quarta-feira, 29 de agosto de 2018

Igreja, Papado e Cisma: Uma Investigação Teológica (Philip Sherrard) [Parte 2/2]


1. A Igreja 
2. O Episcopado 
3. A Estrutura Conciliar
4. Duas Eclesiologias Rivais 
5. O Papado
6. Perspectivas e Fórmulas do Cisma
7. A Cristologia do Cisma
8. Doutrina Trinitária e o Cisma
9. Epílogo 


5. O Papado

O conceito do papado é parte integrante da visão romana da Igreja que acabamos de considerar, e não tem nenhum significado fora dela. Para entendê-lo, portanto, é preciso vê-lo neste contexto. Assim, mais uma vez, indicaremos as principais características dessa visão. Ela se desenvolve a partir da proposição de que o propósito da vida humana é ser incorporado em um corpo, o unum corpus das epístolas paulinas, que deve ser identificado com o corpo do próprio Cristo. Esta incorporação tem, em última análise, um significado espiritual ou místico, e a sociedade que os cristãos redimidos devem formar é a sociedade celestial do Reino de Deus. Essa sociedade é a Igreja, a noiva de Cristo, ou seu corpo místico (corpus mysticum), como uma realidade não-material ou supra-terrestre. Mas Cristo também deu à Igreja uma extensão material ou terrestre, a fim de adaptá-la ao serviço das necessidades de uma humanidade decaída, vivendo nas condições imperfeitas da história. Ele fundou-a na terra.

Essa forma terrestre da Igreja não é, naturalmente, não relacionada à sua forma celestial ou mística. Pelo contrário, é uma espécie de projeção dessa forma celestial ou mística, e só existe na medida em que a reflete. É, por assim dizer, a contrapartida da forma divina da Igreja, uma tradução desta forma e da sociedade celeste em uma forma terrestre e uma sociedade terrena, na medida em que isso é possível nas condições caídas deste mundo. Desta forma, pode-se dizer que a Igreja tem um caráter dual e, a esse respeito, reflete seu fundador, Cristo, que tem uma natureza dual. Ela é ao mesmo tempo o corpo místico de Cristo, uma realidade espiritualizada e um corpo terreno de homens e mulheres vivos. E assim como o propósito da forma celestial da Igreja é cumprido através da incorporação de todas as almas cristãs no corpo místico de Cristo, o propósito da forma terrena da Igreja é cumprido através da incorporação de todos os homens e mulheres vivos em sua sociedade. A Igreja, isto é, quer seja considerada em sua forma celestial ou terrena, é uma corporação e, mais particularmente, em sua forma terrestre, é uma sociedade civil ou uma única entidade corporativa da qual todos os homens e mulheres são potencialmente membros. O propósito da Igreja na terra é abraçar todo o povo cristão - e, em última análise, todas as pessoas - nesta corporação universal unida pelo elo comum da fé cristã. Pois somente desta maneira estas pessoas podem estar preparadas para se tornarem membros da sociedade celestial e entrarem no Reino de Deus.

Para cumprir este propósito, e para formar esta sociedade cristã universal, a forma terrestre da Igreja deve ser governada. Sendo uma construção humana e social, deve ser governada de maneira similar a qualquer outra forma de sociedade humana e terrestre. O governo exige duas coisas. Em primeiro lugar, exige uma distinção entre governantes e governados; e, segundo, que os governantes devem ser adequadamente qualificados para governar de acordo com o propósito subjacente da sociedade sobre a qual eles governam. Essas duas condições são de fato complementares, já que é a posse da qualificação apropriada para governar uma dada sociedade que distingue o governante dos governados. No que diz respeito à Igreja, o propósito em questão é conseguir a incorporação da humanidade no corpo de Cristo e na unidade da fé cristã. Pode-se dizer que todos os fiéis estão qualificados para alcançar este propósito e, portanto, todos devem participar do governo da Igreja. Infelizmente, neste mundo caído, este não é o caso.

Na queda, o homem perdeu sua qualificação. Ele perdeu sua participação em Cristo, a imagem de Deus. Ele está em escravidão, em cativeiro ao poder do mal, ao diabo. Tal é, de fato, sua escravidão que ele é incapaz de se libertar por seus próprios esforços sozinhos. É precisamente por isso que ele tem a necessidade da assistência sobrenatural da Igreja: o propósito da Igreja na terra é ajudar a libertá-lo de seu cativeiro. Sendo este o caso, ele claramente não está qualificado para participar do governo da Igreja. Dizer que ele é qualificado equivaleria a dizer que ele é capaz de dirigir os meios pelos quais sua libertação deve ser alcançada e que ele é de fato capaz de libertar-se de sua escravidão por seus próprios esforços sozinhos. E isso seria contradizer a realidade de seu estado decaído e as limitações ao seu conhecimento, livre arbítrio e força que implica. Estando nesse estado, seu papel só pode ser aceitar a graça que é o propósito da Igreja mediar.

Quem, então, está qualificado para governar? O elemento constitutivo básico da Igreja na terra é o sacramento da Eucaristia e, por extensão, os outros sacramentos, particularmente o batismo, através dos quais a graça é mediada para a humanidade. Como a função primordial da Igreja é a mediação dessa graça, e como ela é mediada pelos sacramentos, que formam, portanto, o elemento constitutivo básico da Igreja, segue-se que aqueles que, em primeira instância, são qualificados para governar a Igreja, são aqueles qualificados para controlar e administrar os sacramentos. Estes são o episcopado e o clero subordinado: aqueles que são ordenados. Há, portanto, antes de tudo, uma separação radical dentro da Igreja na terra entre seus membros leigos e sacerdotais - entre ordo laicalis e ordo sacerdotalis - porque somente padres ordenados são qualificados para controlar e administrar os sacramentos.

Mas se esta qualificação de ordenação divide a Igreja na terra em governantes e governados em relação à sua organização como um corpo constituído, ela ainda não inclui o princípio que realmente constitui a Igreja desta maneira ou funciona como o princípio operativo e orientador de sua unidade durante o curso de sua peregrinação terrestre. O corpus, em outras palavras, deve ter uma cabeça ou um princípio último monárquico de governo. Este princípio, claro, é Cristo. Ele na verdade constitui a Igreja e é a cabeça suprema da Igreja tanto em sua forma celestial quanto terrestre. Mas por causa da dicotomia entre Deus e o homem e a lacuna ontológica entre eles (superada no caso único da união hipostática entre o divino e o humano na pessoa de Cristo), o próprio Cristo, após sua ascensão, não pode agir como princípio operante e orientador imanente da Igreja na terra diretamente, em sua própria Pessoa; e nem, como vimos, nenhuma outra pessoa da Trindade pode agir como esse princípio. Consequentemente, na sua ausência, por assim dizer, e até a sua Segunda Vinda, Cristo tem que nomear alguém que irá agir em seu lugar e ser seu vigário na terra.

De fato, em vista dessas circunstâncias, e em reconhecimento ao fato de que a Igreja na terra, durante sua peregrinação terrena, deve ter uma forma humana e social, paralela à que tem no céu, Cristo não somente provê alguém para tomar seu lugar e ser seu vigário depois de sua ascensão. Ele também, enquanto ele mesmo está na terra, na verdade designa a pessoa em quem a Igreja deve ser fundada e delega-lhe os poderes necessários para realizar essa tarefa e ser o princípio governante da Igreja na terra e o centro de sua unidade. Ou melhor, ao nomear a pessoa sobre a qual a Igreja terrestre deve ser fundada, ele simultaneamente designa a maneira pela qual este princípio supremo de governo da Igreja na terra deve ser representado através do tempo, na história, até sua Segunda Vinda. Isso ele faz em sua comissão a São Pedro. O registro verdadeiro deste ato deve ser encontrado acima de tudo em dois textos do Evangelho. No primeiro, (o conhecido texto 'Tu es Petrus' de Mateus 16. 18-19) não se trata do estabelecimento do mandato petrino, mas da promessa de que ele será estabelecido. No segundo (João 21: 15-17), onde ele cobra Pedro com os cuidados de seu rebanho ('Apascenta meus cordeiros', 'Apascenta minhas ovelhas'), esta promessa original é cumprida. Em outras palavras, Cristo, em sua comissão a São Pedro, não apenas determina em quem esta autoridade presidencial sobre a Igreja é investida. Ele também providencia providencialmente para sua posterior e continuada investidura naqueles que sucedem São Pedro na Sé Apostólica fundada por São Pedro em Roma. É o papa de Roma que é o legítimo herdeiro de São Pedro. Ele é o vigário de São Pedro. De fato, como São Pedro é o vigário de Cristo, o papa é, em última instância - como o papa Inocêncio III foi o primeiro oficialmente a afirmar - também o vigário de Cristo.

O que exatamente isso significa? Ou quais são os poderes investidos por Cristo no ofício petrino ao qual o papa adere? Basicamente são poderes jurisdicionais, poderes para ligar e desligar. 'Tudo o que ligares na terra será ligado nos céus', Cristo dissera a Pedro; e isso é considerado da maneira mais literal como significando que o que é ligado - ou desligado - no céu é assim tratado como uma conseqüência direta de estar ligado ou desligado na terra. A esse respeito, esses poderes petrinos são absolutos e irrevogáveis, e nenhuma corte ou tribunal superior pode anulá-los, neste mundo ou no seguinte. Também não há limite de escopo para o seu exercício: o "tudo" abrange tudo e todos, sem exceção. Em resumo, o que Cristo entregou a Pedro e Pedro ao pontífice romano é uma plenitude de poderes, poderes absolutos para governar a Igreja na terra. Como tal, devem ser distinguidos dos poderes carismáticos sacramentais que o papa, como bispo de Roma, compartilha igualmente com todos os outros bispos e que são transmitidos em seqüência, por intermédio de bispos devidamente consagrados, desde os apóstolos (e não de Pedro sozinho). Os poderes jurisdicionais absolutos do papa - os requeridos para o governo da Igreja - não são transmitidos dessa maneira. Eles são transmitidos diretamente de São Pedro, e não é necessário nenhum rastreamento através de uma linha de intermediários episcopais.

De fato, a esse respeito, o papa não é nem mesmo o sucessor do papa anterior. Ele é o sucessor direto de São Pedro, seu herdeiro - indignus heres beati Petri, como diz a fórmula bem conhecida. O termo 'herdeiro' é em si originalmente um termo jurídico romano. De acordo com a lei romana, o herdeiro sucede a pessoa morta na medida em que o herdeiro continua o falecido legalmente. Todos os direitos, deveres, bens, responsabilidades e assim por diante do falecido são transmitidos diretamente ao herdeiro; e deste ponto de vista não há diferença entre o herdeiro e o falecido. É de acordo com um princípio semelhante que o papa é considerado o herdeiro dos poderes conferidos por Cristo a São Pedro. Ele não herda as características individuais de Pedro. Ele não é o apóstolo Pedro. Mas ele herda a propriedade - o ofício - dado a Pedro por Cristo. E com relação a este ofício, não há diferença entre o papa e São Pedro. De fato, com relação a este ofício - com relação a esses supremos poderes jurisdicionais - não há diferença entre o papa, São Pedro e Cristo. Cristo entregou esses poderes a Pedro e Pedro os entregou ao papa. Portanto, o papa é o vigário de Cristo na terra - vicarius Christi - seu agente especial designado para governar toda a Igreja na terra, de acordo com os poderes monárquicos que Cristo conferiu a Pedro e que o papa herdou posteriormente.

Não é apenas em relação a esse conceito de sucessão, no entanto, que o papado está em dívida com o direito romano. De fato, uma vez que a idéia da Igreja na terra como a sociedade coletiva, corporativa e jurídica de seres humanos batizados surgiu da maneira que ela surgiu, de modo que se tornou necessário implementar princípios e práticas para governar essa sociedade em linhas efetivas para outras sociedades humanas, então era mais ou menos inevitável que o modelo para esses princípios e práticas fosse encontrado na lei e no governo romano. Este era praticamente o único modelo disponível. Além disso, os papas medievais e seus conselheiros eram na maior parte nascidos e criados em Roma e mergulhados em suas tradições jurídicas. Portanto, essa submissão ao direito romano caracteriza muitos aspectos do papado. Caracteriza o conceito de primazia em si. Como a sociedade corporativa de todos os cristãos batizados, a Igreja é dotada de qualidades corporativas no modelo da lei romana. Seu governo, como o de qualquer outra sociedade, precisa de orientação e reconhecimento dessa autoridade pelos governados. E como esta sociedade é um corpo - um corpus - a união corporativa de cristãos - segue-se que essa autoridade diretiva deve ser exercida por uma cabeça. A união corporativa deve ser governada monarquicamente pela cabeça.

O modelo para essa liderança a ser exercido pelo papa foi fornecido pelo estado e pelo sistema legal romano. Foi fornecido pelo Principado Augustano. Como princeps, Augusto era chefe de todo o estado. Como tal, ele possuía auctoritas suprema. Originalmente, na República, essa auctoritas havia sido investido no senado romano. Mas, no Principado Augustano, passou para Augusto, e o senado (que aliás forneceu o modelo para o colégio de cardeais) tornou-se cada vez mais um parceiro passivo. Assim, como princeps Augustus possuía a mais alta autoridade no estado. O princeps representava o princípio da primazia, e a autoridade (auctoritas) agora ligada a ele era uma fonte de decisão que suplementava e, ao mesmo tempo, transcendia outras fontes de decisão. Essa autoridade não podia ser compartilhada. Mas poderia ser exercida por meio de poder positivo legalmente assegurado. E esse poder - ou esses poderes - poderiam ser compartilhados. Tal compartilhamento não dividiu a monarquia do Principado. Apenas suplementou ou ampliou.

Foi este Principado, com a autoridade ligada a ele, que o papa reivindicou, alegando que a igreja romana, sozinha, era a apostolica sedes, com a exclusão de todas as outras igrejas, e que, consequentemente, somente ela havia herdado a comissão petrina. A direção do corpo corporativo da sociedade cristã exigia o exercício do poder jurisdicional e esse poder havia sido dado a São Pedro por Cristo. São Pedro tinha poderes monárquicos para governar a Igreja na terra, e esses poderes constituem um principatus. Como o papa ocupa a apostolica sedes, ele é o único sucessor de São Pedro e, consequentemente, ele sozinho herda o principatus de São Pedro e a soma total dos poderes jurisdicionais que o acompanham. Pode-se sugerir que o fato de que a Igreja na terra veio a ser considerada como um corpo jurídico, corporativo e governável de cristãos exigindo ser governado em uma base monárquica, e o fato de que o modelo para essa monarquia era encontrado no Principado Romano, forçou na igreja romana e em seus conselheiros a interpretação particular da comissão petrina e suas conseqüências que é mantida até os dias atuais. Em outras palavras, pode-se dizer que não é a comissão petrina e suas conseqüências que determinam a forma de governo eclesiástico representado pelo papado. É a idéia do que é a Igreja na terra e, portanto, de como deve ser governada, que determina a interpretação dada às palavras de Cristo a Pedro e ao significado atribuído a elas.

