Que imensa luta é quebrar o forte laço que nos une tão fortemente às coisas materiais, para encerrar a adoração destas coisas e adquirir, em vez disso, o estado de santidade. De fato, a menos que nossa alma seja verdadeiramente nobre e corajosa não podemos embarcar em tal tarefa. Pois nossa meta não é simplesmente a purificação das paixões: isto, por si mesmo, não é uma virtude real, mas uma preparação para a virtude. Para a purificação dos hábitos viciosos devemos adquirir virtudes.
Com respeito ao seu aspecto inteligente, purificar a alma é erradicar e expurgar completamente todas as características distorcidas, todo o “mundanismo” como a Divina Liturgia estabelece, toda a turbulência, todas as tendências malignas e as predisposições sensíveis. Com respeito a este aspecto desejante, é necessário purgar todo impulso para o que é material, deixar de ver as coisas de acordo com os sentidos, e ser obediente à inteligência. E com respeito ao poder incensivo (provocativo) da alma, a purificação consiste em nunca ser perturbado por qualquer coisa que aconteça.
No despertar desta purificação, e a mortificação ou correção de coisas feias, deve-se seguir um ascenso espiritual e a theósis. Pois após abandonar o que é mau, deve-se praticar o que é bom. Primeiro deve-se negar a si mesmo e então tomar a sua cruz, deve-se seguir o mestre para o supremo estágio da theósis.
O que é este ascenso e a theósis? Para o intelecto, eles são o conhecimento perfeito das coisas criadas, e Dele que está acima das coisas criadas, na medida em que o conhecimento está acessível à natureza humana. Pela vontade, ambos são um esforço contínuo para a bondade primeira. E através do poder incensivo, eles são um impulso energético e efetivo para o objeto de aspiração, eles são persistentes, implacáveis e não arrastados por dificuldades práticas, pressionando impetuosamente e despreocupadamente.
O impulso da alma para a beleza supera seu impulso para o que é terreno no mesmo grau que a beleza inteligível supera a beleza sensível. Deve-se manter o corpo apenas com o que é necessário para a manutenção de seu funcionamento propriamente. Querer fazer isso é fácil, mas alcança-lo é muito mais difícil, pois sem grande esforço ninguém pode arrancar os hábitos entranhados na alma.
Nem tampouco pode haver conhecimento adquirido sem esforço. Certamente, para manter uma visão atentamente fixada nas coisas divinas até que a vontade adquira o hábito de fazer estas coisas, requer um labor considerável por um bom período de tempo. O intelecto deve se opor ao rebaixamento dos sentidos; e esta batalha contra o corpo continua até à morte, mesmo que pareçam diminuir à medida que a raiva e o desejo desapareçam, e o modo como os sentidos são subjugados ao conhecimento transcendente do intelecto.
Deve-se notar, no entanto, que uma alma não iluminada, uma vez que não conte com a ajuda de Deus, não pode ser genuinamente purificada nem ascender à luz divina. O que foi dito acima refere-se estritamente aos que são batizados.
Ademais, deve-se fazer uma distinção entre os diferentes tipos de conhecimento. O conhecimento aqui na terra é de dois tipos: natural e sobrenatural. O segundo deve ser entendido em referência ao primeiro. O conhecimento natural é aquele que a alma pode adquirir através do uso de suas faculdades naturais e poderes quando investigando a criação e a causa da criação – na medida, obviamente, ao que é dado a uma alma limitada pela matéria. Pois, quando falamos dos sentidos, a imaginação e o intelecto, precisamos dizer que a energia do intelecto é embotada ao ser unida e misturada ao corpo. Como resultado, não se pode ter contato direto com formas inteligíveis, mas se requer, de modo a apreendê-las, a imaginação que, por natureza, usa imagens e compartilha a densidade e extensão do que é material. Consequentemente, o intelecto estando na carne necessita usar imagens materiais para apreender as formas inteligíveis. Nós chamaremos conhecimento natural qualquer conhecimento que o intelecto alcance por meio de seus próprios meios naturais.
