quarta-feira, 24 de junho de 2020

Homilias de São Marcos de Éfeso sobre a Oração pelos Mortos e Contra o Purgatório Católico Romano

O Ensinamento Ortodoxo de São Marcos de Éfeso sobre o Estado da Alma após a Morte [1] 

O ensinamento Ortodoxo sobre o estado das almas após a morte é algo que muitas vezes não é inteiramente compreendido, mesmo pelos próprios cristãos Ortodoxos; e o ensinamento latino relativamente tardio do "purgatório" causou ainda mais confusão na mente das pessoas. A doutrina Ortodoxa em si, no entanto, não é de todo ambígua ou imprecisa. Talvez a exposição Ortodoxa mais concisa seja encontrada nos escritos de São Marcos de Éfeso no Concílio de Florença, em 1439, composta precisamente para responder ao ensinamento latino sobre o "purgatório". Estes escritos são especialmente valiosos para nós, na medida em que, como vêm do último dos Padres Bizantinos, antes da era moderna com todas as suas confusões teológicas, eles tanto nos apontam para as fontes da doutrina Ortodoxa, como nos instruem a como abordar e compreender essas fontes. Essas fontes são: as Escrituras, as homilias patrísticas, os ofícios da Igreja, as Vidas dos Santos e certas revelações e visões da vida após a morte, como as contidas no Livro IV dos Diálogos de São Gregório Magno.

Os teólogos acadêmicos de hoje tendem a desconfiar dos últimos dois ou três tipos de fontes, e é por isso que frequentemente se sentem desconfortáveis ao falar sobre esse assunto e às vezes preferem manter uma "reticência agnóstica" em relação a ele (Timothy Ware, The Orthodox Church, p. 259). Os escritos de São Marcos, por outro lado, mostram-nos o quanto "em casa" estão os genuínos teólogos Ortodoxos com essas fontes; aqueles que estão "desconfortáveis" com elas talvez revelam assim uma infecção insuspeita de incredulidade moderna.

São Marcos de Éfeso
Das quatro respostas de São Marcos sobre o purgatório, compostas no Concílio de Florença, a Primeira Homilia contém o relato mais conciso da doutrina Ortodoxa contra os erros latinos, e é principalmente dela que esta tradução foi compilada. As outras respostas contêm sobretudo material ilustrativo para os pontos discutidos aqui, assim como respostas a argumentos latinos mais específicos.

O "Capítulo Latino" ao qual São Marcos responde são aqueles escritos pelo cardeal Juliano Cesarini (tradução russa em Pogodin, pp. 50-57), que expõe o ensinamento latino, definido anteriormente no Concílio de "União" de Lyon (1270), sobre o estado das almas após a morte. Esse ensinamento choca o leitor ortodoxo (como de fato chocou São Marcos) devido ao seu caráter inteiramente "literalista" e "legalista". Os latinos nessa época passaram a considerar o céu e o inferno [Hades] [A] como "finais" e "absolutos" e aqueles que estavam neles já possuíam a plenitude do estado que terão após o Juízo Final; assim, não há necessidade de orar por aqueles que estão no céu (cuja sorte já é perfeita) ou por aqueles no inferno (pois eles nunca podem ser libertos ou purificados do pecado). Mas como muitos dos fiéis morrem num estado "intermediário" - não suficientemente perfeito para o céu, mas não suficientemente mau para o inferno - a lógica dos argumentos latinos exigia um terceiro lugar de purificação ("purgatório"), onde mesmo aqueles cujos pecados já tinham sido perdoados tinham que ser punidos ou oferecer "satisfação" por seus pecados antes de serem suficientemente purificados para entrar no céu. Esses argumentos legalistas de uma "justiça" puramente humana (que na verdade nega a suprema bondade de Deus e Seu amor pela humanidade) os latinos passaram a apoiá-los através de interpretações literalistas de certos textos patrísticos e várias visões; quase todas essas interpretações são bastante forçadsa e arbitrárias, porque nem mesmo os antigos Padres latinos falaram de um lugar como "purgatório", mas apenas da "purificação" dos pecados após a morte, a que alguns deles se referiram (provavelmente alegoricamente) como por "fogo".

