sábado, 8 de abril de 2017

Um Cristo e Três Religiões (Vladimir De Beer)

O evento mais decisivo na história da humanidade foi o aparecimento do Deus-homem Jesus Cristo na terra. Isso ocorreu no início do primeiro século na contagem ocidental, no que era então a província Síria do Império Romano - para ser mais preciso, na Galiléia e na Judéia. A fé na vida, o ensinamento, a morte, a ressurreição e a ascensão de Jesus Cristo com o passar do tempo deu origem a três formas diferentes de religião cristã: Ortodoxa, Católica e Protestante. As três têm historicamente reivindicado basear-se no Evangelho de Cristo, e muitos conflitos ocorreram entre seus seguidores ao longo dos séculos.

A Ortodoxia, o Catolicismo e o Protestantismo são muitas vezes vistos como variações de um único tema, em outras palavras, como os três principais ramos do Cristianismo. Neste ponto de vista, a Ortodoxia e o Catolicismo representam as vertentes oriental e ocidental do Cristianismo até sua separação entre o séculos IX e XIII, com o Protestantismo rompendo com seu pais Católicos do século XVI em diante. No entanto, neste ensaio, sugeriremos que é mais correto ver estas três formas religiosas como religiões distintas. Isto não implica a igualdade entre a Ortodoxia, o Catolicismo e o Protestantismo; não pode haver dúvida de que a Ortodoxia representa a plenitude integrante da fé cristã, com o Catolicismo e o Protestantismo desviando em maior ou menor grau.

A base conceitual para a nossa tese é a visão orgânica da história, primeiramente defendida pelo filósofo alemão Oswald Spengler (1880-1936) em sua obra monumental, A Decadência do Ocidente. Neste tomo abrangente Spengler interpreta a história humana como uma sucessão de Altas Culturas, começando com a egípcia e suméria cerca de 3000 aC. Uma Alta Cultura pode ser compreendida como um organismo, uma vez que mostra as marcas essenciais de organismos vivos: nascimento, crescimento, maturidade, velhice e morte. Curiosamente, o pensador russo, Konstantin Leontiev, já tinha em 1875 sugerido que as civilizações espelhavam os padrões de vida de organismos vivos: o crescimento, a floração, o declínio e a morte. Este ponto de vista orgânico não nos surpreende: as culturas humanas consistem de seres vivos, e, portanto, estas culturas deveriam experimentar coletivamente o que os humanos experimentam individualmente.

A principal diferença entre uma Alta Cultura e outros organismos vivos, Spengler argumenta, é a duração. No caso do primeiro, o tempo de vida se estende por dez a doze séculos, enquanto a sua influência sobre uma cultura jovem no seu território pode permanecer por séculos a mais. Este fenômeno é denominado pseudomorfose e Spengler descreve-o particularmente por meio do Clássico tardio dominando o Árabe inicial. Nesse caso, a batalha de Actium (31 aC) foi determinante: a vitória de Otávio sobre Marco Antonio assegurou a dominação continuada Romana (e, portanto, Clássica) sobre o território da Cultura Árabe porvir: o Oriente Médio, Ásia Menor e África do Norte. 

Spengler argumentou ainda que algumas Altas Culturas também experimentaram uma fase tardia imperialista, situada entre a velhice e a morte. Nesta fase todas as energias remanescentes dessa cultura são gastas em uma expansão final. Mais uma vez a Cultura Clássica nos fornece um exemplo instrutivo: a ascensão do Império Romano sob Augusto e seus sucessores. Este império militarista explodiu num momento em que a Cultura Clássica parecia estar em seus espasmos de morte, e por volta do final do primeiro século cristão havia espalhado seu domínio mais amplamente do que qualquer Cultura anterior. De acordo com o modelo de Spengler, este imperialismo final cultural implica não só Cesarismo no nível político, mas também uma segunda religiosidade. Este renascimento da religião supera o racionalismo que caracteriza os últimos estágios de qualquer cultura, e implica um retorno parcial à religião da Cultura inicial.

