sábado, 24 de abril de 2021

A Doutrina Ortodoxa do Pecado Original: Uma Abordagem Abrangente (Craig Truglia)

A doutrina do pecado original carece atualmente de clareza em toda a cristandade. A Ortodoxia nos últimos tempos não é exceção a isto, com muitos duvidando que os Ortodoxos tenham um consenso sobre o pecado original que é dogmaticamente vinculante. Embora este seja um tópico que pode ser tratado em livros devido a sua nuance, seremos mais francos em nosso tratamento por causa do espaço. Forneceremos uma breve definição a partir de uma fonte Ortodoxa recente, uma visão geral bíblica, os ensinamentos conciliares sobre o tópico, e um esclarecimento da doutrina conciliar a partir dos ensinamentos dos santos.

Uma definição Ortodoxa do Pecado Original

Podemos reunir em poucas palavras o ensinamento Ortodoxo sobre o pecado original. Em resumo, o pecado original é o efeito do pecado de Adão e Eva sobre eles mesmos e seus descendentes. O efeito nas mentes e vidas de Adão e Eva (e seus descendentes) foi profundo, uma vez que eles foram criados em um estado naturalmente propenso à comunhão e à imortalidade (tentativa*), mas desceram à confusão, inclinação ao pecado, corruptibilidade e morte.

*[A imortalidade é "tentativa " porque Adão ainda era passível, capaz de mudança, daí sua queda. Quando formos ressuscitados, nosso estado será impassível, de modo que nosso estado de imortalidade não será tentativo]

Estes efeitos não são uma punição arbitrária pelos erros de alguém, mas sim o resultado natural da ruptura da comunhão com Deus através da desobediência. Separar-se da fonte da "Vida" espiritual e física (João 14:6) leva à morte espiritual e física, assim como "cortar" a energia de uma lâmpada "mata" a luz. É por isso que São Nicolau de Zica ensina que no Éden "não havia nenhum traço de doença ou morte, pois não havia sequer um pensamento de pecado". (Prólogo de Ochrid, 28 de novembro, Contemplação) Além disso, São João Popovic ensina: 

"Pois o pecado escureceu, obscureceu, desfigurou a bela imagem de Deus na alma do homem primordial... Devido à estreita e direta conexão da alma com o corpo, o pecado original causou desordem no corpo de nossos primeiros pais. As consequências da queda para o corpo foram a doença, o sofrimento e a morte." (Dogmática, cap. 38)

Portanto, o ensinamento de nossos santos recentes é que o pecado original não é deliberadamente punitivo (ou seja, uma punição que é a resposta a uma transgressão), mas sim natural (ou seja, é o resultado inevitável e inescapável de uma transgressão).

O que precede é exposto na Teologia Dogmática Ortodoxa do Pe. Michael Pomazansky (d. 1988). Pomazansky é uma pedra preciosa, porque ele foi o último teólogo moderno a ter sido educado na Rússia czarista e, ao contrário de São Justino Popovic, seu livro sobre dogmática foi traduzido para o inglês (por Serafim Rose de bem-aventurada memória).

Sobre o tema do pecado original, Pomazansky afirmou sua natureza hereditária:

"[O] pecado riginal é o pecado de Adão, que foi transmitido a seus descendentes e pesa sobre eles."(Pomazansky 2007).

Ele reconheceu que a vontade humana foi fundamentalmente afetada pela Queda:

Depois de sua primeira queda, o próprio homem se afastou de Deus em alma e se tornou não-receptivo à graça de Deus que se lhe abriu; deixou de ouvir a voz divina que lhe era dirigida, o que levou a um maior aprofundamento do pecado nele... Assim, o pecado original é entendido pela teologia Ortodoxa como uma inclinação pecaminosa que entrou na humanidade e se tornou a doença espiritual da mesma. (Pomazansky 2007)

 O comer da fruta foi apenas o início do desvio moral, o primeiro impulso; mas foi tão venenoso e ruinoso que já era impossível retornar à santidade e retidão anteriores. Pelo contrário, revelou-se uma inclinação para viajar mais longe no caminho da apostasia em relação a Deus...o princípio do pecado entrou imediatamente no homem - "a lei do pecado" (monos tis amartias). Ele atingiu a própria natureza do homem e rapidamente começou a enraizar-se nele e a desenvolver-se... As inclinações pecaminosas no homem tomaram a posição reinante; o homem tornou-se "o servo do pecado" (Rm 6,7). Tanto a mente quanto os sentimentos se tornaram obscuros nele e, portanto, sua liberdade moral frequentemente não se inclina para o bem, mas para o mal.  (Pomazansky 2007)

Por fim, ele ensinou que esta queda moral era um correlativo da corrupção e da morte do homem. Por quê? O pecado divorcia o homem da graça de Deus (que nos mantém), Sua energeia divina (i.e., energias), que sustenta a própria vida: 

As consequências físicas da queda são doenças, trabalho pesado e morte. Estas foram o resultado natural da queda moral, do afastamento em relação à comunhão com Deus, da separação do homem em relação a Deus. O homem ficou sujeito aos elementos corruptos do mundo, nos quais a dissolução e a morte são ativas. A alimentação a partir da Fonte da Vida e da constante renovação de todos os poderes se tornou fraca nos homens... Com o pecado, a morte entrou na raça humana. O homem foi criado imortal em sua alma, e poderia ter permanecido imortal também no corpo se não tivesse caído para longe de Deus. A Sabedoria de Salomão diz: "Deus não fez a morte" (Sabedoria 1,13). (Pomazansky 2007)

Talvez o teólogo Ortodoxo vivo preeminente do mundo seja o Metropolita Hierotheos (Vlachos) de Nafpaktos. Em seu artigo sobre "A Anunciação da Virgem Maria", ele ensina sobre o pecado original. Em sua abordagem, ele afirma que o pecado original é (1) hereditário, (2) dá concupiscência à humanidade, e (3) esta concupiscência é um correlativo de corrupção/morte devido a ela cortar o homem em relação à "glória" de Deus (que ele em outro lugar no artigo chama explicitamente de "energias"):
Nenhum humano nasce liberto do pecado original. A queda de Adão e Eva e as consequências desta queda foram herdadas por toda a raça humana. Era natural que a Virgem Maria não fosse liberta do pecado original. A palavra do Apóstolo Paulo é clara: "todos pecaram e destituídos estão da glória de Deus" (Rm 3,23). Nesta passagem apostólica, ela mostra que o pecado é considerado como uma privação da glória de Deus e, além disso, que ninguém é liberto dele. Assim, a Virgem Maria nasceu com o pecado original. Quando, porém, ela foi liberta dele? A resposta a esta pergunta deve ser livre dos pontos de vista escolásticos. 
Para começar, devemos dizer que o pecado original foi a privação da glória de Deus, o afastamento em relação a Deus, a perda da comunhão com Deus. Isto também teve consequências físicas, no entanto, porque nos corpos de Adão e de Eva entrou corrupção e morte. Quando na Tradição Ortodoxa se fala em herdar o pecado original, isto não significa herdar a culpa do pecado original, mas principalmente suas consequências, que são a corrupção e a morte. Assim como quando a raiz de uma planta morre, os ramos e as folhas adoecem, assim também aconteceu com a queda de Adão. Toda a raça humana ficou doente. A corrupção e a morte que o homem herda é o clima favorável para o cultivo das paixões e desta forma o intelecto do homem é obscurecido. (Fonte)

