quinta-feira, 12 de setembro de 2019

Graça: criada ou incriada? Algumas observações

Dizemos que conhecemos nosso Deus por meio de suas operações (energeiai), mas não nos comprometemos a aproximar-nos de Sua essência (ousia). Suas operações (energeiai) chegam até nós, mas Sua essência (ousia) permanece além do nosso alcance.”- São Basílio, o Grande

Segundo São Basílio (tanto em suas cartas quanto em seu Contra Eunomium), é impossível conhecer algo sobre a essência divina (ousia). Ele insiste - contra o ensino de Eunômio, que sustentava que o conhecimento da essência divina (ousia) era possível - que o conhecimento de Deus vem somente pela participação em Suas energias.

A distinção essência / energia também protege a hetero-essencialidade de Deus em relação à criação, ao mesmo tempo permitindo uma participação energética real em Sua divindade pelas criaturas. Em outras palavras, Deus é essencialmente (e totalmente) transcendente e ao mesmo tempo Ele é energeticamente (e totalmente) imanente.
São Basílio, o Grande

Graça: criada ou incriada?

Na teologia escolástica, a graça "criada" é "... uma qualidade, uma luz que permite à alma receber dignamente a habitação das três Pessoas divinas" [Charles Journet, The Meaning of Grace, página 19], mas na teologia Ortodoxa esta Luz (ou "qualidade") é a própria energia incriada de Deus. Em outras palavras, os efeitos da graça no homem na teologia ocidental são vistos como "criados"; enquanto na teologia Ortodoxa esses "efeitos" são vistos como uma participação no próprio Deus incriado como energia. De fato, São Gregório Palamas ressalta que "... o divino Máximo não apenas ensinou que [o dom da theosis] é enhipostático*, mas também que é não-originado (não apenas incriado), indescritível e supratemporal. Aqueles que a alcançam tornam-se assim incriados, não-originados e indescritíveis, embora em sua própria natureza eles derivem do nada." [São Gregório Palamas, The Triads, página 86] Assim, na teologia Ortodoxa não existe algo como graça "criada", nem jamais pode existir tal coisa, porque a graça é o próprio Deus.

*Enhipostático é usado como um contraste aos termos authipostático e anhipostático. O que é enhipostático não é auto-subsistente (authipostático), nem é meramente transitório ou ilusório (anhipostático), mas é uma qualidade real inerente em uma hipóstase.

As diferenças entre Oriente e Ocidente sobre a questão da graça foram destacadas pelo Pe. Joseph Gill, SJ, em seu livro sobre o Concílio de Florença, pois, como apontou em seu tratamento do tema da graça, as diferenças doutrinárias entre os dois lados se tornaram particularmente evidentes durante as discussões entre João Montenero, O.P. e São Marcos de Éfeso, na quinta sessão do Concílio, em 14 de março, porque durante uma discussão muito acalorada sobre a questão dos efeitos decorrentes do poder da graça, Pe. Montenero "... pressionou Marcos [de Éfeso] para saber se os dons do Espírito eram diferentes do próprio Espírito", que é o que os latinos acreditavam, ou se os dons que fluem do Espírito eram o próprio Espírito, que é o que a Igreja Bizantina mantém. São Marcos, é claro, rejeitou a posição latina e isso causou discussões mais acaloradas, culminando em uma intervenção do imperador ordenando que o assunto fosse abandonado." Mas mesmo que a discussão tenha terminado abruptamente (isto é, por causa da interferência do imperador), ela mostrou que os dois lados discordavam sobre a natureza da graça e, de fato, como Pe. Gill continuou dizendo, foi essa linha de debate que trouxe à tona "...a questão palamita das energias divinas, que Marcos com a maioria dos gregos considerava ser realmente distinta da essência divina, uma opinião que os latinos tanto naquela época como agora considera errônea." [Pe. Joseph Gill, The Council of Florence, páginas 205-206]. Portanto, fica claro que o Oriente e o Ocidente entendem a natureza da graça de maneira diferente, porque para o Ocidente os efeitos do Espírito no homem são realidades "criadas", ou seja, são uma graça "criada"; enquanto no Oriente os efeitos são uma verdadeira participação na energia divina incriada, que é o próprio Deus como Ele existe fora de Sua essência inefável.