As Culturas Egípcias e Sumérias foram seguidas pelo nascimento das Culturas Indiana, Chinesa e Clássica por volta de 1500, 1300 e 1100 a.C., respectivamente. Dessas Altas Culturas a Clássica estava em sua fase final quando a Cultura Árabe surgiu durante o século seguinte a vinda de Cristo à Terra. A Cultura Clássica iria exercer uma enorme influência sobre a jovem Cultura Árabe, moldando seu pensamento religioso e filosófico durante vários séculos por vir (pseudomorfose de Spenlger). Nos primeiros séculos do primeiro milênio a Cultura Mexicana apareceu na América Central, a única Alta Cultura que veio a nascer no hemisfério ocidental. Esta cultura também teve o trágico destino de ser a única cuja vida seria violentamente terminada por representantes de outra Alta Cultura - os conquistadores espanhóis.

Por volta do ano 1000 em nossa contagem, uma nova Cultura surgiu ao noroeste da Cultura Árabe. Esta era uma cultura ocidental, com uma relativa autonomia observada pela primeira vez por Spengler. Alemanha, França, Inglaterra e Itália eventualmente tornariam-se os centros nacionais da Cultura Ocidental. Antes deste modelo orgânico da história, o Ocidente geralmente era visto como uma continuação do mundo clássico através da Idade Média. Assim, a maioria dos historiadores ocidentais promoviam o esquema antigo-medieval-moderno das coisas, com o Ocidente moderno (ou seja, a Europa Ocidental e a América do Norte) representando o ápice do desenvolvimento cultural humano. Esta concepção chauvinista da história foi enfraquecida pela tese de Spengler dos ciclos de ascensão e queda das Altas Culturas.

Em termos da concepção orgânica da história, o Ocidente está em suas convulsões finais. Embora os países da Europa Ocidental (talvez toda Europa até oeste da Rússia) e da América do Norte ainda estejam funcionando como entidades políticas e econômicas, culturalmente falando, eles estão debilitados. As atividades culturais superiores de música, literatura, filosofia e assim por diante (isto é, nas suas formas mais ou menos tradicionais) ainda estão sendo praticadas por uma pequena minoria, mas a maioria dos ocidentais se contentam em viver em um estado não-reflexivo como consumidores enquanto adoram o grande deus do entretenimento. Pão e circo não se limitaram aos antigos romanos, para dizer o mínimo. A mesma crítica se aplica à maioria dos seres humanos em outras partes do mundo, uma vez que não há outras Altas Culturas vivas neste momento da história -, mas existe uma possibilidade de uma cultura existente florescer em uma nova Alta Cultura (veja mais adiante).

A pergunta pode ser feita quanto à validade desta abordagem para interpretar a religião em termos culturais. A fé autêntica religiosa não é, afinal, superior a todas as outras atividades humanas? Sim, de fato, mas devemos estar sob nenhuma ilusão de que a religião poderia ser a-cultural, por assim dizer. Todo ser humano é culturalmente condicionado desde o nascimento até a morte, em virtude de possuir uma alma espiritual e não apenas um corpo material. Antes de tudo, entre essas influências culturais onipresentes, está a forma da linguagem, através da qual muitas atividades humana são expressas. Nós até mesmo pensamos em termos de linguagem, o que levou o filósofo ateu Friedrich Nietzsche a lamentar que a fé em Deus não pode ser eliminada, pois as pessoas ainda acreditam na gramática. As atividades religiosas são, portanto, expressas em termos linguísticos, e isso deve ser aceito como providencial.

Seguindo os passos de Spengler, o historiador inglês Arnold Toynbee (1889-1975) escreveu um estudo abrangente da história do mundo. Embora tenha aceitado aspectos da concepção orgânica de Spengler da cultura, Toynbee declarou que a ascensão e queda das culturas não eram inevitáveis. Em vez disso, a maneira pela qual as civilizações respondiam a desafios físicos ou sociais determinava suas chances de sobrevivência.

Ele corretamente fez uma distinção entre as civilizações do mundo Greco-Romano (Cultura Clássica para Spengler), do mundo Ocidental pós-Romano (Cultura Ocidental para Spengler) e do mundo Ortodoxo da Rússia e dos Bálcãs. Contra a acusação de seu predecessor do século XVIII, Gibbon, de que o Cristianismo foi responsável pelo colapso do Império Romano, Toynbee argumentou que o Cristianismo, na verdade, contém a força interior para sobreviver o colapso de civilizações. Em vista do ensinamento de Cristo que o Reino de Deus não é deste mundo, Toynbee, sem dúvida, esteve mais perto da verdade da questão do que Gibbon.

