terça-feira, 10 de julho de 2018

A diferença entre a espiritualidade Ortodoxa e outras tradições (Metropolita Hierotheos de Nafpaktos)

A espiritualidade ortodoxa difere distintamente de qualquer outra "espiritualidade" de tipo oriental ou ocidental. Não pode haver confusão entre as várias espiritualidades, porque a espiritualidade ortodoxa é centrada em Deus, enquanto todas as outras são centradas no homem.

A diferença aparece principalmente no ensino doutrinário. Por essa razão, colocamos "Ortodoxa" depois da palavra "Igreja", de modo a distingui-la de qualquer outra religião. Certamente "Ortodoxa" deve estar ligado ao termo "Eclesiástico", já que a Ortodoxia não pode existir fora da Igreja; nem, é claro, a Igreja pode existir fora da Ortodoxia.

Os dogmas são resultados de decisões tomadas nos Concílios Ecumênicos sobre vários assuntos de fé. Os dogmas são referidos como tais, porque traçam as fronteiras entre a verdade e o erro, entre a doença e a saúde. Dogmas expressam a verdade revelada. Eles formulam a vida da Igreja. Assim, eles são, por um lado, a expressão da Revelação e, por outro, os "remédios", para nos levar à comunhão com Deus; a nossa razão de ser.

Diferenças dogmáticas refletem diferenças correspondentes na terapia. Se uma pessoa não seguir o "caminho certo", ele nunca poderá alcançar seu destino. Se ele não toma os "remédios" apropriados, ele não pode adquirir saúde; em outras palavras, ele não experimentará benefícios terapêuticos. Novamente, se compararmos a espiritualidade Ortodoxa com outras tradições cristãs, a diferença de abordagem e método de terapia é evidente.

Um ensinamento fundamental dos Santos Padres é que a Igreja é um "Hospital" que cura o homem ferido. Em muitas passagens da Sagrada Escritura, essa linguagem é usada. Uma dessas passagens é a da parábola do Bom Samaritano: "Mas um samaritano que ia de viagem chegou ao pé dele e, vendo-o, moveu-se de íntima compaixão. E, aproximando-se, atou-lhe as feridas, aplicando-lhes azeite e vinho; e, pondo-o sobre a sua cavalgadura, levou-o para uma estalagem e cuidou dele; E, partindo ao outro dia, tirou dois dinheiros, e deu-os ao hospedeiro, e disse-lhe: Cuida dele, e tudo o que de mais gastares eu to pagarei, quando voltar'"(Lucas 10: 33-35).

Nesta parábola, o samaritano representa Cristo, que curou o homem ferido e o levou para a Hospedaria, que é o "Hospital" que é a Igreja. É evidente aqui que Cristo é apresentado como o curador, o médico que cura as doenças do homem; e a Igreja como o verdadeiro hospital. É muito característico que São João Crisóstomo, analisando esta parábola, apresente estas verdades enfatizadas acima.

A vida do homem "no Paraíso" foi reduzida a uma vida governada pelo diabo e suas artimanhas. "E caiu entre ladrões", isto é, nas mãos do diabo e de todos os poderes hostis. As feridas sofridas pelo homem são os vários pecados, como diz o profeta Davi: "minhas feridas se tornam imundas e se deterioram por causa de minha tolice" (Salmo 37). Pois "todo pecado causa uma injúria e uma ferida". O Samaritano é o próprio Cristo que desceu à terra do céu para curar o homem ferido. Ele usou óleo e vinho para "tratar" as feridas; em outras palavras, "misturando Seu sangue com o Espírito Santo, ele trouxe o homem à vida". De acordo com outra interpretação, o óleo corresponde à palavra consoladora e vinho à palavra rigorosa. Misturados juntos, eles têm o poder de unificar a mente dispersa. "Ele o colocou em Sua cavalgadura", isto é, Ele assumiu a carne humana sobre "os ombros" de Sua divindade e ascendeu encarnado ao Pai Celestial.

