sexta-feira, 22 de novembro de 2019

A Catolicidade da Igreja Ortodoxa (Pe. Georges Florovsky)

A Igreja é una. Há apenas uma Igreja de Cristo. Pois a Igreja é o Seu corpo e Cristo nunca está dividido. A unidade não é uma marca da Igreja entre as outras. Ela denota antes a própria natureza da Igreja: uma Cabeça e um corpo. "A unidade do Espírito" foi concedida desde o início no mistério de Pentecostes. Mas esta unidade deve ser mantida e fortalecida "pelo vínculo da paz", por um esforço sempre crescente de fé e caridade, para que " seguindo a verdade em amor, cresçamos em tudo naquele que é a cabeça, Cristo" (Efésios 4, 3.15). "Unidade" e "catolicidade" são dois aspectos da mesma realidade viva. A Igreja una é intrinsecamente a Igreja Católica.

O termo "católico" é usado nos antigos credos. A origem do termo é incerta. Por sua etimologia, a palavra denota principalmente "união" ou "totalidade" em oposição a qualquer "particularidade". Nos primeiros documentos, o termo "católico" nunca foi usado no sentido quantitativo para denotar a expansão geográfica ou a universalidade territorial da Igreja. Foi usado antes para enfatizar a integridade de sua fé e doutrina, a lealdade da Grande Igreja à tradição original e primitiva, em oposição aos hereges e sectários que se separaram desta totalidade original, cada um para seguir uma linha particular e particularista.  "Católico" naquela época significava "ortodoxo" em vez de "universal". É neste sentido que o termo foi usado pela primeira vez na Epístola de Santo Inácio de Antioquia à Igreja de Esmirna e no Martírio de São Policarpo. Em suas Orações Catequéticas, São Cirilo de Jerusalém mais tarde deu uma descrição sintética do termo onde o significado original foi bem enfatizado:
A Igreja é chamada "católica" porque existe em toda a superfície da terra, de um extremo ao outro; porque ensina integralmente e sem omissão (kathotikos kai anelleipos) todos os dogmas que devem ser levados ao conhecimento dos homens, tanto nas coisas visíveis como nas invisíveis, nas coisas celestes e nas coisas terrenas; porque leva ao mesmo culto todas as categorias de pessoas, governantes e súditos, instruídos e ignorantes; por fim, porque ela cuida e cura integralmente (katholikos) todos os tipos de pecados, tanto carnais como da alma; e mais, porque ela possui todos os tipos de virtudes, em atos, em palavras, em dons espirituais de toda sorte.
A ênfase original na integridade e na abrangência qualitativa é óbvia nesta descrição. A expansão universal em todo o mundo é antes uma manifestação desta integridade interna, da plenitude espiritual da Igreja. Foi somente no Ocidente que a palavra "católico" recebeu um significado quantitativo, especialmente por Santo Agostinho, para combater o provincialismo geográfico dos donatistas. Santo Agostinho sabia bem, porém, que a palavra "católico" significava secunditm totum, quia per totum est. Desde então, as duas palavras "católico" e "universal" passaram a ser consideradas sinônimas, primeiro no Ocidente e, por fim, também no Oriente Ortodoxo. Esta foi uma lamentável redução da grande concepção católica, uma mutilação da ideia original. Ela transferiu a ênfase do significado primário para o secundário e derivado. A catolicidade essencial não é uma concepção topográfica. A Igreja de Cristo não era menos "católica" no dia de Pentecostes, quando não era mais que uma pequena comunidade em Jerusalém, nem mais tarde, quando as comunidades cristãs eram como ilhas espalhadas no oceano do paganismo. Além disso, nenhuma redução territorial pode afetar sua natureza católica. Em resumo, na frase de um teólogo [católico] romano contemporâneo, "a catolicidade não é uma questão de geografia ou de números".

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Além disso, "católico" não é apenas um termo coletivo. A Igreja é católica não apenas como um conjunto de todas as igrejas locais, não apenas como uma comunidade mundial. A Igreja é católica em todos os seus elementos e ramos, em todos os seus atos e em todos os momentos da sua vida. Cada membro da Igreja é e deve ser também "católico", não só na medida em que é membro de um corpo católico, mas sobretudo na medida em que a sua personalidade é espiritualmente integrada e, neste sentido, "catolicizada". "Católico" denota um estado ou atitude espiritual, sem qualquer "particularismo" ou "sectarismo". A meta e o critério desta catolicidade interna é "que a multidão dos crentes era de um só coração e uma só alma" (At 4,32). 

