sábado, 31 de outubro de 2020

São Gregório Palamas e a Tradição dos Pais (Pe. George Florovsky)

Seguindo os Pais

"SEGUINDO OS SANTOS PAIS" ... Era habitual na Igreja Antiga introduzir afirmações doutrinárias através de frases como esta. O Decreto de Calcedônia abre precisamente com estas mesmas palavras. O Sétimo Concílio Ecumênico introduz sua decisão sobre os Santos Ícones de uma forma mais elaborada: "Seguindo o ensinamento divinamente inspirado dos Santos Pais e a Tradição da Igreja Católica." A didaskalia dos Pais é o termo de referência formal e normativo.

Isso era muito mais do que apenas um "apelo à antiguidade". De fato, a Igreja salienta sempre a permanência de sua fé através dos tempos, desde o princípio. Esta identidade, desde os tempos apostólicos, é o sinal mais evidente e expressão da fé correta - sempre a mesma. No entanto, a "antiguidade" por si só não é uma prova adequada da verdadeira fé. Além disso, a mensagem cristã era obviamente uma "novidade" impactante para o "mundo antigo" e, de fato, um chamado à "renovação" radical. O "Velho" passou, e tudo foi "feito Novo". Por outro lado, as heresias também podem apelar ao passado e invocar a autoridade de certas "tradições". De fato, as heresias frequentemente persistiam no passado.[1] As fórmulas arcaicas podem muitas vezes ser perigosamente enganosas. O próprio Vicente de Lerins estava plenamente consciente desse perigo. Bastaria citar esta tocante passagem dele: "E agora, que inversão espantosa da situação! Os autores da mesma opinião são julgados católicos, mas os seguidores - heréticos; Os mestres são absolvidos, os discípulos são condenados; Os escritores dos livros serão filhos do Reino, seus seguidores irão para a Geena" (Commonitorium, cap. 6). Vincente tinha em mente, evidentemente, São Cipriano e os Donatistas. O próprio São Cipriano enfrentou a mesma situação. "Antiguidade" como tal pode ser apenas um preconceito inveterado: nam antiquitas sine veritate vetustas erroris est (Epist. 74). Ou seja - " costumes antigos " como tais não garantem a verdade. "Verdade" não é apenas um "hábito".

A verdadeira tradição é apenas a tradição da verdade, traditio veritatis. Esta tradição, segundo Santo Irineu, está fundamentada em, e assegurada por, aquele carisma veritatis certum [carisma seguro da verdade], que foi "depositado" na Igreja desde o início e preservado pela sucessão ininterrupta do ministério episcopal. A "tradição" na Igreja não é uma continuidade da memória humana, nem uma permanência de ritos e hábitos.É uma tradição viva - depositum juvenescens, na expressão de Santo Irineu. Por conseguinte, não pode ser contada entre mortuas régulas [entre regras mortas]. Em última análise, a tradição é uma continuidade da presença permanente do Espírito Santo na Igreja, uma continuidade da orientação e da iluminação divina. A Igreja não está presa pela "letra". Ao contrário, ela é constantemente movida pelo "Espírito". O mesmo Espírito, o Espírito da Verdade, que "falou pelos Profetas", que guiou os Apóstolos, ainda está continuamente guiando a Igreja na compreensão e entendimento mais pleno da verdade divina, de glória em glória.

"Seguindo os Santos Pais" ... Isto não é uma referência a alguma tradição abstrata, em fórmulas e proposições. É primariamente um apelo ao testemunho santo. De fato, apelamos aos Apóstolos, e não apenas a uma "Apostolicidade" abstrata. Do mesmo modo, referimo-nos aos Pais. O testemunho dos Pais pertence, intrínseca e integralmente, à própria estrutura da crença Ortodoxa. A Igreja está igualmente comprometida com o kerygma dos Apóstolos e com o dogma dos Pais. Podemos citar neste ponto um admirável antigo hino (provavelmente, da pena de São Romano, o Melodista). "Preservando o kerigma dos Apóstolos e os dogmas dos Pais, a Igreja selou a única fé e vestindo a túnica da verdade, ela molda corretamente o tecido ricamente adornado da teologia celeste e louva o grande mistério da piedade " [2].