Então o Bom Samaritano, ou seja, Cristo, levou o homem para a grande, maravilhosa e espaçosa hospedaria - para a Igreja. E entregou o homem ao estalajadeiro, que é o apóstolo Paulo, e através do apóstolo Paulo a todos os bispos e sacerdotes, dizendo: "Cuide do povo gentio, que eu entreguei a vocês na Igreja. Eles sofrem doenças causadas pelo pecado, assim, cure-os, usando como remédios as palavras dos Profetas e o ensino do Evangelho; torne-os saudáveis através das admoestações e consolações do Antigo e do Novo Testamento. " Assim, de acordo com São Crisóstomo, Paulo é aquele que mantém as Igrejas de Deus, "curando todas as pessoas por suas admoestações espirituais e oferecendo a cada uma delas o que elas realmente precisam".

Na interpretação desta parábola de São João Crisóstomo, mostra-se claramente que a Igreja é um hospital que cura pessoas feridas pelo pecado; e os bispos e sacerdotes são os terapeutas do povo de Deus.


E este é precisamente o trabalho da teologia ortodoxa. Quando nos referimos à teologia ortodoxa, não nos referimos simplesmente a uma história da teologia. A história da teologia é, naturalmente, uma parte dela, mas não absoluta ou exclusivamente. Na tradição patrística, os teólogos são os videntes de Deus [God-seers]. São Gregório Palamas chama Barlaão [que tentou trazer a teologia escolástica ocidental para a Igreja Ortodoxa] um "teólogo", mas ele enfatiza claramente que a teologia intelectual difere grandemente da experiência da visão de Deus. Segundo São Gregório Palamas, os teólogos são os videntes de Deus; aqueles que seguiram o "método" da Igreja e alcançaram a fé perfeita, a iluminação do nous e a divinização (theosis). A teologia é o fruto da cura do homem e o caminho que conduz à cura e à aquisição do conhecimento de Deus.

A teologia ocidental, no entanto, diferenciou-se da teologia ortodoxa oriental. Em vez de ser terapêutica, tem um caráter mais intelectual e emocional. No Ocidente, depois da "Renascença" carolíngia, a teologia escolástica desenvolveu-se, que é contrária à Tradição Ortodoxa. A teologia ocidental é baseada no pensamento racional, enquanto a ortodoxia é hesicástica. A teologia escolástica tentou compreender logicamente a Revelação de Deus e se conformar à metodologia filosófica. Característico de tal abordagem é o dito de Anselmo [Arcebispo de Cantuária de 1093-1109, um dos primeiros após a conquista normanda e a destruição da antiga Igreja Ortodoxa Inglesa]: "Acredito para compreender". Os escolásticos reconheceram Deus desde o início e depois se esforçaram para provar sua existência por meio de argumentos lógicos e categorias racionais. Na Igreja Ortodoxa, expressa pelos Santos Padres, a fé é Deus se revelando ao homem. Aceitamos a fé ouvindo-a não para que possamos entendê-la racionalmente, mas para que possamos purificar nossos corações, alcançar a fé por theoria [1] e experimentar a Revelação de Deus.

A teologia escolástica atingiu seu ponto culminante na pessoa de Tomás de Aquino, um santo da Igreja Católica Romana. Ele afirmou que as verdades cristãs são divididas em naturais e sobrenaturais. As verdades naturais podem ser provadas filosoficamente, como a verdade da existência de Deus. Verdades sobrenaturais - como o Deus Triúno, a encarnação do Logos, a ressurreição dos corpos - não podem ser provadas filosoficamente, mas não podem ser desaprovadas. O escolasticismo conectava muito a teologia à filosofia, ainda mais com a metafísica. Como resultado, a fé foi alterada e a própria teologia escolástica caiu em descrédito quando o "ídolo" do Ocidente - a metafísica - entrou em colapso. A escolástica é responsabilizada por grande parte da trágica situação criada no Ocidente com respeito a fé e questões de fé.

