São Pedro e São Paulo |
A lógica por trás do modelo papal parece estar baseada na compreensão
da Igreja como uma unidade autocontida na terra, exigindo uma cabeça
visível com plena jurisdição, segundo a qual a Igreja é una e unida de
maneira consistente com as organizações humanas. As igrejas locais são,
portanto, porções do todo e só podem ser consideradas "igreja" enquanto
estiverem dentro do todo sob a liderança do Papa. O Papado é a fonte de
unidade para a Igreja. Considerando-se que a Igreja é autocontida na
terra, então a lógica e o modelo papal é coerente. A questão é se a
Igreja deve e precisa ser considerada como autocontida na terra. Se não,
então a lógica papal não necessariamente se aplica.
Um
modelo de federação funciona quando a Igreja é considerada como um
corpo unido a Cristo com presença terrena e celeste. Cristo é ativa e
diretamente a sua cabeça e a fonte da unidade. A Igreja então é maior
que a presença de igrejas na terra e não seria consistente falar de uma
igreja universal com uma cabeça terrestre, porque isso limitaria a plena
extensão da Igreja e separaria a igreja terrestre dos santos no céu,
que ainda são membros da Igreja; a Igreja não é meramente uma
instituição no mundo, mas uma realidade daqueles com um relacionamento
particular com Cristo, que pode transcender o tempo e o lugar. Ao invés
de falar da Igreja universal como aquela com uma cabeça terrestre, a
Igreja se torna totalmente manifesta, católica, em cada igreja local,
com Cristo plenamente presente em cada bispo. A hierarquia dos bispos
manifesta a unidade da Igreja e o Papado/Patriarcado Ecumênico
desempenham um papel ecumênico na Igreja para a unidade, mas não são a
fonte da unidade, mas sim uma manifestação/preservação da unidade. Não
há uma igreja universal autocontida na terra, portanto não há jurisdição
plena sobre toda a igreja por uma cabeça na terra. A igreja inteira se
manifesta em cada lugar com a liderança de Cristo manifestada através do
bispo. Uma vez que não há autoridade acima de Cristo, não há bispo de
bispos, portanto não há espaço para a estrutura papal definida no
Catecismo [Católico Romano]. Entretanto, isso não impede uma hierarquia
de bispos com vários níveis de autoridade, incluindo uma autoridade
"universal", desde que essa autoridade respeite as autoridades
jurisdicionais dos outros bispos. [...]
Como
ressalta Meyendorff, a inquietação dos teólogos bizantinos com o
desenvolvimento da primazia na Igreja de Roma é que a compreensão da
primazia de Roma era tal que começou a limitar o lugar de São Pedro
exclusivamente à Sé de Roma e assim prejudicar a dignidade de cada um
dos outros bispos. Que tal dano poderia ocorrer significa que o lugar de
São Pedro carrega consigo certa autoridade e poder que está associado
ao lugar. Assim, o modelo papal tal como se desenvolveu de modo a
excluir as funções dos outros primazes, tais como na ordenação e na
recepção de apelos, removeu o lugar de São Pedro daqueles bispos sob o
Papa. Isto leva ou à destruição do episcopado com apenas um bispo, sendo
o de Roma, ou à situação de um bispo de bispos, o que comprometeria
mais uma vez o episcopado, porque agindo no lugar de Cristo dentro da sua jurisdição significa que não pode haver uma cabeça direta desse bispo na mesma jurisdição, de outro modo, esse bispo não apresentaria Cristo como verdadeiramente a Cabeça da
Igreja. Os sínodos superiores são limitados em jurisdição dentro dos
sínodos inferiores, pois deve existir uma verdadeira liderança que não
esteja submetida em todos os aspectos a outra cabeça; deve haver
liberdade para governar. Reduzir o episcopado a uma só Sé é um retorno a
uma situação judaica, o que também é argumentado por Nikolaos
Mesaritas. Cristo ascende para preencher todos os lugares e a Igreja
deve ser plena e igualmente refletida em todo e qualquer lugar para que
aponte para Cristo e a Igreja una nele preenchendo todas as coisas e
transcendendo este mundo, seus lugares e nações; a Igreja está no mundo,
mas não é do mundo. Esta concepção coincide bem com a compreensão da
primazia de São Pedro a qual veremos em São Leão o Grande. [...]