O Conhecimento sobrenatural, por outro lado, é aquele em que o intelecto de algum modo transcende seus próprios meios e poder: isto é, os objetos inteligíveis que constituem tal conhecimento superam a capacidade de um intelecto unido ao corpo, de modo que um conhecimento deles pertence naturalmente apenas ao intelecto que está livre do corpo. Tal conhecimento é infundido somente por Deus quando Ele encontra um intelecto purificado de todo o apego material e inspirado pelo amor divino.
Não apenas o conhecimento, mas também a virtude é dividida neste sentido. A virtude que não transcende a natureza pode ser chamada de virtude natural. A outra, que é energizada apenas pela fonte primaz de beleza, está acima de nossa capacidade natural e de nosso estado; e este tipo de virtude deve ser chamado de sobrenatural.
Conhecimento e virtude são então divididos neste sentido. Uma pessoa não iluminada pode possuir conhecimento natural e virtude, mas nunca aqueles que são sobrenaturais. E como poderia sem participar da causa energizante? Mas o homem iluminado pode possuir ambas as coisas. Mais ainda, apesar dele não poder adquirir virtudes sobrenaturais sem ter adquirido as naturais, ele pode participar do conhecimento sobrenatural sem primeiro adquirir conhecimento natural. Em adição, como sensação e imaginação são de longe superiores e mais nobres no homem do que nos animais, do mesmo modo, a virtude natural e o conhecimento são de longe superior e mais nobre nas pessoas que são iluminadas do que nas não iluminadas, ainda que ambos possam possuí-las.
Ademais, aquele aspecto do conhecimento natural interessado nas virtudes e com os hábitos que se oponham a elas também parecem ser de dois tipos. Um tipo é o conhecimento teorético, quando um homem especula sobre estas questões mas falta experiência delas e é alguma vezes inseguro sobre o que se diz. O outro é prático, e por assim dizer vivo, uma vez que o conhecimento em questão é confirmado pela experiência, e por isso é claro e confiável, e de forma alguma incerto ou duvidoso.
Em vista de tudo isso, parece haver quatro obstáculos que impedem o intelecto na aquisição da virtude. Primeiro, há certa predisposição, isto é, certa influência arraigada de hábitos contrários à virtude; e isso, operando durante um longo período, exerce uma pressão que arrasta o intelecto para as coisas terrenas. Em segundo lugar, há a ação dos sentidos, estimulada pela beleza sensível e atraindo o intelecto para elas. Em terceiro lugar, há o apagamento da energia noética devido à conexão do intelecto com o corpo. O intelecto de uma alma presa a um corpo não se relaciona aos objetos inteligíveis da mesma forma que a visão para os objetos visíveis, ou em geral, os sentidos se referem objetos sensoriais. Os intelectos imateriais apreendem objetos inteligíveis de forma mais eficaz do que os sentidos apreendem os objetos visíveis. Mas, assim como a visão defeituosa visualiza suas imagens de objetos naturais de forma indistinta e pouco clara, também nosso intelecto, quando encarnado, apreende objetos inteligíveis. E já que não pode claramente discernir belezas inteligíveis, ele não pode também aspirá-las. Pois alguém só anseia por algo apenas na medida em que possua algum conhecimento dele. Daí o intelecto – na medida em que possa não ser atraído ao que parece ser bonito, seja ou não realmente assim – é atraído para a beleza sensível, pois esta lhe oferece uma impressão mais clara sobre isto.
O quarto obstáculo que impede o intelecto na aquisição da virtude é a influência perniciosa de demônios imundos e hostis. É impossível falar de todas as armadilhas que eles enviam para o caminho espiritual, fazendo uso dos sentidos, da razão, do intelecto – em suma, de tudo o que existe. Se Aquele que carrega a ovelha extraviada em Seus ombros (cf. Lucas 15:5) não tivesse zelo infinito por aqueles que se voltam a Ele, nenhuma alma escaparia.
