segunda-feira, 24 de abril de 2017

A Filosofia não salva (São Gregório Palamas)

Eu tenho ouvido de certas pessoas que também devemos buscar a sabedoria secular, e que, se nós não possuíssemos essa sabedoria, torna-se impossível evitar a ignorância e as falsas opiniões, mesmo que tenhamos atingido o mais alto nível de impassibilidade; e que não se pode adquirir a perfeição e a santidade sem buscar o conhecimento de todos os lugares, sobretudo da cultura grega, que também é um dom de Deus - assim como foram os insights concedidos aos profetas e apóstolos através da revelação. Essa educação confere na alma o conhecimento dos seres criados e enriquece a faculdade do conhecimento, que é o maior de todos os poderes da alma, pois a educação não só elimina todos os outros males da alma. Pois a educação não só afasta todos os outros os males da alma - uma vez que toda paixão tem sua raiz e fundamento na ignorância - mas também conduz os homens ao conhecimento de Deus, pois Deus só é cognoscível através da mediação de Suas criaturas.

De forma alguma essas opiniões me convenceram quando me foram apresentadas, pois minha pequena experiência de vida monástica mostrou-me que exatamente o contrário era verdadeiro; mas eu era incapaz de fazer uma defesa contra eles. "Não nos ocupamos apenas com os mistérios da natureza", disseram orgulhosamente, "medindo o ciclo celeste e estudando os movimentos opostos das estrelas, suas conjunções, fases e ascensões, considerando as consequências dessas coisas (assuntos que temos muito orgulho); mas, além disso, como os princípios interiores desses fenômenos se encontram na divina e primordial criativa Mente, e as imagens desses princípios existem em nossa alma, temos o zelo de compreendê-los e desprezamos todo o tipo de ignorância a seu respeito pelos métodos de distinção, raciocínio e análise silogística; e assim, tanto nesta vida quanto depois, desejamos ser conformados à semelhança do Criador".

Senti-me incapaz de responder a esses argumentos, e assim mantive silêncio em relação a esses homens; mas agora vos peço, Pai, que me instrua no que deve ser dito em defesa da verdade, para que, seguindo a ordem do apóstolo, eu esteja "preparado para dar conta da fé que há em nós" (1 Pedro 3: 15).

Examinando a natureza das coisas sensíveis, essas pessoas chegaram a um certo conceito de Deus, mas não a uma concepção verdadeiramente digna Dele e apropriada à Sua natureza abençoada. Pois seu "coração desordenado foi obscurecido" pelas maquinações dos demônios perversos que os estavam instruindo. Pois se uma conceituação digna de Deus pudesse ser alcançada através do uso da intelecção, como então essas pessoas poderiam ter considerado esses demônios como deuses, e como poderiam ter acreditado nos demônios quando ensinavam o politeísmo ao homem? Desta forma, envolvidos nesta sabedoria insensata, tola e educação débil, caluniaram Deus e a natureza. Eles privaram Deus de Sua soberania (pelo menos no que lhes diz respeito); eles atribuíram o Nome Divino aos demônios; e estavam tão longe de encontrar o conhecimento dos seres - o objeto de seu desejo e zelo - que alegavam que as coisas inanimadas tem alma e participam de uma alma superior à nossa. Alegavam também que as coisas sem razão são racionais, já que são capazes de receber uma alma humana; que os demônios são superiores a nós e são até nossos criadores (tal é sua impiedade), classificaram entre coisas incriadas, não-geradas e coeternas com Deus, não só a matéria, e o que eles chamam de Alma do Mundo, mas também aqueles seres inteligíveis não revestidos na opacidade do corpo, e até mesmo em nossas almas.

Podemos então dizer que aqueles que possuem tal filosofia possuem a sabedoria de Deus, ou mesmo uma sabedoria humana em geral? Espero que nenhum de nós seja tão louco em afirmar isso, pois, como o Senhor declarou: "A árvore boa não produz frutos ruins" (Mateus 7:18). Na minha opinião, esta "sabedoria" não é nem mesmo digna da denominação "humana", pois é tão inconsistente a ponto de afirmar que as mesmas coisas são ao mesmo tempo animadas e inanimadas, dotadas e privadas de razão, e sustentam que coisas por natureza sem sensibilidade, e sem órgãos capazes de sensação, podem conter nossas almas! É verdade que, às vezes, Paulo fala disso como "sabedoria humana", como quando diz: "Minha proclamação não repousa sobre as palavras persuasivas da sabedoria humana" (1 Coríntios 2:13). Mas, ao mesmo tempo, ele acha correto chamar esses que adquiriram tal conhecimento "sábios segundo a carne" (1 Coríntios 1:26), ou "dizendo-se sábios, tornaram-se loucos." (Romanos 1:22), "questionadores desta era" (I Coríntios 1:20), e a sabedoria deles é qualificada em termos semelhantes: "sabedoria que tornou-se loucura" (1 Coríntios 1:20), "sabedoria que se acabou" (1 Coríntios 1:28), "vãs sutilezas" (Colossenses 2:8),  "sabedoria desta era", e que pertence aos "príncipes" desta era - que estão "chegando ao fim" (1 Coríntios 2:6) .