Esta
estrutura é consistente com as evidências que têm sido consideradas
acima desde os primeiros séculos e permaneceu, em princípio, a prática
contínua das igrejas católicas (Ortodoxas) nos Patriarcados Orientais.
No Patriarcado Ocidental, as igrejas católicas (Católicas Romanas),
entretanto, desenvolveram a posição de que o Bispo de Roma deve ter
jurisdição sobre e em todas as outras igrejas. Essa jurisdição de Roma
parece ser um desenvolvimento lógico derivado do lugar da primazia de
Roma, no entanto levanta-se a questão de saber por que isso não se
manifestou claramente antes na vida da Igreja e por que não foi aceito
nos Patriarcados Orientais desde o século IX, quando o Papa Nicolau I
começou a estabelecer sua posição cada vez mais nestes termos.
Uma
explicação para o limite do poder da (Antiga) Roma, e por extensão da
Nova Roma, pode ser encontrada no modelo "cipriano", sem a necessidade
de invocar o modelo eucarístico. No modelo "cipriano", não pode existir
um bispo de bispos porque cada bispo local é Cristo em sua própria
Igreja e nenhum outro bispo pode ter jurisdição direta dentro de sua Sé
sem ser um Cristo de Cristo. Além disso, cada bispo só pode governar uma
única Sé como bispo e sua regência nessa Sé é inviolável, se
consistente com a Tradição da Igreja. O papel dos metropolitas e dos
patriarcas não é uma regência episcopal sobre suas regiões, mas um
centro de unidade dos bispos e a gestão dos bispos como iguais. Assim,
um bispo de bispos deve ser rejeitado, assim como qualquer idéia de uma
jurisdição episcopal sobre ou por meio de qualquer outra coisa que não
seja uma sé local. O modelo papista não é uma extensão e resultado
lógico do modelo "cipriano", que não supõe uma estrutura de Igreja
universal, como Afanasiev parece entender o modelo, porque o modelo
papal é inconsistente com a jurisdição inviolável do bispo de cada
igreja local. No entanto, isso ainda não explica satisfatoriamente
porque o Papa/Patriarca Ecumênico não ordena os outros Patriarcas e
convoca os concílios ecumênicos. Embora existam algumas razões de
implementação prática para tais limites, precisamos considerar se
existem razões para a prática além da conveniência prática. As razões
práticas de conveniência incluem problemas de distância e de acesso para
ordenar os outros Patriarcas e para ter um concílio regular. Nos
tempos antigos, estas eram questões mais preocupantes do que são hoje e,
sem dúvida, faziam parte das razões por trás de não ter o Papa
ordenando Patriarcas e convocando Concílios "Patriarcais". No entanto,
pode haver mais do que praticidade na questão. Uma razão além da
conveniência é que a inexistência de um Concílio Ecumênico permanente e
de uma ordenação central de Patriarcas impede o desenvolvimento de um
bispo de bispos, pois tal possibilidade se tornou praticamente possível,
que é o que de fato se desenvolveu no Patriarcado Ocidental, quando
este se considerou universal sobre os Patriarcas Orientais. Outra razão é
impedir que a posse da Fé se torne demasiado centralizada e controlada
por um só, ou por um concílio muito pequeno de poucos Patriarcas. Isto
deixaria a Fé muito vulnerável a um potencial esforço herético visando
controlar toda a Igreja, algo que preocupava Gregório o Grande quando o
uso do título Patriarca Ecumênico se tornou comum na Sé de
Constantinopla. Um certo número de Patriarcas administrados
independentemente impede que uma única influência controladora preencha
as cátedras episcopais com seus candidatos favorecidos. Patriarcas
independentes constituiriam uma proteção contra isso e um testemunho
contra um desvio da Tradição. Isso explicaria porque o Patriarca
Ecumênico não ordena outros Patriarcas e porque ele não é a cabeça de um
concílio permanente que ele convoca porque isso implica um grau de
autoridade sobre os outros Patriarcas. Outra razão é impedir que a
Igreja seja vista como sendo una como uma organização terrena e centrada
num só lugar na terra, o que negaria que ela esteja em todos os
lugares. Por isso, embora reconhecendo o seu primeiro lugar, a
jurisdição de apelação e a supervisão geral para que o mistério da
unidade se torne claro reconhecendo uma Sé (ou duas como se tornou) como
primeira; a esta Sé não é dada a capacidade de convocar um Concílio
Ecumênico nem de ordenar outros Patriarcas com o fim de impedir a
centralização excessiva da Fé e das hierarquias, que também reconhece
que cada hierarca tem o mesmo posto que o outro e todos mantêm e
preservam a Fé com igual responsabilidade. Assim, a estrutura
hierárquica nos Concílios com uma cabeça reconhecida é essencial para
manifestar e manter a unidade da Igreja, mas é limitada no nível
ecumênico para garantir a preservação da Fé e impedir o surgimento de um
bispo de bispos que destruiria a igualdade essencial dos bispos, o que
ocorreu na Antiga Roma com a doutrina atual do papado. [...]