A Mente dos Pais 

A Igreja é de fato "Apostólica". Mas a Igreja também é "Patrística". Ela é intrinsecamente "a Igreja dos Pais". Estas duas "notas" não podem ser separadas. Apenas por ser "Patrística", a Igreja é verdadeiramente "Apostólica". O testemunho dos Pais é muito mais do que uma simples característica histórica, uma voz do passado. Citemos outro hino - do ofício dos Três Hierarcas. "Pela palavra do conhecimento vós compusestes os dogmas que os pescadores estabeleceram primeiramente em palavras simples, no conhecimento pelo poder do Espírito, pois assim a nossa simples piedade teve que adquirir composição". Há, por assim dizer, dois estágios básicos na proclamação da fé cristã. "A nossa simples fé teve que adquirir composição." Havia um impulso interior, uma lógica interior, uma necessidade interna, nesta transição - do kerygma para o dogma. Com efeito, o ensinamento dos Pais, e o dogma da Igreja, são ainda a mesma "simples mensagem" que uma vez foi transmitida e depositada, uma vez para sempre, pelos Apóstolos. Mas agora ela é, por assim dizer, devidamente e plenamente articulada. A pregação apostólica é mantida viva na Igreja, não apenas meramente preservada. Neste sentido, o ensino dos Pais é uma categoria permanente da existência cristã, uma medida constante e última e critério de fé correta. Os Pais não são apenas testemunhas da fé antiga, testes antiquitatis. São, antes, testemunhas da verdadeira fé, testes veritatis. "A mente dos Pais" é um termo de referência intrínseco na teologia ortodoxa, não menos do que a palavra da Sagrada Escritura, e de fato nunca se separou dela. Como foi bem dito, "a Igreja Católica de todos as épocas não é meramente uma filha da Igreja dos Pais - ela é e continua a ser a Igreja dos Pais". [3]

O caráter existencial da teologia patrística

A principal marca distintiva da teologia patrística era seu caráter "existencial", se pudermos usar este neologismo contemporâneo. Os Pais teologizaram, como dizia São Gregório de Nazianzo, "à maneira dos Apóstolos, não à maneira de Aristóteles - alieutikos, ouk aristotelikos [lit. “como pescadores, não como Aristóteles”— ed] (Hom. 23. 12). A teologia deles ainda era uma "mensagem", um kerygma. Sua teologia ainda era "teologia kerigmática", mesmo que muitas vezes fosse logicamente arranjada e acompanhada de argumentos intelectuais. A referência final ainda era a visão da fé, ao conhecimento espiritual e à experiência. À parte da vida em Cristo, a teologia não tem convicção e, se separada da vida de fé, a teologia pode degenerar em uma dialética vazia, uma polylogia vã, sem nenhuma consequência espiritual. A teologia patrística estava existencialmente enraizada no compromisso decisivo da fé. Não era uma "disciplina" auto-explicativa que podia ser apresentada argumentativamente, isto é, aristotelikos, sem qualquer engajamento espiritual prévio. Na era das disputas teológicas e dos debates incessantes, os grandes Pais Capadócios protestaram formalmente contra o uso da dialética, dos "silogismos aristotélicos", e tentaram remeter a teologia de volta à visão da fé. A teologia patrística só poderia ser pregada" ou "proclamada" - pregada do púlpito, proclamada também nas palavras da oração e nos ritos sagrados, e de fato manifestada na estrutura total da vida cristã. Uma teologia deste tipo nunca pode ser separada da vida de oração e do exercício da virtude. "O clímax da pureza é o início da teologia", como diz São João Clímaco: Telos de hagneias hypotheosis theologias (Scala Paradisi, grau 30).

Por outro lado, a teologia deste tipo é sempre, por assim dizer, "propedêutica", uma vez que seu objetivo e propósito último é verificar e reconhecer o Mistério do Deus Vivo, e de fato testemunhá-lo, em palavras e atos. A "teologia" não é um fim em si mesma. Ela é sempre apenas um caminho. A teologia, e mesmo os "dogmas", apresentam não mais que um "contorno intelectual" da verdade revelada, e um testemunho "noético" da mesma. Somente no ato de fé é que este "contorno" é preenchido com conteúdo. As fórmulas cristológicas são plenamente significativas apenas para aqueles que encontraram o Cristo Vivo, e O receberam e reconheceram como Deus e Salvador, e estão habitando pela fé nEle, em Seu corpo, a Igreja. Neste sentido, a teologia nunca é uma disciplina auto-explicativa. Ela apela constantemente para a visão da fé. "O que vimos e ouvimos, anunciamos a vocês". À parte este "anúncio", as fórmulas teológicas são vazias e não têm qualquer consequência. Pela mesma razão, estas fórmulas nunca podem ser tomadas "abstratamente", ou seja, fora do contexto total da crença. É enganoso destacar declarações particulares dos Pais e desprendê-las da perspectiva total na qual foram realmente pronunciadas, assim como é enganoso manipular com citações desprendidas das Escrituras. É um hábito perigoso "citar" os Pais, ou seja, seus dizeres e frases isoladas, fora daquele quadro concreto no qual unicamente têm seu pleno e próprio significado e estão verdadeiramente vivos. "Seguir" os Pais não significa apenas "citá-los". "Seguir" os Pais significa adquirir a "mente" deles, seu phronema.

