sexta-feira, 3 de julho de 2020

Sobre o "neo-milenarismo": uma heresia de nossos tempos (Arcebispo Averky)

Sobre o "neo-milenarismo"
O Senhor disse: "Se alguém quiser vir após mim, negue-se a si mesmo, e tome a sua cruz, e siga-me" (Mc. 8:34).

O Grande Jejum é uma época de arrependimento; e o arrependimento é aquela luta contra as paixões e desejos pecaminosos que é tão difícil para o homem que o próprio Senhor, o próprio Juiz do competição, comparou-a com o carregar de uma cruz. Isso nos é lembrado vividamente bem no meio do Grande Jejum, no domingo da Adoração da Cruz. Assim como o Senhor carregou a Cruz para nossa salvação, assim também cada um de nós deve "carregar sua cruz" para alcançar a salvação preparada para nós pelo Senhor.

Sem a cruz, sem luta, não pode haver salvação! Isto é o que o verdadeiro cristianismo ensina. O ensinamento sobre a luta, sobre o carregar da cruz, percorre como um fio escarlate todas as Sagradas Escrituras e toda a história da Igreja; e a vida dos santos que agradaram a Deus, os atletas espirituais da piedade cristã, testemunham isso claramente. O Grande Jejum é meramente um exercício repetido anualmente do carregar nossa própria cruz nesta vida, um exercício de luta espiritual inseparavelmente conectado com toda a vida do verdadeiro cristão.

Mas agora, no século XX da era cristã, apareceram "sábios" - "neo-cristãos", como alguns deles se referem a si mesmos - que não desejam ouvir falar disso. Eles pregam um novo tipo de neo-cristianismo açucarado, sentimental, cor-de-rosa, desprovido de todo labor e luta, um amor imaginário pseudocristão abrangente e o gozo irrestrito de todas os prazeres desta vida terrena transitória.

Eles ignoram totalmente as inúmeras passagens da Sagrada Escritura que vigorosa e expressamente falam de lutas espirituais, de imitar Cristo Salvador na crucificação de si mesmo, das muitas tribulações que esperam o cristão nesta vida, começando com as palavras que o próprio Cristo Salvador dirigiu a Seus discípulos na Ceia Mística: No mundo tereis tribulação (João 16:33). E isto porque, como o próprio Senhor explicou, os verdadeiros cristãos não são do mundo (João 15:19), já que todo o mundo jaz sob o maligno (I João 5:19).

É por isso que os cristãos não devem amar este mundo e as coisas que há no mundo (I João 2:15); a amizade do mundo é inimizade contra Deus e, portanto, qualquer que quiser ser amigo do mundo constitui-se inimigo de Deus (Tiago 4:4).

Estes "homens sábios" modernos de alguma forma não conseguem perceber que a Palavra de Deus em nenhum lugar promete definitivamente aos cristãos satisfação espiritual plena e bem-aventurança paradisíaca nesta vida terrena, mas, muito pelo contrário, enfatiza que a vida na Terra se afastará cada vez mais da Lei de Deus; que, com respeito à moralidade, os homens descerão cada vez mais (veja II Tm. 3:1-5); que os que piamente querem viver em Cristo Jesus padecerão perseguições. Mas os homens maus e enganadores irão de mal para pior, enganando e sendo enganados (II Tm. 3:1213); e que, finalmente, e a terra, e as obras que nela há, se queimarão (2 Pedro 3:10).

Mas surgirão novos céus e uma nova terra, em que habita a justiça (II Pedro 3:13) - uma nova Jerusalém, que de Deus descia do céu (Apocalipse 21:2), que foi mostrada a João, o contemplador dos mistérios, durante a revelação que lhe foi concedida.

Tudo isso não agrada aos "neo-cristãos". Eles querem a bem-aventurança aqui neste mundo, carregado com sua multidão de pecados e iniquidades; e eles esperam esta bem-aventurança com impaciência. Eles consideram que uma das formas mais seguras de alcançá-la é o "movimento ecumênico", a união e unificação de todos os povos em uma nova "igreja" que incluirá não apenas Católicos Romanos e Protestantes, mas também Judeus, Muçulmanos e pagãos, cada um mantendo suas próprias convicções e erros. Este amor "cristão" imaginário, em nome da futura bem-aventurança dos homens na terra, não pode senão pisotear a Verdade.