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A mais antiga das religiões cristãs é a Ortodoxia, a Igreja fundada pelos Apóstolos de Cristo. Por quase três séculos, a Igreja Ortodoxa, tendo o grego como principal língua bíblica e litúrgica, sofreu perseguições por diversos imperadores romanos pagãos. Esta hostilidade oficial terminou abruptamente quando o Imperador Constantino concedeu a liberdade religiosa aos cristãos em 313. Mais tarde moveu a capital imperial de Roma para Constantinopla, a Nova Roma, onde convocou o primeiro concílio ecumênico da Igreja em 325. Em seu leito de morte Constantino foi batizado como cristão, recebendo o nome de Basílio. A mãe de Constantino contribuiu para a descoberta dos restos da cruz de Cristo em Jerusalém. Por suas contribuições no estabelecimento da fé cristã Ortodoxa em todo o império, Constantino e Helena foram canonizados como santos pela Igreja. No final do século IV, a Ortodoxia se tornara a religião de estado do Império Romano Cristão.

Durante uma série de concílios ecumênicos que se ocorreram ao longo de um milênio (de 325 a 1349), as doutrinas e práticas da fé Ortodoxa foram formuladas. As decisões destes concílios eram afirmadas como leis imperiais pelo Imperador e assim tornaram-se obrigatórias para todos os cidadãos romanos. Infelizmente, o Império Romano Cristão logo se tornou tão intolerante à dissidência religiosa como o seu antecessor pagão havia sido, de modo que perseguição violenta de hereges (reais e supostos) ocorreram ao longo de sua história. Mesmo grandes teólogos, como Máximo o Confessor, foram perseguidos pela hierarquia da Igreja e / ou pelos governantes imperiais. No entanto, cada desvio em erro era eventualmente corrigido por um concílio ecumênico, devido à presença ubíqua do Espírito de Deus na Igreja, coletivamente falando.

A propagação da Ortodoxia coincidiu com a ascensão da Cultura Árabe, cuja existência foi notada pela primeira vez por Spengler. Em sua obra mencionada argumentou que a Cultura Árabe possuía uma alma mágica que veio a se expressar em suas religiões: persianismo (isto é, zoroastrismo), judaísmo, cristianismo, neoplatonismo e, finalmente, no islã. Em vez da compreensão usual do neoplatonismo como o florescimento final da Cultura Clássica, este é compreendido a partir desta perspectiva como Escolasticismo da Cultura Árabe, embora fortemente influenciado (como foi o caso do Judaísmo e do Cristianismo) pela filosofia clássica. Por sua vez, o neoplatonismo influenciou a Ortodoxia até certo ponto, no mínimo com sua terminologia.

No modelo cultural de Spengler cada Alta Cultura possui uma Alma-da-cultura distintiva que se imprime em todas as atividades humanas nessa Cultura. Assim, a alma mágica da cultura árabe é contrastada com a alma apolínea da persistente cultura clássica e a alma faustiana da cultura ocidental ainda por vir. Segundo Spengler, a alma mágica vê o mundo como uma vasta caverna, expressa no nível físico pelas basílicas abobadadas dos cristãos  e as mesquitas dos muçulmanos.

Dentro da teologia Ortodoxa, a cosmovisão mágica encontrou expressão em uma cosmologia que retratava o mundo em uma estrutura semelhante a uma caixa. Esta foi fundada em uma leitura literal do Gênesis, exposta notavelmente pela escola de Antioquia na Síria. Assim, a terra representava o fundo da caixa e o céu o teto. Acima desta caixa estava o reino do Céu, habitado por Deus e os seres celestiais. Entre os primeiros escritores da Igreja, Orígenes foi um dos poucos que se desviaram dessa cosmologia literalista com sua interpretação alegórica do Gênesis. Com o surgimento da astronomia moderna, tornou-se naturalmente impossível manter essa cosmovisão pré-científica, tendo em mente que os primeiros escritores da Igreja eram informados pela ciência de seu tempo.
Na época em que a Ortodoxia foi declarada a religião oficial do Império Romano (século IV), desenvolveu-se numa intrincada síntese da teologia bíblica / judaica, da filosofia helênica e do pensamento jurídico romano. Os dois últimos componentes foram obtidos através da prevalência da Cultura Clássica tardia, já em sua fase final imperial, em grande parte do Império Romano na época de Cristo. Esta confluência histórico-cultural tem de ser vista como providencial, já que contribuiu para que a Ortodoxia se tornasse mais universal e menos específica à Cultura do que qualquer outra religião anterior. Portanto, é completamente desnecessário que os cristãos Ortodoxos considerem a crítica de alguns de seus oponentes modernos de que sua fé não é suficientemente "bíblica" - tal "crítica" é totalmente irrelevante no esquema maior das coisas.