De minha parte, eu ouço o pai que diz: "Ai do corpo quando não consome o alimento que é de fora, e ai da alma quando não recebe a graça que vem do alto". Ele fala com justiça - pois o corpo perecerá uma vez que tenha passado para o mundo das coisas inanimadas, e a alma se enredará na vida demoníaca e nos pensamentos dos demônios se se desviar daquilo que lhe é própria.

Mas se alguém diz que a filosofia, na medida em que é natural, é um dom de Deus, então se diz a verdade, sem contradição, e sem incorrer a acusação que cai sobre aqueles que abusam da filosofia e a pervertem a um fim antinatural. Na verdade, eles tornam sua condenação mais pesada usando o dom de Deus de uma maneira desagradável a Ele.

Além disso, a mente dos demônios, criada por Deus, possui por natureza a faculdade da razão. Mas não acreditamos que sua atividade vem de Deus, mesmo que a sua possibilidade de agir venha Dele; pode-se com propriedade chamar essa razão de uma desrazão. O intelecto dos filósofos pagãos é também um dom divino, na medida em que possui naturalmente uma sabedoria dotada de razão. Mas tem sido pervertida pelas artimanhas do diabo, que a transformou em uma sabedoria tola, perversa e sem sentido, uma vez que apresenta tais doutrinas.

Mas se alguém nos diz que os próprios demônios têm um desejo e um conhecimento não inteiramente mau, uma vez que desejam existir, viver e pensar, aqui está a resposta correta que eu devo dar: não é correto questionar-nos porque dizemos que a sabedoria grega é "demoníaca" (Tiago 3:15), alegando que suscita discussões e contém quase todo tipo de falsos ensinamentos, e é alienada de seu próprio fim, ou seja, o conhecimento de Deus; mas ao mesmo tempo reconhecemos que pode ter alguma participação no bem de forma remota e incipiente. Deve-se lembrar que nenhuma coisa má é má na medida em que ela existe, mas na medida em que é desviada da atividade apropriada da mesma e, portanto, do fim atribuído a essa atividade.

Qual deve ser, então, o trabalho e o objetivo daqueles que buscam a sabedoria de Deus nas criaturas? Não é a aquisição da verdade e a glorificação do Criador? Isso é claro para todos. Mas o conhecimento dos filósofos pagãos distanciou-se de ambos os objetivos.

Há então alguma coisa proveitosa nesta filosofia? Certamente; pois, assim como há muito valor terapêutico mesmo em substâncias obtidas a partir da carne de serpentes - e os médicos consideram que não há remédio melhor e mais útil do que aquele derivado dessa fonte - então há algo proveitoso a ser obtido mesmo do filósofos profanos - mas de tal maneira similar a uma mistura de mel e cicuta. Por isso, é de maior importância que aqueles que desejam separar o mel da mistura devam ter cuidado que não tomem os resíduos mortais por engano. E se você fosse examinar o problema, veria que todas ou a maioria das heresias prejudiciais derivam sua origem dessa fonte.

É assim com os "iconognosts"*, que pretendem que o homem recebe a imagem de Deus pelo conhecimento, e que este conhecimento conforma a alma a Deus. Porque, como foi dito a Cain, "se você fizer sua oferenda corretamente, sem a partilhar corretamente..." (Gênesis 4: 7). Mas dividir bem é propriedade de poucos homens. Apenas esses que "dividem bem" possuem os sentidos inteiros da alma preparados para distinguir o bem e o mal.

Que necessidade há em correr esses perigos sem necessidade, quando se é possível contemplar a sabedoria de Deus em Suas criaturas não só livre de riscos, mas de forma proveitosa? Uma vida em que a esperança em Deus libertou de todo cuidado, naturalmente, impulsiona a alma para a contemplação das criaturas de Deus. Assim é atingida com admiração, aprofunda seu entendimento, persiste na glorificação do Criador, e através deste sentimento de admiração é levada adiante para o que é maior. De acordo com São Isaac, "Vem como tesouros que não podem ser expressos em palavras"; e usando a oração como uma chave, penetra nos mistérios que "o olho não viu, o ouvido não ouviu, e não entrou no coração do homem" (1 Coríntios 2: 9), mistérios manifestados pelo apenas Espírito àqueles que são dignos, como ensina São Paulo.

Você vê o caminho mais rápido, cheio de proveitos e sem perigo, que leva a esses tesouros sobrenaturais e celestiais?

