segunda-feira, 27 de agosto de 2018

Igreja, Papado e Cisma: Uma Investigação Teológica (Philip Sherrard) [Parte 1/2]


1. A Igreja 
2. O Episcopado 
3. A Estrutura Conciliar
4. Duas Eclesiologias Rivais 
5. O Papado
6. Perspectivas e Fórmulas do Cisma
7. A Cristologia do Cisma
8. Doutrina Trinitária e o Cisma
9. Epílogo 


1. A Igreja 


Nós nos acostumamos tanto a considerar a Igreja, se não como um simples edifício dentro do qual homens e mulheres se reúnem para adorar a Deus, então como uma instituição organizada bem ao longo das linhas de qualquer outra instituição ou sociedade humana, que tendemos a esquecer que sua realidade essencial é bem diferente. Nós tendemos a esquecer que, em primeiro lugar, a Igreja é uma realidade espiritual, enraizada na vida divina. Como tal, tem sua existência "no céu", antes de se manifestar em qualquer forma na terra. De fato, pode-se dizer que é uma expressão da própria vida de Deus, implícita naquelas energias espirituais através das quais ele manifesta sua existência. Mais explicitamente, é revelada naquelas energias espirituais através das quais ele entra na criação. Neste sentido, a Igreja manifesta-se naquele fiat original, através do qual a eternidade entra no tempo, o invisível no visível, bem como na declaração divina: "Façamos o homem à nossa própria imagem". Está, portanto, intimamente ligada ao mistério da relação entre Deus e o homem, entre Deus e toda a criação. É o nexo que liga os dois, ou o locus dentro do qual a relação entre os dois é estabelecida. É a vida divina se desvelando em criaturas.

Ao mesmo tempo, a Igreja está intimamente ligada à encarnação. Uma das poucas definições bíblicas da Igreja é que ela é o corpo de Cristo, e o corpo de Cristo se manifesta na encarnação. Aqui, portanto, a Igreja está diretamente ligada a esse mistério teândrico que está na base de nossa própria humanidade e na compreensão do qual nossa salvação depende. Em Cristo, a natureza humana está unida a Deus na pessoa do Logos divino, para formar um ser divino-humano, ontologicamente e substancialmente um. Esta união de Deus com o homem em Cristo é o fundamento da união de Deus com a humanidade na Igreja: o segundo pressupõe o primeiro e depende dele. Na Igreja, a Divindade está vitalmente ligada à humanidade, através da união na Pessoa de Cristo das naturezas divina e humana. Pelo poder da encarnação e do Pentecostes, toda a humanidade recebe a graça de entrar no Reino de Deus, de ser co-herdeiros com Cristo, de viver em Cristo. Isso não é algo que tenha apenas um significado escatológico - algo que deve ser realizado no final dos tempos, quando Cristo conduzirá a humanidade ao seu Reino celestial. O Reino já está efetivamente estabelecido - aqui e agora. Já está presente na Igreja. A Igreja é "a cidade santa que foi santificada... conformando-se em Cristo e participando da natureza divina através da comunicação do Espírito Santo". [1] A cidade santa desceu do céu e abriu suas portas para nós. As realidades celestiais vêm à Terra e nos são dadas. Em Cristo e por meio de Cristo, somos filhos e herdeiros. Somos concidadãos com os santos. Temos comunhão com Deus e somos os templos de Deus nos quais ele habita. Na medida em que percebemos a integridade de nossa natureza - que é a da natureza humana ligada misteriosamente ao divino -, participamos dessa realidade espiritualizada que é o corpo de Cristo. A Igreja é o corpo de Cristo, e através da comunhão nesta realidade espiritualizada que é o corpo de Cristo, nós participamos na vida incriada do próprio Deus. Por isso a Igreja é também o locus da nossa salvação, da nossa transfiguração. É o locus da transfiguração de todas as criaturas.