Este, então, é o caráter do ofício petrino que o papa ocupa. Sua ocupação, é claro, separa o papa de outros bispos, que participam igualmente com ele dos poderes de ordenação como sucessores dos apóstolos. Os poderes de jurisdição concentram-se unicamente nas mãos do papa. Ele pode delegar esses poderes a outros bispos (e mesmo àqueles que não são bispos). Mas nenhum outro bispo pode exercer esses poderes em relação à sua própria diocese, ou em qualquer capacidade jurisdicional, a menos que o papa os tenha delegado a ele. De um ponto de vista, de fato, esses poderes não são intrínsecos à Igreja. Eles não estão de forma autônoma na Igreja. Porque a sua concessão a Pedro por Cristo precedeu a fundação da Igreja: Pedro não foi edificado sobre a Igreja, a Igreja foi edificada sobre Pedro. Ele podia, portanto, exercê-los independentemente da Igreja. Eles não são, portanto, poderes na Igreja ou da Igreja que Pedro, e posteriormente os papas, possuem em virtude de serem membros da Igreja, ou de ocupar um cargo especial na Igreja. Eles são poderes sobre a Igreja. Por isso, estritamente falando, o ofício papal não é um ofício na Igreja ou da Igreja. É um ofício, ou função, acima e fora da Igreja, existe por si mesmo; é uma propriedade por si só. Representa uma totalidade de poderes concentrados no papa e exercitados pelo papa sobre a Igreja na terra. E se alguns desses poderes são exercidos por outros na Igreja, é porque o papa, como seu detentor exclusivo, os delegou.

Deste modo, o ofício papal é separado de todos os outros ofícios da Igreja. Até o próprio papa o ocupa independentemente de seu cargo como bispo da Igreja em Roma. Pois, embora o papa também seja bispo de Roma, e assim tenha que ser consagrado bispo, a eleição papal em si não torna o papa um bispo, e um papa eleito pode, em teoria, operar seus poderes petrinos antes de ser um bispo consagrado. Isso enfatiza a distinção entre os poderes de jurisdição e os poderes da ordem carismática e sacramental que distingue a função papal da de outros bispos. Também enfatiza o grau em que o papa, como papa, se distingue dos membros da Igreja, o congregatio fidelium. A Igreja e seus membros, como tal, não tem nada a ver com o ofício papal. Este pertence ao papa apenas; e, teoricamente falando, não existem laços jurídicos entre o papa e a Igreja como a congregação dos fiéis, de acordo com os quais o papa é responsável por seus decretos e ações à Igreja. Os cristãos, como um corpo, faltando todos os direitos inerentes a este respeito, não podem reivindicar qualquer controle sobre o papa nem conferir quaisquer direitos de jurisdição sobre qualquer outra pessoa. Todos esses direitos e poderes residem exclusivamente no papa; e o exercício deles por outros na Igreja é uma concessão da parte do papa.

Desta forma, o governo da sociedade cristã terrestre se realiza como o mais completo paralelo, ou analogia, possível nas condições deste mundo de seu paradigma celestial: como Cristo é a cabeça e o princípio da unidade da sociedade celestial, também o papa, vigário de Cristo, é cabeça e princípio da unidade da Igreja em sua forma terrena, da sociedade cristã em sua forma terrena. Ele é a autoridade final sobre o que constitui a fé cristã e o legislador supremo, convertendo as ordenanças celestiais em leis positivas, cuja execução depende da capacidade da Igreja de cumprir seu propósito na Terra. E toda esta organização da sociedade cristã universal e as instituições e leis necessárias para o seu funcionamento e preservação não são, alega-se, invenções humanas. Elas são fornecidas e estabelecidas na revelação cristã, conforme registrado nos Evangelhos. A Igreja na terra não precisa, portanto, adquirir algo que já não possua através do próprio ato de sua fundação. Ela só tem que afirmar contra a oposição (presumivelmente diabólica) o que já é sua em virtude da filiação divina e qual é a expressão visível do plano de Deus para a humanidade. Além disso, seres humanos individuais, através do fato de nascerem neste mundo, nascem em um estado decaído no qual eles perderam por causa do pecado de Adão sua participação em Cristo, a imagem de Deus. Consequentemente, eles não podem alcançar a salvação e evitar a condenação sem a aquisição da graça. Mas a única maneira pela qual eles podem adquirir graça é através dos canais sacramentais mediados pela Igreja. Segue-se, portanto, que a única maneira pela qual eles podem ser salvos é através da filiação à sociedade eclesiástica. E uma condição de tal filiação - e portanto de salvação - é a submissão e obediência às leis e instituições desta sociedade e àqueles que as administram. Isso significa que, em última análise, é submissão e obediência ao papa que é uma condição de tal filiação, uma vez que ele é o chefe supremo e o princípio governante dessa sociedade. Daí a lógica da famosa Bula, Unam Sanctum, emitida pelo papa Bonifácio VIII em 1302: 'Instados pela fé, somos obrigados a crer em uma Igreja santa, católica e apostólica. . . sem a qual não há salvação nem remissão de pecados. . . que representa um corpo místico, cuja cabeça é Cristo, e a cabeça de Cristo é Deus.' E: 'Declaramos, afirmamos, definimos e pronunciamos que, em prol de sua salvação eterna, cabe a cada criatura humana estar sujeita ao pontífice romano'. Por isso, vários séculos depois, em 1870, os pronunciamentos do primeiro Concílio Vaticano, onde a igreja romana afirma 'a instituição da primazia no bem-aventurado Pedro', uma primazia 'não apenas de honra, mas de jurisdição verdadeira e apropriada'; 'a perpetuidade do primado do bem-aventurado Pedro nos pontífices romanos', 'seus sucessores, em quem ele vive e preside e julga até hoje'; e 'o poder e a natureza da primazia do pontífice romano' como sendo 'o poder supremo que governa a Igreja Universal'. Por isso, finalmente, a afirmação do Papa Pio XII no Mystici Corporis Christi de que 'andam pelo caminho do erro perigoso, aqueles que acreditam que podem aceitar a Cristo, enquanto rejeitam a lealdade genuína ao Seu vigário na terra.'

A Igreja visível como a sociedade cristã com o papa em sua cabeça existe acima de todos os seus membros; e enquanto cada membro pode alcançar significância ou status positivo apenas no grau em que ele participa da vida corporativa da Igreja, o contrário não é o caso. É na realidade corporativa da sociedade cristã que a boa vida reside e, para participar nela, o indivíduo deve sujeitar-se sem reservas aos funcionários divinamente designados que a governam e às leis promulgadas por eles. De fato, as ofensas contra essas leis devem ser punidas da mesma maneira que a heresia, pois agora não há distinção real entre elas: ambas são ofensas contra as leis da sociedade cristã, e é serviço ou ofensa contra o bem-estar desta sociedade que distingue o bem do mal. É o bem-estar de toda a sociedade cristã que agora define o propósito do cristão individual, já que o bem-estar individual só pode ser encontrado no serviço à comunidade como um todo. Tal serviço é, de fato, tanto uma obrigação política quanto um comando divino. E é aqui, nessa necessidade de servir a sociedade cristã contra seus inimigos internos e externos até o ponto de martírio ou a inflição de morte, que está a explicação do envolvimento central da Igreja romana em empreendimentos como as Cruzadas, a Santa Inquisição, a queima de uma Joana d'Arc, um Savonarola ou um Giordano Bruno e a condenação de Galileu.

Seria errado, no entanto, concluir este capítulo sem enfatizar mais diretamente um ponto para o qual já foi feito referência. As correntes eclesiológicas das quais o papado emerge marcam um afastamento da tradição patrística. Mas isso não significa que as igrejas ortodoxas tenham perseguido através dos séculos um caminho de lealdade irrepreensível e inabalável aos princípios patrísticos, enquanto a igreja romana e aquelas igrejas que aderem a Roma os abandonaram completamente. Em primeiro lugar, deve ser lembrado que o modelo para a chefia que o papa reivindicou foi fornecido, como observamos, pelo Principado Augustano. Era uma autoridade imperial; e o fato do papa reivindicá-lo não significava que os sucessores dos imperadores romanos que governavam o império bizantino o haviam renunciado. Pelo contrário, continuaram a afirmá-lo e, com ele, seu direito de exercer o controle imperial sobre os assuntos da Igreja. Em outras palavras, no que diz respeito as igrejas ortodoxas, o imperador, tanto em Bizâncio quanto subseqüentemente na Rússia, assumiu muitas vezes esses direitos governamentais prescritivos sobre a Igreja reivindicados pelo papado. O grau em que ele conseguiu implementar esses direitos na prática é uma questão que está fora do escopo da presente discussão; mas não há dúvida de que a acusação de que as igrejas ortodoxas se permitiram facilmente se fundir com o Estado e até mesmo se subordinar aos interesses do Estado é algo que não pode ser negado. Por outro lado, também deve ser lembrado que quaisquer que sejam os direitos que o imperador tenha reivindicado em relação à Igreja, ele não era um sacerdote da Igreja, e muito menos um bispo; e que este fato funcionava como uma restrição definitiva à sua autoridade: ele não podia reivindicar, como o papa veio a reinvindicar, que possuía a liderança tanto do sacerdotium quanto do imperium, e que a plenitude de todo o poder espiritual e temporal estava investido em seu ofício. 

Em segundo lugar, essas mesmas correntes das quais o papado emergiu fizeram-se sentir, e continuam a se fazer sentir, no mundo ortodoxo. A teoria da Pentarquia elaborada nos tempos bizantinos, segundo a qual os poderes governamentais supremos da Igreja na terra são investidos nos cinco principais patriarcados, é uma manifestação direta delas. Assim também, é a alegação, apresentada pelo Patriarca de Constantinopla no século XIV, no sentido de que ele possui alguma autoridade especial e superior em relação a outros bispos - uma alegação de que se pode observar a influência contínua em certas ações e declarações inconvenientes ​​do patriarca constantinopolitano nos últimos anos. De fato, toda a concepção e status dos patriarcados, na maior parte relíquias de uma estrutura imperial desaparecida, precisam ser reexaminados à luz dos princípios patrísticos. Tampouco as igrejas ortodoxas são inocentes em apoiar, e mesmo promover, atos de perseguição e repressão em que a liberdade religiosa e intelectual foi sacrificada à suposta integridade de uma sociedade dita cristã.

Terceiro, o papado e a teoria em que se baseia podem ter sobreposto e até deslocado a estrutura conciliar da organização eclesiástica e os princípios patrísticos sobre os quais se baseia. Mas de maneira nenhuma eliminaram a idéia de que a Igreja é, acima de tudo, um organismo sacramental ou as conseqüências dessa idéia quando se trata do status e da função do bispo; e tanto essa ideia como suas consequências podem ser reafirmadas - na verdade, estão cada vez mais sendo reafirmadas - no mundo católico romano. No entanto, o que parece estabelecer um limite para essa reafirmação é o fato de que o papado se estabeleceu como parte e parcela da estrutura imutável da Igreja na terra. São alguns dos argumentos apresentados em apoio a este status que devem ser discutidos agora.


6. Perspectivas e Fórmulas do Cisma

Ficará claro que a concepção romana da Igreja na terra como uma vasta organização social e corporativa, cujos poderes supremos de jurisdição e magistério estão investidos no papado, ultrapassa a concepção patrística em que todos esses poderes são investidos no episcopado como um todo e são exercidos não somente por cada bispo agindo de forma independente em sua própria diocese, mas quando necessário, através do sistema de concílios da igreja. Também ficará claro que, uma vez que essa concepção romana é incompatível e irreconciliável com a tradição patrística, a tentativa de implementá-la no plano histórico não poderia deixar de produzir um cisma entre as igrejas que a aceitaram e aquelas que não a aceitaram. Deve-se reconhecer que quaisquer que sejam as outras causas - culturais, políticas e assim por diante - possam ter contribuído para o cisma, a causa subjacente é o choque e a oposição dessas duas eclesiologias fundamentalmente irreconciliáveis. Ao mesmo tempo, como já dissemos, essas próprias eclesiologias e as formas institucionais a que elas dão origem estão enraizadas em diferenças doutrinárias subjacentes, particularmente cristológicas e trinitárias; e, portanto, a causa final ou causas do cisma são teológicas. No entanto, como vimos, a concepção romana da Igreja na terra e seu governo sustenta-se na afirmação de que está enraizada, não na teologia, mas na própria revelação cristã, conforme se manifesta nos Evangelhos. Ela se sustenta na afirmação de que se baseia em critérios objetivos independentes da teologia ou doutrina. Antes de prosseguir, portanto, para examinar as diferenças doutrinárias que de fato fundamentam essas eclesiologias conflitantes, devemos primeiro considerar as credenciais pelas quais o ponto de vista romano é apoiado. Isto, entre outras coisas, também proporcionará uma oportunidade para indicar mais especificamente alguns dos principais fundamentos eclesiológicos para o cisma. A compreensão romana é que a primazia de São Pedro e, portanto, dos papas como sucessores de São Pedro se baseiam sobretudo nos dois textos evangélicos que já observamos (Mateus 16.18-19 e João 21. 15-17. Um terceiro texto petrino - Lucas 22. 32: "Mas eu roguei por ti, para que a tua fé não desfaleça; e tu, quando te converteres, confirma teus irmãos." - é apresentado pelo Primeiro Concílio do Vaticano para apoiar, não a primazia papal, mas o papal infalibilidade, embora os dois estejam inter-relacionados). O que isso significa é uma reivindicação de que a autoridade para a constituição externa da Igreja, conforme prevista na concepção romana, está nos próprios Evangelhos; e o que está incluído nesta constituição externa é o papado como o único órgão histórico da unidade da Igreja na terra e como o supremo poder jurisdicional sobre o episcopado e sobre a congregação dos fiéis. O que primeiro deve ser examinado, portanto, é essa afirmação de que a constituição da Igreja na terra, conforme prevista do ponto de vista romano, é autorizada pelas Escrituras.