Os Santos Padres ensinam que categorias naturais e metafísicas não existem, mas falam antes do criado e do incriado. Nunca os Santos Padres aceitaram a metafísica de Aristóteles. No entanto, não é minha intenção expor mais sobre isso. Teólogos do Ocidente durante a Idade Média consideravam a teologia escolástica como um desenvolvimento adicional do ensino dos Santos Padres e, a partir daí, começa o ensino dos francos de que a teologia escolástica é superior à dos Santos Padres. Consequentemente, os escolásticos, ocupados com a razão, consideram-se superiores aos Santos Padres da Igreja. Eles também acreditam que o conhecimento humano, filho da razão, é mais elevado do que a Revelação e a experiência.

É neste contexto que o conflito entre São Gregório Palamas e Barlaão deve ser visto. Barlaão era essencialmente um teólogo escolástico que tentou passar a teologia escolástica para o Oriente Ortodoxo.

Os pontos de vista de Barlaão - que não podemos realmente saber Quem é o Espírito Santo exatamente (um desdobramento é o agnosticismo), que os antigos filósofos gregos são superiores aos Profetas e Apóstolos (já que a razão está acima da visão dos apóstolos), que a luz da Transfiguração é algo que é criado e pode ser desfeita, que o modo de vida hesicástico (isto é, a purificação do coração e a incessante oração noética) não é essencial - são visões que expressam um ponto de vista escolástico e, posteriormente, secularizado da teologia. São Gregório Palamas previu o perigo que estes pontos de vista eram para a Ortodoxia e através do poder e energia do Espírito Santo e da experiência que ele próprio adquirira como sucessor dos Santos Padres, confrontou este grande perigo e preservou inalterada a Fé Ortodoxa e Tradição.

Tendo dado uma estrutura para o tópico em questão, se a espiritualidade ortodoxa é examinada em relação ao catolicismo romano e ao protestantismo, as diferenças são imediatamente descobertas.

Os protestantes não possuem uma tradição de "tratamento terapêutico". Eles supõem que acreditar em Deus, intelectualmente, constitui a salvação. No entanto, a salvação não é uma questão de aceitação intelectual da verdade; antes, é a transformação e divinização da pessoa pela graça. Essa transformação é efetuada pelo "tratamento" análogo da personalidade de alguém, como será visto nos capítulos seguintes. Na Sagrada Escritura, parece que a fé vem ouvindo a Palavra e experimentando "theoria" (a visão de Deus). Aceitamos a fé a princípio ouvindo para sermos curados, e então alcançamos a fé por theoria, que salva o homem. Os protestantes, porque acreditam que a aceitação das verdades da fé - a aceitação teórica da Revelação de Deus -, isto é, a fé pela audição salva o homem - não têm uma "tradição terapêutica". Pode-se dizer que tal concepção de salvação é muito ingênua.

Os católicos romanos também não têm a perfeição da tradição terapêutica que a Igreja Ortodoxa possui. Sua doutrina do Filioque é uma manifestação da fraqueza em sua teologia para apreender a relação existente entre a pessoa e a sociedade. Eles confundem as propriedades pessoais: o "não-gerado" do Pai, o "gerado" do Filho, e a processão do Espírito Santo. O Pai é a causa da "geração" do Filho e da processão do Espírito Santo.

A fraqueza dos latinos em compreender e o fracasso em expressar o dogma da Trindade mostra a inexistência da teologia empírica. Os três discípulos de Cristo (Pedro, Tiago e João) contemplaram a glória de Cristo no monte Tabor; eles ouviram ao mesmo tempo a voz do Pai: "Este é o meu Filho amado", e viram a vinda do Espírito Santo em uma nuvem, pois, a nuvem é a presença do Espírito Santo, como diz São Gregório Palamas. Assim, os discípulos de Cristo adquiriram o conhecimento do Deus Triúno em theoria (visão de Deus) e por revelação. Foi revelado a eles que Deus é uma essência em três hipóstases.