O que precede pode parecer sensato, mas os ensinamentos de Hierotheos (Vlachos), Pomazansky, Nicolai de Zica e Justino Popovic são bíblicos e suportados pela Tradição da Igreja? 

O Ensinamento Bíblico

O ensinamento bíblico, sem elaboração excessiva, é consistente com o ensinamento Ortodoxo que acaba de ser apresentado. Nas Escrituras, podemos depreender o que precede, tomando uma interpretação consistente da Queda em Gênesis 3 e dos comentários de São Paulo sobre seus efeitos.

O Livro do Gênesis ensina que Adão e Eva foram criados sem nenhum pecado. Sabemos disso, porque foram criados à própria "imagem" de Deus (Gn 1,27) e Ele "viu tudo quanto tinha feito, e eis que era muito bom" (Gn 1,31). Esta boa criação foi "enganada" (Gn 3,12) pela serpente, ou seja, Satã, ao acreditar que a violação de um mandamento de Deus levaria à divinização. (Gn 3,4-5) Eva, após ouvir o que a Serpente tinha a dizer, "viu que aquela árvore era boa para se comer, e agradável aos olhos, e árvore desejável para dar entendimento" (Gn 3,6) pela primeira vez contemplou (ou "imaginou"/"inventou") o pecado. Ela não sabia nada sobre isso antes. Esta "imaginação" a respeito do fruto e do que ele pode fazer, como veremos no tratamento do tópico por São Máximo, o Confessor, é na realidade o momento de cascata no pecado original.

Sem qualquer descrição do que estava passando pela mente de Adão, embora presumivelmente a mesma coisa, sabemos que ele também comeu da fruta. Depois que os dois comeram, imediatamente os efeitos da queda ocorreram. Eles sentiram vergonha devido a sua nudez (Gn 3,7), o que revela a paixão do orgulho. Além disso, as mentes de Adão e Eva refletiram um estado de confusão e medo, escondendo-se de Deus quando Sua voz foi ouvida. (Gn 3,10) Isto implica que o modo de pensar deles anteriormente era estável e naturalmente inclinado à comunhão, em contraste com o medo presente de um encontro com Deus.

Depois deste ponto, as pessoas popularmente assumem que Deus "amaldiçoa" a serpente, Eva e Adão como uma "punição" literal pelas transgressões deles. Este é um salto interpretativo que devemos ter o cuidado de evitar, pois implica que Adão e Eva teriam sido imortais em seu estado decaído se Deus nunca tivesse dito a palavra de "maldição" e que, portanto, a morte é punitiva (ou seja, imposta à natureza do homem e não um resultado natural da pecaminosidade).

Em vez disso, Deus por Sua vontade permissiva permite que o homem morra para que a perversidade e a corrupção dele não se arrastem indefinidamente: "Meu espírito não permanecerá para sempre no homem, porque todo ele é carne, e a duração de sua vida será de cento e vinte anos" (Gn 6,3). Também: "Se [...] recolhesse para si o seu espírito e o seu fôlego, toda a carne juntamente expiraria, e o homem voltaria para o pó" (Jó 34:14-15). Deus está sempre sustentando a vida humana (cf. Máximo, Ambigua 22) e assim, quando Ele permite que o homem morra como resultado do pecado, Ele não é a causa da morte do homem, mas sim a pecaminosidade do homem que é. 

Afinal, Deus diz que é "por causa" [porque] (Gn 3,14, 3,17 LXX) do que foi feito, que eles são amaldiçoados. A partir disto, podemos inferir que os resultados da queda não são punitivos, mas algo que já ocorreu quando Deus fez seu julgamento em Gn 3,14-19.

Contra tal interpretação, pode-se inferir uma penalidade judicial por transgressão a partir da declaração de Deus de que Ele multiplicará as dores de Eva durante o parto ["com dor darás à luz filhos"] (Gn 3,16) Se alguém fizer uma interpretação literal desta passagem, isto fará de Deus um autor de um mal, como a dor. É verdade que as Escrituras contêm declarações literais de Deus supostamente "criando o mal" (Is 45,7). No entanto, devido à maioria das tradições interpretativas cristãs ensinando explicitamente contra tal noção, podemos, com base em boas razões, entender qualquer declaração explícita de Deus "criando" o mal como pertencente a Sua permissão de um mal. Pressupondo isto, uma compreensão figurativa das palavras de Deus para Eva faz mais sentido - Deus permite que o mal da Queda afete seu parto.

E assim, devido aos efeitos da queda trazendo confusão e corrupção, o homem é sustentado por um tempo para que ele possa se arrepender e sua morte não é impedida para que o homem não experimente a eternidade em tal estado.(1) Deus não se torna a causa direta da concupiscência do homem (inclinações pecaminosas) ou da morte - pereça este pensamento!

Portanto, a compreensão mais interpretativamente consistente do Gn 3 seria que o pecado original em si trouxe as consequências da Queda como uma lei da natureza - não uma visão escolástica como a seguinte: o pecado afetou negativamente as mentes de Adão e Eva e, em seguida, como punição, Deus acrescentou a isso a penalidade de morte. A corrupção física e intelectual são necessariamente a mesma e sua causa é idêntica.

Deus expulsou Adão e Eva do Jardim do Éden a fim de impedi-los de comer da "árvore da vida e viver eternamente". (Gn 3,22) A razão por trás disto era redentora. Ele, figurativamente, impediu que os efeitos da Queda fossem eternos, como discutido anteriormente.