Pe. Hardon sobre a graça santificante

Natureza da Graça Santificante. O que é graça santificante? Tem sido chamada de "obra-prima de Deus neste mundo ... muito mais gloriosa do que qualquer coisa que possamos contemplar nos céus acima de nós ou na terra aos nossos pés". É apenas o favor de Deus para conosco, como Lutero quis? Não, é muito mais. É a vida de Deus ou natureza ou o amor de Deus, como alguns chamam? Não, pois a vida de Deus, o amor e a natureza são incriados, são o próprio Deus. A graça santificante não é Deus, não é o Espírito Santo, não é apenas o favor de Deus. É algo criado, dado a nós por Deus por amor e misericórdia, que nos dá uma semelhança criada da natureza e vida de Deus. É um dom sobrenatural infundido em nossas almas por Deus, uma realidade positiva, espiritual, sobrenatural e invisível. 
Qualidade Divina. Segundo Santo Tomás, a graça santificante “não é uma substância nem uma forma substancial, mas uma forma acidental, uma qualidade permanente colocada por Deus na própria essência da alma, que a leva a participar por meio de uma certa semelhança à natureza divina ”(1-2q110aa.2-4). Não é de admirar, então, que o Catecismo Romano a chame de "qualidade divina".
As definições dadas pelo Pe. Hardon, em relação à graça santificante, são completamente estranhas e até hostis ao ensinamento da tradição bizantina sobre a graça. Não existe “graça criada”, nem “sobrenatural criado”, etc., e de fato toda a abordagem adotada pelo Ocidente desde os tempos escolásticos é contrária aos ensinamentos dos Padres da Igreja Oriental.

Pe. Hardon está dizendo que o homem recebe uma qualidade "criada", isto é, algo diferente do próprio Deus, que nos torna semelhantes a Deus de maneira criada. Essa visão da graça é simplesmente inaceitável para os cristãos orientais.

O cristianismo oriental ensina que a graça, tanto em si quanto em sua recepção, é incriada e tem o efeito de tornar aquele que a recebe incriado energicamente. Não há atos "criados" de graça e, portanto, quando um homem ama como Deus ama, ele ama de uma maneira incriada. 

Mais uma vez, para o Ocidente - segundo Pe. Hardon (e os escolásticos que ele aceita como normativo) - existe um "sobrenatural criado", mas não existe tal coisa na realidade; ao contrário, existe apenas Deus e a criação, pois não existe nada entre o Criador e Sua criação. Dito isto, é claro que o homem não recebe uma graça santificante "criada" e, de fato, tal coisa (isto é, uma graça ou qualidade criada) nunca poderia divinizar um homem; e é por isso que na teologia oriental se diz que o homem recebe o próprio Deus como energia, e esse dom da energia de Deus é o que torna o homem eterno e incriado pela graça.
Católico Romano: Existe o dogma de fide que "Por ter sido agraciado com a plenitude da graça habitual criada, a alma de Cristo também é acidentalmente santa".
Rejeito esse "dogma" como você o chama, porque a alma de Cristo é santa, não porque recebeu alguma "graça habitual criada" estranha, mas porque Sua alma humana foi infundida (e até permeada pericoreticamente) com a energia divina, e assim foi divinizada verdadeiramente e não numa mera aparência por algum tipo de qualidade "criada" inexistente.

É um axioma antigo dos Padres Orientais que somente o incriado pode divinizar o criado. Portanto, não pode haver "graça criada", porque tal coisa nunca poderia elevar o homem à própria vida do Deus Triuno. Em outras palavras, o homem se torna Deus em Deus na tradição doutrinária oriental; enquanto na tradição ocidental (pelo menos desde os tempos dos escolásticos) o homem se torna divino através de uma "graça criada" que lhe dá uma mera semelhança a Deus de uma maneira criada. O ensino ocidental, pelo menos visto pela perspectiva oriental, é muito semelhante ao arianismo.
Católico Romano: O Espírito Santo consiste na graça criada acidental e na graça incriada substancial.
Acho essa noção totalmente repulsiva. O Espírito Santo é incriado, tanto quando falamos de Sua hipóstase e quando falamos das energias que fluem dEle. A graça não é um acidente (no sentido aristotélico); ao contrário, é o próprio Deus pessoalmente (enhipostaticamente) quando Ele vem até nós. Não pode haver "graça criada" na doutrina das igrejas orientais. A idéia de existir uma "graça criada" é tão absurda quanto dizer que existe um "Deus criado".
Católico Romano: O Oriente e o Ocidente podem concordar que Deus é actus purus e a graça do Espírito Santo é incriada.
Eu não acredito que Deus seja "actus purus"; em vez disso, sustento que Deus é essência, energia e uma tríade de hipóstases divinas. Francamente, Deus está além dos conceitos adotados por Aristóteles, e é por isso que não é sensato tentar usar a filosofia pagã para criar uma nova teologia cristã. Uma coisa é usar os termos (palavras) formulados por Platão e Aristóteles, e, de fato, o uso da língua grega exigirá inevitavelmente que se use termos cunhados pelos filósofos pagãos, mas outra é absorver as teorias conceituais pagãs inventadas por esses homens na tradição cristã.