O significado da "Era" dos Pais

Agora, chegamos ao ponto crucial. O nome de "Pais da Igreja" é geralmente restrito aos doutores da Igreja Antiga. E atualmente assume-se que a autoridade deles depende de sua "antiguidade", de sua proximidade comparativa com a "Igreja Primitiva", com a "Era" inicial da Igreja. Já São Jerônimo teve que contestar esta idéia. De fato, não houve diminuição de "autoridade", nem diminuição na imediatez da competência espiritual e do conhecimento, no curso da história cristã. De fato, porém, esta idéia de "diminuição" afetou fortemente nosso pensamento teológico moderno. Na realidade, é muito frequentemente assumido, consciente ou inconscientemente, que a Igreja Primitiva estava, por assim dizer, mais próxima da fonte da verdade. Como uma admissão de nosso próprio fracasso e inadequação, como um ato de autocrítica humilde, tal suposição é sólida e útil. Mas é perigoso fazer dela o ponto de partida ou a base de nossa "teologia da história da Igreja", ou mesmo de nossa teologia da Igreja. De fato, a Era dos Apóstolos deve manter sua posição única. No entanto, foi apenas um começo. É amplamente assumido que a "Era dos Pais" também terminou, e por isso é considerada apenas como uma formação antiga, "antiquada" em um sentido e "arcaica". O limite da "Era Patrística" é definido de forma variada. É comum considerar São João de Damasco como o "último Pai" no Oriente, e São Gregório o Dialogista ou Isidoro de Sevilha como "o último" no Ocidente. Esta periodização tem sido justamente contestada em tempos recentes. Não deveria, por exemplo, o São Teodoro do Estúdio, pelo menos, ser incluído entre os "Pais"? Mabillon sugeriu que Bernardo de Claraval, o Doutor melífluo, foi "o último dos Pais, e certamente não desigual dos anteriores". [4] Na verdade, é mais do que uma questão de periodização. Do ponto de vista ocidental, "a Era dos Pais" foi sucedida, e de fato superada, pela "Era dos Escolares", que foi um passo essencial adiante. Desde a ascensão do Escolasticismo, a "Teologia Patrística" passou a ser antiquada, tornou-se na realidade uma "era passada", uma espécie de prelúdio arcaico. Este ponto de vista, legítimo para o Ocidente, tem sido, infelizmente, aceito também por muitos no Oriente, de forma cega e acrítica. Portanto, é preciso enfrentar a alternativa.  Ou se tem que lamentar o "atraso" do Oriente que nunca desenvolveu nenhum "escolasticismo" próprio. Ou é preciso se retirar para "Era Antiga", de forma mais ou menos arqueológica, e praticar o que tem sido descrito de forma astuciosa recentemente como uma "teologia da repetição". Esta última, de fato, é apenas uma forma peculiar de "escolasticismo" imitativo.