No entanto, o fato da teologia Ortodoxa se basear não só no pensamento judaico, mas também no pensamento helênico, acabou por provocar uma necessidade popular de uma religião mais consoante com o desenvolvimento da cultura árabe. Por isso, no século VII, o Profeta Maomé apareceu no centro árabe de Meca e Medina para proclamar a supremacia do único Deus (Allah em árabe), e a exigência de que todos os seres humanos se submetam à Sua autoridade - voluntariamente ou através da força. Após a morte de Maomé esta nova religião espalhou-se como um incêndio através dos antigos territórios cristãos do Oriente Próximo e Norte da África. De acordo com a filosofia da história de Spengler, a rápida expansão do Islã inicial foi na verdade uma recuperação dos territórios da cultura árabe do domínio da cultura clássica tardia - daí seu sucesso inicial. Dentro de cem anos os exércitos islâmicos tinham invadido a Península Ibérica, mas eles foram interrompidos na Gália por representantes dos povos que estavam sendo preparados para o nascimento da Cultura Ocidental. Estes guerreiros foram habilmente comandados por Carlos Martel, o 'Martelo' do Deus cristão.

Como resultado desta dramática expansão muçulmana, o mundo cristão Ortodoxo encolheu-se abrangendo então não muito mais do que a Ásia Menor, Grécia, Sul da Itália, Sicília, o Adriático e alguns territórios do Mediterrâneo oriental. Nos séculos seguintes, esses territórios seriam sistematicamente conquistados por invasores muçulmanos ou por "bárbaros" germânicos do noroeste. Uma das piores tragédias da história europeia ocorreu em 1204, quando os cruzados Católicos da Europa Ocidental, supostamente em seu caminho para recapturar Jerusalém dos muçulmanos, saquearam e pilharam Constantinopla, capital cristã Ortodoxa, com ajuda financeira e naval veneziana. Esta traição dos cristãos Católicos levou a uma duradoura desconfiança do ocidente entre muitos cristãos Ortodoxos - compreensivelmente.

Durante o último século ou dois, a religião Ortodoxa tornou-se amplamente difundida fora do coração Ortodoxo da Europa Oriental e dos Balcãs. Devido ao aumento da emigração de países como Grécia, Rússia, Sérvia e Romênia, juntamente com a atividade missionária esporádica, existem hoje numerosas igrejas Ortodoxas em toda a Europa Ocidental, América do Norte e do Sul, Austrália e partes da Ásia e África. Há também uma crescente presença monástica Ortodoxa em várias partes do mundo. Esta impressionante expansão é o resultado do declínio (em números e influência) do Catolicismo e do Protestantismo dominante em muitos desses países.

A presença da Ortodoxia no Ocidente pós-cristão humanista-secular de hoje representa um enorme desafio para aqueles que desejam viver uma vida cristã dentro dela. É de se esperar que os cristãos Ortodoxos no mundo ocidental serão cada vez mais retratados como anacrônicos, reacionários e atrasados. Esse ataque vem principalmente dos meios de comunicação de massa, sendo o instrumento mais eficaz dos poderes espirituais escusos que governam o mundo. Como resultado, muitos Ortodoxos, até clérigos, estão sucumbindo a esta ofensiva anticristã, adaptando-se aos costumes ocidentais humanistas. O mais notável entre estes compromissos é a rejeição do calendário da Igreja por partes do mundo Ortodoxo, e sua substituição pelo calendário Católico Romano e Protestante. Providencialmente, a maior parte da Igreja Ortodoxa permaneceu fiel aos concílios ecumênicos a este respeito.