O
bispo é um ícone necessário de Cristo dentro da igreja local, ainda que
cada igreja local possa ser composta por um número de paróquias e, na
Eucaristia celebrada em cada paróquia, a presença plena da igreja é
realizada, se o presbítero, que preside o serviço, estiver unido ao seu
bispo local. Dentro de uma igreja local, as muitas paróquias refletem os
muitos locais das igrejas locais em todo o mundo, ou seja, a estrutura
paroquial da igreja local é um microcosmo da presença global da Igreja
em muitos lugares. Isto também se aplica dentro da paróquia, sendo cada
uma das muitas casas uma pequena igreja em si dentro da mesma paróquia. A
mesma razão explica também a hierarquia dos bispos. Assim como cada
paróquia local manifesta a igreja plena, devido à Eucaristia com seu
presbítero como presidente, só é assim no contexto da união com o bispo e
as outras paróquias, assim também cada igreja local, sendo a
apresentação plena da igreja, só é assim em união com um bispo principal
regional, o metropolita, e com outras igrejas locais. Cada região, por
sua vez, requer a união com um bispo multi-regional, um Exarca,
Patriarca ou Papa, e cada Patriarca com um, um Patriarca Ecumênico ou
Papa. Esses níveis de hierarquia manifestam a unidade da Igreja através
de suas camadas de hierarcas unidos e refletem que existe uma Igreja
em muitos lugares e não muitas igrejas. Esta hierarquia é conciliar,
porque cada paróquia e Igreja local tem como sua cabeça Cristo e assim é
a mesma cabeça como o bispo, metropolita ou patriarca. A liderança [do
primaz] precisa ser reconhecida e preservada através do processo de ter
uma voz no concílio, mas todos preservando a liderança de um só Cristo,
que é mostrada através do consentimento único necessário do pai,
presbítero, bispo, metropolita ou patriarca nos vários níveis. Uma
autoridade absolutamente singular em qualquer nível da hierarquia
negaria ao homem governar com Deus ou negaria a presença plena da Igreja
com Cristo em cada paróquia, igreja local ou região e assim negaria a
Cristo.
Do livro The Church: Deifying Relations do Pe. John (Patrick) Ramsey:
* * *
A seguir um comentário escrito por Seraphim Hamilton sobre uma citação de Santo Irineu:
Como, no entanto, seria muito desgastante, num volume como este, enumerar as sucessões de todas as Igrejas, refutamos todos aqueles que, de qualquer maneira, seja por enfatuação, por vanglória, seja por cegueira e opinião perversa, se reúnem em assembleias não autorizadas; [fazemos isso, digo eu], indicando aquela tradição derivada dos apóstolos, da Igreja grandiosa, muito antiga e conhecida por todos, fundada e organizada em Roma pelos dois mais gloriosos apóstolos, Pedro e Paulo; como também [apontando] a fé pregada aos homens, que nos chega ao nosso tempo por meio das sucessões dos bispos. Pois é necessário que cada Igreja esteja de acordo com esta Igreja, em razão de sua autoridade preeminente.
Santo Irineu - Contra Heresias (Livro III, Cap. 3)
O
ensino Ortodoxo não exige uma negação da primazia petrina nem da
primazia de Roma. Embora seja verdade que certos teólogos têm tentado
reduzir a primazia romana a uma mera liderança cerimonial, tal abordagem
nunca foi universal ou mesmo particularmente dominante. Da Idade Média
em diante, a teologia da primazia romana foi discutida como uma
característica genuína da Igreja universal. Você pode encontrar isso em
teólogos como São Simeão de Tessalônica e São Marcos de Éfeso.
Roma hoje, exige dogmaticamente uma articulação *muito específica*
do que a primazia envolve e sobre quais fundamentos ela se baseia.