É isso que São Simeão o Novo Teólogo ensina. Em seus poemas ele proclama repetidamente que, enquanto contempla a Luz incriada, o homem deificado adquire a Revelação de Deus, a Trindade. Estando na "theoria" (visão de Deus), os santos não confundem os atributos hipostáticos. O fato de que a tradição latina chegou ao ponto de confundir esses atributos hipostáticos e ensinar que o Espírito Santo procede do Filho também mostra a inexistência da teologia empírica deles. A tradição latina fala também da graça criada, um fato que sugere que não há experiência da graça de Deus. Pois, quando o homem obtém a experiência de Deus, ele passa a entender bem que essa graça é incriada. Sem essa experiência, não pode haver "tradição terapêutica" genuína.

E, de fato, não podemos encontrar em toda a tradição latina o equivalente ao método terapêutico da ortodoxia. Não se fala do nous; nem ele é distinguido da razão. O nous obscurecido não é tratado como uma enfermidade, nem a iluminação do nous como terapia. Muitos textos latinos amplamente divulgados são sentimentais e se exaurem em uma ética estéril. Na Igreja Ortodoxa, ao contrário, há uma grande tradição em relação a essas questões, que mostra que dentro dela existe o verdadeiro método terapêutico.

Uma fé é uma fé verdadeira na medida em que tem benefícios terapêuticos. Se é capaz de curar, então é uma fé verdadeira. Se não cura, não é uma fé verdadeira. O mesmo pode ser dito sobre a medicina: um verdadeiro cientista é o médico que sabe curar e seu método tem benefícios terapêuticos, enquanto um charlatão é incapaz de curar. O mesmo vale para os assuntos da alma. A diferença entre a ortodoxia e a tradição latina, assim como as confissões protestantes, é aparente principalmente no método da terapia. Essa diferença é manifestada nas doutrinas de cada denominação. Os dogmas não são filosofia, nem a teologia é igual à filosofia.

Como a espiritualidade ortodoxa difere distintamente das "espiritualidades" de outras confissões, ainda mais ela difere da "espiritualidade" das religiões orientais, que não acreditam na natureza Teantrópica de Cristo e do Espírito Santo. Elas são influenciados pela dialética filosófica, que foi superada pela Revelação de Deus. Essas tradições desconhecem a noção de personalidade e, portanto, o princípio hipostático. E o amor, como ensino fundamental, está totalmente ausente. Pode-se encontrar, é claro, nessas religiões orientais, um esforço por parte de seus seguidores de despojarem-se de imagens e pensamentos racionais, mas isso é, na verdade, um movimento em direção ao nada, à inexistência. Não há caminho que conduza seus "discípulos" à theosis-divinização [2] de todo o homem.

É por isso que existe uma caótica e grande lacuna entre a espiritualidade Ortodoxa e as religiões orientais, apesar de certas semelhanças externas na terminologia. Por exemplo, as religiões orientais podem empregar termos como êxtase, desapego, iluminação, energia noética, etc., mas estão impregnadas de um conteúdo diferente dos termos correspondentes na espiritualidade Ortodoxa.

Notas 
[1] Theoria é a visão da glória de Deus. A theoria é identificada com a visão da Luz incriada, a energia incriada de Deus, com a união do homem com Deus, com a theosis do homem (veja nota abaixo). Assim, theoria, visão e theosis estão intimamente ligadas. Theoria possui vários graus. Há iluminação, visão de Deus e visão constante (por horas, dias, semanas, até meses). A oração noética é o primeiro estágio da theoria. O homem teórico é aquele que está neste estágio. Na teologia patrística, o homem teórico é caracterizado como o pastor das ovelhas.

[2] Theosis-Divinização é a participação na graça incriada de Deus. A theosis é identificada e conectada com a theoria (visão) da Luz Incriada (veja nota acima). É chamado theosis na graça porque é alcançado através da energia, da graça divina. É uma cooperação de Deus com o homem, já que Deus é Aquele que opera e o homem é aquele que coopera.

Capítulo 2 do livro Orthodox Spirituality: A brief introduction



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