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A alma da Cultura Ocidental é caracterizada sobretudo pelo anelo ao infinito, como Spengler demonstrou por meio de exemplos numerosos retirados da matemática, da arquitetura, da pintura, e da música. Já em seu primeiro século, este esforço faustiano do Ocidente se expressou na esfera política e militar por meio das Cruzadas, apesar da piedosa reivindicação dos cruzados de estar lutando para reconquistar a "Terra Santa" por Cristo. Dentro de um século ou dois este mesmo anelo manifestou-se no nível artístico nas grandes catedrais góticas do Norte da Europa. Estes imponentes edifícios forneceriam o cenário espacial para o desenvolvimento do canto gregoriano, a música litúrgica do novo cristianismo gótico. Para Spengler, esta foi a segunda obra do cristianismo, mil anos após a religião cristã original ter aparecido no Oriente Próximo.
Quando a Cultura Ocidental começou a se expressar como um organismo jovem, naturalmente precisou de uma religião que fosse consoante com sua alma faustiana. Ou, como disse o filósofo grego Christos Yannaras, o "Sacro Império Romano" de língua latina, precisava de uma base cultural para diferenciá-lo do Império Romano Oriental de língua grega. Desde uma perspectiva metafísica, é concebível que a Ortodoxia, com suas fundações helênicas e do oriente médio, não poderia satisfazer inteiramente a busca religiosa ocidental. Portanto, os teólogos ocidentais desenvolveram uma versão da fé cristã que se baseava parcialmente na tradição teológica agostiniana e parcialmente na metafísica aristotélica redescoberta. A esta metafísica aristotélica foi dada uma interpretação cristã por Tomás de Aquino, e desta forma a religião Católica nasceu.
Um dos principais aspectos teológicos em que a religião Católica, ou o cristianismo gótico na terminologia de Spengler, desviou-se de seu parente Ortodoxo é o papel de Cristo. Enquanto Cristo no Oriente cristão sempre foi visto principalmente como o Cristo Cósmico, ou seja, o Logos Divino que é o criador do universo, a teologia Católica O viu principalmente em termos jurídicos. Assim, Jesus veio ao mundo para pagar a penalidade exigida por Deus pela a transgressão humana da Lei Divina. Como Anselmo afirmou, uma transgressão infinita exigiria um sacrifício infinito, de modo que nada menos que a morte de Cristo poderia apaziguar a majestade ofendida de Deus. Não pode haver dúvida de que essa interpretação jurídica da obra de salvação de Cristo é uma distorção da mensagem do Novo Testamento, mas que, no entanto, reflete a base latino-legalista da nova Cultura Ocidental.
Foi este mal-entendido legalista da teologia cristã que facilitou as tentativas incessantes - pelos papas Católicos e cardeais - de sujeitar reis e imperadores à sua autoridade. A Igreja era vista principalmente em termos jurídicos, e não em termos ontológicos, como na Ortodoxia. Essa eclesiologia desviada levaria, antes de tudo, aos métodos diabólicos da Inquisição, como os horrores da tortura e da estaca. A este respeito, devemos também mencionar o genocídio Católico dos albigenses e cártaros neo-gnósticos no norte da Itália e no sul da França, sancionado pela autoridade papal.
Durante a Idade Média houve um desenvolvimento litúrgico na Igreja Católica que contribuiria significativamente para a eventual ruptura no cristianismo gótico. Na Ortodoxia, o culto sempre foi visto como comunal, isto é, o clero e os leigos que estão juntos diante de Deus na adoração. Esta convicção é simbolizada pelo sacerdote de frente para o altar juntamente com a paróquia. No entanto, no ocidente franco-latino surgiu uma visão divergente - uma que via o sacerdote como mediador entre Deus e o homem e, portanto, como dispensador dos sacramentos. Esta divergência conduziu necessariamente ao empoderamento sacerdotal em detrimento dos leigos. A maior parte dos cristãos Católicos foi deixado à mercê do clero no que diz respeito à salvação. A excomunhão tornou-se a principal arma da Igreja, e permaneceu assim depois que o poder mundano passou às mãos de imperadores e príncipes, ao invés das mãos de papas e cardeais. Não é difícil compreender como esse estado de coisas inevitavelmente levou a uma revolta generalizada com o passar do tempo.
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No século XVI, grande parte do mundo ocidental foi profundamente abalado pela revolução Protestante. O que começou como propostas de reforma para Igreja Católica - feitas por um monge alemão mergulhado na tradição agostiniana - logo se transformou em uma ruptura política contra os governantes Católicos nos grandes territórios no norte da Europa. No final daquele século, a Escócia, a Prússia, a Holanda, a Inglaterra e a Suíça se tornaram Protestantes. A colonização da América do Norte e da África do Sul por colonos dessas nações no século XVII garantiu que esses territórios também fossem Protestantes na fé, pelo menos nos estágios iniciais.