O quão literal deve ser o Gn 3:22? É preciso comer de uma árvore da vida literal para viver eternamente? As Escrituras não entram em detalhes suficientes para saber se Adão e Eva precisariam realmente comer da "árvore da vida" para continuar a habitar na imortalidade. Podemos inferir a partir de Ap 22,14 que a árvore é apenas para "aqueles que cumprem Seus mandamentos". Sabemos também que ela traz a "cura das nações" daqueles que estão no céu (Ap 22,2). Talvez, a árvore da vida fosse destinada àqueles que, através da fé, arrependimento e obediência, deveriam alcançar a vida eterna no estado ressuscitado - sendo o comer do fruto uma figura do estado impassível daqueles que ressuscitaram para a salvação. Adão e Eva, no estado decaído e antes de terem uma vida inteira de arrependimento, não teriam sido elegíveis para comer desta árvore.

Em qualquer caso, tais especulações estão além de nossos propósitos aqui, mas basta dizer que, devido à morte ser uma "maldição" antes de qualquer menção à árvore, a expulsão do paraíso não pode ser entendida como punitiva. Caso contrário, Deus estaria punindo Adão e Eva com a morte duas vezes.

São Paulo reforça o entendimento anterior. Ele ensinou sucintamente que "através de um homem entrou o pecado no mundo, e a morte através do pecado" (Rm 5,12a). Portanto, a morte não é punitiva - ela é explicitamente o resultado do pecado. Da mesma forma, "a morte passou a todos os homens, porque todos pecaram" (Rm 5,12b), pois os homens morrem como resultado de serem pecaminosos, não como uma punição judicial arbitrária por algo que Adão fez.

Em outro lugar nas Escrituras, o profeta Ezequiel contradiz explicitamente uma compreensão punitiva do pecado original:

A alma que pecar, essa morrerá; o filho não levará a culpa do pai, nem o pai levará a culpa do filho. A justiça do justo ficará sobre ele e a impiedade do ímpio cairá sobre ele. (Ezequiel 18:20)

Como devemos entender que "a morte reinou desde Adão até Moisés, até sobre aqueles que não tinham pecado à semelhança da transgressão de Adão" (Rm 5,14)? A passagem afirma claramente que aqueles que não violaram a Lei mosaica ainda assim morreram por causa do pecado, apenas não de acordo "à semelhança de Adão" (ou seja, violando explicitamente um mandamento). No entanto, mesmo sem um mandamento explícito, o homem é "inescusável", pois pode perceber Deus e Sua bondade na natureza. (Rm 1,20)  

Mesmo aqueles que nunca cometeram atos evidentes de pecado (isto é, fetos/bebês e alguns santos, a Theotokos e João, o Precursor, para citar apenas dois) são concebidos "em pecado" (Sl 50:5 LXX) e exibem em graus variados uma luta contra uma forma de pensar e de querer contrária à Lei de Deus (cf. Rm 7) Isto obviamente beira o impossível de se perceber para santos sem pecado, bem como fetos e alguns bebês, mas a propensão ao pecado é hereditária e, portanto, latente em todos estes. Isto porque "pela desobediência de um só homem, muitos foram feitos pecadores" (Rm 5,19). Entendemos que "muitos" pertencem a todos, porque "pela ofensa de um só homem veio o julgamento a todos os homens, resultando na condenação" da morte (Rm 5,18a). Graças a Deus, "por um só ato de justiça veio o dom gratuito sobre todos os homens, resultando na justificação da vida"  (Rm 5,18b). 


O Ensinamento Conciliar

O pecado original apareceu frequentemente nos Concílios Ecumênicos, Pan-Ortodoxos e "locais". Podemos rever seus ensinamentos em ordem cronológica e presumir onde os concílios não nos dão mais detalhes, que eles são consistentes com o ensinamento dos santos apresentado na próxima seção.

O Concílio (local) de Cartago (aproximadamente 252 d.C.) ensinou que os bebês deveriam ser batizados mesmo que tenham "pecado em nada a não ser naquilo que procede da carne de Adão". (Pomazansky 2007) Isto porque eles "receberam o contágio da morte ancestral através...do nascimento". (Pomazansky 2007)

Um posterior Concílio (local) de Cartago (aprox. 419 d.C.) elaborou ainda mais. Este concílio é endossado pelo cânon 2 do Concílio de Trullo (ou seja, o sexto Concílio Ecumênico), conferindo a seus cânones o mais alto nível de autoridade. No cânon 110 de Cartago, ele afirma que "aquele que nega que os recém-nascidos do ventre de sua mãe devem ser batizados, ou diz que o batismo é para remissão de pecados, mas que eles não derivam de Adão nenhum pecado original...que ele seja anátema".

Mas, como funciona o pecado original de acordo com este concílio? Santo Agostinho cita a ata do concílio onde Santo Aurélio de Cartago afirma o seguinte:

O bispo Aurélio disse: "...Minha afirmação é que, embora Adão, como criado no Paraíso, seja dito que foi feito imortal no início, ele depois se tornou corruptível através da transgressão do mandamento". (Agostinho, Sobre o Pecado Original, Livro II, Cap 3)

Interessantemente, o presidente do concílio no texto acima declara explicitamente que a morte do homem (isto é, a corruptibilidade) veio "através da transgressão do mandamento". Além disso, afirma-se que Adão foi tentativamente imortal antes de pecar, o que implica que a maldição de Adão não foi punitiva, mas um reconhecimento por Deus do que tinha de fato ocorrido através da transgressão. 

Pouco mais de dez anos depois, o cânon 1 do Concílio (Ecumênico) de Éfeso condenou "as doutrinas de Celestius", que representavam os Pelagianos (isto é, um grupo herético que negava a existência do pecado original). (2) Próximo do Concílio de Cartago, é sensato que entendamos seu sentimento como consistente.

Prova disso pode ser deduzida de uma declaração passageira sobre o tópico feita por Arcadius, um legado do Papa São Celestino de Roma, durante a sessão do Concílio de 10 de julho de 431 d.C. (em seu 32º parágrafo): 

Assim como a antiga serpente se rastejou para dentro e seduziu os pensamentos bem regulados, sintonizados com Deus, da raça humana, assim ele [Nestório], tendo esquecido sua própria salvação e vida eterna e aflito pela ignorância das tradições dos pais... provocou sua própria ruína através de sua incredulidade. (Price e Graumann 2020, 379)

Como podemos ver, semelhante à exegese bíblica anteriormente dada, o estado de mente de Adão antes da queda era naturalmente "bem regulado" e "em sintonia com Deus". Após o pecado, o modo de vontade do homem caiu em confusão e concupiscência, aqui comparado com a "incredulidade" de Nestório.