A Igreja é, portanto, muito mais do que simplesmente uma realidade criada ou uma entidade histórica ou social. Ela é tanto incriada e criada, trans-histórica e histórica, simultaneamente. Visto, por assim dizer, do lado de Deus, é a própria vida divina incriada. Visto do lado da criação, é uma multiplicidade de seres criados espiritualizados, ou de seres criados no processo de espiritualização: uma multiplicidade de seres com uma vida porque compartilham o corpo único de Cristo. E quando alguém diz que vista do lado de Deus a Igreja é vida divina, isso não significa simplesmente que Deus é apenas a primeira causa ou princípio ativo da Igreja, enquanto seu princípio interior ou imanente não é Deus, mas os dons criados de Deus, os dons e virtudes sobrenaturais: não o próprio Deus, mas realidades criadas da graça procedentes de Deus. Significa que Deus na pessoa do Espírito Santo é a forma substancial imanente da Igreja, o princípio interior imanente de sua unidade e sua realização ontológica. A Igreja é uma só porque Deus é um - não, é claro, um em um sentido aritmético, mas um em sua indivisibilidade. À parte desta habitação do Espírito Santo, não há Igreja. Correspondentemente, é somente na medida em que participamos na vida divina, em Deus, que estamos na Igreja, porque a Igreja é a vida de Deus: nos tornamos um com esta vida, e tornando-nos um com a vida de Deus, nós participamos na unidade da Igreja.

Novamente, deve-se ressaltar que esta união de Deus com uma multiplicidade de pessoas na Igreja não significa que os vários seres humanos chamados a essa graça estejam unidos a Deus em uma espécie de união não-pessoal, para formar uma entidade divino-humana que é misticamente uma e constitui um corpo místico por si só. Deus não é uma realidade impessoal. Pelo contrário, ele é uma trindade de três Pessoas; e esta união de Deus com o homem é uma união pessoal, uma união com Deus na Pessoa do Logos divino através do compartilhamento em seu corpo. Deve ser lembrado que em Cristo não é uma natureza humana, mas toda a natureza humana que está unida a Deus; e a Igreja não é meramente o corpo universal daqueles que compartilham a luz da fé, uma societas hominum fidelium ou congregatio hominum fidelium, mas é o locus do contínuo mistério teândrico, o mistério da encarnação, no qual todas as pessoas humanas são chamadas a participar. Nem esta participação de uma multiplicidade de pessoas na única pessoa de Cristo, e a partilha delas de uma única vida, significam que cada pessoa entrega a sua própria liberdade e identidade pessoal e, portanto, deixa de existir como uma pessoa única. A Pessoa de Cristo não é um tipo de superpessoa, nem seu corpo é uma espécie de supercorpo. Na Igreja, que é o corpo de Cristo, cada pessoa participa na divindade do modo particular conferido a ele pelo Espírito Santo. É como personalidades definidas, em todas as suas diversidades únicas, que seres humanos únicos e particulares são estabelecidos pelo Espírito Santo em sua união com o Logos divino. Há tantas uniões com Deus quanto há pessoas humanas, tantas formas de santidade quanto os destinos pessoais, e cada uma é única.[2] É a singularidade das Pessoas da Trindade a sua recusa em ser suprimidas ou neutralizadas ou submergidas em uma natureza não-pessoal comum que é, em última análise, a garantia objetiva da qualidade única da deificação pessoal na Igreja; pois a Igreja em si é nada menos que o desvelamento ou revelação desta vida pessoal da Trindade, e tudo o que acontece na Igreja deve ter a marca desta vida.

Se é dentro e através da Igreja que os seres humanos realizam seus destinos únicos, tornando-se membros do corpo de Cristo, de que maneira essa incorporação é alcançada nas condições atuais de tempo e espaço, de história? O estado de vida a que somos chamados e "convocados" na Igreja é o da crescente participação no divino. No batismo, que marca nossa entrada na Igreja, nós simbolicamente morremos com Cristo a fim de participar da nova vida de seu corpo espiritualizado ou transfigurado. A semente divina em nós deve ser nutrida para que cresça e transfigure todo o nosso ser - incluindo nosso corpo - tornando-o puro, incorruptível, glorioso, perfeito, imortal. Mas para que possa nos alcançar, esse alimento espiritual que pode estimular e energizar a semente divina em nós deve ser dado de uma forma que possamos receber e assimilar. Deve ser dado a nós de uma forma apropriada à nossa condição no tempo e no espaço. Nunca devemos esquecer que só podemos receber e assimilar as realidades divinas de acordo com nossa capacidade de recebê-las e assimilá-las; ou - para colocar isso de outra maneira - só podemos conhecer as realidades divinas (ou quaisquer realidades, de qualquer modo) de acordo com o modo de nosso ser particular e nossa inteligência. Em um estado perfeito e glorificado, essas realidades divinas - esse alimento e vida divinos - podem ser comunicadas a nós de uma maneira não-corpórea, ou pelo menos de uma maneira consideravelmente mais refinada e sutil do que quando estamos "na terra". Da mesma forma, a encarnação - o Logos feito carne, feito homem - porque ocorre na realidade do mundo caído significa que Deus tem que velar a glória de sua divindade de tal maneira que se torne acessível à falta de visão espiritual, a opacidade e cegueira, e assim possa ser recebido e assimilado pelo homem. Se tivesse ocorrido antes da Queda, poderia ter tido uma forma bem diferente. Similarmente, a Igreja, como o locus dentro do qual este mistério teândrico continuamente ocorre - como o órgão através do qual a vida em Cristo é comunicada ao homem nas condições decaídas do tempo e espaço - deve se manifestar de uma forma que possa ser recebida e assimilada pelo homem. Deve ter um aspecto sensível e conatural ao nosso estado atual, ao nosso estado de consciência espiritual e receptividade espiritual; um aspecto sensível que corresponde, ou melhor, é identificado com o aspecto de Cristo visível em sua missão histórica "sob Pôncio Pilatos."