Tais coisas são necessárias de modo a superar tais obstáculos. A coisa mais importante e primeira a se fazer é olhar para Deus com nossa alma inteira, implorar pela ajuda de Sua mão, e colocar toda a nossa confiança Nele, sabendo bem que sem a sua assistência nós seremos inevitavelmente arrastados para longe dEle. A segunda – que eu reconheço como uma superação da primeira – é constantemente nutrir o intelecto com conhecimento. Por conhecimento eu quero dizer todas as coisas criadas, sensíveis e inteligíveis, no que elas são em si mesmas e com referência à sua fonte primeira, já que elas derivam dela e se relacionam a ela; e em adição a isto, a contemplação, na medida do possível, da Causa de todas as coisas criadas, através das qualidades que pertencem a Ele. Estar interessado na natureza das coisas tem um efeito purificador. Liberta-nos do apego apaixonado a elas e dos delírios causados por elas; e este é o meio mais seguro de despertar nossa alma para Fonte de tudo. Pois toda beleza, milagre, magnificência refletem o que é supremamente belo, miraculoso e magnificente – refletindo, preferencialmente, a Fonte que está acima da beleza, do milagre e da magnificência.
Se a mente estiver permanentemente ocupada com estas coisas, como tardará para a bondade real? Se a mente pode ser atraída para o que lhe é estranho, como não será ainda mais para o que lhe é cognato?
Quando a alma se concentra no que lhe é familiar, como poderá se afastar e amar o que lhe é inferior? Ela se ressentirá de sua vida encarnada, encontrando nela obstáculo para obter a beleza. Pois ainda que o intelecto, enquanto vivendo na matéria, veja as belezas inteligíveis, mas as bênçãos vagamente, ainda as bênçãos inteligíveis são tais que mesmo uma leve emanação da beleza superabundante, ou uma visão opaca dela, pode impelir o intelecto para planar além de tudo o que está fora do reino inteligível e aspirar a isso sozinho, nunca se deixando deslizar do que oferece, venha o que vier para angustiá-lo.
O terceiro sentido pelo qual podemos superar os obstáculos já mencionados é mortificar nosso companheiro, o corpo; pois de outro modo não podemos obter uma visão clara e distinta do mundo inteligível. A carne é mortificada ou melhor crucificada com Cristo, por meio do jejum, das vigílias, dormindo no chão, vestindo roupa de saco e se limitando ao essencial, por meio do sofrimento e da labuta. Com isto ela é refinada e purificada, torna-se leve e sutil, seguindo prontamente e irresistivelmente o guia do intelecto e acendendo com ele. Sem mortificação, todos os nossos esforços são em vão.
Quando estes três caminhos são estabelecidos em mútua harmonia, geram na alma o coro das virtudes benditas; pois aqueles adornados por eles se livram de todo traço de pecado e abençoados com todas as virtudes. A rejeição da riqueza material, ou da fama, podem angustiar a inteligência; já que a alma, ainda unida a tais coisas, é atormentada por muitas paixões. No entanto, mantenho firmemente que a alma atada à riqueza e ao louvor não pode se elevar. Igualmente digo que a alma perde todo apego a estas coisas se tiver praticado esta tríade de sentidos suficientemente até se tornarem hábitos. Pois se a alma está persuadida de que apenas a beleza que está além de tudo é para ser reconhecida como verdadeiramente bela, enquanto outras coisas a mais bela é aquela que está consoante à beleza suprema, e assim descendo na escala, como poderá saborear a prata, o ouro, a fama, ou qualquer outra coisa degradante?
Mesmo aquilo que mais nos retém – nossos cuidados e preocupações – não é exceção a esta regra. Pois o que terá o homem se ele não estiver atado ao mundanismo ou envolvido nele? A nuvem dos cuidados vem do fumo, por assim dizer, das principais paixões – auto-indulgência, avareza, amor ao louvor. Uma vez que você estiver livre destas paixões também estará livre de seus cuidados.