Avançando rapidamente mais de mil anos, em 1642 o Sínodo (Pan-Ortodoxo) de Jassy tratou novamente do assunto. Ao endossar uma versão editada do catecismo de São Pedro Mogila, ele propagou os seguintes ensinamentos encontrados ali sobre o pecado original:
Adão tinha um perfeito conhecimento de Deus, portanto, ao conhecer Deus, ele conhecia todas as outras coisas através de Deus...[Ao pecar] ele entrou em um estado de pecado e ao ser expulso do paraíso ele se tornou sujeito à morte... no presente perdendo a perfeição de sua razão e compreensão, sua vontade tornou-se mais propensa ao mal do que ao bem. (Mogila 1898, 28)

Como podemos ver no exposto acima, o Concílio pressupõe com base na interpretação das Escrituras apresentadas aqui. Adão antes da queda não tinha paixões e confusão, ao invés disso, desfrutava do "perfeito conhecimento de Deus". A expulsão de Adão do paraíso levou-o a ser "sujeito à morte". Esta sujeição à morte está associada a uma distorção de uma vontade "perfeita" para uma vontade "má". Deve-se notar que a cronologia dada aqui, se tomada literalmente, contradiz a cronologia explícita do Gn 3 uma vez que os efeitos da queda (assim como as maldições) precedem a expulsão do Éden. Pode ser útil ver todos esses eventos como simultâneos - mas o concílio não o afirma explicitamente.

Também de acordo com a interpretação bíblica que precede, o concílio deixou claro que o pecado original é hereditário: 

Somos concebidos no ventre de nossa mãe e nascemos neste pecado [original]...o homem estava livre de todo pecado,...e [através de] Adão se tornando culpado, todos nós também, que descendemos dele, nos tornamos culpados...isto é chamado pecado original porque nenhum mortal é concebido sem esta depravação da natureza. (Mogila 1898, 29)

Como se pode ver, a humanidade é "culpada" do pecado original, não por ter herdado explicitamente a culpa da transgressão, mas sim seus efeitos ("depravação da natureza"). O concílio entra então em mais detalhes sobre o estado de vontade humana após a Queda e associa sua distorção com o advento da corruptibilidade, permitindo-nos inferir um ensinamento consistente com o que temos apresentado até agora:
A razão, enquanto o homem permanecia no estado de inocência (isto é, antes da queda) era perfeita e incorruptível e pela Queda se tornou corrupta, mas sua vontade...tornou-se mais inclinada ao mal...a vontade é miseravelmente depravada pelo pecado original. (Mogila 1898, 31)
Décadas mais tarde, o Concílio (Pan-Ortodoxo) de Jerusalém (1672 d.C.) também falou do pecado original. A questão surgiu primeiro no Decreto 6, que estabelece:
Cremos que o primeiro homem criado por Deus caiu no Paraíso, quando, ignorando o mandamento Divino, cedeu ao conselho enganoso da serpente. E como resultado, o pecado hereditário fluiu para sua posteridade; de modo que todo aquele que nasce segundo a carne carrega este fardo, e experimenta os seus frutos neste mundo presente. Mas por estes frutos e este fardo não entendemos o pecado [atual], como impiedade, blasfêmia, assassinato, sodomia, adultério, fornicação, inimizade e o que quer que seja por nossa escolha depravada cometido contrariamente à vontade divina, não por natureza. Pois muitos dos antepassados e dos profetas, e um grande número de outros, bem como aqueles sob a sombra [da Lei], bem como sob a verdade [do Evangelho], como o divino Precursor, e especialmente a Mãe de Deus a Palavra, a sempre-virgem Maria, não experimentaram estes [pecados], ou faltas semelhantes. Mas apenas o que a Justiça Divina infligiu ao homem como punição pela transgressão [original], como suores no trabalho, aflições, enfermidades corporais, dores no parto e, enfim, enquanto em nossa peregrinação, viver uma vida laboriosa e, por fim, a morte corporal. (Bratcher 2018) (Nota: Todas as citações do concílio são da mesma fonte).

Este Decreto invoca a inexistência de pecado de João, o Precursor, e da Theotokos, mas ainda os coloca sob a "punição" do pecado original. A punição é descrita como a morte corporal e as paixões irrepreensíveis. O Decreto aparentemente contradiz Jassy na medida em que não comenta a prevalência da concupiscência na mente humana desde a Queda. Em vez disso, ele parece negar sua existência. No entanto, outros decretos detalham mais esta questão. 

Primeiro, é preciso entender o que o concílio quer dizer por "frutos". O Decreto 13 nos permite chegar a uma definição. O decreto afirma que o concílio "considera as obras não como testemunhas que certificam nosso chamado, mas como frutos em si mesmas, através dos quais a fé se torna eficaz".  Portanto, os frutos são aqui definidos não como mera evidência de algo existente, mas como uma manifestação de uma realidade interior. Assim, os frutos da fé são boas obras, porque a fé é eficaz através de uma cooperação da vontade humana com a vontade de Deus: "a fé que está em nós, justifica através das obras, com Cristo". (Decreto 13) Os frutos são redentores, no Decreto 13, porque são a experiência da fé e da salvação.

Portanto, podemos entender o significado de "frutos" no Decreto 6 como tendo este significado: não experimentamos o pecado original atual de Adão (ou os pecados de qualquer outra pessoa), mas manifestamos a realidade interior de Adão que existiu após a transgressão. Não estamos literalmente programados para cometer qualquer pecado, pois nossa natureza não é totalmente depravada. No entanto, experimentamos a realidade interior que causa a livre escolha de cometer esses pecados. Portanto, o que vemos no Decreto 6, corretamente compreendido, é coerente com Jassy.

Tal interpretação é apresentada em outra parte do concílio. O Decreto 14 estabelece:

Cremos que o homem, ao cair pela transgressão [original], tornou-se comparável e similar aos animais; isto é, foi totalmente arruinado, e caiu de sua perfeição e impassibilidade, ainda que não tenha perdido a natureza e o poder que recebeu do Deus supremamente bom. Pois de outra forma ele não seria racional, e consequentemente não seria um humano. Portanto [ele ainda tem] a mesma natureza na qual foi criado, e o mesmo poder de sua natureza, que é o livre arbítrio, a vida e operação, de modo que ele é por natureza capaz de escolher e fazer o que é bom, e evitar e odiar o que é mau... Consequentemente, ele não é capaz por si mesmo de fazer qualquer obra digna de uma vida cristã, embora ele tenha em seu próprio poder o querer, ou não o querer, de cooperar com a graça.