Este aspecto sensível ou encarnacional da Igreja, através do qual a nutrição espiritual é comunicada ao homem sob uma forma que ele pode receber e assimilar, manifesta-se sobretudo na vida sacramental da Igreja e, mais especificamente, no sacramento central de todos, a Eucaristia. É através dos sacramentos, acima de tudo, que somos incorporados à vida de Cristo e nos tornamos membros de seu corpo. De acordo com São Paulo, os cristãos são enxertados em Cristo e assim a vida flui dele para eles. Eles são refeitos em Cristo e se tornam nele uma nova criação. Eles são membros de Cristo, partes integrantes do corpo do qual ele é a cabeça. Eles são o corpo de Cristo, um com sua divindade. A Igreja é esse corpo de Cristo, seu soma, sua noiva. E o processo de incorporar ou enxertar homens e mulheres individuais no corpo de Cristo, que é a Igreja, é consumado sobretudo através dos sacramentos e, novamente, sobretudo, através da Eucaristia. A Igreja está enraizada na pessoa de Cristo, e a participação da multiplicidade de pessoas humanas na única pessoa de Cristo no tempo e no espaço, na história, se dá através da Eucaristia. Pois a Eucaristia é a manifestação na terra da realidade espiritualizada do corpo de Cristo em uma forma que os seres humanos podem receber e assimilar. E como o corpo de Cristo é a Igreja, segue-se que a Eucaristia, que é a manifestação deste corpo, é também a manifestação da Igreja na terra. É a Eucaristia que constitui o princípio e centro da Igreja na terra, e é na Eucaristia que a Igreja vive.

Deste modo, pode-se ver em que sentido a Igreja é uma continuação do mistério teândrico, do mistério da encarnação; e como a Igreja é muito mais do que simplesmente uma realidade criada ou uma entidade humana ou social. Como Cristo é a união de duas naturezas - a divina e a humana, o incriado e o criado -, a Eucaristia, que é a manifestação do corpo de Cristo, que é a Igreja, é também uma união dessas duas naturezas, a divina e humana, o incriado e o criado. E é através da participação na Eucaristia que nós - homens e mulheres individuais - participamos também desse mesmo processo encarnacional que é consumado na humanidade divina do Logos encarnado.Nós nos tornamos parte desse mesmo mistério teândrico. Nós nos tornamos filhos de Deus, co-herdeiros. Nós nos tornamos como Deus, deificados através da realização de nossa própria natureza divina-humana. Assim, não há questão da Igreja ser apenas uma realidade criada ou visível, mais do que há uma questão de Cristo ser uma realidade meramente criada ou visível. Menos ainda há alguma questão de divisão, lógica, se não real, da Igreja em dois departamentos, um incriado, invisível, celestial e o outro criado, visível, terrestre. Não há uma Igreja, triunfante, mística, mantida por Deus em paz e perfeição, e outra militante, in via, institucional. Nem, correspondentemente, existe uma lei dupla, a Igreja invisível operando de acordo com uma lei divina, e a Igreja visível operando de acordo com uma lei humana. Assim como em Cristo o divino e o humano constituem uma só e única Pessoa de quem todas as atividades e operações, divinas e humanas, têm como sujeito o Logos divino, assim, a Igreja constitui uma unidade única, indivisa, divina-humana, criada-incriada, operando em qualquer esfera, invisível ou visível, de acordo com um único modo de atividade divino-humano e teândrico, do qual novamente o único sujeito é o Logos divino. O sacrifício que Cristo oferece no altar celestial diante do trono de Deus é um e o mesmo que ele oferece em incontáveis altares terrenos no mistério eucarístico. E como a Igreja é o corpo de Cristo, e como o corpo de Cristo se manifesta na Eucaristia, há uma coincidência direta e imediata entre o incriado e o criado, o invisível e o visível na Igreja: formam uma única realidade indivisa. Da mesma forma, enquanto os seres humanos participam da Eucaristia, eles são membros da Igreja através da participação direta e imediata no corpo de Cristo, na própria vida divina. 'Somos um só pão, um só corpo, pois participamos de um único pão' (1 Co 10.17). E assim como a comunhão sacramental é sempre ao mesmo tempo comunhão eclesial, a comunhão eclesial sempre implica e exige a comunhão sacramental. Estar unidos a Deus na Igreja e participar da Eucaristia; ter um lugar no Reino de Deus e comungar nos santos mistérios - são operações simultâneas: formam uma única ação ou realização.


