quarta-feira, 12 de junho de 2019

A contribuição dos Padres Capadócios sobre o conceito de Pessoa (John D. Zizioulas)


Eu chamei os Capadócios pensadores revolucionários na história da filosofia. Podemos ver isso por um breve exame do pensamento grego antigo em relação ao dos Capadócios.

O pensamento grego antigo, em todas as suas variações, desde os filósofos pré-socráticos até o neoplatonismo, inclusive, tendia a dar prioridade ao "um" em detrimento do "múltiplo". Na época dos Padres Gregos, isso tomara várias formas, algumas mais teológicas e outras mais filosóficas. No nível teológico, a filosofia grega pagã predominante na época dos Padres Capadócios, a saber, o neoplatonismo, identificou o 'Um' com o próprio Deus, considerando a multiplicidade de seres, os 'muitos', como basicamente emanações de uma natureza diminuída, de modo que o retorno ao 'Um' através do recolhimento da alma foi pensado ser o propósito e objetivo de toda a existência. Anteriormente, no primeiro século, Filo, cuja importância como elo entre o platonismo clássico e o neoplatonismo foi decisivo, argumentara que Deus é o único verdadeiro "Um", porque ele é o único que está verdadeiramente "sozinho". A doutrina da Santíssima Trindade, desenvolvida pelos Capadócios, contrariava essa prioridade e exaltação do "Um" sobre o "Múltiplo" na filosofia.

No que diz respeito à existência humana, também, a filosofia grega clássica da época dava prioridade à natureza sobre as pessoas particulares. As perspectivas na época dos Padres Capadócios eram de tipo platônica ou aristotélica. A primeira falava da natureza humana como uma humanidade ideal, agenos hyperkeimenon, cuja imagem todo ser humano é, enquanto a última preferia dar prioridade a um substrato da espécie humana, um genos hypokeimenon, do qual emergem os vários seres humanos. Em ambos os casos, o homem em sua diversidade e pluralidade de pessoas estava sujeito à necessidade - ou prioridade - de sua natureza. Natureza ou substância sempre precedeu a pessoa no pensamento grego clássico. 

Os Padres Capadócios desafiaram essa visão estabelecida da filosofia através de sua teologia trinitária. Eles alegavam que a prioridade da natureza sobre a pessoa, ou do 'um' sobre o 'múltiplo', é devido ao fato de que a existência humana é uma existência criada, isto é, é uma existência com um começo, e não deveria ser transformado em um princípio metafísico. O verdadeiro ser em seu genuíno estado metafísico, que diz respeito à filosofia por excelência, deve ser encontrado em Deus, cuja existência incriada não envolve a prioridade do "Um" ou da natureza sobre o "Múltiplo" ou as pessoas. A maneira pela qual Deus existe envolve simultaneamente o "Um" e o "Múltiplo", e isso significa que a pessoa deve receber primazia ontológica na filosofia.

Dar primazia ontológica à pessoa significaria desfazer os princípios fundamentais com os quais a filosofia grega operara desde o seu início. A pessoa em particular nunca teve um papel ontológico no pensamento grego clássico. O que importava, em última análise, era a unidade ou totalidade do ser, do qual o homem era apenas uma parte. Platão, ao se dirigir ao ser particular, deixa claro que "o todo não foi trazido ao ser por causa de ti, mas tu és trazido por causa dele". Com uma consistência notável, a tragédia grega clássica convidou o homem - e até os deuses - a sucumbir à ordem e à justiça que uniam o universo, de modo que o kosmos (significando ordem natural e comportamento adequado) pudesse prevalecer. Por trás da variedade de seres, o "múltiplo", existe a Razão única (Logos) que lhes dá sua significância na existência. Nenhum desvio desta Razão única pode ser permitido para o "múltiplo" ou para os seres particulares sem uma perturbação do ser, mesmo o próprio ser desses seres particulares.