Um bom julgamento moral tem o mesmo efeito que a sabedoria e é um fator muito poderoso que nos eleva. Daí que ele possua também um papel a desempenhar. Pois o conhecimento das virtudes envolve um discernimento escrupuloso entre o bem e o mal; e isso exige um bom julgamento moral. A experiência e a luta com o corpo nos ensinam a usar este julgamento em nosso campo de batalha.
O medo também contribui. Quanto maior nossa saudade de Deus, maior o nosso medo; quanto mais esperamos alcançar Deus, mais O tememos. Se somos feridos pelo amor divino, a picada do medo excede a de mil ameaças de castigo. Como nada é mais beatificante do que alcançar Deus, nada é mais terrificante do que este medo de perde-Lo.
Para chegarmos a outro argumento: tudo pode ser compreendido a partir de seu propósito. É isto o que determina a divisão das partes em seus elementos constituintes, e também como elas se articulam mutuamente. Ora, o propósito de nossa vida é a beatitude, ou o que é a mesma coisa, o Reino dos Céus ou de Deus. Isto não é apenas contemplar a Trindade, a soberania em sua Realeza, mas também receber o influxo do divino e chegar à deificação; pois por meio deste influxo o que nos falta e é imperfeito em nós nos é fornecido e aperfeiçoado. E a provisão necessária para tal influxo divino é o alimento dos seres espirituais. Há um tipo de círculo eterno, que se encerra no começo. Quanto maior nossa percepção no ética, mais podemos perceber; quanto maior nosso anseio, maior nosso gozo; quanto maior nosso gozo, mais nossa percepção é aprofundada, e assim o movimento imóvel ou a imutabilidade movente, reinicia novamente. Este é o nosso propósito, na medida em que podemos entendê-lo. Devemos agora ver como podemos obtê-lo.
Para as almas inteligentes, que como seres intelectivos estão apenas um pouco abaixo dos intelectos angelicais, a vida neste mundo é uma luta e a vida encarnada uma contenda aberta. O preço da vitória é o estado que nós descrevemos, um dom digno tanto da bondade de Deus quanto de Sua justiça: de Sua justiça, porque estas bênçãos são obtidas não sem nosso próprio suor; de Sua bondade, porque sua generosidade sem limites supera toda a nossa labuta – especialmente quando toda nossa capacidade para fazer o bem e para o bem agir são elas mesmas dons de Deus.
Qual é então a natureza de nossa contenda neste mundo? A alma inteligente está unida ao corpo animado, o qual tem seu ser da terra e é empurrado para baixo. Ela está tão misturada com o corpo que ainda que sejam totalmente opostos, eles formam um ser singular. Sem mudança ou confusão em qualquer um deles, e cada um de acordo com sua natureza, eles comporão uma única pessoa, ou hipóstase, com duas naturezas completas. Neste ser composto de duas naturezas, o homem, cada uma de suas naturezas funciona de acordo com seus próprio poderes particulares. É característico do corpo desejar o que é semelhante a ele. Este anseio pelo que é semelhante a eles é natural para criar seres, uma vez que a sua existência depende da relação sexual com os gostos e o prazer das coisas materiais através dos sentidos. Então, sendo pesado, o corpo acolhe este relaxamento. Essas coisas são adequadas e desejáveis para nossa natureza animal. Mas para a alma inteligente, como uma entidade intelectiva, o que é natural e desejável é o reino das realidades inteligíveis e a sua satisfação na maneira característica dela. Antes e acima de tudo, o que é característico do intelecto é um anseio intenso para Deus. Deseja apreciá-Lo e outras realidades inteligíveis, embora não possa fazer isso sem encontrar obstáculos.