Na doutrina Ortodoxa, por outro lado, que São Marcos ensina, os fiéis que morreram com pequenos pecados não confessados, ou que não apresentaram frutos de arrependimento pelos pecados que confessaram, são purificados destes pecados ou no processo da própria morte com seu medo, ou após a morte, quando eles estão confinados (mas não permanentemente) no inferno [Hades], pelas orações e Liturgias da Igreja e boas ações executadas para eles pelos fiéis. Mesmo os pecadores destinados ao tormento eterno podem receber um certo alívio de seu tormento no inferno por esses meios também. Não há fogo que atormenta os pecadores agora, nem no inferno (pois o fogo eterno começará a atormentá-los somente depois do Julgamento Final), nem muito menos em qualquer terceiro lugar como o "purgatório"; todas as visões de fogo que são vistas pelos homens são, por assim dizer, imagens ou profecias do que acontecerá na era futura. Todo perdão dos pecados após a morte vem somente da bondade de Deus, que se estende até aos que estão no inferno [Hades], com a cooperação das orações dos homens, e nenhum "pagamento" ou "satisfação" é oferecida pelos pecados que foram perdoados.

Deve-se notar que os escritos de São Marcos dizem respeito primariamente ao ponto específico do estado das almas após a morte e pouco falam sobre os eventos que ocorrem à alma imediatamente após a morte. Sobre isso há uma literatura Ortodoxa abundante, mas este ponto não estava em discussão em Florença.

Todas as notas foram adicionadas pelos tradutores. 

Primeira Homilia
Refutação dos Capítulos Latinos a respeito do Fogo Purgatorial

Na medida em que somos solicitados, preservando a nossa Ortodoxia e os Dogmas da Igreja transmitidos pelos Padres, a responder com amor ao que você disse, como regra geral citaremos primeiro cada argumento e testemunho que o senhor apresentou por escrito, a fim de que a resposta e a resolução de cada um deles possa seguir de forma breve e clara.

1. E assim, no início do seu relatório, você fala assim: "Se aqueles que verdadeiramente se arrependeram partiram desta vida em amor (para com Deus) antes de poderem oferecer satisfação por meio de frutos dignos por suas transgressões ou ofensas, suas almas são purificadas depois da morte por meio de sofrimentos purgatoriais; mas para a atenuação (ou 'libertação') desses sofrimentos, eles são auxiliados pela ajuda que lhes é concedida pelos fiéis que estão vivos, como por exemplo: orações, liturgias, esmolas e outras obras de piedade".

A isto respondemos o seguinte: Do fato de que aqueles que repousam na fé são sem dúvida ajudados pelas Liturgias e orações e esmolas feitas por eles, e de que esse costume está em vigor desde a antiguidade, há o testemunho de muitos e várias afirmações dos Doutores, tanto latinos como gregos, proferidos e escritos em vários momentos e em vários lugares. Mas que as almas são libertadas graças a um certo sofrimento purgatorial e fogo temporal que possui tal poder (purgatorial) e tem o caráter de uma ajuda - isso não encontramos nem nas Escrituras nem nas orações e hinos para os mortos, nem nas palavras dos Doutores. Por outro lado, aceitamos que mesmo as almas que estão detidas no Hades e já sujeitas ao tormento eterno, quer seja de fato e na experiência, quer seja na expectativa desesperançosa de tal tormento, podem ser auxiliadas e receber certa pequena ajuda, muito embora isso não possa libertá-las completamente do tormento, ou dar-lhes esperança de uma libertação final. E isto é demonstrado pelas palavras do grande Macário, o asceta egípcio que, encontrando um crânio no deserto, foi por ele instruído a esse respeito pela atividade do Poder Divino.[2] E Basílio, o Grande, nas orações lidas no Pentecostes, escreve literalmente o seguinte: Tu 'que também, nesta festa perfeita e salvífica, te dignas a receber orações propiciatórias por aqueles que estão aprisionados no Hades, concedendo-nos uma grande esperança de que o alívio e o conforto serão enviados por Ti para os que se encontram ali aprisionados da aflição confinante deles." (Terceira Oração Ajoelhada nas Vésperas).

Mas, se as almas partiram desta vida na fé e no amor, mas, no entanto, levando consigo certas faltas, sejam elas pequenas, das quais não se arrependeram de modo algum, ou grandes, das quais - ainda que se tenham arrependido delas - não se empenharam em mostrar os frutos de arrependimento: tais almas, cremos, devem ser purificadas deste tipo de pecados, mas não por meio de algum fogo purgatorial ou de uma punição específica em algum lugar (pois isto, como temos dito, não nos foi de maneira alguma transmitido). Mas algumas devem ser purificadas na própria saída do corpo, apenas devido ao medo, como mostra literalmente São Gregório, o Dialogista; [3] enquanto outras devem ser purificadas após a saída do corpo, ou enquanto permanecem no mesmo lugar terreno, antes que venham a adorar a Deus e sejam honradas com a sorte dos bem-aventurados, ou - se seus pecados foram mais graves e as detém por mais tempo - elas são mantidas no Hades, mas não para permanecerem para sempre no fogo e no tormento, mas como que na prisão e em confinamento sob guarda.

