terça-feira, 31 de dezembro de 2019

Uma Proposta Razoável sobre o Inferno (Clark Carlton)

Vídeo com legendas: 


 Transcrição do áudio:
Fé e Filosofia: Reflexões sobre a Ortodoxia e a Cultura 
Clark Carlton é o autor da série The Faith (The Faith, The Way, The Truth, The Life), publicada pela Regina Orthodox Press. Os seus livros têm sido fundamentais para ajudar muitos a encontrar o caminho para a Ortodoxia. Neste podcast, Clark comentará semanalmente sobre questões de fé, filosofia e Ortodoxia.
"Venham, vamos refletir juntos", diz o Senhor. "Embora os seus pecados sejam vermelhos como escarlate, eles se tornarão brancos como a neve; embora sejam rubros como púrpura, como a lã se tornarão. Se vocês estiverem dispostos a obedecer, comerão os melhores frutos desta terra." (Isaías 1:18,19)

Olá, e bem-vindo mais uma vez ao Fé e Filosofia. O tema de hoje é: "Inferno: Uma Proposta Modesta." A minha proposta é que acabemos com o "Inferno". Com a palavra, quero dizer. Poucas palavras criam mais problemas de interpretação, ou mais mal-entendidos, do que o uso dessa palavra em nossas traduções das Escrituras, da Liturgia e dos escritos dos Padres.

Por exemplo, o que queremos dizer quando cantamos nas Vésperas no sábado à noite que Cristo "destruiu o Inferno com o esplendor da sua divindade", ou que Cristo "libertou todos os homens do Inferno"? Estamos nós apoiando a salvação universal? Várias pessoas podem muito bem chegar a essa conclusão. Ou então, consideremos o maravilhoso livro de Kyriacos Markides, Montanha do Silêncio; ele tem um capítulo intitulado "Inferno" no qual ele conta a história de um asceta no Monte Athos que, bastante literalmente, ora por seu pai espiritual para que ele saia do Inferno. Posso dizer-lhe que, como evangélico, esse capítulo teria sido suficiente para me fazer desprezar o resto do livro, por mais simpático que eu fosse com o resto dos ensinamentos do Pe. Máximo.

O problema aqui é que a palavra inglesa inferno é usada para traduzir uma variedade de palavras diferentes usadas nas Escrituras Gregas; palavras que não têm o mesmo significado em seus contextos originais. O resultado é que invariavelmente interpretamos textos bíblicos e patrísticos com ideias associadas à palavra inglesa inferno que nada têm a ver com o que o autor original estava tentando transmitir. Comecemos pelo Novo Testamento Grego e depois avancemos para as nossas traduções dos nossos dias.

No Novo Testamento, várias palavras diferentes são usadas para se referir à vida após a morte e ao estado da punição final. No entanto, os dois termos primários são Hades - que é o equivalente grego do Sheol hebraico - e Geena - que é simplesmente uma transliteração grega da palavra aramaica para um depósito de lixo ardente fora de Jerusalém. É geralmente aceito entre os estudiosos do Novo Testamento que estas duas palavras têm significados muito diferentes no Novo Testamento. Hades como o Sheol é simplesmente a morada dos mortos, onde habitam os justos e os injustos. O Judaísmo posterior subdividirá o Sheol no "seio de Abraão" e o Sheol propriamente dito - como ilustrado pela parábola do nosso Senhor sobre Lázaro e o homem rico (Lucas 16.18-31).

É ao Hades ou Sheol que nosso Senhor desceu para amarrar o homem forte e conduzir os justos de eras passadas à liberdade. Quando você ouve a palavra Inferno usada no Octoechos, no Triodion e no Pentecostarion, ela está quase sempre traduzindo a palavra grega Hades. Uma tradução melhor seria esta: "Quando desceste à morte ou à vida imortal, destruíste o Hades com o esplendor da tua divindade. E quando das profundezas ressuscitaste os mortos, todos os poderes do céu clamaram: "Ó Doador da Vida, Cristo nosso Deus, Glória a Ti".

Com exceção de um caso, que parece ser metafórico, a palavra Geena aparece apenas nos Evangelhos sinópticos. Ali, a palavra é usada exclusivamente para se referir ao estado de condenação final dos ímpios que ocorre após a ressurreição e o Juízo Final. Assim, a palavra inglesa Inferno é usada para traduzir dois termos muito diferentes que denotam duas realidades muito diferentes.