Talvez a primeira coisa a ser notada aqui seja o fato de que, como já vimos, os textos petrinos nas Escrituras são suscetíveis a várias interpretações. Às vezes, por exemplo, a "rocha" na qual a Igreja é fundada é identificada com o próprio Cristo, às vezes com a pessoa de São Pedro, às vezes com a verdadeira fé, e assim por diante. Novamente, as chaves para ligar e desligar são consideradas como a posse comum de todos os apóstolos por escritores como Orígenes, Santo Ambrósio, Santo Agostinho e outros: elas não são de modo algum já consideradas como a prerrogativa exclusiva de São Pedro. Esta é apenas uma outra maneira de dizer - o que, de fato, é óbvio - que o modo como se lê e assim interpreta o texto petrino ou qualquer outro texto do Evangelho, e o significado que alguém atribui a eles, deve depender dos princípios e critérios de compreensão, especificados ou não especificados, que se traz para a leitura deles. Não se pode ler textos bíblicos - ou quaisquer outros textos - em, por assim dizer, um vácuo e à parte das próprias pressuposições de compreensão. E essas próprias pressuposições devem representar ou pelo menos implicar um ponto de vista teológico. Consciente ou inconscientemente, elas devem estar enraizados na teologia. Por isso, a interpretação romana dos textos evangélicos em questão também está enraizada em uma perspectiva teológica.

O segundo ponto que pode ser observado a esse respeito é que os escritos do Novo Testamento não são uma entidade dada, como as Tábuas da Lei de Moisés. São registros da vida e ensinamentos de Cristo feitos por aqueles que participaram de sua missão terrena ou que viveram em um tempo bastante próximo a ela e que receberam relatos de testemunhas. O próprio cânon escriturístico foi estabelecido a partir de vários desses registros, selecionados e organizados de uma maneira específica novamente de acordo com certos princípios e critérios de compreensão - princípios e critérios novamente expressando ou implicando um ponto de vista teológico, neste caso relacionado à iniciação nos mistérios da Igreja. Em outras palavras, o cânon das escrituras é estabelecido pela Igreja e de acordo com seus próprios propósitos, e não vice versa. Isso quer dizer que a constituição da Igreja na terra precede o estabelecimento do cânon das escrituras: a Igreja na terra já é constituída antes de qualquer decisão sobre o que é Escritura e o que não é Escritura. É claro que isso deixa sem resposta a questão de quem ou qual autoridade na Igreja estabelece o cânon das escrituras. Do ponto de vista patrístico, a resposta seria que todo o corpo da Igreja, bispos e leigos, sob a direção do Espírito Santo. Do ponto de vista romano, a resposta consistente deve ser que a autoridade final recai sobre o papa de Roma, quaisquer que sejam a parte que outros bispos ou leigos possam desempenhar. Se este é o caso, então depara-se com a curiosa conclusão de que o papa de Roma, como suprema autoridade magistral e jurisdicional sobre a Igreja na terra, estabelece o cânon escriturístico que, na interpretação romana dos textos petrinos nele incluídos, estabelece São Pedro e, posteriormente, o papa de Roma como a suprema autoridade magistral e jurisdicional sobre a Igreja. Mas mesmo se pudesse ser demonstrado que o papa de Roma desempenhou um papel único e autoritário na determinação do cânon das escrituras, ainda resta o fato de que é a Igreja já constituída que determina esse cânon; daí a constituição da Igreja, e do papado como o órgão de sua unidade exterior, não pode ter sido deduzida da Escritura. Mesmo se for dito que eles são determinados diretamente por revelação, à qual os Evangelhos testemunham, a mesma dificuldade permanece: ainda há a questão de quem ou qual autoridade estabelece a autenticidade da revelação ou fornece a interpretação autêntica dos fatos da revelação. Seja qual for o modo como se olha, ainda se enfrenta a conclusão de que a constituição e estrutura da Igreja na terra não pode ser derivada tout court da Escritura ou da revelação, mas deve depender dos princípios e critérios segundo os quais elas são interpretadas - princípios e critérios que novamente serão de caráter teológico. O máximo que se pode dizer a esse respeito é que nenhuma interpretação que contradiz especificamente os fatos da revelação pode ser válida, conforme registrados nos Evangelhos. Para além disso, os Evangelhos são irrelevantes no que se refere à constituição da Igreja; e os textos petrinos em si não confirmam nem refutam a afirmação de que Cristo conferiu a São Pedro esse tipo de primazia com a qual ele é creditado na teoria eclesiológica romana.

No entanto, estes textos parecem indicar algo de importância crucial no que diz respeito à constituição da Igreja na terra e que São Pedro tem alguma função particular a este respeito. Neste ponto, portanto, é relevante ver como a questão dos poderes eclesiásticos, sua transmissão e o papel de São Pedro são considerados na tradição patrística. Para começar, essa tradição não assume que o problema exegético dos textos consiste simplesmente em decidir se Cristo quis dizer que a Igreja foi fundada na fé de Pedro ou na pessoa de Pedro ou no próprio Cristo. Mas ela afirma que o texto de 'Tu es Petrus', seja qual for o significado preciso que alguém lhe atribui, é um privilégio não do papado, mas do episcopado como um todo. 'O episcopado é um', como diz São Cipriano. 'É um todo do qual cada um desfruta de posse plena.' O episcopado é uma posse sobre uma totalidade na qual cada bispo possui aquela autoridade plena que Cristo primeiro (em um sentido cronológico) conferiu a Pedro. A autoridade designada por Cristo a Pedro (seja qual for) é investida em todo o episcopado. Todos os bispos se sentam na única cadeira ou trono de Pedro. Esta cadeira ou trono é uma descrição concentrada da autoridade e funções que cada bispo desfruta em virtude de seu ofício, e que de fato constituem seu ofício. E há apenas 'uma cadeira fundada em Pedro pela Palavra do Senhor' (como diz São Cipriano); e todo bispo é o sucessor de Pedro, entronizado como tal na cadeira de Pedro.

Ao mesmo tempo, embora assim todos os bispos sejam sucessores de São Pedro, quaisquer poderes que tenham sido conferidos a Pedro por Cristo não foram conferidos a ele somente de todos os apóstolos. Eles foram conferidos (mesmo que posteriormente) por Cristo a todos os apóstolos, incluindo aqueles missionários itinerantes que têm o título de 'apóstolo', como Timóteo ou Tito, e que são mencionados no Didache (xi. 4-5). A passagem bíblica vista como confirmando isso é Mateus 28. 18-19. Além disso, há uma clara distinção entre apóstolos e bispos. Os apóstolos haviam recebido uma missão universal de ensino de Cristo - um ministério que consistia em anunciar ao mundo inteiro o Evangelium (Evangelho) do qual haviam sido testemunhas. O campo de ação de cada bispo, por outro lado, é restrito, exceto quando ele age em Concílio com outros bispos, na comunidade local sobre a qual ele preside. Ou seja, enquanto os apóstolos foram designados para ensinar e fundar igrejas locais onde, como regra geral, eles não administravam os sacramentos, o ofício do bispo é definido precisamente pelo fato de que ele é a imagem de Deus no centro sacramental local no qual a presença de Cristo é manifestada. Suas funções são, portanto, essencialmente sacramentais e litúrgicas, sendo determinadas em primeiro lugar por seu status como imagem de Deus na igreja local. Mas porque eles também estão ocupados em proclamar, manter e transmitir a verdadeira fé em uma mesma igreja local fundada originalmente, direta ou indiretamente, pelos apóstolos, essas funções também são apostólicas; e elas também são jurisdicionais e magistrais.

As funções apostólicas do bispo - seu ministério - estão, portanto, íntima e indissoluvelmente ligadas às suas funções sacramentais e litúrgicas. Elas estão ligadas ao mistério eucarístico que perpetua através do tempo o evento ao qual os apóstolos prestaram testemunho. A Eucaristia é a atualização da obra de Cristo, e o ensino da verdade é um aspecto dessa atualização. E esta verdade é sempre apostólica - baseada no testemunho dos apóstolos - porque, como a obra de Cristo se atualiza no mistério eucarístico, não há diferença entre o tempo dos apóstolos e aquele em que a Eucaristia é celebrada em qualquer igreja local. Como comunidade sacramental, a igreja local é também a guardiã dos ensinamentos apostólicos. A pessoa que em relação a essa comunidade e como seu representante proclama este ensinamento é o bispo. Desta forma, o bispo é o sucessor dos apóstolos.

Em suma, todos os bispos igualmente sucedem a qualquer poder conferido por Cristo aos apóstolos. Mas eles não lhes sucedem como se estivessem independentemente de suas funções sacramentais, ou como se pudessem exercê-las à parte de suas funções sacramentais, sob a alegação de que são de algum modo extra-eclesiais e não são inerentes à Igreja como um organismo sacramental. Eles sucedem em virtude justamente de seu lugar e status dentro da comunidade sacramental. À parte deste lugar e status, ou fora desta comunidade, tal sucessão seria impossível e inconcebível. É a função sacramental que confere a função governamental. Aqueles que estão qualificados para administrar os sacramentos são também aqueles que, em virtude de seu status sacramental, são qualificados para organizar e guiar a comunidade cristã. É o que se chama ordenação, e somente isso, que confere poderes jurisdicionais e magisteriais. Não há espaço nesta concepção para a ideia de que as funções de ensino e governamentais na Igreja podem receber a sua legalidade de qualquer fonte extra-sacramental ou extra-eclesial. Na natureza das coisas, não pode haver poderes, governamentais ou outros, exercidos sobre a Igreja na terra. Só pode haver poderes exercidos dentro da Igreja, derivados da Igreja. Como já observamos, as funções apostólicas e outras são vistas como funções especiais do corpo vivo de Cristo, necessárias para a manifestação no mundo do tempo e lugar, na história, daquela vida que anima o todo. A Igreja na terra não tem uma identidade autônoma ou quase autônoma que exija o exercício de uma jurisdição ou de um governo sobre ela. Pensar que tem tal identidade é conceber erroneamente sua natureza. E não há poderes possuídos por Pedro que não sejam compartilhados igualmente pelos outros apóstolos e aos quais todo bispo que ocupe validamente uma sé apostólica não suceda. Não há nada a receber de Pedro que não possa ser e não tenha sido igualmente recebido dos outros apóstolos.

Nesse caso, por que Pedro é considerado, em algum sentido especial, como tendo um papel crucial na constituição da Igreja na terra? A resposta para isso é dupla. Primeiro, ele recebeu esses poderes de Cristo antes dos outros apóstolos e isso lhe confere uma certa primazia de honra entre os apóstolos. Segundo, de acordo com a evidência bíblica registrada nos primeiros doze capítulos dos Atos dos Apóstolos, ele foi o primeiro, provavelmente no próprio dia do Pentecostes, a agir como a imagem de Cristo na celebração do mistério eucarístico. Nós notamos que, como regra geral, os apóstolos parecem não ter administrado os sacramentos nas igrejas locais que eles fundaram. Mas este caso de Pedro na comunidade local de Jerusalém parece ser uma exceção significativa. Pois foi Pedro quem presidiu a assembleia eucarística dos primeiros cristãos reunidos em volta dos apóstolos. Assim, é Pedro quem inaugura o período da história em que Cristo está presente no Mistério sacramental entre o seu povo escolhido. É Pedro, em outras palavras, que é o primeiro depois de Cristo e como a imagem de Cristo a estabelecer a Igreja como uma realidade sacramental na terra. E ele faz isso em virtude da função essencialmente litúrgica que ele cumpre na comunidade local da Igreja em Jerusalém. Se alguém lembra que o sentido original da palavra "igreja" no Novo Testamento é o da comunidade local, e que no Evangelho de São Mateus (18.17) essa comunidade local é acima de tudo a de Jerusalém, pode-se perguntar se as palavras de Cristo a Pedro em Mateus 16 não se referem ao papel que Pedro está destinado a desempenhar em relação à comunidade de fiéis em Jerusalém. Em todo caso, estas palavras de Cristo, mesmo que não falem diretamente de nenhuma sucessão, têm uma aplicação direta e necessária a todos aqueles que cumprem as mesmas funções que Pedro cumpriu em Jerusalém nas comunidades locais da Igreja criadas pelos apóstolos no modelo instituído por Cristo na Última Ceia. É à luz destas considerações que se pode entender o lugar especial atribuído a Pedro tanto entre os apóstolos como em relação à Igreja na terra. É à luz disso também que se pode perceber em virtude de quais funções todos os bispos podem ser considerados sucessores e se sentar na cathedra una, que é também a cathedra Petri.

Assim, embora no próprio Novo Testamento não exista um esclarecimento específico sobre como os poderes conferidos por Cristo aos apóstolos, seja individualmente ou coletivamente, devem ser transmitidos aos seus sucessores, o ponto de vista da tradição patrística é bastante inequívoco. É um ponto de vista que, mais uma vez, contraria diretamente a tese da primazia papal mantida pela igreja romana. Como já observamos, a primeira suposição fundamental desta tese é que Cristo deu o poder das chaves e o poder de ligar e desligar somente a São Pedro; que isso era uma comissão puramente pessoal; e que os outros apóstolos só compartilhavam esses poderes porque lhes haviam sido transmitidos por São Pedro. Assim, de acordo com esta tese, toda a constituição da Igreja na terra e todo o governo da comunidade cristã dependem dessa comissão pessoal para Pedro. A segunda suposição fundamental desta tese é que assim como há uma distinção de poder - uma discretio potestatis - entre São Pedro e os outros apóstolos, no sentido de que os outros apóstolos recebem seu poder jurisdicional de São Pedro, assim, nesse modelo, há uma distinção similar de poder entre o papa e os outros bispos. A teoria é que o papa incorpora a plenitude do poder jurisdicional em seu ofício, de modo que qualquer poder exercido por outros bispos é exercido porque o papa o delegou a eles. Mesmo assim, uma distinção no exercício desse poder ainda é mantida, no sentido de que, enquanto os outros bispos só podem exercê-lo cada um em relação à sua própria diocese, o papa o exerce sobre toda a Igreja. O regime de toda a Igreja reside unicamente no ofício papal. Ele reside unicamente no ofício papal porque se encontra exclusivamente com Pedro. Pois, embora os outros apóstolos tenham recebido diretamente de Cristo o poder de fundar igrejas e de iniciar comunidades eucarísticas, eles receberam qualquer poder jurisdicional que possuíam somente de São Pedro. Deste modo, embora em relação à sua dignidade sacramental - suas potestas ordinis - todos os bispos sejam iguais, porém, em virtude da comissão petrina, o poder jurisdicional supremo sobre toda a Igreja na terra - o potestas regendi - é investido somente no papa e outros bispos só podem derivá-lo do papa.