Em linguagem semelhante à de Jassy, o homem antes da Queda é considerado "perfeito". No entanto, a humanidade perdeu esta perfeição através do pecado de forma que agora [o homem] poderia ser comparado a "animais". Isto não ocorreu tão completamente que a racionalidade humana tenha sido perdida, tornando assim a humanidade totalmente depravada. "Consequentemente", o homem pode querer tanto o bem quanto o mal, mas no entanto é incapaz de "fazer qualquer obra digna de uma vida cristã" sem um renascimento espiritual no batismo.  (O Decreto 16 declara: "Batismo é necessário mesmo para as crianças, pois elas também estão sujeitas ao pecado original, e sem o Batismo não podem obter sua remissão"). Assim, o pecado original colocou o homem num estado de não-escapatória da pena da morte (cf Rm 6,23) e concupiscência, embora a humanidade não tenha perdido completamente o que é natural e bom nela.

Nosso último documento (possivelmente) Pan-Ortodoxo de peso sobre esta questão é o Catecismo Mais Longo de São Filareto de Moscou. Traduzido em várias línguas e propagado em vários seminários e bibliotecas do mundo Ortodoxo nos anos 1800, é junto com o Concílio de Jassy nosso catecismo de mais alto nível com aceitação por toda a Igreja. Durante sua época, foi descrito por Philip Schaff como "o padrão doutrinário mais autoritativo da Igreja Ortodoxa Græco-Russa" e ele observou que o mesmo "praticamente substituiu o antigo Catecismo, ou a Confissão Ortodoxa de Mogila [isto é, o Concílio de Jassy]".

Ao lidar com este tópico na Questão 158, São Filareto escreveu que Adão e Eva caíram devido ao engano:

O diabo enganou Eva e Adão, e os induziu a transgredir o mandamento de Deus. (Drozdov n.d.) (3)

Em concordância com nossa análise, que a morte é o resultado natural (e não punitivo) do pecado original, Filareto escreveu na Questão 160 que a desobediência trouxe a morte ao homem:

Porque envolveu desobediência à vontade de Deus, e assim separou o homem em relação a Deus e Sua graça, e o afastou da vida de Deus.

Poder-se-ia pensar que quando o homem se afasta da vida de Deus, ele causa sua própria morte por permissão de Deus. No entanto, Filareto também concorda que o homem foi criado com uma vontade predisposta à comunhão com Deus:

Deus, segundo Sua infinita bondade, na criação do homem, deu-lhe uma vontade naturalmente disposta a amar a Deus, mas ainda livre; e o homem usou esta liberdade para o mal. (Questão 162)

Qual é a morte que veio a partir do pecado de Adão? É dupla: corporal, quando o corpo perde a alma que o vivifica; e espiritual, quando a alma perde a graça de Deus, que a vivifica com a vida superior e espiritual. (Questão 166)
Filareto também afirma a natureza hereditária do pecado original:
Porque todos vieram de Adão desde a infecção dele pelo pecado, e todos pecam por si mesmos. Assim como a partir de uma fonte infectada flui naturalmente um fluxo de água infectada, da mesma forma a partir um pai infectado com pecado e, consequentemente, mortal, naturalmente procede uma posteridade infectada como ele com pecado, e como ele mortal. (Questão 168) 

Por último, vale a pena discutir uma declaração passageira feita na Encíclica dos Patriarcas Orientais, em 1848. Este documento foi aprovado pelos bispos de Constantinopla, Alexandria, Antioquia e Jerusalém e pela maioria de seus sínodos. Deve-se notar que durante esta época, jurisdições como Bulgária, Romênia e Sérvia estavam tecnicamente sob Constantinopla. (4) Além disso, desde então foi citado como um documento autoritativo pelo Patriarcado de Moscou, o que de fato dá ao documento aceitação universal. (Patriarcado de Moscou 2013) A Encíclica simplesmente afirma que Satã enganou Adão misturando verdade com erro: 

O príncipe do mal, esse inimigo espiritual da salvação do homem, como outrora no Éden, assumindo com astúcia o pretexto de conselho vantajoso, ele fez o homem se tornar um transgressor do mandamento divinamente inspirado. Assim, no Éden espiritual, a Igreja de Deus, de tempos em tempos ele tem iludido muitos; e, misturando as drogas deletérias de heresia com as límpidas correntes da doutrina ortodoxa.

O Ensinamento Patrístico

Alguém pode se opor à abordagem do tópico dada até agora, com o argumento de que se trata de uma interpretação privada da evidência bíblica e conciliar. Deixamos o ensinamento específico dos Pais fora dos documentos conciliares por último em nossa abordagem, porque ele é de longe o mais profundo. Por uma questão de brevidade, teremos que sacrificar a simplicidade na abordagem desses Pais pela especificidade para que possamos "preencher as lacunas" do que não foi esclarecido nos próprios Concílios.

Pode ser que ajude a começar com um de nossos primeiros exegetas bíblicos, São Justino Mártir, porque ele nos fornece uma sinopse simples do pecado original. Ele ensina:
Eles [Adão e Eva] foram feitos livres do sofrimento e morte [impassíveis e imortais], como Deus, desde que eles guardassem Seus mandamentos, e fossem considerados merecedores do nome de Seus filhos. (São Justino Mártir, Diálogo com Trifão, cap. 124) (5)

Adão e Eva foram feitos perfeitos, livres do sofrimento e morte. No entanto, isto era condicionado à obediência a Deus. A desobediência levou à morte como uma "punição":

Pois Deus, desejando que tanto os anjos como os homens, que eram dotados de livre arbítrio, e à disposição deles, fizessem o que Ele tinha fortalecido cada um para fazer, fez com que, se eles escolhessem as coisas aceitáveis para Ele, Ele os manteria livres da morte e da punição; mas que, se eles fizessem o mal, Ele puniria cada um como Lhe aprouvesse. (Diálogo com Trifão, cap. 88)

Lendo os santos consistentemente uns com os outros, ficamos inclinados a ir além do que aconteceu, como nos diz Justino, e nos aventurar no porquê disso ter acontecido. São Gregório de Nissa nos dá uma resposta mais completa, mas densa. Ele escreve no capítulo 8 do Grande Catecismo:

Esta sujeição à morte [a condição mortal], então, retirada da criação bruta, passou, provisoriamente, a encobrir a natureza criada para a imortalidade. Ela a envolveu externamente, mas não internamente. Ela abraçou a parte sensível do homem; mas não tocou a imagem divina. Esta parte sensível, porém, não desaparece, mas é dissolvida. 