A destruição desta Terra com tudo o que nela existe, embora claramente predita pela Palavra de Deus, é considerada por eles como algo indescritivelmente horrível, como se isso não fosse consistente com a onipotência de Deus e, aparentemente, algo bastante indesejável. Eles com relutância admitem a destruição da Terra (pois como não aceitar algo profetizado na Palavra de Deus?), mas com a condição de que isso ocorrerá num futuro distante, muito distante, encoberto de névoa; não séculos, mas milhões de anos a partir de agora.

Qual a razão para isto? Poder-se-ia dizer, porque eles são fracos de fé, ou carentes inteiramente de fé na ressurreição dos mortos, e na vida da era por vir. Para eles tudo está nesta vida terrena, e quando ela termina para eles, tudo se vai.

Em alguns de seus pontos - especialmente na expectativa da vida bem-aventurada neste mundo - tal estado de espírito se assemelha muito à heresia bastante difundida dos primeiros séculos do cristianismo chamada milenarismo [quiliasmo] [1]. Trata-se da expectativa de um reinado milenar de Cristo na terra; portanto, a manifestação moderna desta heresia pode ser chamada de "neo-milenarismo".

Deve-se ter em mente e estar ciente de que o milenarismo foi condenado pelo Segundo Concílio Ecumênico no ano 381; e portanto, acreditar nele agora no século XX, mesmo em parte, é totalmente imperdoável. Além disso, este "neo-milenarismo" contemporâneo é muito pior do que a antiga heresia milenarista, pois em sua base está indubitavelmente uma descrença na vida da era por vir e o desejo apaixonado de alcançar a bem-aventurança aqui na Terra, usando todas as benesses e conquistas do progresso material de nossos tempos. 

Este ensinamento falso causa danos terríveis, adormecendo a vigilância espiritual dos fiéis e sugerindo-lhes que o fim do mundo está longe (se é que de fato [eles crêem que] haverá um fim), e por isso não há necessidade especial de vigiar e orar, ao que Cristo Salvador constantemente chamou Seus seguidores (cf Mt 26,41), uma vez que tudo neste mundo está gradualmente ficando cada vez melhor, progresso espiritual acompanhando o materialismo. 

E os terríveis fenômenos que observamos no momento atual são todos temporários; tudo já aconteceu antes, e tudo acabará por passar, e um extraordinário florescimento do cristianismo os substituirá, no qual, claro, os ecumenistas ocuparão os principais e mais honrados lugares.

Assim, tudo está ótimo! Não é necessário trabalhar sobre si mesmo, e nenhuma luta espiritual é necessária; os jejuns podem ser abolidos. Tudo melhorará por si só, até que o Reino de Deus seja finalmente estabelecido na Terra com satisfação e bem-aventurança terrena universal.

Irmãos! Não está claro onde se encontra a fonte última deste ensinamento falso e sedutor? Quem sugere todos esses pensamentos aos cristãos contemporâneos com o propósito de subverter todo o cristianismo? Como uma praga infecciosa, como fogo, devemos temer este "neo-milenarismo" que é tão profundamente contrário ao ensinamento da Palavra de Deus, ao ensinamento dos Santos Pais, e a todos os ensinamentos centenários de nossa Santa Igreja, através dos quais muitos, muitos milhares de justos foram salvos.

 Sem luta espiritual não há, e não pode haver, um verdadeiro cristianismo! Portanto, nosso caminho não se encontra entre todos os movimentos modernos, nem entre os ecumenistas, nem entre os "neo-milenaristas".

Nossa fé é a fé dos santos ascetas, a fé apostólica, a fé dos Pais, a fé Ortodoxa que sustentou o mundo inteiro. Esta fé e somente esta fé nós aderiremos firmemente nestes dias perversos em que vivemos agora.

Amém.



Retirado do livro The Apocalypse: In the Teachings of Ancient Christianity escrito pelo Arcebispo Averky (Taushev) 


Notas

[1] Nota do tradutor: o autor faz uso do termo chiliasm que em português pode ser traduzido como quiliasmo ou milenarismo. Optei utilizar a tradução milenarismo por ser um termo mais comum em nossa língua para referir-se a heresia em questão. 


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