Agora é aqui que fica interessante. "Hell" [palavra inglês para inferno] ou o Hêle no inglês medieval é, na verdade, a tradução correta de Hades. "Hell" era a deusa do submundo na mitologia escandinava, assim como Hades era o deus do submundo para os gregos. Assim, tecnicamente falando, a Madre Maria e o Bispo Kallistos estavam corretos ao traduzir o Hades como o Inferno no Triodion Quaresma. O problema, porém, é que quando as pessoas modernas ouvem a palavra "inferno", elas não pensam na morte enquanto morada sombria de todos os mortos, mas na punição eterna. Eles imaginam fogo, enxofre e demônios correndo por aí com tridentes. Em outras palavras, as pessoas pensam no que nosso Senhor quis dizer quando ele usou a palavra Geena.

Agora a questão é: como é que a palavra no inglês medieval para Hades se tornou sinônimo do conceito da Geena?- um conceito, aliás, que parece ser único ao cristianismo. A resposta simples é que quando as Escrituras vieram a ser traduzidas para o vernáculo no ocidente medieval, a palavra latina para Hades, Infernus (ou às vezes Inferus) e a palavra aramaica transliterada Geena tornaram-se completamente confundidas, de modo que os termos Infernus e Geena foram usados de forma intercambiável. Inicialmente, autores latinos distinguiam Infernus e Geena tal como as traduções latinas da Bíblia haviam feito. Agostinho, por exemplo, foi muito cuidadoso no uso dessas palavras. E, no entanto, desde cedo, havia uma tendência de importar a noção de punição para o conceito de Infernus. Vemos isso já em Tertuliano, e Cipriano de Cartago na verdade usou a palavra Geena para se referir à morada dos mortos - mesmo antes do Juízo Final. Gregório o Grande falou do Homem Rico estando na Geena, embora a Vulgata, seguindo o grego original, use a palavra Infernus. Quando chegamos ao Venerável Beda, os termos são usados de forma intercambiável - qualquer sentido de que se referem a realidades diferentes já foi perdido.

Isso explica porque todas as traduções da Escritura anteriores ao século 20, desde as primeiras traduções do Saltério para o inglês medieval, até as traduções de Wycliffe, e, claro, a KJV e o Livro de Oração Comum, todas elas traduzem Hades e Geena usando uma única palavra: Inferno. Para os tradutores, Hades e Geena significavam a mesma coisa, então eles usaram a palavra mais óbvia em sua própria língua para traduzir os dois termos. O problema é que o conceito de Inferno como o estado de morte, ou, mais literalmente, a morada dos mortos, foi completamente perdido. E por causa disso, somos incapazes de interpretar corretamente o Novo Testamento, nossa hinodia litúrgica, ou os escritos dos Padres. Ficamos com uma polaridade muito forte: ou os mortos vão para o céu para estar com Cristo, ou se unem ao diabo no inferno para sofrer a justa punição por toda a eternidade. Nesta visão, Jesus vem para nos salvar - ou pelo menos a alguns de nós - da danação eterna e não da morte.

Mas onde é que a descida de Cristo ao Hades se encaixa neste quadro? Ou a Sua ressurreição? Qual é o propósito do Juízo Final, se os pecadores já estão sofrendo os tormentos da Geena? E como é que podemos justificar a oração pelos mortos quando os abençoados já estão desfrutando da perfeita bem-aventurança, e os demais estão irremediavelmente condenados? Bem, eu vou responder a essas perguntas na próxima semana. Entretanto, o sábado antes de Pentecostes é o sábado das almas - um dia especialmente dedicado à oração pelos mortos - e nas vésperas ajoelhadas de Pentecostes, pedimos a Deus, de joelhos, pela Sua misericórdia para com todos os mortos, de todas as épocas. Quero encorajá-los a ouvir atentamente essas orações. Ah, e a propósito, se a tradução usada pelo seu padre usa a palavra Inferno, considere Hades.

E agora que o nosso grande Deus e salvador Jesus Cristo, o Vencedor da morte, que ascendeu ao Pai elevando a nossa humanidade com Ele e a colocou à direita do Pai, através das intercessões de São Inocêncio do Alasca, e do abençoado ancião Sofrônio Sakharov, tenha piedade de todos nós e nos conceda uma rica entrada no Seu Reino.

Fonte: https://www.ancientfaith.com/podcasts/carlton/hell_a_modest_proposal


Nota do blog: a continuação dessa série pode ser lida aqui: Purgatório

Nenhum comentário:

Postar um comentário