Dentro da cultura ocidental, o Protestantismo desempenhou um papel análogo ao do islamismo dentro da cultura árabe. Ambos surgiram como grandes tentativas de purificação, alegando ser um retorno à revelação divina original. Ambos reivindicam a autoridade da Sagrada Escritura para seus ensinamentos, seja o Alcorão ou a Bíblia. Ambos são iconoclastas, rejeitando as representações visuais de verdades sagradas como "idolatria". Ambos se espalharam com uma rapidez surpreendente e se tornaram a fé dominante em vastos territórios: o Oriente Próximo e Norte da África para um e o Norte da Europa para o outro. Destas regiões, ambas as religiões se estenderam ainda mais para outros continentes, uma mais para o Oriente e outra para o Ocidente.

No entanto, uma diferença fundamental entre o Islã e o Protestantismo se encontra nas concepções sobre a pessoa e a comunidade. Na concepção islâmica, a pessoa individual está sempre relacionada com a comunidade de fiéis. São comunidades inteiras que têm de se submeter a Deus, e não apenas pessoas individuais. Em contraste, o Protestantismo enfatizou desde o início o indivíduo perante Deus. Essa abordagem necessariamente (dada a natureza humana pecaminosa) levou ao individualismo excessivo ser uma marca do mundo Protestante ao longo de sua história. Até mesmo a doutrina Protestante da sola scriptura não pôde se proteger das interpretações individualistas da Bíblia, e esse fenômeno inevitavelmente levou à fragmentação do Protestantismo em milhares de denominações concorrentes, cada uma delas afirmando basear sua fé apenas na Escritura.

A religião Protestante tem Martinho Lutero como seu pai fundador. Seus escritos lançaram as bases para grande parte da teologia Protestante, sem mencionar sua tradução alemã da Bíblia. Além disso, a música litúrgica escrita por Lutero e seus seguidores tornou-se um pilar do canto coral Protestante em muitas partes do mundo. Esta tradição musical foi continuada por compositores como Praetorius, Scheidt, Schein, Buxtehude e outros, culminando em Johann Sebastian Bach, que em suas inúmeras obras sacras criou uma beleza espiritual transcendente - a mais alta expressão musical da alma faustiana.

Pouco depois que Lutero e seus companheiros evangélicos (como eles se chamavam) começaram sua reforma, surgiu outra corrente Protestante - que acabaria se tornando mais difundida do que a luterana. Esta é o Protestantismo reformado, também conhecido como calvinismo. A figura principal na teologia reformada é João Calvino, um francês que se instalou em Genebra. Sua magnum opus, Institutos da Religião Cristã, obteria um status de segundo lugar, ficando atrás somente da Bíblia entre muitos Protestantes. Calvino levou certos ensinamentos sobre a graça divina e a predestinação do grande pensador latino da Igreja primitiva, Agostinho, a conclusões extremas. Como resultado, o calvinismo tornou-se associado à doutrina da dupla predestinação: Deus predestina algumas pessoas para a salvação e outras para a condenação. É fácil observar como essa distorção inevitavelmente leva ao fatalismo - se a salvação é somente pela eleição de Deus, então por que se preocupar com qualquer tipo de esforço espiritual?

No século seguinte a Lutero, Calvino e seus companheiros, o Protestantismo tornou-se ainda mais extremo em sua rejeição do cristianismo gótico medieval. Este novo fundamentalismo tornou-se conhecido no século XVI como puritanismo. O tirano inglês e regicida Cromwell desempenhou um papel de liderança no estabelecimento da religião puritana na Grã-Bretanha, de onde foi levado para as novas colônias americanas. De acordo com a filosofia orgânica da história de Spengler, o papel de Cromwell na Cultura Ocidental é equivalente ao de Maomé na Cultura Árabe e Pitágoras na Cultura Clássica. Todos os três foram fundamentais para estabelecer uma religião puritana em suas culturas, cada uma vendo-o como um instrumento da vontade divina.