2. O Episcopado

A concepção da Igreja como manifestada na terra como realidade eucarística - pois tanto a Eucaristia como a Igreja são o corpo de Cristo - também se aplica às funções apostólicas e ministeriais, no sentido de que essas funções representam certas atividades dentro da Igreja e assim estão indissoluvelmente ligadas à Eucaristia. A primeira dessas funções é claramente a celebração da própria Eucaristia e a manutenção das condições sob as quais ela pode ser celebrada e sob a qual os fiéis podem participar dela. Está ligada à adoração no sentido mais direto, com ordem e prática litúrgica. Mas essas funções ministeriais não são de modo algum limitadas a esse aspecto. Aqueles que participam da vida da Igreja também devem ser educados na fé, na santidade, na comunhão e assim por diante. Para este fim, a Igreja tem que ter certas regras, um certo procedimento. Tem que possuir a estrutura através da qual tudo isso - a fé, a comunhão, as regras, o procedimento - são transmitidos de geração em geração, através do tempo, através da história.

Todas as formas institucionais ou eclesiásticas da Igreja, hierárquicas e governamentais, servem a estas funções ministeriais da Igreja - aquelas de manifestar a vida de Deus para e na humanidade, para e na história. A Igreja, enquanto funciona na terra, não pode possuir um caráter inteiramente "de outro mundo". A partir do momento de sua manifestação, conforme testemunhado no Novo Testamento, seus membros se preocupavam com questões de dinheiro e comida, com o redirecionamento dos costumes sociais e a criação de novos padrões de comportamento. O cristianismo, por sua natureza, é hostil aquele tipo de dualismo que oporia radicalmente o espiritual e o material, o sagrado e o profano; e na medida em que a ordem material, social e econômica é ou deveria ser uma expressão de princípios religiosos, nessa medida a Igreja estará envolvida nessa ordem. É claro que a perspectiva dentro da qual o mundo criado é visto afetará crucialmente essa relação, no sentido de que uma teologia da criação equivocada impedirá aqueles que a mantém de realizar a missão da Igreja de maneira totalmente adequada. O significado disso se tornará aparente em um ponto posterior deste estudo. Aqui, tudo o que tem que ser enfatizado é que, para realizar a sua tarefa na terra, a Igreja tem que executar certas funções e que, consequentemente, deve haver pessoas na Igreja capazes de realizar essas funções e assim serem confiadas a elas.

Novamente, o processo pelo qual essas funções dentro da Igreja chegaram a ser estabelecidas em certos ofícios definidos não precisa nos deter aqui. É suficiente dizer que no tempo dos apóstolos parece não haver um ofício definido - à parte do próprio apostolado, se pode ser chamado de ofício. São Paulo está familiarizado e às vezes menciona ajudantes particulares e outros funcionários dentro da congregação, e estes certamente prefiguram o que mais tarde viriam a tornar-se titulares de cargos estabelecidos. Mas eles não parecem possuir um status e autoridade reconhecidos. Mesmo as funções cotidianas e os ministérios dentro da Igreja são vistos mais como a operação de dons espirituais do que como decorrentes de prerrogativas especiais. No entanto, já no primeiro século, um tipo mais formal de organização começa a emergir - um tipo de origem judaica, baseado nos chamados presbíteros. Aqui, esses presbíteros, ou anciãos, começam a possuir uma autoridade especial; e embora isso ainda não seja apoiado pela lei canônica oficial, há menos ênfase nos dons espirituais e mais no status legal do ofício como tal. Sem dúvida, a ameaça da confusão das seitas, proliferando e se dividindo em todas as direções durante a crise gnóstica, fez com que a questão de salvaguardar e transmitir intacta a doutrina e tradição originais fosse cada vez mais urgente e exigisse uma forma mais rígida de organização e controle por parte da Igreja. Em todo caso, essa forma mais estrita de organização e controle é evidente na formação de um cânone apostólico e no estabelecimento de um ofício apostólico. No terceiro século, o mais tardar, este ofício é investido firmemente nos bispos.