A teologia trinitária dos Padres Capadócios envolveu uma filosofia na qual o particular não era secundário ao ser ou à natureza; era assim livre em um sentido absoluto. No pensamento clássico, a liberdade era apreciada como uma qualidade do indivíduo, mas não em um sentido ontológico. A pessoa era livre para expressar seus pontos de vista, mas era obrigada a sucumbir finalmente à Razão comum, o xunos logos de Heráclito. Além disso, a possibilidade de que a pessoa pudesse colocar a questão de sua liberdade de sua própria existência era inteiramente inconcebível na filosofia antiga. Foi, de fato, levantada pela primeira vez nos tempos modernos por Dostoiévski e outros filósofos existencialistas modernos. A liberdade na antiguidade sempre teve um sentido moral restrito e não envolvia a questão do ser do mundo, que era uma realidade "dada" e uma realidade externa para os gregos. Pelo contrário, para os Padres, o ser do mundo era devido à liberdade de uma pessoa, Deus. A liberdade é a "causa" do ser para o pensamento patrístico.

A teologia capadócia enfatizava esse princípio de liberdade como uma pressuposição do ser, estendendo-o para cobrir o ser do próprio Deus. Esta foi uma grande inovação dos Padres Capadócios, mesmo no que diz respeito aos seus predecessores cristãos. Os Padres Capadócios, pela primeira vez na história, introduziram no ser de Deus o conceito de causa (aition), a fim de ligá-la significativamente não ao "um" (a natureza de Deus) - mas a uma pessoa, o Pai. Distinguindo cuidadosamente e persistentemente entre a natureza de Deus e Deus como Pai, eles pensaram que o que faz Deus ser é a pessoa do Pai, não a substância divina única. Ao fazê-lo, eles deram prioridade ontológica à pessoa e, assim, libertaram a existência da necessidade lógica da substância, do "auto-existente". Este foi um passo revolucionário na filosofia, cujas consequências antropológicas não devem passar despercebidas.

As consequências antropológicas

O homem, para os Padres, é a "imagem de Deus". Ele não é Deus por natureza, já que ele é criado, isto é, ele teve um começo e, portanto, está sujeito às limitações de espaço e tempo que envolvem a individuação e, por fim, a morte. No entanto, ele é chamado a existir na maneira que Deus existe.

Para entender isso, devemos considerar a distinção feita pelos Padres Capadócios entre natureza e pessoa ou "modo de existência" (tropos hyparxeos), como eles chamavam. Natureza ou substância aponta para o simples fato de que algo existe, para o 'que' (ti) de alguma coisa. Pode ser predicado de mais de uma coisa. A pessoa ou hypostasis, por outro lado, aponta para o 'como' (hopos orpos) e só pode ser predicado de um ser, e isto em um sentido absoluto. Quando consideramos a natureza humana (ou substância: ousia), a referimos a todos os seres humanos; não há nada de único em ter uma natureza humana. Além disso, todas as características "naturais" da natureza humana, como a divisão - e, portanto, a individuação levando à decomposição e finalmente à morte - são todas aspectos da "substância" humana e determinam o ser humano no que diz respeito à sua natureza. É o 'como' da natureza humana, isto é, a pessoalidade, que ao adquirir o papel de causa ontológica, como é o caso do ser de Deus, determina se as limitações da natureza serão finalmente superadas ou não. A "imagem de Deus" no homem tem a ver exatamente com esse 'como', não com o 'que' o homem é; não tem a ver com a natureza - o homem nunca pode se tornar Deus por natureza - mas com a pessoalidade. Isso significa que o homem é livre para usar o 'como' de sua existência, ou na direção da maneira de (o 'como') Deus, ou na direção do seu 'que', de sua natureza. Viver de acordo com a natureza (kata physin) seria, assim, individualismo, mortalidade e assim por diante, uma vez que o homem não é kata physin imortal. Viver, por outro lado, de acordo com a imagem de Deus, significa viver da maneira que Deus existe, isto é, como uma imagem da pessoalidade de Deus, e isso equivaleria a "tornar-se Deus". Isto é o que a theosis do homem significa no pensamento dos Padres Gregos.