Agora, não é raro sugerir que, provavelmente, "a Era dos Pais" tenha terminado muito mais cedo do que São João de Damasco. Muito frequentemente não se prossegue além da Era de Justiniano, ou mesmo já do Concílio de Calcedônia. Leôncio de Bizâncio não era já "o primeiro dos Escolásticos"? Psicologicamente, esta atitude é bastante compreensível, embora não possa ser teologicamente justificada. De fato, os Pais do século IV são muito mais impressivos, e sua grandeza única não pode ser negada. No entanto, a Igreja permaneceu plenamente viva também depois de Nicéia e Calcedônia. A atual ênfase excessiva nos "primeiros cinco séculos" distorce perigosamente a visão teológica e impede a compreensão correta do próprio dogma calcedoniano. O decreto do Sexto Concílio Ecumênico é frequentemente considerado como uma espécie de "apêndice" de Calcedônia, interessante apenas para especialistas em teologia, e a grande figura de São Máximo, o Confessor, é quase completamente ignorada. Assim, o significado teológico do Sétimo Concílio Ecumênico é perigosamente obscurecido, e  resta perguntar-se por que a Festa da Ortodoxia deveria estar relacionada à comemoração da vitória da Igreja sobre os Iconoclastas. Não foi apenas uma "controvérsia ritualística"? Muitas vezes esquecemos que a famosa fórmula do Consensus quinquesaecularis [consenso dos cinco séculos], ou seja, até Calcedônia, era uma fórmula Protestante, e refletia uma peculiar "teologia da história" Protestante. Era uma fórmula restritiva, por mais que parecesse ser demasiado inclusiva para aqueles que queriam ser isolados na Era Apostólica. A questão é que a atual fórmula oriental dos "Sete Concílios Ecumênicos" dificilmente é muito melhor, se ela tende, como costuma fazer, a restringir ou limitar a autoridade espiritual da Igreja aos primeiros oito séculos, como se "a Era de Ouro" do Cristianismo já tivesse passado e estivéssemos agora, provavelmente, já em uma Idade do Ferro, muito mais abaixo na escala do vigor espiritual e da autoridade. Nosso pensamento teológico tem sido perigosamente afetado pelo padrão de decadência, adotado para a interpretação da história cristã no Ocidente desde a Reforma. A plenitude da Igreja foi então interpretada de forma estática, e a atitude para com a Antiguidade tem sido distorcida e mal interpretada. Afinal, não faz muita diferença, se restringimos a autoridade normativa da Igreja a um século, ou a cinco, ou a oito. Não deveria haver nenhuma restrição. Consequentemente, não há espaço para qualquer "teologia da repetição". A Igreja ainda é plenamente autoritativa como tem sido nas eras passadas, uma vez que o Espírito da Verdade a vivifica de forma não menos eficaz como nos tempos antigos.

O Legado da Teologia Bizantina

Um dos resultados imediatos de nossa periodização descuidada é que simplesmente ignoramos o legado da teologia bizantina. Estamos preparados, agora mais do que há apenas algumas décadas, para admitir a autoridade perene dos "Pais", especialmente desde o reavivamento dos estudos patrísticos no Ocidente. Mas ainda tendemos a limitar o escopo da admissão, e obviamente os "teólogos bizantinos" não são prontamente incluídos entre os "Pais". Estamos inclinados a discriminar bastante rigidamente entre "Patrística" - num sentido mais ou menos estreito - e "Bizantinismo". Ainda estamos inclinados a considerar o "Bizantinismo" como uma sequência inferior à Era Patrística. Ainda temos dúvidas sobre sua relevância normativa para o pensamento teológico. Entretanto, a teologia bizantina era muito mais do que apenas uma "repetição" da teologia patrística e o que nela era novo não era de qualidade inferior em comparação com a "Antiguidade Cristã". De fato, a teologia bizantina era uma continuação orgânica da Era Patrística. Houve alguma ruptura? O ethos da Igreja Ortodoxa Oriental alguma vez foi alterado, em algum ponto ou data histórica, que, no entanto, nunca foi unanimemente identificado, de modo que o desenvolvimento "posterior" foi de menor autoridade e importância que qualquer outro? Esta admissão parece estar silenciosamente implícita no comprometimento restritivo aos Sete Concílios Ecumênicos. Assim, São Simeão, o Novo Teólogo, e São Gregório Palamas são simplesmente deixados de fora, e os grandes Concílios Hesicastas do século XIV são ignorados e esquecidos. Qual é a posição e a autoridade deles na Igreja?