O grau em que esta tese papal está em desacordo com o ponto de vista consagrado na tradição patrística será imediatamente aparente. Mas há um aspecto crucial desta tese que ainda não consideramos. Se o modelo fornecido por São Pedro e outros apóstolos é ter sua equivalência no papa e nos outros bispos, deve haver um vínculo válido e inequívoco entre eles. Os direitos que o papa reivindica como sucessor de São Pedro são direitos jurídicos e, portanto, o direito a esses direitos deve ser estabelecido numa base jurídica. A teoria, claro, é que esse vínculo é fornecido pelo próprio Pedro. Seja como primeiro bispo de Roma, ou como fundador da Igreja em Roma, Pedro entregou esses poderes pessoalmente cometidos a ele somente entre todos os apóstolos por Cristo ao papa somente entre todos os bispos. Porque o papa é bispo da sé fundada, se não ocupada, por Pedro - a única verdadeira apostolica sedes - somente ele é o vigário de São Pedro. E como Pedro é o príncipe dos apóstolos, também o papa é o príncipe de toda a Igreja.

No entanto, quando, onde e como este vínculo direto entre São Pedro e o pontífice romano foi estabelecido? Se houvesse alguma declaração no Novo Testamento ou em algum outro escrito apostólico sobre isso, essas perguntas poderiam ter sido respondidas. Mas não há referência específica ou mesmo oblíqua nesses documentos em relação a Pedro nomeando seu sucessor, muito menos a nomeação do bispo de Roma como seu sucessor. De fato, a primeira referência a Pedro consagrando o bispo de Roma como seu sucessor ocorre em uma carta conhecida como a Epístola de Clemente a Tiago (a Epistola Clementis), supostamente escrita pelo papa Clemente I a São Tiago, irmão do Senhor, em Jerusalém. De acordo com esta carta, antes de morrer, São Pedro colocou as mãos sobre Clemente como bispo de Roma e lhe confiou sua cadeira de discurso. Ao mesmo tempo, ele havia falado diante da comunidade romana reunida: 'Eu concedo a ele (Clemente) a autoridade de ligar e desligar a fim de que tudo o que ele (Clemente) decidir sobre a terra, seja aprovado no céu, porque ele ligará o que deve ser ligado e ele desligará o que deve ser desligado.' Este é o único documento em que o que foi tomado como evidência concreta de que São Pedro legalmente nomeou o pontífice romano para ser seu herdeiro pode ser encontrado. Ele foi apresentado em praticamente todas as comunicações papais durante a Idade Média como o título de posse que estabeleceu o ofício do papa, foi incorporado em numerosas coleções canônicas e foi citado como evidência para as reivindicações papais no século XVI no Concílio de Trento. No entanto, mesmo quando tomado em seu valor aparente, apresentava certas dificuldades, pois ignorava o fato de que havia dois bispos de Roma antes de Clemente - Linus e Cletus (ou Anencletus). Assim, os apologistas e exegetas papais foram induzidos a explicar que Linus e Cletus tinham sido bispos simples e não precisavam exercer o apostolatus porque São Pedro ainda estava vivo e assim o exercia por si mesmo. Foi somente quando sua morte estava próxima que ele sentiu a necessidade de transmitir seus poderes de jurisdição apostólica e funções de ligar e desligar. Naquela época Clemente era bispo de Roma e por isso foi Clemente que se tornou o primeiro pontífice romano de pleno direito.

Contudo, ao resolver essa dificuldade dessa maneira, os escritores e exegetas papais foram compelidos a fazer pela primeira vez essa outra distinção tão crucial para a tese papal. Eles foram obrigados a distinguir entre os poderes de jurisdição petrinos e os poderes de ordenação, que se referiam apenas à função sacramental do bispo. Pois foi somente por meio de tal distinção que se poderia explicar como Linus e Cletus eram bispos sem ter possuído poderes jurisdicionais, bem como poderes sacramentais. De acordo com a epístola de Clemente, Pedro também conferiu poderes episcopais a Clemente. Assim, Clemente combinou ambos os conjuntos de poderes e recebeu ambos diretamente de São Pedro. Mas deve ser salientado que, mesmo pelo seu valor aparente, as palavras citadas neste documento segundo as quais São Pedro supostamente investiu Clemente com poderes jurisdicionais sobre toda a Igreja na terra são palavras que qualquer outro apóstolo poderia ter usado para consagrar um bispo de qualquer outra sé. Assim, foi bastante arbitrário considerá-las como indicando que apenas Pedro possui tais poderes ou que, pelo uso dessas palavras, ele investe esses poderes somente no bispo de Roma.

No entanto, o valor deste documento - o único documento atestando a nomeação de Pedro do bispo de Roma como seu sucessor - está gravemente comprometido pelo fato de que não foi escrito até algum tempo no final do século II ou início do século III. De fato, não foi traduzido (consideravelmente 'corrigido') do grego para o latim até o final do século IV. Isso significa que não há nenhum testemunho específico ou inequívoco de quando, onde ou como São Pedro entregou seus poderes especiais ao papa, e ao papa sozinho. Com base na evidência de um tipo histórico, pareceria que São Pedro e São Paulo fundaram a Igreja em Roma; que o primeiro bispo foi Linus; que nem São Pedro nem São Paulo foram eles mesmos bispo de Roma; e que não há título de documento válido para a alegação de que o bispo de Roma sucede exclusivamente à comissão de São Pedro, o que quer que isso tenha sido.

Sendo este o caso, somos obrigados a reconhecer que, assim como o significado que atribuímos aos textos petrinos nos Evangelhos deve depender dos princípios e critérios de compreensão e interpretação que alguém traz à leitura dos Evangelhos, o mesmo se aplica no que diz respeito a tese da primazia papal. Concordar que a primazia de São Pedro, estabelecida por Cristo, é atribuída exclusivamente aos pontífices romanos que são seus sucessores, deve depender de princípios e critérios para os quais não há confirmação específica nem nos Evangelhos, nem em quaisquer outros escritos apostólicos, ou, de fato, em qualquer documento que não seja aquele emitido sob a égide do próprio ofício papal em apoio às suas próprias reivindicações. Consequentemente, somos forçados a reconhecer que a forma que a igreja romana e o papado assumiram durante o período medieval foi determinada não por revelação, nem pelas Escrituras, nem por qualquer ordenança apostólica. Foi determinado pela crescente ascendência de certas idéias sobre o que constitui a Igreja e a sociedade cristã. Como essas próprias idéias refletem um certo entendimento doutrinário, é uma consideração desse entendimento que devemos nos voltar agora.


7. A Cristologia do Cisma

De acordo com a tradição patrística, a Igreja, como vimos, é uma realidade divina-humana integral. É uma realidade teândrica. Sua forma terrena - sua forma humana e social - está enraizada em sua forma divina e é indissoluvelmente uma com ela. Não pode ser separada de sua forma divina, assim como a natureza humana de Cristo não pode ser separada de sua natureza divina. Tratar esses dois aspectos da Igreja como se eles constituíssem duas entidades quase independentes, cada uma exigindo um conjunto diferente de princípios e regulamentos operativos é, dissemos, rasgar em pedaços o manto sem emenda de Cristo. É cometer o ato original de cisma, do qual todo cisma adicional no plano histórico deve derivar. É considerar a Igreja não como uma realidade divino-humana integral, da qual a única cabeça real, seja na terra ou no céu, é a Pessoa viva de Cristo, mas como uma realidade na qual, para fins práticos, o aspecto humano é virtualmente independente do aspecto divino. Neste caso, a Igreja na terra deixa de ser vista como a manifestação direta de Cristo - seu sacramento, teofania ou ícone. Torna-se, ao invés disso, seu instrumento, uma organização social e humana por meio da qual aqueles capacitados para agir, de forma vicária e instrumental, realizam seu propósito salvador. 

Essa concepção patrística da Igreja depende, é claro, de um sentido muito realista da Eucaristia e da presença eucarística. A Igreja é o corpo de Cristo e o corpo de Cristo se manifesta no mistério eucarístico: 'Este é o meu corpo'. Como sacramento de Cristo, a Igreja não é apenas uma realidade criada. É uma realidade que é simultaneamente e indissoluvelmente criada e incriada. Cristo está presente na Eucaristia não apenas espiritualmente ou psiquicamente. Ele está presente também corporalmente (somatikos). E, correspondentemente, através da Eucaristia, Cristo habita naqueles que dela participam não apenas espiritual e psiquicamente, mas também corporalmente. Há uma integração corpórea e não apenas espiritual com Cristo. Cristo é a videira; aqueles que participam dele através da Eucaristia são os ramos tanto corporal quanto espiritualmente. Como diz Cirilo de Alexandria: 'Pois o Filho está em nós, por um lado, corporalmente, como homem, unido e misturado conosco por meio da Eucaristia; e também espiritualmente, como Deus, pela energia e graça de seu próprio espírito, renovando o espírito que está em nós para a renovação da vida.' O significado de 'corporalmente' é eucarístico e eclesial. Incorporação em Cristo é incorporação na Igreja. Estar unidos com Cristo, espiritual, psiquicamente, fisicamente e participar da Eucaristia; ter um lugar no Reino de Deus e comungar nos santos mistérios - essas, notamos, são operações simultâneas. Elas formam uma única ação ou realização.

O que tudo isso, por sua vez, pressupõe é uma forma particular de cristologia. É uma cristologia que vê a relação entre Deus e o homem em Cristo não apenas como uma justaposição ou cooperação de dois elementos virtualmente independentes, o divino e o humano. Pelo contrário, vê-o como uma união do divino e do humano em Cristo, a tal ponto que é impossível conceber o humano sem o divino ou o divino sem o humano. Fala-se do Deus-homem - o theanthropos. Isto não é eliminar a realidade da natureza humana em Cristo, ou dizer que há alguma confusão das duas naturezas nele, ou que cada natureza não preserva sua própria identidade dentro da união. Mas é dizer que a natureza humana em Cristo, embora não tenha hipóstase própria, não está, portanto, sem uma hipóstase, porque a do Logos divino torna-se também a hipóstase da natureza humana. Em Cristo, a natureza humana é enhipostasiada no Logos divino. O Logos divino, que naturalmente tem sua hipóstase ou é sua hipóstase, tomou em sua hipóstase um corpo humano, alma e intelecto como seu próprio corpo, alma e intelecto, de modo que sua natureza humana não tem sua própria hipóstase independente. A natureza humana de Cristo é a soma de todas as características humanas tomadas como um todo que o Logos encarnado tem como tal. Essa natureza humana não pode ser considerada separada da hipóstase do Logos, exceto de uma maneira puramente abstrata. Existem duas naturezas - divina e humana - mas somente um Cristo. É o mesmo sujeito que age em todas as ações, sejam elas divinas ou humanas, de Cristo. É o Logos divino que é o sujeito não só dos milagres, mas também dos sofrimentos.

Essa compreensão da cristologia é refletida em uma antropologia que novamente se recusa a admitir qualquer separação ontológica radical entre o homem e Deus. Mesmo depois da Queda, o homem não perde uma certa afinidade natural com Deus. Embora haja uma perda de incorruptibilidade e imortalidade, não há depravação total. Adão nunca escapa totalmente das mãos de Deus. Ele nunca está totalmente isolado de Deus. Mas em Cristo, mesmo essa alienação parcial do homem de Deus é curada pela união do humano com o divino. Cristo renova a criação primitiva. Ele restaura todas as coisas para si mesmas. Ele reúne o que foi anormalmente separado pelo pecado humano. E deve ser lembrado neste contexto que em Adão é toda a natureza humana que é criada, não simplesmente a de um único indivíduo. Da mesma forma, na recapitulação realizada em Cristo, é a totalidade da natureza humana que é restaurada ao seu estado primordial - mesmo dotada de maiores possibilidades. 'Pelo sacrifício de Cristo, o primeiro homem foi salvo, aquele homem que está em todos nós', como diz o Pseudo-Crisóstomo. É a natureza humana como tal que é criada originalmente à imagem de Deus; e o que "cai" em Adão é novamente a natureza humana e o que é "restaurado" em Cristo é novamente a natureza humana. Isso significa que toda a natureza humana - na verdade, todo ser criado - agora participa da vida divina, quer indivíduos estejam cientes disso ou não. Em outras palavras, essa mesma união entre o humano e o divino, realizada plenamente e hipostaticamente em Cristo, também é realizada potencialmente no caso de cada ser humano. Cada ser humano, ao energizar em sua vida individual, a natureza Adâmica original em cada um de nós, que foi totalmente restaurada ou ressuscitada ou transfigurada em e através de Cristo, pode realizar sua própria participação na vida e caráter do próprio Deus Triuno. Ele pode realizar a integridade de sua natureza teândrica.

Mas é precisamente na Igreja que essa realização é efetuada. É a Igreja que é o locus da deificação do homem. É na Igreja que o seu ser natural, como realidade divino-humana, é afirmado e confirmado. E deve ser enfatizado que esta é a realidade dele, esteja ele ciente disso ou não. Pois como em Cristo Deus está indissoluvelmente unido à humanidade, assim no homem sua natureza humana está indissoluvelmente unida ao divino. E a Igreja é a manifestação dessa união. Ela se manifesta completamente no corpo de Cristo. Ela se manifesta parcialmente em todos os indivíduos, na medida em que eles participam desse corpo. Ao participar deste corpo, eles mesmos se tornam o corpo de Cristo. E o que eles se tornam é o que são: uma realidade divino-humana. É a afirmação ou proclamação existencial deste mistério, tanto do lado de Deus como do lado do homem, que constitui a Igreja.

Segue-se daí que, assim como é um erro considerar a natureza humana de Cristo como se tivesse uma hipóstase própria, independente ou adicional à do Logos divino, também é um erro considerar a natureza humana dos seres humanos na Igreja como uma realidade independente em si mesma. Uma condição de estar na Igreja é que essa natureza humana já está enhipostasiada na vida do Logos divino. A condição de estar na Igreja é que se participa no corpo de Cristo. A pessoa se torna um membro do corpo de Cristo. Mas o corpo de Cristo é em si uma realidade espiritualizada, da qual o sujeito é o Logos divino. Portanto, todos os que são membros desse corpo - que fazem parte desse corpo - participam de uma realidade espiritualizada cujo sujeito é o Logos divino. Seu verdadeiro e próprio sujeito é, portanto, esse mesmo Logos. A natureza humana deles tem o Logos como sua hipóstase. E isso é assim, estejam eles conscientes disso ou não, se reconhecem formalmente sua filiação à Igreja ou não.