Em outras palavras, o homem é naturalmente imortal, mas "provisoriamente" a morte e a corrupção ("dissolução") têm surtido efeito desde o pecado original. A natureza humana não se perdeu completamente, pois a morte não "tocou a imagem divina" no homem. A morte ocorre "externamente" (isto é, para o corpo físico), mas não "internamente" (isto é, para a alma), pois a alma é imortal e não está sujeita à corrupção física. Como a morte se instalou? Gregório continua no mesmo capítulo:

Agora a causa desta dissolução é evidente... uma vez que tanto a alma quanto o corpo têm um laço comum de comunhão em sua participação dos afetos pecaminosos, há também uma analogia entre a morte da alma e a morte do corpo. Pois, assim como em relação à carne pronunciamos a separação da vida sensível como morte, assim em relação à alma chamamos de morte a separação da vida real. Embora, como já dissemos antes, a participação no mal observável tanto na alma quanto no corpo é de um mesmo caráter, pois é através de ambos que o princípio do mal avança em sua operação real, a morte por dissolução que veio daquelas vestes de peles mortas não afeta a alma.

Agora o sabemos, em poucas palavras pode-se resumir o pensamento de Gregório, a conexão entre a morte e o pecado. "A participação no mal observável tanto na alma quanto no corpo é de um mesmo caráter" e afeta tanto a alma quanto o corpo, mas só leva à corrupção e à morte do corpo - não da alma. A alma, à parte da graça de Cristo, ainda sofre mesmo assim de "uma condição de doença da vontade". (Contra Eunômio, Livro II, cap. 12) Tanto o corpo quanto a alma sofrem com o pecado, embora de forma diferente. 

Claramente, Gregório não viu a morte como punitiva, mas sim como uma consequência natural do desligar-se em relação à graça vivificante de Deus. Em suas próprias palavras:

A humanidade uma vez revoltada através da maldade do inimigo, e, levada à escravidão do pecado, também foi alienada da verdadeira Vida. (Contra Eunômio, Livro II, cap. 12)

Embora Gregório seja reconhecidamente difícil de ser entendido, São João de Damasco ilustra este conceito para nós de forma mais simples. Ao depreender o que Deus quis dizer quando disse: "De toda a árvore do jardim comerás livremente" (Gn 2,16), Damasceno especula que Deus quis dizer o seguinte:

Através de todas as Minhas criaturas tu deves ascender a Mim teu criador, e de todos os frutos tu deves colher um, isto é, Eu mesmo, a verdadeira vida: que cada coisa produza para ti o fruto da vida, e que a participação em Mim seja o suporte de teu próprio ser. Pois desta forma serás imortal. Mas da árvore do conhecimento do bem e do mal, não comereis dela, porque no dia em que dela comerdes certamente morrereis. Pois o alimento sensível é, por natureza, para a reposição daquilo que gradualmente se esgota e passa para ser eliminado e perece; e não pode permanecer incorruptível quem participa do alimento sensível. (Exposição da Fé Ortodoxa, Livro II, Capítulo 11)

Portanto, a obediência a Deus significava vida imortal porque Adão era literalmente alimentado pela própria graça de Deus através da participação em Suas energias divinas. A desobediência, representada pela busca de viver por alimento material no lugar de habitar [ser mantido por] em Deus, leva à morte. Em outro lugar, o Damasceno afirma isso de forma mais sucinta:
Ele [Adão] transgrediu o mandamento de seu Criador e tornou-se sujeito à morte e à corrupção. (Exposição da Fé Ortodoxa, Livro IV, cap. 13)

São João de Damasco provavelmente baseou seus ensinamentos em São Máximo, o Confessor. Sobre este tópico, Máximo escreve sucintamente:

Se ao invés de sua esposa ele tivesse confiado em Deus, e se alimentado da árvore da vida, ele não teria perdido o dom da imortalidade, que é mantido perpetuamente através da participação na vida [isto é, obediência a Deus]... o primeiro homem caiu para longe da vida divina, e embarcou numa vida diferente que gera a morte, uma vida na qual ele adquiriu para si mesmo uma forma irracional. (Ambigua a João, 10:60) (6)

Toda a humanidade morre porque o homem manifesta esta pecaminosidade de Adão: 

Da mesma forma, mas no caso do que é contrário, os sábios dão os nomes de "perdição", "Hades", "filhos da perdição", e afins, àqueles que por sua disposição se colocaram em um rumo à não-existência, e que por seu modo de vida se reduziram virtualmente ao nada. (Ambigua a João, 20:2)

Este "rumo à não-existência" é embarcado porque um distanciamento intencional de si mesmo em relação a Deus "voluntariamente" traz dissolução. (Ambigua a João, 7:11) Isto porque é um desvio intencional que se afasta dAquele que "quis dar-Se a Si mesmo, sem impureza, a eles de maneira proporcional a todos e a cada um, concedendo a cada um o poder de existir e de permanecer na existência". (Ambigua a João, 35:2)

Tendo agora tratado da corrupção do corpo e sua conexão com a desobediência da humanidade, voltemos à vontade humana caída e "doente". A vontade humana ainda é, por natureza, humana, pois não perdeu sua "Imagem divina". No entanto, ela foi radicalmente distorcida pela Queda. Para entender isto, é útil em poucas palavras depreender como era a vontade humana pré-Queda, de acordo com os Pais. Há um consenso inicial surpreendentemente sobre este ponto.

São Justino Mártir, como abordado anteriormente, ensinou que Adão e Eva "foram dotados de livre arbítrio... para fazer o que Ele tinha fortalecido cada um para fazer". O foco mental deles tinha um senso de clareza, naturalmente inclinados a fazer as coisas de Deus e assim viver eternamente. Santo Irineu ensinou que Adão era "livre e autocontrolado". (Demonstração da Pregação Apostólica, Par 11) São Teófilo de Antioquia concordou: "Pois Deus fez o homem livre, e com poder sobre si mesmo". (Para Autolycus, Livro II, Cap 27) Este estado de vontade fez Adão "adaptado à recepção da virtude". (São Clemente de Alexandria, Stromata, Livro VI, cap. 12) Pais posteriores como São Gregório de Nissa (cf. Sobre a Criação do Homem, cap. 27) e São Máximo (cf. Ambigua a João, 45:3) concordam que o homem "não estava sujeito a" e estava "desprovido" do que ambos chamam de "fluxo". Em outras palavras, ao contrário do homem pós-Queda que tem uma insegurança constante do que é certo ou errado, o homem pré-lapsariano (pré-Queda) não tinha isso.