Jesus respondeu e disse-lhe: Se alguém me ama, ele cumprirá a minha palavra. E meu Pai o amará e nós iremos a ele e faremos nossa morada com ele. (João 14:21) Esse é um texto magnífico das escrituras, e apoia maravilhosamente a doutrina da Igreja Oriental, que sustenta que o homem é divinizado por Deus ao entrar em Sua vida incriada, e não ao receber alguma "graça criada" ou habitus estranho.

A graça ocorre no tempo no sentido de recepção, mas, no entanto, é e sempre permanece atemporal nela mesma; além disso, torna o homem que a recebe atemporal também, pois como São Gregório Palamas escreveu em oposição ao herege Akindynos:
Segundo o divino Máximo, o Logos do bem-estar, pela graça, está presente ao digno, portando Deus, que é por natureza acima de todo começo e fim, que faz com que aqueles que por natureza tem um começo e um fim se tornem pela graça sem começo e sem fim, porque o Grande Paulo também, não mais vivendo a vida no tempo, mas a vida divina e eterna do Logos que habita, tornou-se pela graça sem começo e sem fim; e Melquisedeque não tinha nem começo de dias, nem fim de vida, não por causa de sua natureza criada, segundo a qual ele começou e deixou de existir, mas por causa da graça divina, incriada e eterna, que está acima de toda natureza e tempo, sendo do Deus eterno. Paulo, portanto, era criado apenas enquanto vivia a vida criada que veio do não-ser através do mandamento de Deus. Mas quando ele não viveu mais esta vida, mas aquela que está presente na habitação de Deus, tornou-se incriado pela graça, assim como Melquisedeque e todos os que passam a possuir o Logos de Deus, vivendo e agindo em si mesmos.
O Oriente rejeita qualquer noção de "graça criada" dizendo que o homem assume as qualidades da graça incriada (isto é, as energias incriadas de Deus) recebidas; enquanto o Ocidente reduz a graça à natureza criada pelo homem, dizendo que ela é criada no homem como habitus. Não há paralelo a este novo ensinamento ocidental no Oriente.

Lembro-me do que Vladimir Lossky escreveu em seu livro A Teologia Mística da Igreja do Oriente: “A tradição oriental não conhece uma ordem sobrenatural entre Deus e o mundo criado, que acrescentaria a esse último uma espécie de nova criação. Não reconhece distinção, ou melhor divisão, exceto aquela entre o criado e o incriado. Para a tradição oriental, o sobrenatural criado não existe. Aquilo que a teologia ocidental chama pelo nome de sobrenatural significa para o Oriente o incriado - as energias divinas inefavelmente distintas da essência de Deus.”

Resumindo, não pode haver "graça criada" nem "sobrenatural criado" na teologia oriental.

Perguntas e repostas

Católico Romano:  A graça criada não se refere à substância da graça, que é o próprio Deus (as energias de Deus ou Sua vida em nós). A substância da graça é Deus e é incriada. Graça criada é o efeito. 
Existem três formas de graça incriada:
1. União Hipostática (João 1:14; 17)
2. Presença de Deus na alma justa (João 14:17)
3. A visão beatífica (1 Pedro 1:13) 
O efeito de cada graça incriada é criado e é (respectivamente): 
1. A Segunda Pessoa da Trindade unida à natureza humana,
2. Graça santificante na alma e graças atuais, tornando-a participante da Natureza Divina,
3. A luz da glória, no céu, permitindo o homem ver Deus face a face. 
O Bem-aventurado Papa João Paulo II disse em 12 de setembro de 1984 em uma Homilia: “Agradecemos ao Pai pelo Filho e pelo Espírito Santo. Agradecemos ao Filho pelo Pai. Agradecemos ao Espírito Santo, porque através do amor do Pai e do Filho, ele é o dom incriado: a fonte de todos os dons da graça criada.”