Porém, de fato, São Simeão e São Gregório ainda são mestres e inspiradores de todos aqueles que, na Igreja Ortodoxa, estão lutando pela perfeição, e estão vivendo a vida de oração e contemplação, seja nas comunidades monásticas sobreviventes, seja na solitude do deserto, e até mesmo no mundo. Estas pessoas fiéis não estão cientes de nenhuma suposta "ruptura" entre "Patrística" e "Bizantinismo". A Filocalia, esta grande enciclopédia de piedade oriental, que inclui escritos de muitos séculos, está, em nossos dias, se tornando cada vez mais o manual de orientação e instrução para todos aqueles que estão dispostos a praticar a Ortodoxia em nossa situação contemporânea. A autoridade de seu compilador, São Nicodemos da Santa Montanha, foi recentemente reconhecida e reforçada por sua canonização formal na Igreja. Neste sentido, somos levados a dizer que "a Era dos Pais" ainda continua na "Igreja Venerante". Não deveria ela continuar também em nossa busca teológica e em nosso estudo, pesquisa e instrução? Não deveríamos recuperar "a mente dos Pais" também em nosso pensamento teológico e ensino? Recuperá-la, de fato, não como uma forma arcaica ou uma pose, e não apenas como uma relíquia venerável, mas como uma atitude existencial, como uma orientação espiritual. Somente desta forma nossa teologia poderá ser reintegrada à plenitude de nossa existência cristã. Não basta manter uma "Liturgia Bizantina", como nós fazemos, restaurar a iconografia bizantina e a música bizantina, como ainda estamos relutantes em fazer consistentemente, e praticar certos modos de devoção bizantina. É preciso ir às próprias raízes desta "piedade" tradicional, e recuperar a "mente patrística". Caso contrário, podemos estar em perigo de estarmos divididos interiormente - como muitos em nosso meio estão de fato - entre as formas "tradicionais" de "piedade" e um hábito não muito tradicional do pensamento teológico. Trata-se de um perigo real. Como "veneradores", ainda estamos na "tradição dos Pais". Não deveríamos nos manter, consciente e declaradamente, na mesma tradição também como "teólogos", como testemunhas e doutores da Ortodoxia? Podemos manter nossa integridade por qualquer outra maneira?




São Gregório Palamas e Theosis 

Todas estas considerações preliminares são altamente relevantes para nosso propósito imediato. Qual é o legado teológico de São Gregório Palamas? São Gregório não foi um teólogo especulativo. Ele era um monge e um bispo. Ele não estava preocupado com problemas abstratos de filosofia, embora ele também estivesse bem treinado neste campo. Ele estava preocupado apenas com os problemas da existência cristã. Como teólogo, ele era simplesmente um intérprete da experiência espiritual da Igreja. Quase todos os seus escritos, exceto provavelmente as suas homilias, eram escritos ocasionais. Ele estava lutando contra os problemas de sua própria época. E era uma época crítica, uma era de controvérsia e ansiedade. De fato, era também uma era de renovação espiritual.

São Gregório havia sido suspeito de inovações subversivas por seus inimigos em seu próprio tempo. Esta acusação ainda é mantida contra ele no Ocidente. Na verdade, porém, São Gregório estava profundamente enraizado na tradição. Não é difícil rastrear a maioria de seus pontos de vista e motivos de volta aos Pais Capadócios e a São Máximo o Confessor, que foi, por sinal, um dos mais populares mestres do pensamento e devoção bizantina. De fato, São Gregório também estava intimamente familiarizado com os escritos de Pseudo-Dionísio. Ele estava enraizado na tradição. No entanto, em nenhum sentido sua teologia foi apenas uma "teologia da repetição". Era uma extensão criativa da tradição antiga. Seu ponto de partida era a Vida em Cristo.

De todos os temas da teologia de São Gregório, destacamos apenas um, o crucial e o mais controverso. Qual é o caráter básico da existência cristã? O objetivo e o propósito último da vida humana foi definido na tradição patrística como theosis [divinização]. O termo é bastante ofensivo para o ouvido moderno. Ele não pode ser adequadamente traduzido em nenhuma língua moderna, nem mesmo em latim. Mesmo em grego, ele é um tanto pesado e pretensioso. De fato, é uma palavra ousada. O significado da palavra é, no entanto, simples e lúcido. Foi um dos termos cruciais do vocabulário patrístico. Neste ponto, bastaria citar apenas São Atanásio. Gegonen gar anthropos, hin hemas en heauto theopoiese [Ele se fez homem para nos divinizar em si mesmo (Adelphium 4)]. Autos gar enenthropesen, hina hemeis theopoiethomen. [Ele se tornou homem para que pudéssemos ser divinizados (De Incarnatione 54)]. Santo Atanásio retoma aqui a idéia favorita de Santo Irineu: qui propter imensam dilectionem suam factus est quod sumus nos, uti nos perficeret esse quod est ipse [Que, através de seu imenso amor se tornou o que somos, para que Ele pudesse nos levar a ser o que Ele mesmo é (Adv. Haeres. V, Praefatio)] Era a convicção comum dos Pais Gregos. Pode-se citar amplamente São Gregório de Nazianzo. São Gregório de Nissa, São Cirilo de Alexandria, São Máximo, e de fato São Simeão, o Novo Teólogo. O homem permanece sempre o que ele é, isto é, criatura. Mas a ele é prometido e concedido, em Cristo Jesus, o Verbo que se fez homem, uma participação íntima no que é Divino: A vida eterna e incorruptível. A principal característica da theosis é, segundo os Pais, precisamente "imortalidade" ou "incorruptibilidade". Pois só Deus "tem imortalidade" -ho monos echon athanasian (I Tm 6,16). Mas o homem agora é admitido em uma "comunhão" íntima com Deus, através de Cristo e pelo poder do Espírito Santo. E isto é muito mais que uma comunhão "moral", e muito mais que uma simples perfeição humana. Somente a palavra theosis pode apresentar adequadamente a singularidade da promessa e da oferta. O termo theosis é certamente bastante embaraçoso, se pensarmos em categorias "ontológicas". De fato, o homem simplesmente não pode "tornar-se" deus. Mas os Pais estavam pensando em termos "pessoais", e o mistério da comunhão pessoal estava envolvido neste ponto. A theosis significava um encontro pessoal. É aquela relação íntima do homem com Deus, na qual toda a existência humana é, por assim dizer, permeada pela Presença Divina. [5]