O primeiro homem poderia, sem qualquer obstáculo, apreender e apreciar as coisas sensoriais por meio dos sentidos e das coisas inteligíveis com o intelecto. Mas ele deveria ter dado sua atenção ao mais alto do que ao inferior, pois ele era capaz de comunicar com coisas inteligíveis através do intelecto, como ele era com as coisas sensoriais através dos sentidos. Não digo que Adão não deveria ter usado os sentidos, pois não era sem motivo que ele fosse investido com um corpo. Mas ele não deveria ter se dedicado às coisas sensoriais. Ao perceber a beleza das criaturas, ele deveria ter encaminhado para a sua fonte e, como conseqüência, encontrar seu gozo e sua maravilha efetivadas por sua causa, dando assim uma dupla razão para se maravilhar com o Criador. Ele não deveria ter se apegado às coisas sensoriais e se perdido em seu maravilhamento com elas, negligenciando o Criador da beleza inteligível.
Deste modo, Adão usou os sentidos erroneamente e foi fascinado pela beleza sensível; e porque o fruto pareceu-lhe belo e apetitoso (Gen. 3:6), ele o provou e abandonou o gozo das coisas inteligíveis. Foi assim que o Justo Juiz considerou-o indigno daquilo que ele rejeitara – a contemplação de Deus e das coisas criadas –, e fazendo a escuridão seu local secreto (cf.2 Samuel 22:12; Salmo 18:11), privando-o de si mesmo e das realidades materiais. Pois as coisas sagradas não podem estar disponíveis aos impuros. Ele caiu de amor e Deus permitiu gozá-lo, permitindo-o viver de acordo com os sentidos, com parcos vestígios da percepção intelectual.
Desde esta época, nossa luta contra as coisas deste mundo tornou-se mais árdua, porque não está mais em nosso poder desfrutar as realidades inteligíveis de modo correspondente ao modo como desfrutamos das realidades sensíveis, ainda que pelo batismo sejamos grandemente assistidos, purificados e exaltados. Ainda, na medida do possível, nós devemos dar nossa atenção ao inteligível e não ao mundo sensível. Nós devemos reverenciá-lo e aspirá-lo; mas não devemos reverenciar todo e qualquer objeto sensível em si mesmo e por si mesmo, ou tentar desfrutá-lo neste sentido; pois em verdade o que é sensorial não pode ser comparado com o que é inteligível. Como a essência do inteligível de longe excede à do sensível, assim se passa também com sua beleza. Aspirar ao que é feio ao invés do que é belo; ao que é ignóbil no lugar do que é nobre; é pura loucura. E se é assim quando inteligível e o sensível estão envolvidos, quanto mais quando se tratar do fato de preferirmos a matéria, o feio e o disforme ao próprio Deus.
Esta é então nossa contenda e luta: vigilância estrita, para que sempre nos esforcemos em desfrutar de realidades inteligíveis, direcionando o intelecto e o apetite para esse fim, e nunca permitindo secretamente que sejam enganados pelos sentidos, de modo a reverenciar coisas sensíveis como se fossem o seu próprio bem. E se devemos usar os sentidos, devemos usá-los para entender o Criador através de Sua criação, vê-Lo refletido nas coisas criadas, como o sol se reflete na água, pois em seus seres internos, eles estão em graus variados, imagens da causa primaz de tudo.
Tal é então o nosso propósito. Como podemos alcança-lo? Conforme dito, o corpo deseja gozar por meio dos sentidos o que lhe é afim; quanto mais forte for esta afinidade, maior é este desejo. Mas isto se conflita com o propósito da alma. A alma deve fazer todos os esforços para conter os sentidos, a fim de que não sejamos indulgentes com as realidades sensíveis no sentido descrito. Mas já que mais forte o corpo, mais forte seu desejo, e quanto mais forte for seu desejo, mais difícil de verificar, a alma deve mortificar o corpo através de jejum, vigília, de pé, dormindo no chão, sem se lavar, e através de todo tipo de dificuldade, reduzindo assim a sua força e tornando-a tratável e obediente às atividades noéticas da alma. Este é o objetivo. É fácil desejar, difícil é conseguir; os fracassos são mais grandemente numerosos do que os sucessos, porque ainda que sejamos vigilantes, os sentidos permanentemente nos enganam. Assim, um terceiro remédio é prescrito: oração e lágrimas. A oração dá Graças às bênçãos recebidas e pede perdão pelos fracassos, assim como força e vigor para o futuro: pois sem a ajuda de Deus a alma não pode de fato fazer nada. No entanto, para persuadir a vontade de ter o maior desejo de união e prazer com Ele, para quem anseia se dirigir totalmente para Ele, esta é a maior parte da conquista do nosso objetivo. Lágrimas também têm grande poder. Elas ganham a misericórdia de Deus por nossas faltas, purificam-nos das impurezas produzidas através dos prazeres sensuais e elevam nosso desejo para as coisas do Alto.