É por isso que todos os Pais são enfáticos que Adão e Eva foram enganados, (7) pois não podiam desafiar intencionalmente a Deus e fazer o mal no estado pré-lapsariano. Santo Irineu ensina isto explicitamente:

Não lhes era possível conceber e compreender nada daquilo que por maldade através de luxúrias e desejos vergonhosos nasce na alma. Pois naquela época eles estavam inteiros, preservando sua própria natureza; uma vez que tinham o sopro da vida que foi soprado na sua criação: e, enquanto este sopro permanece em seu lugar e poder, ele não tem compreensão e entendimento das coisas que são ignóbeis. (Demonstração da Pregação Apostólica, Par 14)

A citação anterior vincula ( não intencionalmente) as causas da Queda física e espiritual. Fisicamente, estar separado da graça de Deus através da desobediência leva à morte porque nossas próprias vidas são sustentadas pela graça de Deus continuamente. Da mesma forma, a natureza humana à parte do pecado "enquanto este sopro [isto é, o Espírito de Deus] permanece em seu lugar e poder" permite nenhuma "compreensão e entendimento das coisas que são ignóbeis". Afastando-se da graça de Deus e rejeitando este "sopro", o homem pode então participar de um modo decaído de vontade. 

A maneira como Satã realizou este engano não foi a mesma como somos frequentemente enganados hoje em dia. Somos "interiormente" atacados por Satanás devido a nossa concupiscência. Aqueles sem pecado original, portanto, só podem ser atacados "externamente". Vários Pais e mesmo teólogos posteriores ensinaram isto. (8) Da mesma forma, São João de Damasco ensinou a mesma ideia:

O maligno, então, fez seu ataque [a Jesus] a partir do exterior, não por pensamentos impelidos interiormente, assim como foi com Adão. Pois não foi por pensamentos internos, mas pela serpente, que Adão foi atacado. Mas o Senhor repeliu o ataque e o dissipou como vapor, a fim de que as paixões que o atacaram e sobre as quais ele triunfou pudessem ser facilmente subjugadas por nós, e que o novo Adão salvasse o velho. (Exposição da Fé Ortodoxa, Livro III, Par 20)

Como podemos ver, o ataque externo, se aceito, torna-se internalizado e leva à Queda propriamente dita. De fato, segundo São Máximo, isto é precisamente o que Satã estava tentando realizar quando tentou Jesus:

Eles [os demônios], portanto, O atacaram, esperando que pudessem prevalecer até mesmo sobre Ele, através de Sua passividade natural, e formar uma imagem em Sua mente de uma paixão não-natural e agir sobre ela como o fariam. (Questões de Talasius, 21.4) (9) 

A questão da imaginação e sua conexão com o pecado é invocada em outro lugar nas Questões de Talasius:

O movimento do intelecto que dá forma às paixões, e que molda belas imagens que dão prazer aos sentidos. Pois nenhuma paixão jamais surgiria sem a capacidade conceitual do intelecto de moldar tais formas. (Questões de Talasius, 65.7) 

Os perigos da imaginação são profundos, e é por isso que São João da Escada proíbe seu uso durante a oração. (cf Escada da Ascensão Divina, Degrau 28, Par 42) O recente estudo Ortodoxo do Pe. Joshua Schooping também abordou precisamente este tópico tanto em Máximo como em São Nicodemos da Santa Montanha. (Schooping 2020, 21-22) De acordo com São Máximo, a imaginação pertence, em última análise, a toda a percepção sensorial prazerosa, que é pecaminosa porque nos afasta da vida desapaixonada de Deus: 

Em cada paixão ela governa naturalmente e conduz o órgão correspondente da percepção sensorial, pois sem um substrato para atrair os poderes da alma para ele por meio de uma sensação, nenhuma paixão jamais poderia vir a existir. (Questões de Talasius, 50.11)

Em linguagem simples, uma paixão precisa agir sobre a "sensação" para que ela exista. Um ataque externo de paixão, como o de Adão ou Jesus, não teria tido tal sensação associada a ele - razão pela qual teria sido necessária imaginação para que o ataque demoníaco se tornasse uma paixão interior. (10) Máximo escreve em outro lugar:

O prazer e a dor, diz ele, não foram criados juntamente com a natureza da carne. Ao invés disso, a transgressão concebeu tanto o primeiro, resultando na corrupção da livre escolha, quanto o segundo, resultando na condenação e dissolução da natureza, de modo que o prazer provocaria a morte voluntária da alma através do pecado. (Questões de Talasius, 61, Escólio 1)

Como podemos ver, a contemplação do prazer corrompeu o perfeito livre arbítrio de Adão e Eva e, ao fazê-lo, este modo voluntário de vontade (em outro lugar chamado "vontade gnômica" por Máximo) permite "a morte corporal pelo pecado". Ao fazer isso, toda a humanidade originada em Adão foi mergulhada em um "oceano caótico e barulhento de apegos materiais... submerso em tentações... e subjugado pelo grande peso do mal que exerce pressão sobre seu poder da razão". (Questões de Talasius, 64:6) Nosso descanso desta aflição provém da graça de Deus. A graça nos dá "completa inatividade das paixões e a cessação universal do movimento do intelecto em torno das realidades criadas" permitindo "a passagem perfeita em direção ao divino". (Questões de Talasius, 65:20) 

Como já mostramos de passagem, os Pais são claros de que o pecado original é hereditário. De fato, eles são tão claros, que identificam que ele se espalha especificamente através das relações sexuais:

Todos estes e outras afeições semelhantes entraram na composição do homem por causa do modo de geração animal. (Gregório de Nissa, On the Making of Man, Cap 18, Par 2)

Todo aquele que nasce de relações sexuais é, de fato, carne pecaminosa, já que só aquela que não nasceu de tais relações não era carne pecaminosa (Agostinho, Sobre Casamento e Concupiscência, Livro I, cap. 13).

Se a natureza humana, no primeiro homem, não tivesse pecado, a multiplicação da raça humana teria procedido não através da união dos corpos, que é a punição do pecado, mas de forma milagrosa e divina, sem a contaminação de qualquer semente. (Máximo, Questões de Talasius, 21, Escólio 4)

Em resumo, a partir do exposto anteriormente, pode-se depreender que os Pais responderam a todas as nossas questões importantes sobre como ocorre o pecado original, o que ele fez a Adão e ao homem, e como ele é propagado.