Todos essas, afirmamos, são auxiliados pelas orações e Liturgias realizadas por elas, com a cooperação da Bondade e Amor Divino pelos homens. Deus concede a remissão de certos pecados, como aqueles cometidos devido à fraqueza humana, como diz Dionísio, o Grande (o Areopagita), nas "Reflexões do Mistério dos que Repousam na Fé" (em A Hierarquia Eclesiástica, VII, 7); ao passo que outros pecados, depois de um certo tempo, por julgamentos justos, ou são absolvidos e perdoados - e isso completamente - ou é aliviada a responsabilidade por eles até o Julgamento final. E, portanto, não vemos necessidade alguma de qualquer outra punição ou de um fogo purificador; pois alguns são purificados pelo medo, enquanto outros são devorados pelo roer da consciência com maior tormento do que qualquer fogo, e ainda outros são purificados apenas pelo próprio grande terror experimentado diante da Glória Divina e a incerteza quanto ao que será o futuro. E que isto é muito mais atormentador e punitivo do que qualquer outra coisa, a própria experiência mostra, e São João Crisóstomo nos testemunha em quase todas ou pelo menos na maioria de suas homilias morais, que afirmam isso, assim como o santo asceta Doroteu em sua homilia "Sobre a Consciência...". [Quanto ao fato de que a incerteza sobre o futuro é um tormento maior para os condenados do que a própria punição, isso é mencionado por doutores como Gregório o Teólogo, que em sua Oração "Sobre a Praga da Saraiva" diz isso: "Estes serão destinados a serem acolhidos pela luz inefável e pela visão da Santíssima e Régia Trindade, ao passo que aqueles juntamente com os outros, ou melhor, antes dos outros, - pelo sofrimento: de serem rejeitados por Deus, e atormentados pelo interminável remorso da consciência".] [B]

2. E assim suplicamos a Deus e pensamos em livrar [do tormento eterno] os que partiram, e não de qualquer outro tormento ou de qualquer outro fogo diferente daqueles que foram proclamados eternos. E, além disso, que as almas dos que partiram são libertas através, da oração, do confinamento no Hades, como se de um tipo de prisão, é testemunhado, entre muitos outros, por Teófano, o Confessor, chamado de Graptos [o Marcado] (pois as palavras do seu testemunho pelo ícone de Cristo, escritas na sua testa, ele selou com sangue). Em um dos cânones para os que repousaram, ele ora por eles assim: "Liberta, ó Salvador, Teus servos que estão no Hades das lágrimas e prantos" (Octoechos, cânone de sábado para os repousados, Tom 8, Cântico 6, Glória).

Você ouviu? Ele disse "lágrimas" e "prantos", e não qualquer tipo de punição ou fogo purgatorial. E se nesses hinos e orações se encontra alguma menção ao fogo, não é uma menção a um fogo que tem um poder purgatorial, mas sim a esse fogo eterno da punição incessante. Os santos, movidos pelo amor aos homens e pela compaixão pelos seus semelhantes, ousando e desejando o que é quase impossível, oram pela libertação de todos aqueles que partiram na fé. Pois assim diz São Teodoro o Estudita, ele mesmo confessor e testemunha da verdade, logo no início do seu cânon para os defuntos:  "Roguemos todos a Cristo, celebrando hoje um memorial pelos mortos de todas as épocas, para que Ele possa livrar do fogo eterno os que partiram na fé e na esperança da vida eterna" (Triodion da Quaresma, Sábado da Abstinência da Carne, Cânon, Cântico 1). E então, em outro troparion, no Cântico 5 do Cânon, ele diz: "Livrai, ó nosso Salvador, todos os que faleceram na fé do fogo sempre-ardente e das trevas sem luz, do ranger de dentes, do verme atormenta sem cessar, e de todos os tormentos".

