A tradição canônica bizantina repousa sobre um fundamento de ética da virtude, mas o que têm as regras a ver com a virtude? A forma mais fácil de examinar a relação entre regras e virtude é examinar o que acontece quando as pessoas não seguem as regras, ou seja, o uso de penitências nos cânones sagrados.
O locus classicus relativo à aplicação das penitências na tradição canônica bizantina é o cânone 102 do Concílio Quinissexto, o epítome bizantino diz: "A qualidade do pecado deve ser considerada e a disposição do pecador para a conversão [mudança] ... então seja medida a misericórdia na proporção apropriada." [25]
O próprio texto do cânone é dirigido àqueles que têm o poder de ligar e desligar (ou seja, os bispos segundo Zonaras e Balsamon) e descreve o pecado como uma doença e a penitência como uma cura. [26] O pecador é descrito tanto como uma ovelha perdida, que deve ser reencaminhada, como uma pessoa doente, que deve ser curada. O cânone prescreve que a cura deve ser adaptada ao penitente. Zonaras comenta que a disposição do penitente é o mais importante quando se mede a misericórdia e se adapta as penitências prescritas à situação do penitente.[27] Aristenos diz que os Pais deixaram ao julgamento daqueles que receberam de Deus o poder de ligar e desligar para prescrever uma penitência para cada pecado.[28] Ele enfatiza que o propósito da penitência é curar o penitente e retorná-lo ao rebanho.
Em suma: as sanções penais prescritas pelos cânones sagrados não são entendidas como sanções vindicatórias e justiça retributiva, mas sim como sanções medicinais e justiça reparadora. O pecado não é entendido como uma falta no cumprimento de uma obrigação e a penitência não é o remédio para uma falta no cumprimento de uma obrigação. Este não é um entendimento deontológico da moralidade cristã.
Mas o que são os cânones sagrados? Os canonistas refletem sobre a natureza dos cânones sagrados em seus comentários ao cânone 1 de Nicéia II.[29] De acordo com o texto do cânone, os cânones são testemunhos e diretrizes e vários textos do Antigo Testamento são utilizados como justificativas bíblicas para a autoridade dos testemunhos. É dito que os concílios e os Pais que compuseram os cânones foram inspirados pelo Espírito Santo, que os ajudou a decidir o que é apropriado.
Zonaras explica no seu comentário a este cânone que "testemunhos" na Sagrada Escritura denotam os regulamentos do Senhor que sugerem e testificam como devemos viver e como os transgressores do regulamento do Senhor devem ser punidos.[30] Ele continua a dizer que aqueles que observam os cânones e regulam a sua vida de acordo com eles cultivam a virtude e são muito agradáveis a Deus. Balsamon diz que os testemunhos são os mandamentos da Sagrada Escritura que exemplificam e testificam como os fiéis devem viver.31 Em suma: os cânones sagrados são testemunhos inspirados e exemplos de um modo de vida agradável a Deus que cultiva a virtude.
Em conclusão: A antropologia teológica dos canonistas bizantinos clássicos pressupõe que a mortalidade, as paixões e o desejo são resultados do pecado original que definem a natureza humana pós-lapsariana [pós-Queda]. No estado pré-lapsariano [pré-Queda] a natureza humana era potencialmente imortal e livre para escolher entre virtude e vício, mas com a ajuda da graça a pessoa humana ainda pode cultivar virtude no estado pós-lapsariano.
Isto ecoa a antropologia teológica de São João de Damasco que descreve a imagem de Deus na pessoa humana como o intelecto e o livre arbítrio, ao passo que a semelhança de Deus é a perfeição das virtudes tanto quanto possível para a pessoa humana. [32]
Os cânones sagrados são entendidos como testemunhos inspirados e exemplos de um ethos que auxiliam a pessoa humana a cultivar a virtude e a viver uma vida agradável a Deus; no entanto, a fraqueza humana torna o pecado inevitável, mas a penitência é entendida como um remédio contra os pecados que prejudicam o cultivo da virtude.
O texto é um trecho do artigo Theological Anthropology and the Eastern Orthodox Canonical Tradition do David Heith-Stade, Ph.D.
Notas
25 Rallis, G. A. e M. Potlis, eds., Σύνταγμα τῶν θείων καὶ ἱερῶν κανόνων, vol. 2, Athens: Chartophylakos, 1852, p. 553.
26 Ibid., pp. 549-550.
27 Ibid., pp. 550-552.
28 Ibid., pp. 553-554.
29 Ibid., pp. 555-556.
30 Ibid., pp. 557-559.
31 Ibid., p. 559.32
32 João de Damasco, De fide orthodoxa 2.12.
* Nota do tradutor: A seguir o texto completo do referido cânone 102 do Concílio Quinissexto:
Aqueles que receberam de Deus o poder de ligar e desligar, devem considerar a qualidade do pecado e a disposição do pecador para a conversão [mudança] e assim usar um remédio apropriado para a doença, evitando que, se for imprudente em cada um destes aspectos, falhe no que diz respeito à cura do doente. Porque a enfermidade do pecado não é simples, mas é variada e complexa, e produz muitas ramificações nocivas, das quais o mal é abundantemente disseminado, até que é detido pelo poder do médico. Portanto, aquele que professa a ciência da medicina espiritual deve, antes de mais nada, considerar a disposição daquele que pecou, e ver se tende à saúde ou (pelo contrário) provoca doenças a si próprio pelo seu próprio comportamento, e observar como ele se comporta durante o período. Se ele não resistir ao médico e se a ferida de sua alma estiver a ser curada pela aplicação do remédio prescrito: então seja medida a misericórdia na proporção apropriada. Porque o que é importante para Deus e para a pessoa que seguiu a orientação pastoral é que a ovelha perdida regresse e a ovelha que foi mordida pela serpente seja curada. Portanto, não devemos levar o paciente ao limite precipício do desespero, nem dar rédea solta para uma vida dissoluta e de descuido, mas, pelo contrário, devemos por todos os meios possíveis: seja por meio de remédios rigorosos e extremos; ou mais suaves e mais leves, agir contra a doença e lutar pela cura das feridas daqueles que estão provando os frutos do arrependimento, auxiliando-os com sabedoria no caminho da iluminação celestial a que o homem é chamado. "Devemos, portanto, reconhecer os dois métodos, o da estrita observância do cânon e o do costume, e seguir, no caso daqueles que não aceitam a severidade, o método tradicional", como ensina São Basílio.
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