Conclusão

Pode-se ver que a Ortodoxia tem um ensino claramente bíblico e historicamente delineado sobre o pecado original. As ramificações completas disto nós deixaremos para outros trabalharem, apesar de serem importantes. Como Pomazansky (2007) aponta:
A doutrina do pecado original tem grande significado na visão de mundo cristã, porque sobre ela repousa toda uma série de outros dogmas.
Por isso, iremos oferecer alguns comentários menores, mas nada de grande importância.

Primeiro, os Ortodoxos são semelhantes ao resto da Cristandade em ter uma doutrina do pecado original e afirmar todos os mesmos princípios básicos. Cremos que é herdado e que afeta o corpo humano e a mente.

Segundo, ao expor a doutrina, podemos também identificar claramente onde a Ortodoxia difere em relação às denominações heterodoxas. Por exemplo, uma visão "agostiniana", onde o homem herda a culpa literal de Adão, é rejeitada. (11) Uma visão calvinista da depravação total é igualmente rejeitada, pois é inconsistente com a visão Ortodoxa da natureza humana.

A diferença mais clara da Ortodoxia entre nós e os heterodoxos é que afirmamos uma conexão real entre a Queda na concupiscência e a morte corporal. Isto porque a Ortodoxia afirma uma distinção energia-essência e assim afirma que a vida humana é mantida literalmente nas energias de Deus. O pecado original divorcia o homem dessas energias, levando ao seu declínio moral e físico.

Se devemos partir do princípio deste dogma Ortodoxo essencial, outras doutrinas, como a Imaculada Conceição, tal como entendida pelos Católicos Romanos, tornam-se insustentáveis. No que diz respeito à Imaculada Conceição, porque a Theotokos experimentou a morte corporal, então deve-se inevitavelmente concluir que ela tinha pecado original.

E assim, com uma compreensão aprofundada do pecado original, podemos entender melhor onde ambos concordamos e discordamos dos outros, com a esperança de que aqueles que estão desprovidos dos ensinamentos Ortodoxos irão corrigir suas opiniões em conformidade.

Craig Truglia, 
The Orthodox Doctrine of Original Sin: A Comprehensive Treatment

Notas finais:

1. Pomazansky (2007) cita longamente São Cirilo de Alexandria sobre este exato ponto.

2. O Concílio de Éfeso não teve cânones propriamente, mas durante o reinado de São Justiniano os ensinamentos ad verbatim do Concílio foram colocados em forma de cânones e propagados como cânones.

3. Todas as referências adicionais a este catecismo são identificadas por seu número de questão e derivam da mesma fonte.

4. A situação da Sérvia como Patriarcado estava evoluindo rapidamente, separando-se literalmente de Constantinopla durante o mesmo mês em que a Encíclica dos Patriarcas Orientais foi escrita.

5. Quaisquer citações de textos da Igreja antiga identificados por simples nome de livro e parágrafo são da coleção de NewAdvent.org dos primeiros Pais e documentos da Igreja.

6. As citações de Ambigua são todas de (Contas 2014) .

7. Isto pode obviamente ter seu próprio artigo, mas para citar algumas passagens de Irineu, Demonstração de Pregação Apostólica, Par 12 e Contra Heresias, Livro III, Cap 23, Par 5 tocam no assunto.

8. Santo Agostinho (Sobre a Trindade, Livro IV, Par 17) e São Gregório o Grande (Homilias do Evangelho 16 [comentários sobre Mat 4,10-11]; Moralia sobre Jó, Livro III, Par 30). Isso recebeu recentemente um tratamento acadêmico do Dr. Benjamin Heidgerken. (Heidgerken 2015)

9. As questões das citações de Talasius são de (Constas 2018).

10. No caso de Jesus Cristo, Ele estava sendo tentado não simplesmente a ter fome, o que Ele já estava, mas a ter fome de comida em vez de Deus. Jesus Cristo, como Adão antes da Queda, não tinha propensão para isso e assim teria que ser imaginado (ou seja, tinha que ser inventado por completo).

11. Os Católicos Romanos não dogmatizaram a visão "agostiniana" da culpa herdada e, na realidade, a rejeitaram em grande parte. O Catecismo Católico Romano rejeita explicitamente a noção. (cf. CCC 404-405) Uma fonte rejeita de forma convincente que Agostinho acreditava na culpa herdada, embora isto colocaria em questão uma leitura direta da Carta 98.

Obras Citadas

Bratcher, Dennis. 2018. The Confession of Dositheus (Eastern Orthodox, 1672). Acessado em 7 de Outubro, 2020. http://www.crivoice.org/creeddositheus.html.

Constas, Maximos. 2018. On Difficulties in Sacred Scripture: The Responses to Thalassios. Washington, DC: The Catholic University of America Press .

Contas, Nicholas. 2014. On the Difficulties in the Church Fathers: The Ambigua Volumes I and II. Cambridge: Harvard University Press.

Drozdov, Philaret. n.d. The Longer Catechism of The Orthodox, Catholic, Eastern Church. Acessado em 8 de Outubro, 2020. http://www.pravoslavieto.com/docs/eng/Orthodox_Catechism_of_Philaret.htm.

Heidgerken, Benjamin. 2015. “The Christ and the Tempter: Christ’s Temptation by the Devil in the Thought of St. Maximus the Confessor and St. Thomas Aquinas.” Electronic Thesis or Dissertation. Dayton, Ohio: University of Dayton.

Mogila, Peter. 1898. The Orthodox Confession of the Catholic and Apostolic Eastern Church. London: Thomas Baker, Soho Square.

Moscow Patriarchate. 2013. Position of the Moscow Patriarchate on the problem of primacy in the Universal Church. Acessado em 23 de Novembro. https://mospat.ru/en/2013/12/26/news96344/.

Pomazansky, Michael. 2007. Orthodox dogmatic theology. Acessado em 7 de Outubro, 2020. http://www.intratext.com/IXT/ENG0824/_P1J.HTM.

Price, Richard, and Thomas Graumann. 2020. The Council of Ephesus: Documents and Proceedings. Croydon: Liverpool University Press.

Schaff, Philip. n.d. III. THE LONGER CATECHISM OF THE ORTHODOX, CATHOLIC, EASTERN CHURCH. Acessado em 8 de Outubro. https://www.ccel.org/ccel/schaff/creeds2.vi.iii.html.

Schooping, Joshua. 2020. A MANUAL OF THEOSIS: Orthodox Christian Instruction on the Theory and Practice of Stillness, Watchfulness, and Ceaseless Prayer. Olyphant, PA: Saint Theophan the Recluse Press.

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