Onde está o "fogo purgatorial" aqui? E se de fato existisse, onde seria mais apropriado que o Santo falasse dele, se não aqui? Não nos cabe procurar saber se os santos são ouvidos por Deus quando oram com essa intenção.Mas eles mesmos sabiam, assim como o Espírito que neles habitava, por Quem eram movidos, e falavam e escreviam nesse conhecimento; e assim também Cristo o Senhor sabia disso, Aquele que nos deu o mandamento de orarmos por nossos inimigos, e que orou por aqueles que O crucificavam, e inspirou o Primeiro Mártir Estêvão, quando estava sendo apedrejado até a morte, a fazer o mesmo. Mesmo que ninguém possa dizer que somos ouvidos quando oramos por essas pessoas, apesar disso devemos fazer tudo o que estiver ao nosso alcance. E eis que alguns dos santos que oravam não só pelos fiéis, mas até mesmo pelos ímpios, foram ouvidos e por suas orações os resgataram do tormento eterno, como por exemplo a Primeira Mulher-Mártir Thecla resgatou Falconila, e o santo Gregório, o Dialogista, como é relatado, resgatou o Imperador Trajano. [4]
(O capítulo 3 demonstra que a Igreja ora também por aqueles que já desfrutam da bem-aventurança junto a Deus - os quais, evidentemente, não têm necessidade de passar através do "fogo purgatorial".)
4. Depois disso, um pouco mais adiante, você quis provar o dogma acima mencionado do fogo purgatorial, primeiramente citando o que é dito no livro dos Macabeus: É santo e piedoso... orar pelos mortos... para que eles sejam libertados de seus pecados (2 Macabeus 12:44-45). Em seguida, tomando do Evangelho segundo Mateus o lugar em que o Salvador declara que "todo aquele que falar contra o Espírito Santo, não alcançará perdão nem neste século nem no século vindouro" (Mt. 12:32),  você diz que a partir disto se pode constatar que há remissão de pecados na vida futura.

Mas que a partir disso não decorre de forma alguma a idéia de fogo purgatorial é algo mais claro que o sol; pois o que há em comum entre a remissão, por um lado, e a purificação pelo fogo e punição, por outro? Porque, se a remissão dos pecados é alcançada por causa das orações, ou meramente pelo amor Divino à humanidade em si, não há necessidade de punição e purificação (através do fogo).  Mas se a punição, e também a purificação, são estabelecidas (por Deus)... então, pareceria, as orações (pelos que repousaram) são feitas em vão, e em vão entoamos hinos ao amor Divino pela humanidade. E assim, essas citações são menos uma prova da existência do fogo purgatorial do que uma refutação dele: pois a remissão dos pecados daqueles que transgrediram é apresentada nelas como resultado de uma certa autoridade régia e do amor pela humanidade, e não como uma libertação da punição ou de uma purificação.

5. Em terceiro lugar, (tomemos) a passagem da primeira epístola do Bem-aventurado Paulo aos Coríntios, na qual ele, falando do edifício sobre o fundamento, que é Cristo, "de ouro, prata, pedras preciosas, madeira, feno, palha", acrescenta:  "Pois aquele Dia a declarará, porque pelo fogo será descoberta; e o fogo provará qual seja a obra de cada um. Se a obra que alguém edificou nessa parte permanecer, esse receberá recompensa. Se a obra de alguém se queimar, sofrerá detrimento; mas o tal será salvo, todavia como pelo fogo." (I Cor. 3:11-15). Esta citação, ao que parece, mais do que qualquer outra introduz a idéia de fogo purgatorial; mas na realidade ela, mais do que qualquer outra, a refuta.

Em primeiro lugar, o santo Apóstolo chamou-o não de um fogo purgatorial, mas de um fogo de prova; em seguida, ele declarou que através dele também devem passar obras boas e honrosas, e tais, evidentemente, não têm necessidade de qualquer purificação; em seguida, ele diz que aqueles que trazem más obras, depois que essas obras queimam, sofrem detrimento, ao passo que aqueles que estão sendo purificados não só não sofrem detrimento, mas recebem ainda mais; então ele diz que isso deve acontecer "naquele Dia", ou seja, no dia do julgamento e da era vindoura, mas supor a existência de um fogo purgatorial depois daquela temível vinda do Juiz e da sentença final - não é isso um absurdo total? Pois a Escritura não nos transmite nada do tipo, mas Ele mesmo que nos julgará diz: "E irão estes para o tormento eterno, mas os justos para a vida eterna." (Mateus 25:46); e também: "E os que fizeram o bem sairão para a ressurreição da vida; e os que fizeram o mal para a ressurreição da condenação." (João 5:29) Portanto, não resta nenhum tipo de lugar intermediário; mas, depois que Ele dividiu todos os que se encontram sob julgamento em duas partes, colocando uns à direita e outros à esquerda, e chamando os primeiros de "ovelhas" e os segundos de "bodes" - Ele não declarou, de modo algum, que há alguns que devem ser purificados por aquele fogo. Ao que parece, o fogo de que fala o Apóstolo é o mesmo do qual fala o Profeta Davi: "Um fogo abrasador o precede; ao seu redor, furiosa tempestade" (Sl. 49:4); e também: "Ele é precedido por um fogo que devora em redor os inimigos" (Sl. 96:3). Daniel, o Profeta, também fala deste fogo: "Saído de diante dele, corria um rio de fogo" (Daniel 7:10).