Desde então, a religião Protestante caiu gradualmente sob o domínio do racionalismo. Isso pode ser visto como um resultado inevitável da rejeição Protestante do misticismo, que foi ignorantemente ou arrogantemente confundido com superstição. De mãos dadas com a ascensão do racionalismo veio a explosão das ciências naturais a partir do século XVII em diante. Infelizmente, esse desenvolvimento inevitável trouxe não apenas o iluminismo, mas também a pseudo-religião do cientificismo. No século XIX, essa fé irracional na capacidade da ciência de explicar não apenas os fenômenos naturais, mas também o mundo espiritual-intelectual, tornara-se quase dominante entre as classes educadas da Europa Ocidental e da América do Norte.

No entanto, durante o século XVIII uma reação ao racionalismo surgiu nas mesmas partes do mundo onde o racionalismo e o cientificismo se estabeleceram. Essa reação ficou conhecida como Pietismo na Alemanha e como Metodismo na Grã-Bretanha. A devoção pessoal a Deus novamente veio à tona para muitos cristãos ocidentais, independentemente do escárnio proveniente dos sábios e poderosos. Essa reação pietista ao racionalismo é, na visão de Spengler, o equivalente ocidental do estoicismo na cultura clássica e o sufismo na cultura árabe. O pietismo Protestante eventualmente se espalhou por todo o mundo de língua inglesa, bem como pelos países mais germânicos da Europa.

Desde o início do século XX, o mundo Protestante foi perturbado com o chamado movimento pentecostal. Ele surgiu como a maioria dos cultos e seitas dos tempos modernos no bastião da liberdade, os Estados Unidos da América. O pentecostalismo vê-se como uma "nova efusão do Espírito Santo", sendo sua marca característica  o "falar em línguas". Este fenômeno auto-induzido é geralmente praticado em conjunto com emocionalismo, sendo este último incitado pelos ministros pentecostais. A partir da década de 1960, a aberração pentecostal começou a infiltrar-se nas grandes denominações Protestantes e, depois do Concílio Vaticano II, também na Igreja Católica. Nessa nova forma, tornou-se conhecido como o chamado movimento "carismático", seus proponentes afirmando arrogantemente de estarem "reintroduzindo louvor e adoração" na Igreja cristã (isto é, Protestante e Católico-modernista). O bem-aventurado escritor espiritual Ortodoxo Pe. Serafim Rose (1934-1982) escreveu uma exposição esclarecedora do movimento 'pentecostal / carismático', mostrando que não era outra coisa senão uma enganação satânica. Providencialmente, a Igreja Ortodoxa como um todo tem sido poupada deste fenomeno anti-cristão mascarado como "obra do Espírito Santo", embora uma parte modernista tenha tentado introduzir certos aspectos na Ortodoxia.

Dentro do Protestantismo, apenas o movimento anglo-católico na Comunhão Anglicana pode hoje ser entendido como representante de uma fé cristã mais ou menos tradicional, ainda que em sua forma ocidental. Este movimento começou em meados do século XIX, espalhando-se de Oxford para várias partes do mundo de língua inglesa. Desde então, os anglo-católicos vêm combatendo em conjunto com uma ação de retaguarda teológica, numa tentativa sincera de preservar o que resta da fé cristã em meio a um ambiente cada vez mais secularizado e humanista da igreja. Eles merecem o respeito de todos os cristãos.

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Até então consideramos brevemente a Ortodoxia (Grega), o Catolicismo e Protestantismo em termos do modelo orgânico de Spengler. Para concluir este ensaio, analisemos a fé cristã Ortodoxa dominante nos tempos modernos: a Ortodoxia Russa. Desde a sua criação por missionários Ortodoxos gregos no século X, a Igreja Ortodoxa Russa cresceu tornando-se o maior membro da família Ortodoxa. Ao longo dos últimos séculos, realizou um vasto trabalho missionário na Ásia Central, na China, no Japão, no Alasca e em outros lugares. Agora, no século XXI, a Ortodoxia russa está preparada para proclamar a mensagem cristã mais uma vez no mundo ocidental pós-cristão.