A questão, no entanto, não é quando o episcopado surgiu, mas sua justificação e sanção como representando uma função orgânica dentro do corpo de Cristo. Todas as funções hierárquicas e apostólicas são, por definição, funções especiais do corpo vivo de Cristo, necessárias para a expressão ou manifestação da vida que anima o todo no mundo do tempo e lugar. Nesse sentido, elas são a expressão ou manifestação da presença de Cristo. Cristo é a única verdadeira cabeça e liturgista da Igreja, tanto de seus aspectos invisíveis quanto visíveis, e exerce esses papéis direta e imediatamente através dela e nela. Nenhuma pessoa ou princípio ou ofício pode tomar o lugar de Cristo na Igreja, ou exercer um vicariato para ele como se ele nem sempre estivesse e em todas as circunstâncias ativamente e plenamente presente. Cristo nunca pode estar ausente da Igreja, mais do que uma cabeça pode estar ausente de um corpo vivo; e sua chefia pessoal não pode ser substituída pela de outra pessoa ou pessoas, assim como uma cabeça humana não pode ser substituída pela de outra pessoa em um corpo particular. Cabeça e corpo estão interligados e formam uma única realidade indivisível, e nenhum deles é capaz de funcionar à parte do outro, nem esta realidade única é capaz de funcionar a menos que estejam indissoluvelmente unidos. A Igreja, isto é, não pode funcionar à parte da união indissolúvel de sua cabeça e corpo na Pessoa de Cristo. Aqueles aspectos que têm que funcionar no tempo e lugar, na história, não escapam desta lei. Eles também não podem funcionar de forma alguma à parte de sua integração com a única realidade que é a Pessoa de Cristo. Eles não podem ser abstraídos desta Pessoa, e administrados ou governados por outra autoridade que não é Cristo ou que afirma tomar o seu lugar. Eles pertencem inalienavelmente a toda essa realidade integral, indivisível e perfeita, parte visível, parte invisível, toda espiritual ou espiritualizada, que constitui a Pessoa viva de Cristo. É por isso que todas as funções apostólicas ou ministeriais na Igreja são e devem ser consideradas como expressões orgânicas - partes e membros - do corpo vivo de Cristo.

Além disso, essas funções não são exercidas sobre a Igreja. Eles são exercidos dentro da Igreja e derivam da Igreja. Os aspectos puramente visíveis ou institucionais da Igreja não têm identidade autônoma que exija o exercício de um governo ou de uma jurisdição sobre eles. Eles não constituem uma sociedade independente como a de qualquer outra sociedade humana ou coletividade na qual os seres humanos estão reunidos para o cumprimento de algum propósito particular. Não se pode enfatizar demasiadamente que a Igreja é uma realidade divino-humana e que abstrair os aspectos humanos do divino e considerá-los como constituindo um aspecto independente ou quase independente que deve ser governado em si mesmo, à parte de seu aspectos divinos ou celestes ou sobrenaturais, é mutilar essa realidade em seu coração. As funções hierárquicas e governamentais da Igreja na terra não são funções paralelas a outro nível e funções similares que estão sendo exercidas com respeito à Igreja no céu. Essa noção de um tipo de organização paralela, na qual as leis que operam com respeito à Igreja no céu são imitadas com respeito à Igreja na terra, de maneira que todas as suas feições imaginadas se repetem à distância e em termos de leis humanas, não tem sentido que se refere à Igreja. Assim como a Eucaristia na terra não é a imitação remota da Eucaristia celestial celebrada por Cristo diante do trono de Deus, mas é esta mesma Eucaristia celestial em uma forma visível, também as funções hierárquicas e ministeriais exercidas na Igreja na terra são visíveis extensões de funções orgânicas operando dentro da realidade única da Igreja integral, indivisível e simultaneamente visível e invisível, terrena e celestial, humana e divina. Não pode haver autoridades, hierárquicas ou outras, que exercem vicariamente e instrumentalmente na Igreja na terra o ministério de Cristo, porque onde Cristo não exerce o seu próprio ministério e onde ele não vive misticamente ou interiormente no corpo dos fiéis não existe igreja. Onde a congregação dos fiéis, seja uma única pessoa, não está vivendo direta ou internamente na vida de Cristo, não existe e nunca pode haver qualquer questão da Igreja.