Sendo este o caso, a tentativa de organizar a Igreja na terra como se os seres humanos nela - a congregação dos fiéis - pudessem ser definidos apenas em termos de sua natureza humana, ou pudessem ser vistos como entidades semi-autônomas existentes por elas mesmas, à parte do divino, e assim pudessem constituir uma espécie de sociedade humana em si mesma, é conceber erroneamente a própria natureza da Igreja, como esta é entendida na tradição patrística. É ignorar sua realidade divino-humana integral. É vê-la, em alguma medida, separada de suas raízes na vida divina. É falhar em perceber que é a hipóstase do Logos que é seu verdadeiro e próprio sujeito - é o verdadeiro e próprio sujeito de seus membros, que são seus membros apenas na medida em que são incorporados ao corpo de Cristo e assim se tornam o corpo de Cristo. A esse respeito, é também interpretar mal a natureza dos seres humanos. É defender uma antropologia equivocada ou reduzida. E como a antropologia é um reflexo da cristologia, é defender uma cristologia equivocada ou reduzida. Assim, se quisermos entender a forma como a Igreja na terra foi dada no mundo romano durante o período medieval - na qual foi feita a tentativa de construí-la em uma organização social e corporativa, com suas próprias leis e governo nas linhas de qualquer outra sociedade terrena e humana - devemos nos voltar para a cristologia que a sublinha. Pois assim como é a cristologia que temos considerado que determina a concepção patrística da Igreja, também será uma forma diferente de cristologia que determina a concepção da Igreja que se tornou efetiva para o mundo romano.

Para colocar essa cristologia que se tornou eficaz para o mundo romano em sua devida perspectiva, devemos voltar ao século V e às tentativas da escola de teólogos em Antioquia de refutar o que era conhecido como a heresia apolinariana. Apolinário defendia que a verdadeira unidade na pessoa de Cristo seria inteligível apenas se o Logos não assumisse todo o homem, a natureza humana completa (corpo, alma e intelecto), mas caso se unisse ao corpo e à alma humana de tal maneira que ele próprio se tornasse o intelecto, o princípio agente, no ser novo e unido. Essa idéia de uma unidade substancial entre o Logos e a natureza humana, que resultou na natureza nova e composta do Logos encarnado, pareceu aos teólogos de Antioquia eliminar a verdadeira humanidade de Cristo. Parecia eliminar o significado do elemento humano na natureza de Cristo, ou pelo menos reduzi-lo a uma completa passividade. Por isso os antioquianos insistiram que as naturezas divina e humana em Cristo deviam ser consideradas como perfeitas cada uma em si mesma. Eles insistiram na realidade totalmente humana de Jesus, incluindo seu livre arbítrio humano. Ao contrário de Apolinário, que viu em Cristo apenas uma substância do Logos, à qual, além de suas próprias características ou atributos, aqueles da natureza humana imperfeita haviam sido anexados, os antioquianos afirmaram que as duas naturezas em Cristo não eram alteradas por sua união. Mas os eles não aceitaram que a união fosse uma união substancial. Eles acreditavam que as duas naturezas de Cristo, como ambas realmente existiam nele, tinham cada uma sua própria hipóstase. Eles falaram das duas hipóstases de Cristo como sinônimo das duas naturezas em Cristo. Para eles, Cristo era um homem que pensava e se sentia como homem e tinha seu desenvolvimento corporal, intelectual e moral como outros homens. Ao mesmo tempo, ele também era perfeito e completo em sua divindade. Mas, embora considerassem a natureza divina do Logos totalmente presente em Cristo, ainda assim a via como uma realidade independente de sua natureza humana, independente em sua essência e em suas manifestações. O Logos não era a hipóstase, o sujeito interior da natureza humana e divina em Cristo. A natureza humana manteve sua própria realidade como uma hipóstase por si mesma. Era autônoma ou semi-autônoma. Mantinha (até certo ponto) seu próprio livre arbítrio e tinha um desenvolvimento e atividade independentes. E foi a essa natureza humana autônoma ou semi-autônoma que os antioquianos atribuíram o mérito da nossa salvação. Foi por causa do esforço e cooperação do homem, Jesus, que o Logos residiu nele.

Para seus oponentes - os teólogos de Alexandria liderados por Cirilo de Alexandria - esse modo de pensar dos antioquianos pareceu dividir Cristo em duas pessoas e dois filhos - o Filho de Deus e o filho de Maria, o primeiro o Filho de Deus por natureza e o segundo apenas por adoção. Parecia não permitir a real unidade de Cristo - 'um Senhor Jesus Cristo', como a formulação de Nicéia expressou. Pelo contrário, parecia sugerir que existem dois sujeitos em Cristo, um divino e um humano. E enfatizando a independência da natureza humana e afirmando que foi através do esforço e da cooperação do homem Jesus que o Logos habitou nele, poderia facilmente levar à conclusão de que a salvação reside nos esforços do homem, como um ser imperfeito independente, em fazer o bem e imitar a Cristo. Para Cirilo, por outro lado, o poder do pecado e da morte não poderia ser derrotado ou superado pelos esforços humanos ou méritos do homem Jesus. A salvação é dada e realizada somente por Deus. Mas este não poderia ser o caso, a menos que o Logos tenha assumido a natureza humana e realmente tenha feito ela sua própria natureza. A união de Deus e do homem em Cristo não é apenas da justaposição ou cooperação entre duas realidades virtualmente independentes. É uma questão de união delas. O Logos incorporado é um só, e há apenas um sujeito - o Logos - em todos os estágios da vida humana de Jesus.

As formulações do quarto Concílio Ecumênico realizado em Calcedônia, em 451, representavam um compromisso entre os pontos de vista antioquiano e alexandrino. Este compromisso, expresso no famoso Tomo a Flaviano, do Papa Leão Magno, afirmava a plena realidade das duas substâncias (substantias) em Cristo e insistia na unidade da pessoa - ou na identidade do sujeito - nas atividades divinas e humanas de Cristo. No entanto, embora tenha sido o texto de Leão que forneceu a base para a formulação calcedoniana, ainda assim, na prática, foi o ponto de vista antioquiano que se tornou dominante na tradição teológica ocidental. É o ponto de vista que enfatiza a plena realidade das duas naturezas em Cristo ("cada natureza preservando seu próprio modo de ser"; nas palavras de Leão: "agit utraque forma quod proprium est") e não a unidade das duas naturezas na pessoa de Cristo, com a hipóstase do Logos divino como o único sujeito real da operação dessas duas naturezas. Que este deve ter sido o caso é, sem dúvida, devido à presença nesta tradição ocidental de tendências que já pressupunham uma espécie de cristologia dualista, uma que vê Cristo mais como Deus e homem do que como uma união ou síntese theantrópica. Já em Tertuliano, por exemplo, Cristo é visto acima de tudo como um mediador entre Deus e a humanidade; e no que se tornaria a teoria dominante da redenção nesta tradição - a teoria na qual a idéia de Cristo como a vítima sacrificada desempenha um papel tão grande - o que é enfatizado acima de tudo é a humanidade de Cristo como algo tão distinto de sua divindade que ele pode oferecer ela ao Pai como um sacrifício expiatório. Essa teoria, além disso, também pressupõe o sentido de uma grande lacuna ontológica entre Deus e o homem: Deus e o homem representam dois pólos completamente distintos entre os quais o ato de mediação ou expiação deve ocorrer. A natureza humana é encarada como uma realidade existente em si mesma. Pode estar ligada ao divino, mas pode ser vista como existindo à parte do divino.

De fato, essa concepção da natureza humana como uma realidade auto-subsistente, com uma existência histórica própria à parte do divino, é mais aparente no pensamento de Santo Agostinho. É evidente, acima de tudo, em relação ao entendimento de Agostinho sobre o pecado e suas conseqüências. Segundo Agostinho, em Adão todos os homens pecaram. Este pecado é transmitido de geração em geração através do ato de gerar em si. Como conseqüência, ele entregou o homem ao diabo. Privou-o completamente de sua participação no divino, à imagem de Deus, o Logos. Sua vontade é pervertida ou corrompida. Está em escravidão. E não pode ser libertada da escravidão sem a entrada de outro fator extrínseco: a graça divina. Sem essa graça redentora, o homem não pode fazer nada. Ele não está nem em posição de escolher Deus. Por si mesmo, ninguém consegue nada além de mentira e pecado. De fato, mesmo no Paraíso, a possibilidade de não pecar (o posse non peccare) não pertence ao homem ou está dentro de seus próprios poderes. A capacidade de evitar o pecado não faz parte da natureza do homem. Mesmo a disposição do bem em si - e isso mesmo no Paraíso - não pode vir do homem sem o estímulo prévio da graça. Não há cura para as aberrações que são parte e parcela da natureza humana à parte da graça. Não só o homem não pode ser salvo sem graça, mas se o homem é salvo, é devido à graça que lhe foi dada. E se esta graça é dada ou não, não depende do homem ou de qualquer coisa que ele faça: depende de Deus. A graça é um dom extrínseco. Não é inerente à natureza do homem como tal. 

No contexto com o qual estamos aqui ocupados, o que é importante sobre essa compreensão do pecado e suas consequências é que ela pressupõe precisamente a idéia de que a natureza humana como tal - ou a humanidade como tal - pode existir e existe como uma realidade independente de Deus, totalmente separada de Deus. O homem pode e existe privado de graça, privado de sua participação no divino. De fato, esta é a condição na qual ele nasceu neste mundo, e é por isso que, para Agostinho, crianças não batizadas são automaticamente condenadas. O que é pressuposto em outras palavras é uma dicotomia radical entre Deus e o homem. Há uma lacuna ontológica virtualmente intransponível entre eles. Isso significa que é bastante legítimo - na verdade, é vitalmente necessário - fornecer aos seres humanos regras e regulamentos com os quais possam viver essa vida como se pudessem ser definidos em termos de sua natureza humana apenas  ou pudessem ser considerados como entidades semi-autônomas existentes por si mesmas, à parte do divino. É perfeitamente legítimo, até mesmo necessário, organizá-los numa sociedade com base nisso. De fato, do ponto de vista cristão, isso é ainda mais necessário porque, a menos que isso seja feito, os seres humanos serão simplesmente compelidos a seguir os desejos e artifícios de seus próprios corações em inevitável condenação. Santo Agostinho é bem consciente de que esta é a consequência do seu pensamento. Isto é evidente em seu desenvolvimento de sua teoria de duas sociedades, a que é a cidade de Cristo e a outra que é a cidade do diabo. É verdade que para Agostinho estas duas sociedades ou duas cidades são realmente realidades escatológicas. Elas abraçam toda a raça humana (assim como os anjos) e toda a história. Elas não podem ser identificadas, portanto, simplesmente com o estado romano ou secular, por um lado, e a Igreja em sua forma terrena, por outro. Mas quando se lembra que, para Santo Agostinho, é somente através do batismo e incorporação na instituição visível da Igreja que os seres humanos podem receber a graça sem a qual estão sentenciados à condenação apenas por seu pecado original, mesmo sem a adição de qualquer pecado pessoal, não é difícil ver onde o argumento de Agostinho deve levar. A sociedade de César - a sociedade secular - é vendida ao pecado. Está condenada à destruição. Não pode haver compromisso entre ela e o Reino de Deus. César e todos os seres humanos no mundo secular, portanto, devem abandonar suas pretensões à independência e submeter-se às leis da sociedade cristã incorporadas na instituição visível da Igreja, ou devem aguardar seu destino inevitável por meio da desintegração interna. Cristo, diz Agostinho, não disse 'meu reino não é do mundo', mas 'meu reino não é deste mundo'. Não é o de César. 'Venha a nós o teu reino' tem um significado literal e mundano. E 'teu reino' pode ser trazido à existência através do reconhecimento e aceitação da justiça universal de Deus.

No entanto, o que esta justiça é - de acordo com a qual apenas Deus governa pela graça sobre uma sociedade que lhe obedece - só pode ser decidido pelas autoridades competentes na Igreja na terra. São apenas essas autoridades que encaminharão todas as instituições, todas as observâncias da lei e da moralidade que pertencem à paz temporal, para a paz eterna com Deus. Essa é a característica essencial do Reino de Deus. Por isso, este Reino já está presente no mundo. É a sociedade divina, a congregação dos fiéis, a igreja visível no mundo. Entra-se pelo batismo e é governado pelo episcopado. Aqui, no ensinamento de Santo Agostinho, está o plano teórico completo para aquela concepção da Igreja na terra que veio a dominar a mente romana. Em um mundo condenado como incuravelmente corrupto, outra ordem sagrada entrou. Esta ordem resgata-o tirando dela, na arca da Igreja, aqueles que estão destinados a ser resgatados. A menos que alguém se refugie nesta arca sobrenatural da Igreja, perecerá eternamente. É uma visão que leva diretamente às proposições da Bula do Papa Bonifácio, Unam Sanctam. Mas o que tudo isso representa ou implica é, deve ser repetido, uma perspectiva cristológica vitalmente diferente daquela da tradição patrística. Em vez de ser reconhecido não apenas que uma semente do Logos, como diz Justino Mártir, está implantada em toda a raça humana, mas também, e concomitantemente, que em Cristo toda a natureza humana está unida ao divino, de modo que todos os seres humanos, simplesmente em virtude de sua existência, participam, mesmo que apenas passivamente, no divino, esse reconhecimento é diminuído, para não dizer eclipsado. O que toma o seu lugar é uma visão em que a encarnação tende a ser considerada não como uma restauração da norma a toda a natureza humana, mas como pertencente a um único indivíduo, a figura histórica de Jesus. Até mesmo o pleno significado da própria encarnação é reduzido de uma maneira que afeta vitalmente a compreensão da natureza do homem e, portanto, toda a questão da salvação humana. Pois o que a tradição patrística está preocupada em afirmar é que, se Deus é Deus, e Deus é manifesto em Cristo, então a criação, a redenção e a santificação devem ser idênticas em sua origem e assim fundamentalmente idênticas em caráter. Se todos os homens possuem como seu direito de nascimento humano o que Justino chama a semente do Logos ou se, em outras palavras, Cristo é o arquétipo da humanidade, então, por maior que seja a diferença entre o absoluto e o relativo, o incriado e o o criado, Deus e homem, não pode haver dicotomia radical ou lacuna ontológica entre eles. Não pode haver disparidade total entre a natureza de Cristo e a nossa. Elas são, em última instância, do mesmo caráter e a encarnação tem um significado pessoal direto.