No entanto, o problema permanece: Como mesmo esta relação pode ser compatível com a Transcendência Divina? E este é o ponto crucial. Será que o homem realmente encontra Deus, nesta vida presente na Terra? Será que o homem encontra Deus, verdadeiramente, em sua vida presente de oração? Ou será que não existe mais do que uma actio in distans? A afirmação comum dos Pais Orientais era que, em sua ascensão devocional, o homem encontra realmente Deus e contempla Sua Glória eterna. Mas como é possível, se Deus "habita na luz inacessível"? O paradoxo era especialmente acentuado na teologia oriental, que sempre esteve comprometida com a crença de que Deus era absolutamente "incompreensível" - akataleptos - e incognoscível em Sua natureza ou essência. Esta convicção foi poderosamente expressa pelos Pais Capadócios, especialmente na luta deles contra Eunômio, e também por São João Crisóstomo, em seus magníficos discursos Peri Akataleptou. Assim, se Deus é absolutamente "inacessível" em Sua essência, e, portanto, Sua essência simplesmente não pode ser "comunicada", como pode a theosis ser possível? "Insulta a Deus aquele que procura apreender Seu ser essencial", diz Crisóstomo.  Já em Santo Atanásio encontramos uma clara distinção entre a própria "essência" de Deus e Seus poderes e recompensas: Kai en pasi men esti kata ten heautou agathoteta, exo de ton panton palin esti kata ten idian physin [Ele está em tudo por seu amor, mas fora de tudo por sua própria natureza (De Decretis II)]. A mesma concepção foi cuidadosamente elaborada pelos Capadócios. A "essência de Deus" é absolutamente inacessível ao homem, diz São Basílio (Adv. Eunomium 1:14). Só conhecemos Deus em Suas ações, e por Suas ações: Hemeis de ek men ton energeion gnorizein legomen ton Theon hemon, te de ousia prosengizein ouch hypischnoumetha hai men gar energeiai autou pros hemas katabainousin, he de ousia autou menei aprositos [Dizemos que conhecemos nosso Deus a partir de suas energias (atividades), mas não professamos aproximar-nos de sua essência - pois suas energias descem até nós, mas sua essência permanece inacessível (Epist. 234, ad Amphilochium)]. No entanto, é um verdadeiro conhecimento, não apenas uma conjectura ou dedução: hai energeiai autou pros hemas katabainousin. Nas palavras de São João de Damasco, estas ações ou "energias" de Deus são a verdadeira revelação do próprio Deus: he theia ellampsis kai energeia (De Fide Orth. 1: 14). É uma presença real, e não apenas uma certa praesentia operativa, sicut agens adest ei in quod agit [como o ator está presente na coisa em que ele atua]. Este modo misterioso de Presença Divina, apesar da transcendência absoluta da Essência Divina, ultrapassa toda compreensão. Mas não é menos certa por essa razão.

São Gregório Palamas se encontra em uma antiga tradição neste ponto. Em Suas "energias", o Deus inacessível se aproxima misteriosamente do homem. E este movimento divino efetua o encontro: proodos eis ta exo, nas palavras de São Máximo (Scholia in De Div. Nom., 1: 5).