A partir disso, ficará claro que o ofício do bispo só pode ser justificado e sancionado se manifestar na forma visível e na terra uma função intrínseca à realidade arquetípica e eterna da Igreja como tal. Com efeito, como vimos, a plenitude da Igreja manifesta-se na terra na Eucaristia. Pode-se dizer que é dentro e através da Eucaristia que a verdadeira catolicidade da Igreja é manifesta. Esta natureza católica da Igreja é muitas vezes interpretada em um sentido exclusivamente geográfico ou quantitativo, e por isso tomada para indicar que a Igreja tem potencialmente, se não de fato, uma extensão temporal e espacial entre todos os povos em todo o mundo. Santo Agostinho dá-lhe esse significado em seus argumentos contra os donatistas e, no século III, Cirilo de Jerusalém já vincula a ideia de catolicidade à inclusão geográfica. Isso equivale virtualmente a equiparar catolicidade com ecumenicidade e, assim, obscurecer o sentido original e mais profundo da palavra e reduzir seu significado. Em seu sentido original e mais profundo, a palavra católico, quando aplicada à Igreja, não tem essa conotação quantitativa e geográfica, ou pelo menos a tem apenas de maneira secundária e derivada. Essencialmente, a Igreja não é católica em relação à topografia ou ao espaço, ou em relação ao fato de que ela abrange uma multidão de comunidades locais dentro de uma coletividade mais ampla. A catolicidade não é um termo coletivo. O que essencialmente denota é a integridade interior e a plenitude espiritual da Igreja. Tem, isto é, um sentido estritamente qualitativo. Ele denota plenitude, completude, o que é essencial e não o que é acidental. Tem consequentemente, como a própria Igreja, raízes trinitárias e cristológicas. A Igreja é católica porque vive em Cristo. É a expressão da totalidade, a completude ou plenitude da verdade que é Cristo. A catolicidade de sua cabeça - Cristo - é o princípio da catolicidade da Igreja como o corpo de Cristo; e é precisamente sua capacidade de manifestar a vida e a verdade divinas em sua plenitude a todas as criaturas que constitui a catolicidade da Igreja.

Mas essa plenitude de vida e verdade em Cristo é manifestada na terra na forma da Eucaristia. A Eucaristia é a manifestação de Cristo. Isto significa que o significado da palavra catolicidade em sua aplicação à Igreja em sua manifestação no tempo e lugar é também indissoluvelmente ligado à Eucaristia. Onde Cristo é manifesto na Eucaristia, ali está a Igreja Católica. E como Cristo é manifesto em cada igreja local em que a Eucaristia é celebrada, cada igreja local é em si mesma a Igreja Católica. É a Igreja Católica porque "localiza", no tempo e no espaço, na história, a plenitude da vida e da verdade em Cristo. Deste modo, a catolicidade e a unidade da Igreja estão também indissoluvelmente ligadas. Cada igreja local é a Igreja Católica em virtude do fato de que manifesta o corpo de Cristo na Eucaristia. Mas pela mesma razão também está unida, ou em unidade, porque a vida divina manifesta no corpo de Cristo é uma só: Deus é um. Não pode haver uma igreja local que seja mais católica ou mais unida do que outra, porque uma manifestação da Eucaristia não pode ser mais ou menos a manifestação do corpo de Cristo do que outra. O corpo de Cristo deve sempre ser igual a si mesmo. Da mesma forma, uma igreja local não pode ser o princípio da catolicidade e da unidade das outras. O princípio da catolicidade e unidade da Igreja reside na pessoa de Cristo; e como Cristo está igualmente presente sempre que seu corpo é manifesto, o princípio da catolicidade e da unidade está igualmente presente. A igreja local que manifesta o corpo de Cristo não pode ser incluída em nenhuma organização ou coletividade maior que a torne mais católica e mais unida, pela simples razão de que o princípio da catolicidade total e da unidade total já é intrínseco a ela. Se não fosse intrínseco, não seria uma igreja. Em outras palavras, a catolicidade e a unidade das igrejas locais não são constituídas essencialmente porque cada uma é membro de um corpo maior, corporativo e institucionalizado chamado Igreja. A catolicidade e unidade das igrejas locais deriva essencialmente da posse de cada uma da vida de Cristo. Cada igreja local é o organismo no qual a Igreja Católica se manifesta no tempo e lugar. Cristo é aquele que confere unidade aos muitos.