Segue-se daí que embora a natureza do homem seja ontologicamente anterior à sua pessoalidade, como já observamos, o homem é chamado a um esforço para se libertar da necessidade de sua natureza e se comportar em todos os aspectos como se a pessoa estivesse livre das leis da natureza. Em termos práticos, isso é o que os Padres viram no esforço ascético que consideravam essencial para toda a existência humana, independentemente se o homem é um monge ou vive no mundo. Sem uma tentativa de libertar a pessoa da necessidade da natureza, não se pode ser a "imagem de Deus", visto que em Deus, como já observamos acima, a pessoa, e não a natureza, faz com que ele seja como é.

A essência, portanto, da antropologia que resulta da teologia trinitária dos Padres Capadócios reside na importância da pessoalidade na existência humana. Os Padres Capadócios deram ao mundo o conceito mais precioso que possui: o conceito de pessoa, como conceito ontológico no sentido último. Como esse conceito se tornou, pelo menos em princípio, não apenas parte de nossa herança cristã, mas também um ideal de nossa cultura em geral, pode ser útil lembrar-nos de seu conteúdo e significado exatos, conforme emerge de um estudo da teologia dos Capadócios.

(a) Como emerge do modo como a pessoalidade é entendida pelos Padres Capadócios com referência a Deus, a pessoa não é secundária, mas uma noção primária e absoluta na existência. Nada é mais sagrado do que a pessoa, pois constitui a 'maneira de ser' do próprio Deus. A pessoa não pode ser sacrificada ou submetida a qualquer ideal, a qualquer ordem moral ou natural, ou a qualquer utilidade ou objetivo, mesmo do tipo mais sagrado. Para ser verdadeiramente e ser você mesmo, você deve ser uma pessoa, isto é, você deve estar livre e acima de qualquer necessidade ou objetivo - natural, moral, religioso ou ideológico. O que dá significado e valor à existência é a pessoa como liberdade absoluta. 

(b) A pessoa não pode existir isoladamente. Deus não está sozinho; ele é comunhão. O amor não é um sentimento, um sentimento que brota da natureza como uma flor de uma árvore. O amor é um relacionamento; é a livre saída de si, a quebra da vontade, a submissão livre à vontade do outro. É o outro e nosso relacionamento com ele que nos dá nossa identidade, nossa alteridade, fazendo de nós "quem somos", isto é, pessoas; pois, por ser uma parte inseparável de um relacionamento que importa ontologicamente, emergimos como entidades únicas e insubstituíveis. Isso, portanto, é o que explica nosso ser e ser nós mesmos e não outra pessoa: nossa pessoalidade. É nisto que reside a "razão", o logos do nosso ser: na relação de amor que nos torna únicos e insubstituíveis para o outro. O logos que explica o ser de Deus é o Filho unicamente amado, e é através desse relacionamento amoroso que Deus, também, ou melhor, Deus por excelência, emerge como único e insubstituível ao ser eternamente Pai de um Filho único (monogenes). Esta é a grande mensagem da idéia patrística da pessoa. O raison d'être, o logos ton einai do ser de cada um, o qual a mente grega sempre buscou, não se encontra na natureza desse ser, mas na pessoa, isto é, na identidade criada livremente pelo amor e não pela necessidade de sua auto-existência. Como pessoa você existe enquanto você ama e é amado. Quando você é tratado como natureza, como uma coisa, você morre como uma identidade particular. E se sua alma é imortal, qual é o uso disso? Você existirá, mas sem uma identidade pessoal; você estará eternamente morrendo no inferno do anonimato, no Hades das almas imortais. Pois a natureza em si não pode dar-lhe existência e ser como uma identidade absolutamente única e particular. A natureza sempre aponta para o geral; é a pessoa que protege a singularidade e a particularidade absoluta. A imortalidade, portanto, da alma, mesmo que implique existência, não pode implicar identidade pessoal no verdadeiro sentido. Agora que sabemos, graças à teologia patrística da pessoalidade, como Deus existe, sabemos o que significa verdadeiramente existir como um ser particular. Como imagens de Deus, somos pessoas, não naturezas: nunca pode haver uma imagem da natureza de Deus, nem seria uma coisa boa para a humanidade ser absorvida na natureza divina. Somente quando, nesta vida, existimos como pessoas, podemos esperar viver eternamente no sentido verdadeiro e pessoal. Isso significa que exatamente como é o caso com Deus, também é conosco: a identidade pessoal só pode emergir do amor como liberdade e da liberdade como amor.