São Gregório começa com a distinção entre "graça" e "essência": he theia kai theopoios ellampsis kai charis ouk ousia, all' energeia esti Theou [a iluminação divina e divinizante e graça não é a essência, mas a energia de Deus (Capita Phys., Theol., etc., 68-9)]. Esta distinção básica foi formalmente aceita e elaborada nos Grandes Concílios de Constantinopla, 1341 e 1351. Aqueles que negavam esta distinção foram anátematizados e excomungados. Os anátematismos do Concílio de 651 foram incluídos no rito do Domingo da Ortodoxia, no Triodion. Os teólogos Ortodoxos estão vinculados a esta decisão. A essência de Deus é absolutamente amethekte [incomunicável].  A fonte e o poder da theosis humana não é a essência divina, mas a "Graça de Deus": theopoios energeia, hes ta metechonta theountai, theia tis esti charis, all' ouch he physis tou theou [a energia divinizadora, pela qual alguém que participa é divinizado, é uma graça divina, mas de nenhuma maneira a essência de Deus (ibid. 92-3)]. Charis não é idêntico à ousia. É theia kai aktistos charis kai energeia [Graça e Energia divina e incriada (ibid., 69)]. Esta distinção, entretanto, não implica ou efetua divisão ou separação. Tampouco é apenas um "acidente", oute symbebekotos (ibid., 127). As energias "procedem" de Deus e manifestam Seu próprio Ser. O termo proienai [proceder] simplesmente sugere diakrisin [distinção], mas não uma divisão: ei kai dienenenoche tes physeos, ou diaspatai he tou Pneumatos charis [a graça do Espírito é diferente da Substância, e ainda assim não separada dela (Theophan, p. 940)].

Na realidade, todo o ensino de São Gregório pressupõe a ação do Deus Pessoal. Deus se move em direção ao homem e o abraça por Sua própria "graça" e ação, sem deixar aquela phos aprositon [luz inacessível], na qual Ele habita eternamente. O objetivo último do ensinamento teológico de São Gregório era defender a realidade da experiência cristã. A salvação é mais do que o perdão. É uma genuína renovação do homem. E esta renovação é efetuada não pela descarga, ou liberação, de certas energias naturais implicadas no próprio ser criatural do homem, mas pelas "energias" do próprio Deus, que assim encontra e envolve o homem, e o admite em comunhão com Ele mesmo. De fato, o ensinamento de São Gregório afeta todo o sistema da teologia, todo o corpo da doutrina cristã. Começa com a clara distinção entre "natureza" e "vontade" de Deus. Esta distinção também era característica da tradição oriental, pelo menos desde Santo Atanásio. Poder-se-ia perguntar neste ponto: esta distinção é compatível com a "simplicidade" de Deus? Não deveríamos antes considerar todas estas distinções como conjecturas meramente lógicas, necessárias para nós, mas em última análise sem qualquer significado ontológico? Na realidade, São Gregório Palamas foi atacado por seus oponentes precisamente a partir desse ponto de vista. O Ser de Deus é simples, e nEle até mesmo todos os atributos coincidem. Já Santo Agostinho divergia, neste ponto, da tradição oriental. Sob os pressupostos agostinianos, o ensino de São Gregório é inaceitável e absurdo. O próprio São Gregório antecipou a amplitude das implicações de sua distinção básica. Se alguém não a aceita, argumentou ele, então seria impossível discernir claramente entre a "geração" do Filho e a "criação" do mundo, sendo ambos atos da essência, e isto levaria a uma completa confusão na doutrina trinitária. São Gregório era bastante formal nesse ponto.
Se de acordo com os opositores delirantes e aqueles que concordam com eles, a energia Divina não difere em nada da essência Divina, então o ato de criar, que pertence à vontade, não será de forma alguma diferente da geração (gennan) e processão (ekporeuein), que pertencem à essência. Se criar não é diferente da geração e da processão, então as criaturas não serão de forma alguma diferentes do Gerado (gennematos) e do Projetado [dAquele que procede] (problematos). Se este for o caso segundo eles, então tanto o Filho de Deus quanto o Espírito Santo não serão diferentes das criaturas, e todas as criaturas serão tanto o gerado (gennematos) quanto o projetado (problematos) de Deus Pai, e a criação será deificada e Deus estará classificado entre as criaturas. Por esta razão, o venerável Cirilo, mostrando a diferença entre a essência de Deus e a energia, diz que gerar pertence à natureza Divina, ao passo que criar pertence a Sua energia Divina. Isto ele mostra claramente dizendo: "natureza e energia não são a mesma coisa". Se a essência Divina não difere em nada da energia Divina, então gerar (gennan) e projetar (ekporeuein) não diferirá em nada de criar (poiein). Deus Pai cria através do Filho e no Espírito Santo. Assim, Ele também gera e projeta através do Filho e no Espírito Santo, de acordo com a opinião dos opositores e daqueles que concordam com eles. (Capita 96 e 97.)
São Gregório cita São Cirilo de Alexandria. Mas São Cirilo, neste ponto, estava simplesmente repetindo Santo Atanásio. Santo Atanásio, em sua refutação do arianismo, enfatizou formalmente a diferença última entre ousia [essência] ou physis [substância], por um lado, e a boulesis [vontade], por outro. Deus existe, e então Ele também age. Há uma certa "necessidade" no Ser Divino, na realidade não uma necessidade de compulsão, e não fatum, mas uma necessidade de ser em si. Deus é simplesmente o que Ele é. Mas a vontade de Deus é eminentemente livre. Ele em nenhum sentido é necessitado para fazer o que Ele faz. Assim, gennesis [geração] é sempre kata physin [segundo a essência], mas a criação é uma bouleseos ergon [energia da vontade] (Contra Arianos III. 64-6). Estas duas dimensões, a de ser e a de agir, são diferentes, e devem ser claramente distinguidas. Evidentemente, esta distinção não compromete de forma alguma a "simplicidade divina". No entanto, é uma distinção real, e não apenas um dispositivo lógico. São Gregório estava plenamente consciente da importância crucial desta distinção. Neste ponto, ele foi um verdadeiro sucessor do grande Atanásio e dos hierarcas Capadócios.