Mas uma vez que este significado cósmico da encarnação é reduzido ou eclipsado - e com ele toda a doutrina Logos com sua insistência na imanência do divino na criação - então a divindade de Cristo como Filho de Deus é vista não apenas como distinta de sua humanidade, mas também como separada de qualquer imagem de si mesma no homem. O senso de imanência divina ou da participação do homem em Deus é perdido. De fato, se a ordem criada, incluindo a natureza criada do homem, é vista como tão corrupta e pervertida que virtualmente é a antítese da graça, então é difícil não concluir que o Criador deve ser de alguma forma diferente do Redentor. Em qualquer caso, seria, em tais circunstâncias, quase uma blasfêmia sugerir que a natureza humana pode realmente estar realmente unida a Deus, muito menos unida a Deus corporalmente (somatikos). Existe uma dicotomia fatal entre as duas. Elas são virtualmente opostas. É claro que, se Deus e o homem eram um em Cristo, esses opostos teriam de ser reunidos de alguma forma. Mas dada a atitude subjacente na tradição teológica ocidental à natureza criada do homem, e à natureza humana em geral, era inevitável que essa união das duas naturezas em Cristo fosse expressa em uma cristologia que enfatizasse mais a diferença entre as duas naturezas do que a sua unidade pessoal em Cristo.

Em todo caso, visto que o resto da humanidade não é diretamente afetado pela encarnação de Deus no Jesus histórico, e ainda está em escravidão ao pecado original e suas conseqüências e assim privada de graça, a instituição da Igreja é agora de importância bastante exclusiva: trata-se praticamente do único instrumento para unir o homem e Deus. Pois é somente essa instituição que, por meio de sua hierarquia, controla os únicos canais por meio dos quais a graça da divindade transcendente pode fluir e redimir uma humanidade condenada à desintegração. Em outras palavras, pode-se dizer que a diferença ontológica radical entre Deus e o homem - essa lacuna deixada pelo senso de que a divindade de Cristo como Filho de Deus é, por causa do pecado, separada da imagem de si mesmo no homem - é preenchida pela instituição visível da Igreja. É preenchida pela idéia de que a Igreja é, não tanto o corpo místico de Cristo, mas um corpo místico por si só, à parte da Pessoa de Cristo.

O que isso significa pode ser indicado em poucas palavras. Vimos como, de acordo com a tradição patrística, é a Eucaristia a manifestação do corpo de Cristo que, acima de tudo, determina a Igreja na terra. Através da Eucaristia cada um dos fiéis comunga no corpo de Cristo e assim na Igreja. O corpo de Cristo, a Eucaristia e a Igreja descrevem uma e a mesma realidade. E enquanto o que chamei de significado cósmico da encarnação é mantido, é muito fácil ver como a pertença à Igreja significa incorporação no corpo de Cristo, que é idêntico em caráter e substância ao corpo do Jesus histórico. Pois em Cristo toda a natureza humana é unida ao divino, toda é misticamente ligada ao seu corpo. Mas uma vez que esse significado é reduzido ou eclipsado, de modo que o corpo de Cristo se identifica de maneira exclusiva com o corpo do Jesus histórico, é difícil ver como a pertença à Igreja pode significar incorporação no corpo de Cristo da mesma maneira. Todos os fiéis não podem se tornar membros do corpo histórico de Jesus. Em outras palavras, há uma necessidade de fazer alguma distinção, mesmo que apenas mental, entre o corpo histórico de Jesus, 'nascido da Virgem', e o 'corpo que é a Igreja'. E esses dois corpos, por sua vez, devem ser distinguidos do corpo eucarístico.

De fato, já no pensamento de Santo Agostinho há uma distinção entre o corpus Domini, que é o corpo eclesial, e o corpo sacramental. O corpo eclesial inclui o corpo eucarístico, mas não se identifica com ele. Pelo contrário, se pensa que o pão consagrado e o sangue da Eucaristia é o corpo de Cristo que ele tomou do corpo eclesial. Em outras palavras, em vez da Eucaristia designando a Igreja, é agora a Igreja que designa a Eucaristia. Até cerca do século IX, o termo corpus mysticum foi aplicado à Eucaristia para distingui-lo do 'corpo nascido da Virgem' e do 'corpo que é a Igreja', embora todos os três sejam considerados partes do corpus Christi. Ao mesmo tempo, a fim de descrever a Igreja como essa entidade social coletiva, o 'corpo dos cristãos', conforme concebido de acordo com a tese papal, o termo corpus Ecclesiae foi usado; e alguém poderia ser um membro deste corpus sem participação no corpus eucarístico. Em outras palavras, pode-se considerar a Igreja como uma entidade sociológica coletiva, como um corpus, sem que este corpus seja idêntico ao corpo de Cristo manifestado na Eucaristia. Pode-se fazer isso porque já havia sido feita uma distinção entre o corpo eclesial de Cristo e o corpo eucarístico. E à medida que o próprio corpo eucarístico se identifica cada vez mais com o corpo "histórico" de Jesus, tanto o corpo eucarístico como o corpo "histórico" tornam-se cada vez mais distintos do corpo eclesial.

Ao mesmo tempo, o termo corpus mysticum, que originalmente designara a Eucaristia, é transferido para a Igreja considerada como uma entidade sociológica jurídica corporativa por si só. Por volta do século XII, seu uso como significando a Igreja visível já é comum entre os escolásticos. O passo final é dado quando o vínculo entre o corpus mysticum e a Eucaristia é rompido: a Unam Sanctam de Bonifácio é uma evidência de que isso já é o caso no século XIV. O corpus mysticum é agora usado para designar não o corpo eucarístico, mas a Igreja como sociedade humana, uma associação auto-suficiente formada para o bem-estar de seus membros. Em outras palavras, o corpus mysticum assume o significado do antigo coletivo e sociológico corpus Ecclesiae. Tornou-se uma entidade social jurídica. Ele é assimilado à estrutura visível da Igreja como uma coletividade supra-individual com o papa como sua cabeça - até mesmo dando poder do papa sobre coisas temporais, como proibir a comunhão a alfaiates que produzem roupas masculinas com fendas na parte inferior ou para costureiras que fornecem roupas femininas com aparência muito luxuosa ou com uma longa cauda. É deste modo que se pode dizer que é o senso de uma lacuna ontológica existente entre Deus e o homem, com a concomitante diminuição do senso de que é acima de tudo a Eucaristia como o corpo de Cristo que determina a Igreja na terra, que dá origem à ideia de que a Igreja como uma corporação sociológica e jurídica coletiva constitui um corpo místico por si só. E esta idéia se reflete, como vimos, na idéia de que os vários seres humanos chamados na Igreja para serem participantes da graça divina estão unidos, não à Pessoa de Cristo para formar uma síntese divino-humana com ele, mas em uma união não-pessoal no corpo místico da Igreja, considerada como uma entidade divino-humana por si só.

Mas mais uma vez o que tudo isso representa ou implica é uma cristologia que enfatiza as duas naturezas de Cristo muito mais do que enfatiza sua unidade pessoal. É esta cristologia que permite e promove a concepção da natureza dual do corpus Christi, da mesma forma que permite e promove a concepção de que a Igreja na terra não é simplesmente uma comunhão eucarística ou sacramental, mas é também uma sociedade corporativa e jurídica que tem que ser governada em linhas políticas da mesma maneira que outras sociedades humanas corporativas. Na medida em que o civitas Dei é também o corpus da sociedade cristã terrena, nessa medida, argumento conclui, exige-se um governo nas linhas políticas terrenas. Toda a teoria do governo eclesiástico, elaborada e aplicada no mundo romano durante o período medieval, está enraizada na cristologia subjacente à visão romana da Igreja. Da mesma forma, se esta teoria e, acima de tudo, o ofício do papado, são inconcebíveis e sem sentido no que diz respeito a visão patrística da Igreja, é porque esta visão patrística está enraizada em uma cristologia diferente. Em outras palavras, essas eclesiologias conflitantes derivam de diferentes pressuposições cristológicas. A eclesiologia está enraizada na cristologia. Consequentemente, o cisma também está enraizado na cristologia.

8. Doutrina Trinitária e o Cisma

A cristologia e a doutrina trinitária estão inter-relacionadas. Seria de se esperar, portanto, descobrir que as diferentes perspectivas cristológicas e suas correspondentes eclesiologias delineadas nos capítulos anteriores têm suas contrapartes e são reforçadas por diferentes concepções da Trindade. De fato, não poderia ser de outra forma. O dogma da Trindade é a base de todo pensamento teológico. A eclesiologia é um aspecto desse pensamento. A própria Igreja está fundamentada no mistério da Trindade. É uma expressão, uma manifestação da vida da Trindade. Separar a eclesiologia da doutrina trinitária e tratá-la como um assunto em si mesmo equivale a considerar a Igreja como uma espécie de instituição histórica criada para o benefício da humanidade, mas que não possui raízes genuinamente ontológicas no divino. É considerá-la como uma mera abstração. É inevitável, portanto, que qualquer divergência na compreensão da Trindade seja refletida em diferentes concepções da Igreja, porque é a compreensão da Trindade que determina a eclesiologia da mesma forma como determina todos os outros aspectos do pensamento teológico. Não é por acaso que a principal questão dogmática entre as igrejas ortodoxa e católica romana - a da processão do Espírito Santo - é uma questão de doutrina trinitária.

Com efeito, existem diferenças vitais entre a compreensão patrística da Trindade e a concepção que se tornou dominante no pensamento católico romano. Resumidamente, a doutrina da Trindade é uma tentativa de expressar a idéia da unidade e diversidade das três Pessoas, ou hipóstases, em Deus. É uma tentativa de expressar o mistério de Deus que é simultaneamente Um e Três, uma Mônada e uma Tríade. A ideia em si de que existem três pessoas em Deus não é simplesmente uma questão de especulação teológica. A Trindade não é o resultado de uma teogonia ou de uma revelação divina. É a realidade básica da própria existência divina. É o dado primordial desta existência. Consequentemente, é o dado primordial da teologia. Toda teologia deve ter sua base no reconhecimento do caráter triádico do divino, no fato de que Deus é uma tríade de hipóstases divinas. Ao mesmo tempo, essa distinção em Deus deve ser concebida de tal maneira que, embora não perca nenhuma de suas realidades absolutas, não comprometa a idéia correspondente da unidade absoluta de Deus. A natureza de Deus, ou sua essência, é uma. Mas é uma unidade que está presente em três pessoas. Isto, obviamente, não tem significado quantitativo. Número in divinis não é uma quantidade, sujeito às leis de adição e subtração e assim por diante. Na Trindade, três é igual a um, um é igual a três.

Diante da questão de dar alguma expressão adequada a essa realidade triuna de Deus - uma expressão que preserva o sentido da unidade essencial sem enfraquecer o sentido da distinção absoluta das três Pessoas - o pensamento patrístico formula uma doutrina na qual as três Pessoas da Trindade é vista como hipostaseando, ou concretizando, ou apropriando a essência divina total. Cada Pessoa é uma maneira única de possuir essa mesma essência. Cada uma recebe ela das outras e cada uma confere ela as outras. Isso não significa que haja qualquer partilha ou divisão da essência entre as três Pessoas. As hipóstases não são três partes, ou aspectos, ou funções da essência. Cada hipóstase inclui em si toda a essência de uma maneira exclusivamente pessoal. Correspondentemente, não há confusão das três Pessoas na essência comum. Tampouco a essência é uma qualidade não-pessoal, existindo por si mesma e separada de sua concretização nas três Pessoas.

Isso, por sua vez, não significa que a diversidade pessoal em Deus tenha precedência sobre a natureza comum, ou que a identidade essencial das três Pessoas seja ontologicamente posterior à sua distinção hipostática. Não há três Deuses, cada um com uma natureza independente, que é a mesma que a possuída pelos outros. Mas isso significa que o princípio da unidade na Trindade não é uma essência comum impessoal, ou não-personalizada, pela simples razão de que, no modo patrístico de ver as coisas, não existe uma essência comum impessoal ou não personalizada. Não há nem essência impessoal nem Pessoas não-essenciais. Há apenas os dois simultaneamente: uma natureza, ou essência, e três hipóstases, nenhuma antes da outra. Há identidade absoluta e diversidade absoluta; e conceber uma sem a outra, ou à parte da outra, ou conceber uma essência simples que não seja personalizada, ou uma Pessoa que não é essencializada, já é cair abaixo do nível dessa doutrina patrística e perder visão do antinomia fundamental e irreprimível que está em seu coração.