Neste ponto, pode-se perguntar qual é a diferença entre catolicidade e unidade, uma vez que ambos têm seu princípio em Cristo e ambos se manifestam em cada centro eucarístico local. A resposta a essa questão pode ser que a unidade se refere àquele aspecto de Cristo segundo o qual ele expressa a atividade única unida da Santíssima Trindade. A unidade da Igreja, isto é, é essencialmente trinitária. A catolicidade, por outro lado, pode ser tomada para se referir a Cristo na medida em que ele é o poder criativo que traz consigo as múltiplas sementes divinas, o logoi, de todas as criaturas. Refere-se, isto é, mais diretamente à Pessoa de Cristo. É a unidade do Deus triuno voltado como se fosse para fora e expressando-se no relacionamento entre Cristo, manifestado no Espírito Santo e a multiplicidade de criaturas. É uma manifestação desta unidade através da qual tudo é realizado em Cristo, tudo se integra ao seu corpo e compartilha em sua glória, cada criatura da maneira que é unicamente ajustada ao seu próprio ser e identidade.

A atividade arquetípica e eterna da Igreja é, portanto, aquele sacrifício que Cristo oferece diante do trono de Deus e que se repete no mistério eucarístico oferecido nos incontáveis altares das igrejas locais, cada igreja local manifestando assim a unidade essencial e catolicidade da Igreja.  No que diz respeito a manifestação da Igreja na terra, o paradigma deste mistério eucarístico é dado por Cristo em sua última ceia com seus discípulos. É desta forma que o sacrifício que Cristo oferece diante do trono de Deus e que constitui a atividade arquetípica e eterna da Igreja é repetido na terra; e é nessa forma, conseqüentemente, que a Igreja é manifestada na terra. No paradigma desta forma como é dada por Cristo na Última Ceia, é o próprio Cristo que age como sua própria imagem: enquanto ele celebra na terra diante de seus discípulos, ele celebra no céu diante do trono de Deus. É uma e a mesma pessoa que opera o sacrifício em ambos os casos, e essa pessoa é Cristo. Mas este princípio de que é uma e a mesma pessoa - Cristo - que opera o sacrifício tanto no céu como na terra, é válido em cada caso que é operado na terra, pois em cada caso é o mesmo sacrifício que está sendo oferecido, quando e onde quer que seja oferecido. Por conseguinte, ninguém pode tomar o lugar ou substituir Cristo no mistério eucarístico da igreja local: é e deve ser sempre Cristo quem celebra seu próprio mistério. Tudo o que é possível é alguém tornar visível a presença invisível de Cristo e, assim, agir como sua imagem. Agir como uma imagem não é trocar ou substituir um protótipo que está ausente. É compartilhar e tornar visível um protótipo que está invisivelmente presente.

Este papel de agir como a imagem de Cristo na celebração do mistério eucarístico é conferido em princípio por Cristo em seus apóstolos. Constitui a base do ofício apostólico na Igreja. Através da graça que lhes foi conferida por Cristo (Jo 20,22-3) e confirmada no Pentecostes, os apóstolos têm o poder de conferir este ofício àqueles que então são igualmente qualificados para agir como as imagens de Cristo na celebração do mistério eucarístico. Aqueles a quem eles conferem são os bispos da Igreja. Os bispos são assim os sucessores dos apóstolos. Eles são os sucessores no sentido de que ocupam o ofício apostólico. E este ofício em si é essencialmente o que é porque, ocupando-o, o seu titular tem o direito de agir como a imagem de Cristo na celebração desse mistério eucarístico através do qual a Igreja se manifesta na terra. É o fato de que, assim, o bispo manifesta de forma visível e na terra uma função intrínseca à realidade arquetípica e eterna da Igreja como tal que justifica e sanciona seu ofício.

Assim, como em muitos outros lugares onde a manifestação da Igreja na terra está em causa, o ofício do bispo está também indissoluvelmente ligado à Eucaristia, e não tem validade para à parte desta estrutura. Isso quer dizer que o ofício de bispo não tem poderes legítimos, exceto aqueles que deriva de seu status sacramental. Não tem poderes que derivam de uma fonte extra-sacramental ou extra-eclesial. É a função sacramental que confere quaisquer poderes que o bispo tenha, quer estejam diretamente relacionados com a administração dos sacramentos ou apenas indiretamente relacionados com ela. A esse respeito, pode-se dizer que a Eucaristia e o bispo constituem dois elementos básicos e interconectados da atividade histórica da Igreja. Sem a Eucaristia, não há manifestação do corpo de Cristo. Sem o bispo (aqui entendido como o repositório daqueles poderes sacramentais que ele pode em certas circunstâncias delegar a outros sacerdotes), não pode haver celebração do mistério eucarístico. É por isso que Santo Inácio, por exemplo, pode dizer não apenas que onde Cristo está, ali está a Igreja Católica, mas também que onde o bispo está, ali está a Igreja. E ele também pode dizer, em sua carta aos Esmírios: “Que ninguém pertencente à Igreja faça algo sem o bispo. A Eucaristia que é celebrada pelo bispo, ou por quem o bispo permite - essa é a verdadeira Eucaristia. Assim, onde quer que apareça o bispo, que lá também estejam os leigos."