Foi recentemente sugerido que a teologia de São Gregório, deve ser descrita em termos modernos como uma "teologia existencialista". Na realidade, ela difere radicalmente das concepções modernas que são atualmente denotadas por este rótulo. De qualquer forma, em todo caso, São Gregório opôs-se definitivamente a todos os tipos de "teologias essencialistas" que fracassam em considerar a liberdade de Deus, o dinamismo da vontade de Deus, a realidade da ação divina. São Gregório remontaria esta tendência a Orígenes. Era o problema da metafísica impessoalista grega. Se existe algum espaço para a metafísica cristã, ela deve ser uma metafísica de pessoas. O ponto de partida da teologia de São Gregório era a história da salvação: na escala maior, a história bíblica, que consistia de atos divinos, culminando na Encarnação do Verbo e Sua glorificação através da Cruz e da Ressurreição; na escala menor, a história do homem cristão, lutando em busca da perfeição, e ascendendo passo a passo, até encontrar Deus na visão de Sua glória. Era comum descrever a teologia de Santo Irineu como uma "teologia dos fatos". E com não menos justificativa podemos descrever também a teologia de São Gregório Palamas como uma "teologia dos fatos".

Em nosso próprio tempo, estamos chegando cada vez mais à convicção de que "teologia dos fatos" é a única teologia Ortodoxa sólida. Ela é bíblica. É Patrística. Ela está em total conformidade com a mente da Igreja.

Neste contexto, podemos considerar São Gregório Palamas como nosso guia e mestre, em nosso esforço para teologizar a partir do coração da Igreja.

Capítulo VII de The Collected Works of Georges Florovsky, Vol. I, Bible, Church, Tradition: An Eastern Orthodox View

Notas

1. Foi recentemente sugerido que os gnósticos foram, de fato, os primeiros a invocar formalmente a autoridade de uma "Tradição Apostólica" e que foi o uso deles que moveu Santo Irineu a elaborar sua própria concepção de Tradição. D. B. Reynders, "Paradosis: Le proges de l'idee de tradition jusqu'a Saint Irenee", em Recherches de Theologie ancienne et medievale, V (1933), Louvain, 155-191. Em qualquer caso, os gnósticos costumavam se referir à "tradição".

2. Paul Maas, ed.. Fruhbyzantinische Kirchenpoesie, I (Bonn, 1910), p. 24.

3. Louis Bouyer, "Le renouveau des etudes patristiques," em La Vie Intellectuelle, XV (Fevrier 1947), 18.

4. Mabillon, Bernardi Opera, Praefatio generalis, n. 23 (Migne, P. L., CLXXXII, c. 26).

5. Cf. M. Lot-Borodine, "La doctrine de la deification dans I'Eglise grecque jusqu'au XI siecle," em Revue de l'histoire des religions, tome CV, Nr I (Janvier-Fevrier 1932), 5-43; tomo CVI, Nr 2/3 (Setembro-Dezembro 1932), 525-74; tomo CVII, Nr I (Janeiro-Fevereiro 1933), 8-55.

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