(c) A pessoa é algo único e irrepetível. Natureza e espécies são perpetuadas e substituíveis. Indivíduos tomados como natureza ou espécie nunca são absolutamente únicos. Eles podem ser semelhantes; eles podem ser compostos e decompostos; eles podem ser combinados com outros para produzir resultados ou até novas espécies; eles podem ser usados para servir a propósitos - sagrados ou não, isso não importa. Pelo contrário, as pessoas não podem ser reproduzidas nem perpetuadas como espécies; elas não podem ser compostas ou decompostas, combinadas ou usadas para qualquer objetivo - mesmo o mais sagrado. Quem trata a pessoa de tal maneira automaticamente a transforma em coisa, dissolve e traz à inexistência sua particularidade pessoal. Se o homem não vê o outro ser humano como a imagem de Deus neste sentido, isto é, como pessoa, então ele não se pode ver esse ser como uma identidade verdadeiramente eterna. Pois a morte dissolve todos nós em uma natureza indistinguível, transformando-nos em "substância" ou coisas. O que nos dá uma identidade que não morre não é nossa natureza, mas nossa relação pessoal com a identidade pessoal imortal de Deus. Somente quando a natureza é hipostática ou pessoal, como é o caso de Deus, existe verdadeira e eternamente. Pois é só então que adquire singularidade e se torna uma particularidade irrepetível e insubstituível no "modo de ser" que encontramos na Trindade.


Conclusão 

Se somos permitidos ou mesmo incitados em nossa cultura a pensar ou esperar pela verdadeira pessoalidade na existência humana, devemos, sobretudo, ao pensamento cristão que a Capadócia produziu no século IV. Os Padres da Igreja Capadócios desenvolveram e nos legaram um conceito de Deus, que existe como uma comunhão de livre amor de identidades únicas, insubstituíveis e irrepetíveis, isto é, pessoas verdadeiras no sentido absoluto ontológico. É de tal Deus que o homem é uma "imagem". Não há antropologia superior e mais completa do que essa antropologia da verdadeira e plena pessoalidade.


O homem moderno tende, no geral, a ter uma boa opinião de uma antropologia da pessoalidade, mas as suposições comuns e difundidas sobre o que uma pessoa é não são de modo algum consonantes com o que vimos emergindo de um estudo dos Padres Capadócios. A maioria de nós hoje, quando dizemos "pessoa", queremos dizer um indivíduo. Isso remonta a Santo Agostinho, e especialmente a Boécio, no quinto século d.C., que definiu a pessoa como uma natureza individual dotada de racionalidade e consciência. Ao longo de toda a história do pensamento ocidental, a equação da pessoa com o indivíduo pensante e autoconsciente levou a uma cultura na qual o indivíduo pensante se tornou o conceito mais elevado da antropologia. Isto não é o que emerge do pensamento dos Padres Capadócios. É exatamente o oposto disso que resulta de um estudo do pensamento deles. Pois, de acordo com tal, a verdadeira pessoalidade não surge do isolamento individualista dos outros, mas do amor e do relacionamento com os outros, da comunhão. Somente o amor, o amor livre, não qualificado pelas necessidades naturais, pode gerar pessoalidade. Isto é verdade para Deus, cujo ser, como os Padres Capadócios o viram, é constituído e "hipostasiado" através de um livre evento de amor causado por uma pessoa livre e amorosa, o Pai, e não pela necessidade da natureza divina. Isto é verdade também para o homem que é chamado a exercer sua liberdade como amor e seu amor como liberdade e, assim, mostrar-se a "imagem de Deus".


John Zizioulas no livro "Communion and Otherness: Further Studies in Personhood and the Church"

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