Como os santos não trazem consigo nenhuma obra má ou marca má, esse fogo os manifesta como ainda mais luminosos, como o ouro provado no fogo, ou como a pedra amianto, que, como é relatado, quando colocada no fogo mostra-se como carbonizada, mas quando tirada do fogo torna-se ainda mais pura, como se tivesse sido lavada com água, como também aconteceu com os corpos dos Três Jovens na fornalha babilônica. Os pecadores, porém, que trazem consigo o mal, são apreendidos como um material apropriado para esse fogo e são imediatamente incendiados por ele, e as suas "obras", isto é, a sua má disposição ou atividade, é queimada e inteiramente destruída e eles são privados do que trouxeram consigo, isto é, privados do seu fardo do mal, ao passo que eles mesmos são "salvos" - isto é, serão preservados e mantidos para sempre, de modo que eles não sejam sujeitos à destruição juntamente com o seu mal.

6. O santo Pai Crisóstomo também (que por nós é chamado "os lábios de Paulo", assim como este último é "os lábios de Cristo") considera necessário fazer tal interpretação desta passagem em seu comentário à Epístola (Homilia 9 sobre Primeiro Coríntios); e Paulo fala através de Crisóstomo, como ficou claro com a visão de Proclo, seu discípulo, e o sucessor de sua Sé.[5]  São Crisóstomo dedicou um tratado especial a esta passagem, a fim de que os Origenistas não citasse estas palavras do Apóstolo como confirmação do modo de pensar deles (que, ao que parece, é mais adequado para eles do que para você), e não causasse dano à Igreja, introduzindo um fim ao tormento do inferno e uma restauração final (apocatástase) dos pecadores. Pois a expressão de que o pecador é "salvo, todavia como pelo fogo" significa que ele permanecerá atormentado no fogo e não será destruído juntamente com suas más obras e má disposição de alma.

Basílio o Grande também fala disso em seu "Moralia", ao interpretar a passagem da Escritura, "a voz do Senhor separa a labareda de fogo." (Sl. 28:7): "O fogo preparado para o tormento do diabo e seus anjos, é separado pela voz do Senhor, de modo que depois disso possa haver duas forças nele: uma que queima, e outra que ilumina; o poder de tormento e punição daquele fogo é reservado para aqueles dignos de tormento; ao passo que o poder iluminador e radiante é destinado ao resplendor daqueles que rejubilam. Portanto, a voz do Senhor que divide e separa a labareda de fogo é para isto: que a parte escura seja um fogo de tormento e a parte que não queima seja uma luz de deleite" (São Basílio, Homilia sobre o Salmo 28).

E assim, como se pode ver, essa divisão e separação desse fogo acontecerá quando absolutamente todos passarem por ele: as obras brilhantes e resplandecentes se manifestarão ainda mais brilhantes, e aqueles que as trazem se tornarão herdeiros da luz e receberão a recompensa eterna; ao passo que aqueles que trazem más obras apropriadas para queimar, sendo punidos pela perda delas, permanecerão eternamente no fogo e herdarão uma salvação que é pior do que a perdição, pois é isso que, rigorosamente falando, a palavra "salvo" significa - que o poder destruidor do fogo não lhes será aplicado e que eles mesmos não serão totalmente destruídos. Seguindo esses Padres, muitos outros de nossos Doutores também entenderam essa passagem no mesmo sentido. E se alguém a interpretou de maneira diferente e entendeu "salvação" como "libertação da punição", e "passar pelo fogo" como "purgatório" - esse alguém, se assim podemos nos expressar, entende essa passagem de maneira completamente errada. E isso não surpreende, pois esse é um homem, e muitos mesmo entre os Doutores podem ser observados interpretando passagens da Escritura de várias maneiras, e nem todos eles alcançaram em grau igual o significado preciso. Não é possível que um mesmo texto, sendo transmitido em várias interpretações, corresponda em grau igual em todas as interpretações do mesmo; mas nós, selecionando as mais importantes e as que melhor correspondem aos dogmas da igreja, devemos colocar as outras interpretações em segundo lugar. Portanto, não nos desviaremos da interpretação acima citada das palavras do Apóstolo, mesmo que Agostinho ou Gregório, o Dialogista, ou outro de seus Doutores, dê tal interpretação; pois tal interpretação é menos favorável às idéias de um fogo purgatorial temporário do que ao ensinamento de Orígenes que, ao falar de uma restauração final das almas através desse fogo e de uma libertação do tormento, foi rejeitado e anatemizado pelo V Concílio Ecumênico, e foi definitivamente repudiado como uma impiedade comum para a Igreja.
(Do capítulo 7 ao 12, São Marcos responde a objeções levantadas por citações das obras do Bem-aventurado Agostinho, Santo Ambrósio, São Gregório o Dialogista, São Basílio o Grande e outros Padres, mostrando que eles foram mal interpretados ou talvez citados incorretamente e que esses Padres na verdade ensinam a doutrina Ortodoxa, e caso contrário, então seus ensinamentos não devem ser aceitos. Além disso, ele aponta que São Gregório de Nissa não ensina nada sobre o "purgatório", mas mantém o erro muito pior de Orígenes, o de que haverá um fim para as chamas eternas do inferno - embora possa ser que essas idéias tenham sido inseridas mais tarde em seus escritos por Origenistas.)
13. E por fim você diz: "A verdade acima mencionada é evidente com base na Justiça Divina, que não deixa impune nada do que foi feito de errado, e daí decorre necessariamente que para aqueles que aqui não sofreram punição, e não podem pagá-la nem no Céu nem no Hades, resta supor a existência de um outro lugar, um terceiro lugar, no qual essa purificação se realiza, em virtude da qual cada um, ao se purificar, é imediatamente levado ao deleite celestial".

