologia hesicasta, a presença humana pode ser capaz de se colocar na Presença Divina quando a potencialidade da semelhança com Deus inerente à natureza da pessoa criada tiver sido ativada por atos de purificação, ascetismo e oração. [...] A presença de Deus enquanto Pessoa transcendente e incriada, então, não é a conclusão de um julgamento racional, mas é experimentada por uma pessoa criada em um estado de sensibilidade espiritual elevada ou purificada, e isto não pode acontecer enquanto a alma estiver dominada por paixões de qualquer tipo. A Pessoa Transcendente se entrega à pessoa criada através de uma graça incriada na qual a pessoa criada participa de acordo com o grau de sua purificação e iluminação. Esta participação ocorre através da sinergia da benevolência da Pessoa Transcendente e dos esforços da pessoa criada. O significado e a finalidade última da pessoa humana criada por Deus é a capacidade de participar na realidade da Pessoa Divina Transcendente através das energias e atributos incriados da graça divina.

[...] 

Conclusão: O caminho para o coração através da recordação de Deus - Presença/Apofásis, Participação/Apatheia, Performance/Agape 



Tentemos resumir o que descobrimos até agora sobre a recordação de Deus de acordo com os primeiros mestres do Hesicasmo. 

1) A recordação de Deus para os primeiros Hesicastas está intimamente ligada à prática da hesíquia. 

2) Hesíquia - a paz e a quietude do coração baseada no retorno imperturbável do nous (o intelecto ou o olho do coração) ao coração causado pela libertação dos poderes da alma em relação às paixões - é o único caminho seguro para alcançar a theosis

3) O objetivo da recordação de Deus é a theosis (divinização) ou theopoisis (deificação): participação pelo homem na graça incriada de Deus, fundamentada na theoria ou na visão da luz incriada e alcançada através da energia da graça pela operação de Deus e pela cooperação (sinergia) do homem. 

4) A recordação de Deus é tanto uma prática como uma experiência. A essência da prática é o método de invocação do santíssimo nome de Jesus. A essência da experiência é a participação na presença divina, que é sinalizada por uma intensificação sem precedentes da energia humana chamada "sofrimento do coração". 

5) A recordação de Deus enquanto sofrimento do coração é fundamentada na recordação da morte, que é a experiência consciente da fronteira sempre presente entre nossa mortalidade pecaminosa e a insuportável limpidez da imortal Presença Divina. A atenção à morte é a experiência consciente do pecado, desejo de arrependimento, compunção intensa que leva à concentração dos poderes da alma à contemplação de Deus.

6) A função básica da Oração de Jesus na recordação de Deus é unificar a natureza humana fragmentada pelo pecado, porque Deus, cuja Presença é Unidade perfeita, só pode ser realizado em unidade. Sem a unificação de todos os poderes da alma, racional, apetitivo e irascível, não pode haver verdadeira recordação de Deus, mas apenas ignorância, esquecimento e insensibilidade auto-indulgente. 

7) A invocação do Nome de Jesus passa por várias etapas, das quais três são fundamentais: primeiro, a atenção (prosoche), que requer a recitação vocal da oração; depois a oração noética (noera prosauche), na qual a atenção é primeiro internalizada no nous, que então desce ao coração e se torna auto-ativante; e por fim, a encarnação de Jesus no coração, na qual a recordação de Deus se torna a presença incessante de Cristo no coração.

O ato, isto é, o fenômeno, da recordação de Deus, se for genuíno, é um paradoxo caminhando sobre as águas invisíveis de um abismo. Por um lado, a tradição hesicasta insiste na incognoscibilidade radical de Deus. Podemos saber que Deus é, insistem os santos, mas não podemos saber o que Deus é. Por outro lado, os Hesicastas insistem igualmente, como vimos no Tomo Hagiorita, na verdadeira gnose: a verdadeira experiência de Deus no coração. É uma espécie de conhecer o incognoscível através de um conhecimento incognoscível. [...] Enquanto encerramos nosso interrogatório dos primeiros Padres Hesicastas sobre o significado da recordação de Deus, esperamos começar a apreciar que o que eles entendem por recordação envolve algo muito mais profundo e significativo do que o mero pensamento de Deus na mente ou mesmo uma piedosa oração devocional. Para eles, a recordação de Deus é uma experiência plenamente real, de fato, uma experiência transformadora. Se a experiência da recordação de Deus não envolve um confronto transformador e transfigurante real com o fogo da presença Divina, uma consciência ardente de Deus enquanto "fogo consumidor" que efetivamente revela o pecado em toda a sua profundidade na alma enquanto o queima ao curar e transformar o homem interior, então não é realmente a recordação de Deus, mas um estado de esquecimento no qual a alma se entrega à ilusão da atividade religiosa enquanto permanece ignorante de sua própria insensibilidade radical à presença Divina.

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Nota do blog - leituras recomendadas:

- Para uma crítica ao conceito perenialista de uma Tradição Primordial por Philip Sherrard veja: 
http://skemmata.blogspot.com/2021/05/o-erro-do-conceito-perenialista-de-uma.html

- Para um comentário geral sobre a incompatibilidade do Perenialismo e o Cristianismo Ortodoxo veja: "Considerações ortodoxas sobre o perenialismo" http://avidaintelectual.blogspot.com/2010/04/consideracoes-ortodoxas-sobre-o.html

- Para uma crítica feita pelo Philip Sherrard mais aprofundada da relação entre lógica e metafísica na obra de Guénon veja seu ensaio "A metafísica da lógica" (disponível em português em http://avidaintelectual.blogspot.com/2015/12/a-metafisica-da-logica.html )

- Para uma crítica a tese da "Unidade Transcendente das Religiões" veja o artigo "The Problematic of the Unity of Religions" pelo teólogo Católico Romano Jean Borella (trecho disponível em português em http://wearetime.blogspot.com/2017/06/o-problema-da-unidade-das-religioes.html )

- Para um comentário sobre René Guénon escrito pelo Pe. Serafim Rose em uma de suas cartas veja http://aenergeia.blogspot.com/2015/04/padre-serafim-rose-e-rene-guenon.html

- Para um comentário sobre a teosofia e o ocultismo escrito pelo Pe. Sergius Bulgakov veja http://skemmata.blogspot.com/2016/06/os-enganos-do-ocultismo-e-teosofia.html


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