No entanto, se a essência comum, ou natureza, não é o princípio da unidade das três Pessoas, onde este princípio pode ser encontrado? Se a posse da essência comum não determina essa unidade, o que ou quem a determina? Aqui a resposta patrística é bastante inequívoca: o princípio da unidade na Trindade é a Pessoa (não a essência) do Pai. É o Pai que é a única fonte das hipóstases divinas do Filho e do Espírito Santo, que determinam suas origens e comunicam a elas e a sua essência única. Isso pode parecer simplesmente substituir um princípio de prioridade por outro. Pode parecer que é simplesmente substituir o Pai pela essência, de modo que agora a prioridade, em vez de ser atribuída à essência, é atribuída ao Pai, com a consequência de que o Filho e o Espírito Santo têm uma espécie de posterioridade ou subordinação. Mas aqui novamente a tradição patrística apresenta um modo de pensamento, ou um conhecimento, que é fundamentalmente antinomiano em caráter, no sentido de que transcende as leis da lógica. Logicamente, uma causa é anterior aos seus efeitos. No entanto, embora o Pai seja chamado a causa das hipóstases do Filho e do Espírito Santo, e estabeleça seus relacionamentos mútuos, ele não está por isso antes deles, nem possui qualquer jurisdição sobre eles, nem sua monarquia implica qualquer inferioridade ou subordinação da parte deles, ou qualquer dignidade superior radical da sua parte. O Pai é de fato a fonte da posse comum da mesma essência pelas Pessoas da Trindade. Porém, ele mesmo não deve ser identificado com essa essência, nem a essência é sujeita à Pessoa do Pai, no sentido de que é sua propriedade única que ele confere ao Filho e ao Espírito Santo. Pelo contrário, pode-se dizer que ele é a causa das outras hipóstases precisamente porque ele não é sua essência, mas possui essa essência em comum com o Filho e o Espírito Santo. Pessoas e essência são estabelecidas simultaneamente, sem que uma prossiga logicamente da outra. Cada Pessoa é assim Deus por natureza, não em virtude de derivar sua essência de outra Pessoa. No entanto, ela é Deus apenas porque ela é co-essencial (homoousios) com as outras. Ao mesmo tempo, as três juntas são Deus, porque o Pai é a única fonte de toda a divindade: não há divindade à parte dele. É o Pai, presidindo em perfeito amor, que assegura a unidade sem romper a igualdade total dos Três. Não há princípio impessoal pré-hipostático na Trindade que forneça essa unidade ou essa igualdade. Como princípio concreto da unidade na Trindade, o Pai estabelece relações com as outras duas hipóstases que tanto as distinguem como as ligam a ele. Essas relações são expressas dizendo que, enquanto o Pai é não-gerado e sem princípio (anarchos), o Filho é gerado pelo Pai e o Espírito Santo procede do Pai. O que essas expressões denotam não é de modo algum a natureza das três hipóstases em si mesmas. Elas servem apenas para indicar seu modo de origem (tropos hyparxeos) e para permitir que seja feita uma distinção entre elas. Deste ponto de vista, elas devem ser entendidas sempre em um sentido apofático. Tudo o que elas nos dizem sobre as três Pessoas é que o Pai não é o Filho, que o Filho não é o Espírito Santo e que o Espírito Santo não é o Pai. Elas não nos dizem o que é o modo de geração ou de processão, ou como um deles difere do outro; mas afirmam que, embora o Filho e o Espírito tenham uma fonte comum, essa comunidade de origem não elimina a diversidade absoluta entre o Filho e o Espírito Santo, ou entre essas duas pessoas e o Pai. Desta forma, elas não afirmam uma lógica positiva de relacionamentos; elas simplesmente descrevem essas relações de maneira suficiente para diferenciar as três Pessoas da Trindade. Considerá-las como algo além de sinais que indicam a qualidade absoluta dessa diversidade pessoal seria falsificar seu significado. Além disso, deve ser enfatizado que essas relações de origem não são a base das hipóstases. Cada Pessoa na Trindade é uma Pessoa tanto através de seu relacionamento consigo mesma quanto através de seu relacionamento com as outras Pessoas. Como já foi dito, cada Pessoa possui a natureza comum, ou essência, de uma maneira que é pessoal e particular para si mesma. Portanto, cada Pessoa, em sua realidade única, transcende a mera relação de origem e seu conteúdo e qualidade não são de modo algum exauridos por ela. É a diversidade inicial das três Pessoas que estabelece suas relações mútuas, e não vice versa. Portanto, novamente, essas relações não podem ser reduzidas a uma dualidade. Elas não podem formar díades no interior da Trindade. Elas são sempre triplas ou triádicas. Ao mesmo tempo, são sempre tri-únicas, no sentido de que, em qualquer consideração de uma Pessoa, as outras Pessoas estão sempre presentes. Uma nunca pode ser sem as outras.

Assim, esses relações não são e nunca podem ser relações de oposição. Só se pode opor dois princípios. A Trindade é sempre três princípios. É por essa razão que qualquer formulação da Trindade em termos de um sistema de oposição de relações, ou de relações de oposição, é estranha à tradição patrística. As relações na Trindade são as de diversidade, ou reciprocidade, e de comunidade no Pai, não de oposição ou de separação, que são relações causais. O Filho e o Espírito Santo revelam e manifestam o Pai, que é sua única fonte hipostática. O Espírito é a imagem do Filho. Ele é a Força e o Espírito do Logos, eternamente repousando nele e manifestando-o, mas não procedendo dele. Filho e Espírito vêm conjuntamente do Pai tão intimamente como palavra e respiração. Toda atividade divina tem sua fonte no Pai, é realizada pelo Filho e concluída e manifestada pelo Espírito. O Espírito não é, portanto, apenas uma função ou agente do Logos, ontologicamente dependente dele. Nem correspondentemente ele é apenas um vínculo (nexus amoris) entre o Pai e o Filho unidos na mesma natureza e assim constituindo o único princípio de sua processão. Ele é outra Pessoa divina, independente em sua origem da Pessoa do Filho. Dentro da Trindade, é o Espírito que distingue o Pai do Filho sem produzir oposição entre eles. Ao mesmo tempo, é no Espírito que Deus sai de sua essência e manifesta eternamente sua glória: a glória na qual a energia única da Trindade, que procede da essência da qual o Pai é a fonte, é manifesta em múltiplas energias incriadas e atos e predeterminações - as idéias divinas ou logoi através das quais Deus cria, sustenta e santifica suas criaturas. O Espírito Santo é o grande poder santificador.

Essa compreensão patrística da doutrina da Trindade, que preserva a antinomia da essência e das hipóstases, sem de modo algum relativizar a unidade absoluta da essência ou a diversidade absoluta das três Pessoas, é modificada na teologia latina, e seu equilíbrio sutil é perturbado. Essa modificação pode ser vista como uma consequência de uma tentativa de impor maior clareza e consistência lógica à doutrina. Reflete uma tendência, implícita ou explícita, a assumir que as leis da lógica se aplicam às realidades trinitárias. A esse respeito, representa uma certa racionalização da doutrina da Trindade, a intrusão de um modo de pensamento puramente abstrato que separa a teologia de suas raízes na experiência e visão vivas e suprime contradições e paradoxos em que tal visão e experiência devem ser frequentemente expressas. O resultado é uma certa diluição do conteúdo da teologia, submetendo esse conteúdo às normas da filosofia racional. A teologia se torna uma tentativa de ordenar os fatos da revelação de acordo com as leis da análise lógica.

Com efeito, o que os teólogos latinos tendem cada vez mais a enfatizar é a idéia do Summum Ens, do Absoluto em quem nenhuma diferenciação de qualquer tipo pode ser encontrada. Este, que é o princípio da unidade in divinis e é inteiramente simples, é identificado com a essência divina ou natureza (latim: substantia). Este dogma do princípio da unidade que é identificado com a essência divina, por sua vez, começa a moldar a compreensão e formulação da doutrina da Trindade. O ponto de partida desta doutrina torna-se o conceito da essência não-pessoal. A primazia da essência é afirmada sobre a realidade concreta das Pessoas. Na ordem dos conceitos, a essência precede a Pessoa e a Pessoa se torna uma espécie de eflorescência ou modo da essência comum. As Pessoas são consideradas, por assim dizer, relações ideais em Deus da essência de Deus com ela mesma. Neste caso, como é a essência (e não o Pai) que é o princípio da unidade na Trindade, as relações de origem são identificadas com as hipóstases e pensa-se que as expressam totalmente. Como São Tomás afirma, "o nome da pessoa significa a relação" (Summa Theologiae Ia, 9.24. A4). Por isso, são as relações internas da essência que devem diversificá-la. Na vista patrística, é a essência que é contida pela Pessoa, de tal maneira que cada hipóstase é vista como a maneira pessoal na qual a mesma essência está presente. Isso significa que, em sua realidade única, cada hipóstase transcende a mera relação de origem. Ao mesmo tempo, a diversidade absoluta das três Pessoas nunca é relativizada de tal maneira que se torna possível vislumbrar uma essência que seja não-pessoal ou uma Pessoa que seja não-essencial. Do ponto de vista latino, no entanto, em que a unidade essencial tem precedência sobre a diversidade pessoal, são as relações de origem que, de maneira virtualmente exclusiva, determinam as próprias hipóstases e definem seu conteúdo. As Pessoas tornam-se relações da essência que pode ser considerada não-pessoal, porque se pensa que constitui o princípio da unidade e, portanto, é superior a toda a diversidade das Pessoas. A unidade é considerada como anterior à diversidade. A diversidade torna-se relativa à unidade, que é absoluta. É a absoluta simplicidade da essência que é considerada como a base da Trindade e como agrupando ou absorvendo a diversidade das Pessoas em si. Quando se trata de definir as relações das hipóstases, a teologia latina introduz outro conceito. Vimos que na tradição patrística não há lugar para basear essas relações na ideia de oposição. Só se pode opor dois princípios. A Trindade é três princípios. Mas uma vez que a primazia da essência divina e sua unidade são enfatizadas ao ponto em que se torna virtualmente impossível vislumbrar as Pessoas da Trindade como definidas por qualquer coisa que não sejam suas relações mútuas,  então é inevitável que essas relações sejam vistas como fundadas em um sistema de oposições. Isso significa não apenas que as hipóstases são inteiramente definidas por sua oposição recíproca, mas também que a própria Trindade é dividida em dois conjuntos de díades dentro dos quais essa oposição pode ser vista como operando. A primeira díade é a do Pai e o Filho; a segunda é a do Pai e o Filho, considerados como um único princípio, e o Espírito Santo. O Pai gera o Filho. Mas como o Pai e o Filho são um em essência, e o Filho possui tudo o que o Pai possui, eles juntos constituem o único princípio da processão do Espírito. Por causa da unidade da essência do Pai e do Filho, o Espírito é o Espírito de ambos e procede de ambos: a Patre Filioque, tanquam ab uno principio, como a fórmula latina expressa.

Essa concepção diádica da Trindade, por sua vez, significa que as relações e diferenças mútuas entre as três hipóteses são vistas como fundamentadas em sucessivas privações. O Filho é Deus privado da faculdade de gerar (que pertence apenas ao Pai). O Espírito é Deus privado tanto da faculdade de gerar como da virtude espirativa segundo a qual ele procede e que é possuída em comum pelo Pai e Filho apenas. Assim, o Espírito Santo, como hipóstase, não tem nada em comum com o Pai ou o Filho e parece ser reduzido a uma espécie de apanágio, impotente em si, de ambos. A noção de que o Espírito Santo deriva sua subsistência hipostática do Filho, assim como do Pai, e a falha em distinguir entre essa subsistência e a eterna manifestação da natureza divina na Pessoa do Espírito significa inevitavelmente que todas as suas atividades são vistas como sendo de algum modo dependentes do Filho. Dentro da Trindade, ele age como o vínculo entre o Filho e o Pai. Na missão redentora do Filho, ele é o instrumento ou agente do Filho, ou seu vigário, operando através da ação impessoal da graça criada. De fato, nessa perspectiva, é difícil visualizar qualquer manifestação energética da Trindade fora da essência: a determinação de manter a todo custo a idéia de uma simplicidade divina que não admite qualquer diferenciação tornou-se tão grande que tudo que existe fora da essência pode ser considerado apenas como efeitos criados ou dons criados e atos de vontade. A glória e graça santificante são igualmente criadas. Esta conclusão é imposta ao pensamento latino pelo fato de que o ponto de partida de sua triadologia é a idéia da preeminência da unidade da essência sobre a diversidade das Pessoas. De fato, do ponto de vista patrístico, essa diversidade não apenas perde sua qualidade absoluta e se torna relativa (e assim secundária);  mas, se a geração e a processão são atividades não da hipóstase do Pai, mas da essência comum, é difícil perceber como o Pai e o Espírito Santo não participam em sua própria origem. Em qualquer caso, o reconhecimento do Espírito Santo como acima de tudo a hipóstase da manifestação divina, o grande poder santificador, independente em sua origem da hipóstase do Filho, é diminuído, se não eclipsado, na triadologia latina; e é claro que as duas maneiras de vislumbrar a Trindade - a tradição patrística e a que veio a dominar o pensamento católico romano - são ambas muito diferentes em si mesmas e determinadas por princípios muito diferentes.

Nesse ponto, surge a questão de como essas diferenças são refletidas - de fato, subjacentes - nas eclesiologias rivais que examinamos. Aqui, o que pode ser notado primeiro é como a compreensão trinitária romana realmente condiciona o entendimento cristológico romano delineado no último capítulo, com todas as consequências que essa cristologia em si tem na esfera da eclesiologia. Se a unidade essencial e a simplicidade de Deus são enfatizadas, como são na triadologia romana, ao ponto em que as hipóstases divinas são virtualmente reduzidas a relações dentro da essência, então é difícil ver como, em Cristo, Deus se torna homem da mesma maneira que esta encarnação é considerada na tradição patrística; pois na tradição patrística Deus não é definido por sua essência apenas, e as diversidades hipostáticas têm um significado mais do que relacional ou relativo. Uma união, no sentido de total reciprocidade e interpenetração, entre a essência divina e a natureza humana é impensável. Na melhor das hipóteses, o que pode ser considerado à luz da doutrina trinitária romana é uma cristologia em que Cristo é visto como Deus e homem. A divindade de Cristo como Filho de Deus é vista, isto é, distinta de sua humanidade. A dicotomia entre elas permanece. Não há síntese real. A diferença entre o divino e o humano é enfatizada mais do que sua unidade pessoal em Cristo. Além disso, mesmo que o divino e o humano sejam de algum modo reunidos no caso de Cristo, este caso é único. Há pouco ou nenhum escopo para a idéia de que em Cristo toda a natureza humana é unida - mesmo fisicamente unida - ao divino. Há pouco ou nenhum escopo para a doutrina do Logos encarnado em toda a criação. Seres criados - humanos e outros - podem ser considerados realidades existentes por si mesmas, à parte do divino. Isso significa que todo o sentido do mistério teândrico é enfraquecido na teologia romana. Correspondentemente, o sentido da Igreja como expressão desse mistério teândrico - como o locus da deificação em que se realiza a união indissolúvel da natureza humana com o divino no corpo de Cristo - também é enfraquecido. Consequentemente, a porta é aberta para uma visão em que a Igreja é vista como uma comunhão eucarística ou sacramental e como uma sociedade corporativa ou jurídica exigindo governo nas linhas de qualquer outra sociedade humana corporativa.