Assim, nosso objetivo é a contemplação das realidades inteligíveis e a total aspiração delas. A mortificação da carne, unida ao jejum, o autocontrole e outras coisas que contribuem para ele, são todos eles práticas para este mesmo fim. E em sua companhia está a oração. Cada um deles possui muitos aspectos de modo que um contribui para uma coisa e outro para outra.
O amor ao louvor e às coisas materiais não deve ser reconhecido como pertencendo ao corpo. Apenas o amor aos prazeres sensuais pertence ao corpo. O remédio apropriado a isso é dificuldade física. O amor ao louvor e às coisas materiais são a prole da ignorância. Não possuir nenhuma experiência das bênçãos verdadeiras e nenhum conhecimento das realidades noéticas, leva a alma a adotar esta progênie bastarda, pensando que a riqueza irá suprir suas necessidades. Ela também mergulha na riqueza material de modo a satisfazer o seu amor pelo prazer e pelo gozo, por sua própria causa, como se a riqueza fosse uma benção em si mesma. Tudo isso é resultado da ignorância das verdadeiras bênçãos. O amor ao louvor não deriva de qualquer falta na parte do corpo, pois isso não satisfaz nenhuma necessidade física. A inexperiência e ignorância da bondade primaz e da verdadeira glória são a causa de seu aparecimento. De fato, a ignorância é a raiz de todos os males. Quem já compreendeu como deveria a natureza das coisas – de onde cada coisa procede e se perverte – pode desprezar totalmente seu próprio propósito e ser arrastado para as coisas mundanas. A alma não quer um bem que seja só aparente. E se estiver sob o domínio de algum hábito, poderá superar este hábito. No entanto, antes do hábito ter sido formado, ele já havia sido enganado pela ignorância. Nós devemos acima de tudo nos esforçarmos para um verdadeiro conhecimento dos entes criados, e então estimular a vontade para o bem primordial, caçoando de todas as coisas mundanas e tomando consciência de nossa vaidade. Pois no que eles podem contribuir para o nosso propósito?
Em suma, brevemente. Uma alma inteligente, estando no corpo, tem uma tarefa; realizar seu próprio propósito. Mas já que a energia da vontade permanece desestimulada, se houver intelecção, ela começa por tentar enegizá-la noeticamente. A atividade noética é por si própria vontade. Bem aventurança – da qual qualquer vida significante na terra não é apenas uma abertura mas também uma prefiguração – é caracterizada por ambas as energias: tanto pela intelecção quanto pela vontade, ou seja, tanto pelo amor quanto pelo prazer espiritual. Se uma destas energias é superior à outra, está aberto à discussão. No momento, reconheceremos ambas como supremas. Chamaremos uma contemplativa e a outra prática. Onde quer que estas energias supremas estejam concernidas, não se poderá encontrar uma sem a outra. No caso das energias inferiores, elas podem seguir uma a outra, sem que estejam unidas, ou seja, isoladamente. Tudo o que obsta estas duas energias, ou as oponha, chamaremos vício. Tudo o que as promova, ou as liberte de obstáculos, chamaremos de virtude. Energias que brotam de virtudes são boas: aquelas que brotam de seus opostos são distorcidas e pecaminosas. A meta suprema, cuja energia, conforme falamos, é composta de intelecção e vontade, dota cada energia particular com uma forma específica, que pode ser usada tanto para o bem quanto para o mal.
tradução: Maria Egipcíaca Milovic
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