Segundo o Vaticano I, que o Bispo de Roma é o Sucessor de Pedro é a
condição *necessária e suficiente* para ele possuir jurisdição universal e *imediata*
sobre todo cristão. Em outras palavras, sua autoridade sobre todos os
batizados não necessita e nunca pode requerer como questão de direito
eclesiástico o consentimento de uma autoridade menor. Considero que tal
abordagem não pode ser mantida com base na história da Igreja ou dos
Padres do Oriente e do Ocidente.
Consideremos
este texto de Irineu - você já vê que ele coloca os apóstolos Pedro e
Paulo juntos como a raiz da primazia romana. Ser martirizado significa
"dar testemunho", e Jesus ao longo do Evangelho de João enfatiza o
"testemunho" do Espírito de Sua autêntica vontade através da
participação dos Santos no sofrimento de Cristo. Que os Apóstolos Pedro e
Paulo selaram seu testemunho pelo sangue foi entendido como ligando a
Igreja de Roma de uma maneira especial com a presença celestial e com o
testemunho deles [do Senhor ressuscitado] fortalecido pelo Espírito.
Consistentemente, então, vemos que a presença das relíquias desses dois Apóstolos surge em explicações sobre a primazia romana.
Você
verá também neste texto de Irineu que a sucessão episcopal faz parte de
um fenômeno maior, e é este fenômeno maior que é o instrumento para a
preservação da tradição. Aprendemos que os Apóstolos Pedro e Paulo deram
testemunho na Igreja de Roma, depositando tradições [deles] do Senhor
em sua memória. Essa memória é preservada e sustentada por toda a Igreja
local de Roma, cuja cabeça é o Bispo. Mas a noção de uma sucessão
petrina particular passando diretamente ao Bispo de Roma que preserva a
tradição em virtude de um *carisma* essencialmente separado do processo
concreto e histórico da transmissão da tradição - isto não existe em
Irineu.
Vemos
mais um ponto. Um dos principais argumentos que Santo Irineu apresenta é
que como Roma é a sede do império, o "principado mais poderoso", os
cristãos de todas as igrejas do mundo passam por Roma. As igrejas
apostólicas de todo o mundo são rotineiramente representadas na cidade
de Roma, pois os cristãos aproveitam a facilidade das viagens e do
comércio.
Assim,
são "todos os fiéis em todos os lugares" que preservam a Tradição
Apostólica, fazendo isso particularmente na Igreja de Roma como um ponto
de convergência deles. Eles vêm a Roma e depositam suas tradições
locais nas tradições da Igreja Romana, que assim dá testemunho da
tradição temporalmente (recebendo-a de Pedro e Paulo) e espacialmente
(recebendo-a de todas as igrejas do mundo conhecido).
A conexão de tudo isso com a matriz conceitual encontrada na teologia Católica Romana posterior é bastante fraca.
Assim
sendo, o ensino Católico Romano, tal como se apresenta, é mais do que
um conjunto de proposições. Essas proposições só fazem sentido como
parte de um padrão mais amplo de pensamento. O que devemos procurar nos
Padres é *esse* padrão de pensamento. Não creio que o
encontremos, mesmo no Ocidente. A primazia romana foi articulada com
mais nitidez em um contexto litúrgico e místico, uma presença particular
do Espírito Santo através de Seus dois mais gloriosos Apóstolos na
cidade que carregava suas relíquias. Isto - mais do que uma dedução
passo a passo a partir de prerrogativas legais dadas a um homem e
transmitidas através dele a uma sucessão de homens governando um de cada
vez - foi o que definiu a eclesiologia da primazia romana até bem tarde
no primeiro milênio. Sabemos que, quando os reformadores gregorianos
começaram a implementar seu programa, houve protestos generalizados
entre os bispos ocidentais que apelaram para as tradições de
colegialidade e de consentimento mútuo de longa data, que haviam
definido as relações entre a Sé Apostólica e as hierarquias locais
durante séculos.
Há um livro chamado “Before the Gregorian Reform”
[Antes da Reforma Gregoriana] que trata desse tópico. O desenvolvimento
da primazia é às vezes descrito como um processo lento, quase
imperceptível. Considero que a descontinuidade foi muito mais brusca e
visível, e que pode ser datada com alguma precisão no século XI, o tempo
da ruptura entre o Oriente Cristão e o Ocidente Cristão.
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