Além disso, a forma que este governo da Igreja na terra assume no mundo romano, com o ofício do papa em seu centro, também está implícita na compreensão trinitária romana. Vimos que a doutrina patrística afirma uma antinomia última entre unidade e diversidade, essência e hipóstase, na Trindade. Unidade e essência não têm prioridade, ontológica ou outra, sobre diversidade e hipóstases. As Pessoas da Trindade não são partes, funções ou aspectos de um todo abrangente que é a essência. Pelo contrário, cada pessoa é o todo. Cada pessoa é uma maneira única de possuir a essência comum. A essência nunca é não-pessoal e a Pessoa nunca é não-essencial. Isso, por sua vez, estabelece a estrita igualdade de dignidade entre as três Pessoas. Nenhuma Pessoa pode reivindicar preeminência ou jurisdição sobre outra. Cada uma possui a essência comum em sua totalidade. Cada uma possui o princípio de sua própria unidade em sua totalidade. Ao mesmo tempo, ela não possui essa essência ou esse princípio de unidade à parte das outras Pessoas, nem pode exercê-las à parte das outras. Essência e unidade nas Pessoas da Trindade são tri-únicas, e são expressas nessa reciprocidade e comunidade que caracterizam as relações entre as três Pessoas.

É essa concepção patrística da Trindade que é como se fosse o correlato objetivo e a garantia da estrutura das inter-relações entre as igrejas locais na terra, no sentido de que essas relações são baseadas, como vimos (capítulo 3 acima), em uma compreensão da relação entre pessoas que, por sua vez, se baseia, em última análise, na compreensão da natureza das relações entre as Pessoas da Trindade. Cada igreja local é a Igreja em sua totalidade. Não é apenas uma parte ou um aspecto ou função de um todo abrangente composto de todas as igrejas locais e governado por uma única cabeça e chamado a Igreja. É a Igreja em sua totalidade em virtude do fato de que manifesta a plenitude da verdade cujo princípio é a Pessoa do Logos divino. Nesse sentido, é o centro de sua própria unidade e catolicidade.Mas, ao mesmo tempo, não pode reivindicar possuir ou exercer essa plenitude da verdade em maior ou menor grau do que qualquer outra igreja local na qual a Pessoa de Cristo é manifesta, ou ser mais o centro de unidade e catolicidade do que qualquer outra igreja local. Deve haver uma igualdade estrita de dignidade entre todas as igrejas locais. É essa igualdade em dignidade, incorporada nos bispos, que se encontra, como vimos, na base da organização conciliar por meio da qual as igrejas locais expressam a unidade da fé e regulam qualquer disputa ou divergência entre elas. Pois assim como as Pessoas da Trindade não podem expressar sua unidade intrínseca à parte uma da outra, as Igrejas locais podem exercer a unidade e catolicidade de que cada uma possui a plenitude somente nessa reciprocidade e intercomunhão que caracterizam as relações entre as três hipóstases divinas. Aqui a unidade está implícita na diversidade, diversidade na unidade, sem prioridade em qualquer direção. Neste entendimento há lugar para um primus inter pares, como existe na Trindade, onde este lugar é ocupado pela Pessoa do Pai. Mas não há lugar para um ofício como o do papado.

Na triadologia romana, essa antinomia entre unidade e diversidade, essência e hipóstase, que por sua vez determina as relações entre as igrejas locais e a igualdade absoluta de todos os bispos em todos os aspectos das funções apostólicas e magisteriais da Igreja na terra, não é totalmente reconhecida. O equilíbrio entre os termos em cada par é perturbado. Ele está perturbado em favor do primeiro em ambos os casos. A unidade tem precedência sobre a diversidade, a essência sobre as hipóstases. A qualidade absoluta da essência é afirmada, mas as hipóstases são, em algum sentido, relativizadas, ou pelo menos são definidas mais ou menos exclusivamente em termos de suas relações com a essência. A essência tem uma preeminência que lhe permite ser considerada como superior às hipóstases, como uma realidade totalmente auto-suficiente, unida em si e absorvida em si mesma. É o princípio causal e a fonte das hipóstases, a única base ontológica da existência delas; e é na unidade da essência impessoal e comum delas que Pai e Filho juntos "projetam" o Espírito Santo.

Quando este esquema ideal das coisas é traduzido nas formas visíveis da Igreja na terra (que deve imitar, como observamos, seu paradigma celestial), segue-se que a ênfase será colocada em um princípio de unidade impessoal de um modo que se assemelha àquele colocado em tal princípio na concepção latina da Trindade. Isto significa que a unidade na diversidade e a diversidade na unidade, que caracteriza as relações entre as igrejas locais e entre os seus bispos na concepção patrística das coisas, tem que ser substituída por um sistema no qual a unidade e catolicidade da Igreja na terra são identificado primeiramente em um único ofício que reivindica precedência a respeito de outros ofícios episcopais e atua como o princípio determinante no estabelecimento das relações entre eles, e entre as igrejas locais sobre as quais eles presidem. Com efeito, este ofício é dado forma concreta no papado. O papa preside a Igreja na terra de uma forma análoga àquela em que a essência preside a Trindade. Ele representa a base ontológica da Igreja em sua forma visível, pois a essência é a base ontológica das hipóstases e, portanto, em última instância, da Igreja em sua forma invisível. Seu ofício é igualmente completo em si mesmo, isento da Igreja e possuindo jurisdição sobre ela. Ele é a imagem do Pai Celestial e do Vigário de Cristo. Ele representa, isto é, a unidade da essência comum e impessoal do Pai e do Filho; e como o Pai e o Filho, em virtude dessa essência comum, "projetam" conjuntamente o Espírito, que é ontologicamente dependente deles, também o funcionamento dos canais da graça santificante na Igreja na terra depende da comunhão com o papa. O paralelo é evidente, e sua lógica é explícita no Unam Sanctam de Bonifácio; e evidente também é a interconexão crucial entre o ensino latino sobre a processão do Espírito Santo e o ofício do papado: o Filioque sustenta este ofício.

De fato, a concepção do papel do Espírito Santo está no coração do cisma. Vimos que a eclesiologia patrística pressupõe uma visão em que o criado e o incriado, material e espiritual, fenomenal e noumenal são vistos como aspectos de uma única realidade. Um é o símbolo ou a imagem do outro - símbolo ou imagem, no sentido de que participa da realidade do arquétipo do qual é o símbolo ou a imagem. Toda a criação é um ícone do divino. É uma epifania do divino. Deus é a presença interior no centro de cada partícula do mundo criado. Tudo é uma expressão do esplendor de seu ser e proclama sua bênção. E tudo espera por aquela revelação, que é a realização de sua verdadeira identidade, na qual Deus será tudo em todos. Tudo aspira a essa transfiguração em que sua beleza e magnificência interiores são reveladas.

Para que tal visão seja válida, Deus deve ser entendido como muito mais do que aquele que põe em movimento o processo cósmico, a causa incriada e transcendente de efeitos criados ilimitados relacionados a ele de forma extrínseca, mas não intrinsecamente. Ele deve ser muito mais do que o Deus dos filósofos - o Deus de Descartes tão repudiado por Pascal. Ele deve ser visto como a base interior e operativa de toda a sua criação. Essa percepção é expressa na tradição patrística distinguindo em Deus sua essência, totalmente transcendente e incognoscível, de suas energias incriadas. É através de suas energias que Deus manifesta sua glória eterna. É através delas que ele está presente no coração de sua criação e de todas as criaturas. Pois elas estão presentes nas idéias divinas ou logoi através dos quais ele cria, sustenta e santifica suas criaturas. Como tais, são concebidas e compreendidas na vida eterna do Logos, através de quem e em quem todas as coisas são feitas. Mas elas são manifestas através da atividade do Espírito Santo. O Espírito Santo é o grande poder não só de santificação, mas também de manifestação. É o Espírito Santo que planta as sementes do Logos divino na criação, que alimenta seu crescimento e as faz frutificar.

A Igreja é congruente com essa visão. Pode-se dizer que a Igreja é essa visão traduzida em termos formais concretos. É a manifestação do Logos encarnado. É o Logos encarnado que é a cabeça da Igreja. Mas a cabeça e o corpo formam uma única realidade indivisível. 'Entre o corpo e a cabeça não há lugar para qualquer brecha - o menor intervalo causaria nossa morte', como diz São João Crisóstomo. E esse corpo do Logos encarnado - do qual o Logos encarnado é o princípio e que constitui a Igreja - ele mesmo é constituído pelo logoi divino, aquelas sementes divinas que são a realidade interna e mais íntima de tudo o que é e que são implantadas em toda a criação, humana e outra, pela atividade do Espírito Santo. São estes logoi divinos, concebidos e compreendidos na própria pessoa do Logos, que constituem, individual e coletivamente, o corpo de Cristo que é a Igreja.

Essencialmente, portanto, a Igreja não é uma entidade histórica ou institucional. É interior a nós. O Reino dos Céus, que é comunidade na vida da Igreja, está no interior. É nossa identidade mais íntima. É a identidade mais íntima de tudo o que é. É o mundo dentro do mundo, o cosmos do cosmos. Toda a criação é o sacramento de Cristo. Toda a criação, em virtude das sementes divinas intrínsecas e internas em todas as criaturas, constitui a Igreja e é o ícone de Deus, sua epifania. Nos seres humanos, em todas as criaturas, a Igreja está latente, não realizada, esperando para ser revelada. É realizada e revelada na Eucaristia. É a Eucaristia que é o núcleo da Igreja. Através da participação na Eucaristia, o corpo de Cristo em nós, a Igreja em nós, é trazido de seu estado latente e passivo para um estado de atividade. É energizado e cumprido, primeiro no homem e depois, através do homem, no resto da criação. A Eucaristia tem um significado cósmico e não simplesmente divino-humano. Assim, a Igreja também tem um significado cósmico e não simplesmente divino-humano. Ou melhor, seu caráter divino-humano inclui o cósmico. O cósmico está incluído no mistério teândrico que ela manifesta. É toda a criação que é renovada e transfigurada na e através da Igreja.

Nesse sentido, a Igreja é mais que uma realidade crística. É também uma realidade Pentecostal, a manifestação do Espírito Santo. O Espírito não está subordinado ao Filho. Ele não é uma função ou instrumento do Logos. Sua atividade, de fato, é uma pré-condição do evento crístico. Nem é o Pentecostes uma mera conseqüência ou continuação da encarnação. É o clímax de toda a economia trinitária de revelação e santificação. No evento Pentecostal, o Espírito desce em pessoa, revelando hipostaticamente à criação a presença interior de Cristo, ativando o corpo de Cristo - o logoi divino - no coração de todas as criaturas, manifestando a Igreja da qual ele é, em sua própria Pessoa, o princípio de informação interior e a realização ontológica. É através do derramamento do Espírito Santo na criação que toda a criação é transfigurada no mistério eucarístico celebrado diante do trono de Deus. E esse derramamento - esse evento Pentecostal - é um evento eclesial. É o evento que estabelece a Igreja em sua plena unidade e catolicidade no coração de todas as criaturas.

Além disso, a união que o Espírito consuma em nós não é uma união não-pessoal. Nós não somos formados em um corpo místico, divino-humano, que é distinto do corpo de Cristo. Nem nossa identidade pessoal é dissolvida em uma impessoalidade corporativa. Pelo contrário, nossa incorporação é no corpo do Logos encarnado; e se este corpo é uma realidade única, não obstante, o logoi que o constitui - as sementes divinas no coração de tudo - são particulares para cada ser humano, para cada criatura. É na verdade do nosso próprio ser que somos iniciados pelo Espírito Santo, cada um da maneira específica à nossa natureza particular. É o Espírito Santo que diversifica na unidade em Cristo. As pessoas humanas, assim como as pessoas da Trindade, possuem uma qualidade absoluta e não é possível sacrificar essa qualidade ou absorvê-la em uma essência-unidade impessoal, em um Uno indiferenciado, a menos que ela seja aleijada e pervertida, e forçada a servir a qualquer propósito: político, social, religioso, ou mesmo divino, que é, ou pode ser, mais sagrado do que aquele intrínseco a si mesmo. Estamos unidos por distinção, distintos por união. Nós formamos um corpo, mas somos diversos em nossas múltiplas e únicas identidades. Encontramos nossa herança e somos estabelecidos cada um a nosso modo, naquela liberdade que é a liberdade insustentável dos filhos de Deus.  Nós recebemos nossa herança e somos estabelecidos, cada um à nossa maneira, na liberdade insuprimível dos filhos de Deus. 

9. Epílogo 

Em 1894, em sua encíclica Praeclara Gratulationis, o papa Leão XIII fez algumas observações sobre a relação entre as igrejas ortodoxas e as submissas à reivindicação de uma hegemonia jurisdicional por parte da sé romana. Entre outras coisas, ele afirmou que '. . .o que os separa de nós não é tão grande; de fato, com algumas poucas exceções, concordamos inteiramente. . .que, em defesa da fé católica, recorremos frequentemente a argumentos e testemunhos emprestados dos ensinamentos, dos ritos e costumes do oriente. A questão principal da dissensão é a primazia do Pontífice Romano. . . '. 

A primazia do Pontífice Romano pode muito bem ser a questão principal da dissensão, no sentido de que é frequentemente o tema central quando a relação entre as igrejas ortodoxas e a igreja romana está em discussão. Mas um dos propósitos deste livro tem sido mostrar de forma tão clara e decisiva quanto possível que a questão da primazia do Pontífice Romano não é uma questão por si só. O ofício do papado só tem sentido e coerência quando estabelecido dentro de um quadro de certos princípios e critérios teológicos. É a aceitação prévia deste quadro que determina este ofício. É a aceitação prévia desta estrutura que determina se alguém pode ou não concordar com a alegação de que este ofício tem um status legítimo em relação à Igreja. Pedir a um cristão ortodoxo - um que é consciente de sua herança - que reconheça e aceite o papado é pedir a ele que mude toda a sua posição doutrinária. Do mesmo modo, para um católico romano aderir e basear sua compreensão espiritual nas pressuposições doutrinárias da tradição patrística, mantendo sua lealdade ao ofício papal, é colocar-se em uma posição que, em última análise, é insustentável e assim, expor-se à acusação de que é vítima de ignorância, de duplopensar ou de hipocrisia, ou de uma mistura de dois ou de todos os três ao mesmo tempo. A questão do papado é uma questão teológica. Fundamentalmente, é uma questão de teologia cristológica e trinitária. Pretender que é algo menos que isso é meramente brincar com as palavras. 

Não há como fugir dessas conclusões; e nenhuma discussão ou diálogo sobre primazia, infalibilidade, a comissão Petrina, união das igrejas, e assim por diante, pode ter qualquer significado a menos e até que isso seja reconhecido. As diferenças doutrinais estão na raiz do cisma. O cisma só pode ser curado quando houver acordo prévio sobre as realidades fundamentais da fé cristã.





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