A catolicidade é tanto um dom inicial de graça - na integridade da fé apostólica e na caridade integral - como uma tarefa ou um problema a ser resolvido repetidamente. Objetivamente, a Igreja é católica nos seus sacramentos. A graça sacramental é sempre uma graça de unidade. O Espírito Santo une-nos ao Senhor, incorporando-nos no Seu corpo. O espírito nos une para formar "um só corpo", a Igreja católica. E em cada alma fiel o Espírito é a fonte viva da paz e da concórdia interior, daquela paz que "o mundo não pode dar". Em Cristo e "na comunhão do Espírito Santo", a catolicidade da Igreja já está dada e fundamentada. Por outro lado, ela é ainda uma tarefa e uma meta a ser atingida por cada nova geração, em cada comunidade local, por cada pessoa fiel. A catolicidade interna implica a transformação ou transfiguração total da vida e do comportamento, que só pode ser realizada com um esforço espiritual constante, com a prática constante da renúncia e da caridade. Na estrutura católica da Igreja não há lugar para o egoísmo e exclusividade, nem para qualquer auto-suficiência individualista. 

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A Igreja Ortodoxa afirma ser a Igreja. Não há orgulho nem arrogância nesta tremenda reivindicação. Pelo contrário, implica uma pesada responsabilidade. É um lembrete constante de inadequação, um chamado ao arrependimento e à humildade. De modo algum é uma reivindicação de "perfeição". A Igreja ainda está em peregrinação, em trabalho, in via. Ela tem os seus fracassos e perdas históricas; tem as suas tarefas e problemas inacabados. Nem é apenas uma reivindicação. É antes uma expressão da mais profunda convicção - do mais profundo autoconhecimento espiritual - humilde e agradecida. A Igreja Ortodoxa é consciente de sua identidade através dos tempos, apesar de todas as provações e tribulações históricas. Ela acredita que manteve intacta e imaculada a herança sagrada da Igreja primitiva, dos Apóstolos e dos Padres, a "fé uma vez por todas confiada aos santos". Ela está consciente da identidade do seu ensinamento com a pregação apostólica e a tradição da Igreja antiga, mesmo que tenha falhado ocasionalmente e provavelmente com demasiada frequência em transmitir esta mensagem e esta tradição às gerações particulares em todo o seu esplendor e de uma forma que carrega convicção. Em certo sentido, a Igreja Ortodoxa é uma continuação, uma "sobrevivência", do antigo cristianismo, tal como se formou na era dos Concílios Ecumênicos. Ela representa a tradição dos Padres, que se encarna também na sua estrutura litúrgica e na sua prática espiritual. Trata-se de uma tradição viva, que confere à Igreja ortodoxa a sua identidade. Também não se trata de uma mera tradição humana, mantida pela memória e imitação humanas. A identidade última da Igreja fundamenta-se na sua estrutura sacramental, na continuidade orgânica do corpo. A Igreja Ortodoxa encontra-se numa sucessão ininterrupta de vida sacramental e de fé. Ela tem consciência de ter sido sempre a mesma desde o início. E por isso mesmo a Igreja Ortodoxa se reconhece, na nossa cristandade dividida, como verdadeira guardiã da antiga fé e ordem, isto é, como sendo a Igreja. Todo o programa de ação ecumênica está implícito nesta eclesiologia Ortodoxa.

Do capítulo "The Historical Problem of a Definition of the Church" no livro "Ecumenism II: A Historical Approach"  (Vol. das obras reunidas)



Num certo sentido, a Igreja Ortodoxa é uma sobrevivência do antigo cristianismo, tal como foi moldada na era dos Concílios Ecumênicos e dos Santos Padres. A Igreja Ortodoxa representa exatamente a tradição Patrística. Certamente ela foi, e deve ser, a tradição comum tanto do Oriente como do Ocidente, e aqui reside a sua importância primordial e o seu poder unificador. Mas no Ocidente, na Idade Média, esta tradição Patrística foi reduzida ou empobrecida (por um período considerável de tempo "Patrística" significava no Ocidente simplesmente "Agostinianismo", e todo o resto foi ignorado ou esquecido,) e mais uma vez foi obscurecida e sobrecarregada com uma superestrutura escolástica mais tarde. Assim, no Ocidente, ela tornou-se uma espécie de reminiscência histórica, apenas uma parte do passado que aconteceu e deve ser redescoberta por um esforço de memória. Apenas no Oriente ela se manteve viva durante séculos até aos nossos dias. Não se trata, de forma alguma, apenas de uma relíquia arcaica, um remanescente sombrio de épocas passadas. É uma tradição viva. É o que dá ao Oriente a sua identidade cristã. É o que manteve a sua identidade através de séculos de contendas e tentações. Não estou falando aqui de opiniões Patrísticas, mas precisamente da mentalidade e atitude Patrísticas. 

Do capítulo "The Greek and Latin Mind in the Early Ages of the Church" no livro "Ecumenism II: A Historical Approach"  (Vol. 14 das obras reunidas)










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