A isso dizemos o seguinte, e prestamos atenção ao quão simples e ao mesmo tempo justo é: geralmente é reconhecido que a remissão dos pecados é ao mesmo tempo também uma libertação da punição; pois aquele que recebe a remissão dos pecados ao mesmo tempo é libertado da punição devida por eles. A remissão é concedida de três formas e em momentos diferentes: (1) durante o Batismo; (2) depois do Batismo, através da conversão, tristeza e compensação (pelos pecados) pelas boas obras na vida presente; e (3) depois da morte, através de orações e boas obras e mediante tudo mais que a Igreja faz pelos mortos.

Assim, a primeira remissão de pecados não está de todo ligada ao esforço; ela é comum a todos e igual em honra, como o derramar da luz e a contemplação do sol e as mudanças das estações do ano, pois esta é apenas a graça e nada mais nos é exigido senão a fé. Mas a segunda remissão é dolorosa, como para aquele que "todas as noites banha de pranto sua cama, e com lágrimas inundo o seu leito" (Sl. 6:5), para quem até os vestígios dos golpes do pecado são dolorosos, que caminha lamentando e com rosto contrito e imita a conversão dos ninivitas e a humildade de Manassés, sobre a qual houve misericórdia. A terceira remissão também é dolorosa, pois está ligada ao arrependimento e a uma consciência contrita e que sofre com a falta do bem; porém, não está de modo algum misturada com a punição, se ela é uma remissão de pecados; pois remissão e punição não podem de modo algum existir juntas. Além disso, na primeira e última remissão de pecados a graça de Deus tem a parte maior, com a cooperação da oração, e muito pouco é feito de nossa parte. A remissão do meio, por outro lado, tem pouco da graça, ao passo que a maior parte se deve ao nosso esforço. A primeira remissão dos pecados se distingue da última por isso: a primeira é uma remissão de todos os pecados em igual grau, ao passo que a última é uma remissão somente daqueles pecados que não são mortais e sobre os quais uma pessoa se arrependeu em vida.

Assim pensa a Igreja de Deus e ao suplicar pelos que partiram a remissão dos pecados e crendo que lhes é concedida, ela não define como uma lei de punição com relação a eles, sabendo bem que a Bondade Divina em tais questões conquista a idéia de justiça.

Trechos da Segunda Homilia Contra o Fogo Purgatorial [6]