É de particular importância para nós o fato de que Spengler estava convencido do potencial da Rússia para se tornar a próxima Alta Cultura, em meio à morte cultural inescapável do Ocidente. O filósofo alemão observou que a Rússia repetidamente nos tempos modernos foi submetida a influências alienígenas por seus governantes, tornando-se um outro caso de pseudomorfose. A primeira foi a tentativa de Pedro, o Grande, de modernizar a Rússia segundo os moldes ocidentais, implicando entre outras ofensas a abolição do Patriarcado de Moscou. Após um hiato de 200 anos, o Patriarcado foi restabelecido na véspera da revolução bolchevique em 1918, embora sua liberdade tenha tido curta duração. Tendo consolidado seu poder sobre o antigo Império Russo, os comunistas bolchevistas estabeleceram um Estado totalitário baseado no pensamento marxista-leninista. Esse grandioso projeto de engenharia social representava uma ulterior ocidentalização da Rússia, uma vez que Marx e Lenin eram ambos produtos do pensamento revolucionário da Europa Ocidental. Ironicamente, foi o mais feroz inimigo da Ortodoxia russa, o tirano Stalin, que também se esforçou para desfazer alguma das ocidentalizações de seus predecessores.

Entre os famosos escritores russos, Tolstói representava o passado ocidentalizado, argumentou Spengler, enquanto Dostoiévski apontava para o futuro. Curiosamente, no mundo Ortodoxo, Dostoiévski, com seu profundo insight psicológico e visão mística, tornou-se um dos pensadores mais influentes desde o final do século XIX. Numerosos escritores Ortodoxos, incluindo teólogos e filósofos bem conhecidos, reconheceram sua dívida espiritual-intelectual a este profeta da Ortodoxia Russa dos últimos dias. É compreensível por que Spengler acreditava que uma "terceira grande obra do cristianismo" (ou seja, após a Ortodoxia grega e o Catolicismo) viria da Rússia.

A este respeito, é significativo que, em 1988, a Igreja Ortodoxa Russa celebrou o milênio desde o estabelecimento da Ortodoxia nas terras russas. Logo depois, a Rússia começou a se livrar da herança de 70 anos da revolução bolchevique, embora os novos governantes pós-soviéticos tenham errado em permitir que as influências americanas-globalistas causassem estragos socioeconômicos no país. Desde o início do terceiro milênio, o governo russo, liderado pela poderosa parceria de Vladimir Putin e Dmitry Medvedev, trabalhou arduamente para trazer uma identidade russa renovada ao seu povo muito sofrido. A hierarquia Ortodoxa russa cooperou ativamente a esse respeito, além de evangelizar uma população afastada de sua Igreja por décadas de propaganda comunista. Assim, surgiu o renascimento mais espetacular da história cristã, com milhares de paróquias, centenas de mosteiros e dezenas de seminários reconstruídos e reabertos na Rússia desde o início dos anos 90.

No entanto, para que uma auto-satisfação sobre este reavivamento da Igreja não se instale, deve ser reconhecido que ainda há muito a ser feito por parte da Igreja e do Estado na Rússia. Altos níveis de imoralidade representam um desafio contínuo, para não mencionar o assassinato periódico de clérigos por inimigos de Cristo. A condição socioeconômica da maioria da população é terrível, sendo a luta diária pela sobrevivência a norma, especialmente para os idosos e os enfermos. Inescusavelmente, as enormes receitas dos recursos naturais do país são restritas aos ricos e seus parceiros. E a corrupção desenfreada ocorre em todos os níveis de administração e serviço público, apesar das tentativas de Putin e Medvedev de estabelecer um sentido de responsabilidade entre os funcionários. Estes problemas e desafios terão de ser abordados com vigor e determinação para que a Rússia possa cumprir o seu potencial de ser uma força para o bem neste mundo.

Vladimir De Beer
14 de Março, 2010 

4 comentários:

  1. Muito bom! Também sempre vi Tolstói como muito ocidentalizado, e influenciado por Kant e Dostoievski como um grande pensador da grandeza da Rússia.

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  2. Hello, thank you for translating my essay 'One Christ, three religions' into Portuguese. I trust you won't mind if I share this on my Academia page. Please let me know.
    Regards,
    Vladimir de Beer

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  3. Thanks Tony,
    It is vladimir.debeer@gmail.com
    Best wishes!

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