No caso da sabedoria secular, você deve primeiro matar a serpente, em outras palavras, superar o orgulho que surge dessa filosofia. Como isso é difícil! "A arrogância da filosofia não tem nada em comum com a humildade", como diz o ditado. Depois de vencê-lo, então, você deve separar e lançar fora a cabeça e cauda, ​​pois estas coisas são más no mais alto grau. Pela cabeça, quero dizer opiniões obviamente incorretas sobre coisas inteligíveis, divinas e primordiais; e pela cauda, ​​as histórias fabulosas sobre coisas criadas. Quanto ao que está entre a cabeça e a cauda, ​​isto é, os discursos sobre a natureza, você deve separar ideias inúteis por meio das faculdades de exame e inspeção possuídas pela alma, assim como os farmacêuticos purificam a carne de serpentes com fogo e água. Mesmo se você fizer tudo isso, e fazer bom uso do que foi devidamente reservado, quanta dificuldade e circunspecção será necessária para a tarefa!

No entanto, se você fizer bom uso dessa parte da sabedoria profana que foi bem separada, nenhum mal pode resultar, pois naturalmente se tornará um instrumento para o bem. Mas mesmo assim, não se pode, num estrito sentido, ser chamada de dom de Deus e de natureza espiritual, pois pertence à ordem da natureza e não é enviada do alto. É por isso que Paulo, que é tão sábio em assuntos divinos, chama-a de "carnal" (2 Coríntios 1:12); pois, diz ele: "Considerai que dentre nós que fomos escolhidos, não há muitos sábios segundo a carne" (1 Coríntios 1:26). Pois quem poderia fazer melhor uso dessa sabedoria do que aqueles a quem Paulo diz "os que estão de fora" (1 Timóteo 3: 7)? Mas tendo esta sabedoria em mente, ele os chama corretamente de "sábios segundo a carne".

Assim como no casamento legal, o prazer derivado da procriação não pode ser exatamente chamado de dom de Deus, porque é carnal e constitui um dom da natureza e não da graça (embora essa natureza tenha sido criada por Deus); assim o conhecimento que vem da educação profana, mesmo quando bem utilizado, é um dom da natureza, e não da graça - um dom que Deus concede a todos sem exceção através da natureza, e que pode ser desenvolvido pelo exercício. Este último ponto - que ninguém o adquire sem esforço e exercício - é uma prova evidente de que se trata de um dom natural e não espiritual.

É a nossa sabedoria sagrada que deve legitimamente ser chamada de dom de Deus e não de dom natural, uma vez que até mesmo os simples pescadores que a receberam do alto tornam-se, como diz o Gregório o Teólogo, filhos do Trovão, cuja palavras abrangeram os limites de o universo. Por esta graça, até os publicanos são feitos mercadores de almas; e até mesmo o zelo ardente dos perseguidores é transformado, tornando-os Paulos em vez de Saulos, afastando-se da terra para alcançar o "terceiro céu" e "ouvir coisas inefáveis". Por esta verdadeira sabedoria também nós podemos nos conformar à imagem de Deus e continuar a ser assim até mesmo após a morte.

Quanto à sabedoria natural, diz-se que até Adão a possuiu em abundância, mais do que todos os seus descendentes, embora tenha sido o primeiro que não conseguiu garantir a conformidade com a imagem. A filosofia profana existiu como auxílio a esta sabedoria natural antes do advento Daquele que veio para recordar a alma à sua antiga beleza; por que então não fomos renovados por esta filosofia antes da vinda de Cristo? Por que precisamos, não alguém para nos ensinar filosofia - uma arte que passa com esta era, de modo que é chamada "desta era" (1 Coríntios 2: 6) - mas alguém "que tira o pecado de mundo", e que nos concede uma sabedoria verdadeira e eterna - ainda que esta apareça como "loucura" (1 Coríntios 1:18) aos homens sábios passageiros e corrompidos deste mundo, enquanto que na realidade a sua ausência torna verdadeiramente tolos aqueles que não são espiritualmente ligado a ela? Você não vê claramente que não é o estudo das ciências profanas que traz a salvação, que purifica a faculdade cognitiva da alma, e a conforma ao Arquétipo divino?

Esta é, portanto, a minha conclusão: se o homem que procura ser purificado no cumprimento das prescrições da Lei não obtém nenhum benefício de Cristo - mesmo que a Lei tenha sido manifestamente promulgada por Deus -, então a aquisição das ciências profanas também não trará proveitos. Pois, quanto mais Cristo não será de proveito para quem se volta para a duvidosa filosofia alheia para obter purificação para sua alma? É Paulo, o porta-voz de Cristo, que nos diz isso e nos dá seu testemunho.


*Palamas cria uma nova palavra: iconognost, "aquele que tem um ícone do conhecimento"


Por São Gregório Palamas (1296 - 1359) em "As Tríadas" 

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