Responderei por partes: 
Católico Romano:   A substância da graça é Deus e é incriada. Graça criada é o efeito. 
Resposta:

Na tradição bizantina, o efeito da graça no homem também é incriado, e assim, quando um homem ama com a energia divina do amor, ele ama de uma maneira incriada, pois o efeito da recepção do amor divino no homem é uma realidade eterna e incriada, e é por isso que não pode haver tal coisa como "graça criada" na tradição do Oriente.
Católico Romano:  O efeito de cada graça incriada é criado e é (respectivamente):
1. A Segunda Pessoa da Trindade unida à natureza humana
Resposta:

Na tradição bizantina, o efeito da união das naturezas divina e humana na pessoa de Cristo é incriado, porque a natureza humana é permeada com a graça incriada e se torna energeticamente eterna e incriada no exato momento em que o Logos divino assume natureza. 

Católico Romano: 2. Graça santificante na alma e graças atuais, tornando-a participante da Natureza Divina
Resposta:

A energia deificante que permeia o corpo e a alma do homem o torna incriado e eterno pela graça, e uma "graça santificante criada" jamais poderia ter esse efeito (e não importa o quanto se tenta "vesti-la" para torná-la mais palatável). Portanto, como eu já disse várias vezes, os efeitos da recepção das energias incriadas pelos santos são eles mesmos incriados.
Católico Romano: 3. A luz da glória, no céu, permitindo o homem ver Deus face a face. 

Resposta:

A Luz Tabórica, que é a glória da Luz de Deus, é em si mesma e, em seus efeitos, eterna e incriada, e nada criado pode capacitar um homem para ver Deus face a face (prosopon) a face (prosopon).

Dito isto, a Igreja Ortodoxa sempre rejeitou e sempre rejeitará qualquer noção de "graça criada", pois assim como o salvador criado ariano não podia salvar ninguém, também a "graça criada" não pode divinizar alguém. Em relação a citação do Papa João Paulo II, a afirmação dele é contrária à tradição doutrinária da Igreja Oriental. Não existe "graça criada".


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Resumindo, a questão de saber se a graça - como é operativa no homem - é criada ou incriada não é apenas um debate acadêmico. As igrejas orientais dizem - como sempre disseram - que nada incriado pode divinizar o homem; enquanto o Ocidente - desde os tempos da escolástica medieval - diz que a graça, como um efeito no homem, é criada. Esses dois pontos de vista são incompatíveis.

Somente o incriado pode tornar o homem incriado, e é por isso que rejeito os ensinamentos do Concílio de Trento sobre justificação quando diz que o homem é justificado por uma justiça que não é a própria justiça de Deus. Ser justo, santo ou misericordioso no sentido cristão requer participação na própria energia de justiça, santidade e misericórdia de Deus, e nenhum habitus criado pode tornar o homem energicamente divino. Como mencionei anteriormente com minha citação das Tríades de São Gregório Palamas, a theosis é uma realidade eterna e incriada, e o homem que recebe a luz da glória na theosis se torna eterno e incriado (veja também a carta de Palamas a Akindynos).
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Os comentários acima foram escritos por Steven Todd Kaster e podem ser encontrados aqui e aqui

Nota do tradutor: É importante ter em mente que as palavras "Eastern" (como a Igreja Ortodoxa é conhecida em inglês) e "Oriental" (como as Igrejas não-calcedonianas são conhecidas em inglês) ambas são traduzidas para "Oriental" em português. No entanto não se deve confundir as duas igrejas, pois a Igreja Oriental (não-calcedoniana) não está em comunhão com a Igreja Ortodoxa. O autor do texto parece usar os termos "igrejas orientais" e "teologia oriental" de forma mais genérica, pois creio que ele seja um uniata (um católico romano de "rito oriental"). 

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