3. Afirmamos que nem os justos já receberam a plenitude da sua sorte e aquela condição bem-aventurada pela qual se prepararam aqui por meio das obras, nem os pecadores, após a morte, foram submetidos à punição eterna, na qual serão atormentados eternamente. Antes, ambos devem necessariamente ocorrer após o Julgamento do último dia e a ressurreição de todos. Agora, porém, tanto um como o outro estão em lugares apropriados para eles: os primeiros, em repouso absoluto e livres, estão no céu com os anjos e diante do próprio Deus, e já como se estivessem no paraíso de onde Adão caiu (no qual o bom ladrão entrou antes dos outros) e muitas vezes nos visitam naqueles templos onde eles são venerados, e ouvem aqueles que os invocam e oram por eles a Deus, tendo recebido dEle este dom sublime, e através de suas relíquias operam milagres, e deleitam-se com a visão de Deus e com iluminação vinda dEle, com mais perfeição e pureza do que antes, quando estavam vivos; ao passo que os segundos, por sua vez, estando confinados no Hades, permanecem no abismo mais profundo, em trevas e na sombra da morte (Sl. 87:7), como diz Davi, e então Jó: para a terra onde a luz é como a escuridão (Jó 10:21-22). E os primeiros permanecem em toda alegria e júbilo, já esperando e somente não tendo em suas mãos o Reino e as coisas boas indescritíveis que lhes foram prometidos; e os segundos, ao contrário, permanecem em todo confinamento e sofrimento inconsolável, como homens condenados aguardando a sentença do Juiz e prevendo os tormentos. Nem os primeiros já receberam a herança do Reino e as coisas boas que o olho não viu, e o ouvido não ouviu, e não subiram ao coração do homem (I Cor. 2:9); nem os segundos já foram submetidos aos tormentos eternos, nem ao ardor no fogo inextinguível. E este ensinamento, transmitido como tal por nossos Pais na antiguidade, podemos facilmente mostrá-lo como proveniente das próprias Escrituras Divinas.

10. Aquilo que alguns dos santos viram em visão e revelação a respeito do tormento futuro dos ímpios e pecadores que ali estão, são certas imagens de coisas futuras e por assim dizer representações, e não o que de fato já está acontecendo agora. Assim, por exemplo, Daniel, descrevendo esse Julgamento futuro, diz: Continuei a olhar, até o momento em que foram colocados os tronos e um ancião chegou e se sentou... e os livros foram abertos (Daniel 7:9-10), porém é claro que isso não aconteceu realmente, mas foi revelado no espírito antecipadamente ao Profeta.

19. Quando examinamos os testemunhos que você citou do livro de Macabeus e do Evangelho, falando simplesmente com amor à verdade, vemos que eles não contêm nenhum testemunho de algum tipo de punição ou purificação, mas apenas falam da remissão dos pecados. Você fez uma certa divisão surpreendente, dizendo que todo pecado deve ser entendido sob dois aspectos: (1) a ofensa em si que é feita a Deus, e (2) a punição que a segue. Desses dois aspectos (você ensina), a ofensa a Deus, de fato, pode ser perdoada após o arrependimento e o afastamento em relação ao mal, mas a culpabilidade à punição deve existir em todos os casos; de modo que, com base nessa idéia, é essencial que aqueles libertos dos pecados sejam, mesmo assim, sujeitos à punição por eles.

Mas nos permitimos dizer que tal afirmação da questão contradiz verdades claras e conhecidas: se vemos que um rei, depois de ter concedido anistia e perdão, não sujeita o culpado a ainda mais punição, então ainda mais Deus, que, entre Suas muitas características, o amor à humanidade é especialmente extraordinário, ainda que Ele puna um homem por um pecado que cometeu, ainda assim, depois de Ele o ter perdoado, Ele o liberta imediatamente da punição também. E isso é natural. Pois se a ofensa a Deus leva à punição, então, quando a culpa é perdoada e a reconciliação ocorre, a própria consequência da culpa - a punição - necessariamente chega ao fim.
 
Retirado do livro The Soul After Death do Pe. Serafim Rose

Notas

[1] Traduzido a partir da tradução russa do Arquimandrita Amvrossy Pogodin, em São Marcos de Éfeso e da União de Florença. Jordanville, N. Y., 1963, pp. 58-73.

[A] Nota do tradutor para o português: Na teologia Ortodoxa, assim como na teologia Ocidental nos primeiros séculos, há uma importante distinção entre Hades e Geena embora ambos sejam traduzidos frequentemente como inferno. No texto em inglês Pe. Serafim Rose faz uso da palavra hell [inferno], no entanto, muito provavelmente, considerando o contexto, ele se referia não ao estado final das almas condenadas após o Julgamento Final, mas sim ao estado entre o pós-morte e o Julgamento Final. Esse estado, ou local, que difere daquele pós-Julgamento, é chamado de Hades. Para evitar essa confusão, acrescentei, na introdução e em uma das notas escritas pelo Pe. Serafim, ao lado da palavra inferno, a palavra Hades entre colchetes. Sobre esta distinção veja: https://skemmata.blogspot.com/2019/12/uma-proposta-razoavel-sobre-o-inferno.html e https://skemmata.blogspot.com/2020/01/purgatorio-clark-carlton.html

[2] Na "Coleção Alfabética" dos ditos dos Padres do Deserto, no capítulo "Macário, o Grande", lemos: "Abba Macário disse: Um dia, andando no deserto, encontrei o crânio de um homem morto, caído no chão. Enquanto eu o movia com meu bastão, o crânio falou comigo. Eu lhe disse: 'Quem és tu?' O crânio respondeu: 'Eu era o sumo sacerdote dos ídolos e dos pagãos que habitava neste lugar; mas tu és Macário, o portador do Espírito. Sempre que tens compaixão por aqueles que estão nos tormentos, e oras por eles, eles sentem um pouco de alívio.' O crânio instruiu ainda São Macário a respeito dos tormentos do inferno, concluindo: "Recebemos um pouco de misericórdia porque não conhecíamos Deus, mas aqueles que conheciam Deus e O negaram estão abaixo de nós." The Saying of the Desert Fathers, tr. por Benedicta Ward, London, A. R. Mowbray & Co., 1975, pp. 115-6).

[3] No Livro IV dos Diálogos.

[B] Nota do tradutor para o português: Este trecho final entre colchetes do cap.1 da Primeira Homilia não se encontra na tradução inglesa feita pelo Pe. Serafim Rose. A tradução russa, no entanto, apresenta o trecho em questão e por isso acrescentei-o. Em russo: А что касается того, что неизвестность будущого больше терзает наказуемых, чем самое наказание, об этом говорят Учители, как напр. Григорий Богослов в слове “На побиение града”, говорит следующее: “Тех восприимет несказанный свет и видение Святой и царственной Троицы, а этих вместе с иными – лучше же сказать – ранее других, – мучение: быть отверженными от Бога, и угрызение совести, не имущее конца.”"

[4] Este último acontecimento é relatado em algumas das primeiras obras sobre a vida de São Gregório, como por exemplo em uma Vida Inglesa do século VIII: "Alguns de nosso povo também contam uma história relatada pelos romanos de como a alma do Imperador Trajano foi refrescada e até batizada pelas lágrimas de São Gregório, uma história maravilhosa de se contar e maravilhosa de se ouvir. Que ninguém se surpreenda que digamos que ele foi batizado, pois sem batismo ninguém jamais verá a Deus; e um terceiro tipo de batismo é pelas lágrimas. Um dia, ao passar diante do Fórum, uma obra magnífica pela qual se diz que Trajano foi responsável, ele descobriu ao examiná-la cuidadosamente que Trajano, apesar de pagão, tinha feito uma ato tão caridoso que parecia mais provável que tivesse sido um ato de um cristão do que de um pagão. Pois é relatado que, enquanto conduzia seu exército com grande pressa contra o inimigo, foi movido pela piedade devido às palavras de uma viúva, e o imperador de todo o mundo parou. Ela disse: 'Senhor Trajano, aqui estão os homens que mataram meu filho e não estão dispostos a me pagar recompensa'. Ele respondeu: 'Fale-me sobre isso quando eu voltar e eu farei com que eles te recompensem'. Mas ela respondeu: 'Senhor, se tu nunca mais voltares, não haverá ninguém para me ajudar'. Então, armado como estava, ele fez os acusados pagarem imediatamente a compensação que lhe deviam, em sua presença. Quando Gregório descobriu esta história, reconheceu que isto era exatamente o que lemos na Bíblia, fazei justiça ao órfão, defendei a viúva. Pois bem, justifiquemo-nos, diz o Senhor. Como Gregório não sabia o que fazer para confortar a alma deste homem que trouxe as palavras de Cristo à sua mente, ele foi à Igreja de São Pedro e chorou torrente de lágrimas, como era seu costume, até que finalmente obteve por revelação divina a certeza de que suas preces foram atendidas, visto que ele nunca havia presumido pedir isso para nenhum outro pagão." (The Earliest Life of Gregory the Great, de um monge anônimo de Whitby, tr. de Benram Colgrave, The University of Kansas Press, Lawrence, Kansas, 1968 , cap. 29, pp. 127-9). Como a Igreja não oferece oração pública pelos não-crentes [N.T.: não-Ortodoxos] que partiram, é evidente que essa libertação do inferno [Hades] foi fruto da própria oração pessoal de São Gregório. Embora esta seja uma ocorrência rara, dá esperança àqueles que têm entes queridos que faleceram fora da fé.

[5] É relatado na Vida de São Proclo (20 de novembro) que quando São Crisóstomo estava trabalhando em seus comentários sobre as epístolas de São Paulo, São Proclo viu o próprio São Paulo se inclinando ao lado de São Crisóstomo e sussurrando em seu ouvido.

[6] Texto em russo em Pogodin, pp. 118 - 150.

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