Isso introduz o terceiro elemento básico - também interconectado com os outros dois - constituindo a vida histórica da Igreja, a saber, os leigos. O fato de os bispos ou os nomeados pelos bispos exercerem, por virtude de qualificações especiais, funções especiais no corpo dos fiéis, não significa que o episcopado constitua uma casta especial colocada contra ou à parte dos leigos. Ao contrário de uma sociedade civil, a Igreja não tem governantes e governados. Só tem membros - como um corpo vivo, ou organismo, só tem membros. É verdade que alguns desses membros cumprem certas funções específicas que outros não cumprem. Mas essencialmente eles pertencem ao mesmo corpo. E embora o bispo ocupe um ofício apostólico especial em virtude do fato de que ele é o tipo ou a imagem de Cristo na celebração do mistério eucarístico na igreja local, ainda assim a celebração desse mistério não ocorre no vácuo, mas somente em relação aos leigos que dela participam. Além disso, deve ser lembrado que, na medida em que os leigos participam da Eucaristia, ou na medida em que seus membros vivem na vida de Cristo e se tornam membros da Igreja, também eles constituem um sacerdócio real e participam nas funções de sumo sacerdócio de Cristo. A este respeito, portanto, o bispo é apenas o representante dos leigos na igreja local em particular em que ele oficia, exercendo em nome dos membros da igreja local essas funções de sumo sacerdote que todos possuem em virtude de sua participação na vida de Cristo. Os leigos delegam ao bispo as funções especiais para as quais todos os membros da Igreja são herdeiros. Corretamente falando, é o laicato da igreja local que deve escolher seu próprio bispo, que é então confirmado em seu ofício apostólico por outros bispos. Desta forma, o bispo incorpora a igreja local a qual ele preside não apenas porque ele é a imagem ou tipo de Cristo na celebração eucarística que define principalmente a sua existência, mas também porque ele age em favor e em nome de seus membros leigos na própria súplica, invocação e oferta deles diante do trono de Deus. A Igreja não pode funcionar na terra sem os bispos e seus assistentes. Mas igualmente não pode funcionar na terra sem os leigos.

As mesmas conclusões aplicam-se a outros aspectos do ofício apostólico do bispo. Como já foi assinalado, a função apostólica do episcopado não se limita unicamente ao ato de celebrar o mistério eucarístico ou de estabelecer as condições sob as quais ele pode ser celebrado e sob o qual os fiéis podem participar. Não se limita a adorar em seu sentido mais direto - à ordem e prática litúrgica. Sem dúvida, essa função eucarística é a principal função do bispo. É a função que determina seu próprio ofício. Mas, como já foi observado, a Igreja é católica porque manifesta a plenitude da verdade que está em Cristo para todas as criaturas. É na medida em que cada igreja local faz isso que pode reivindicar ser a Igreja Católica. Aqui também o papel do bispo é crucial. Como o tipo ou imagem de Cristo na igreja local, ele é o órgão visível para a expressão dessa catolicidade. Ele é seu porta-voz. Ele é responsável por manifestar a vida em verdade aos membros de sua igreja, por educá-los na verdadeira fé (a qual ele tem que manter e transmitir), por encorajá-los e discipliná-los em santidade, comunhão e assim por diante. Em outras palavras, o magistério da Igreja, cujo princípio é Cristo, é investido em cada bispo como a imagem de Cristo em cada igreja local. Está investido nele em virtude de sua função eucarística ou sacramental. A plenitude da verdade reside em Cristo, ou é Cristo, e ele é o critério último da vida em verdade. Mas Cristo - o Cristo inteiro - é manifestado na Eucaristia. Assim, é a Eucaristia que incorpora e manifesta a plenitude da verdade na terra e é o critério da vida em verdade. E o órgão através do qual essa plenitude da verdade é expressa em cada igreja local é o bispo.

Mas, novamente, o bispo não cumpre esta função no vácuo, ou corta-se e isola-se e separa-se dos leigos. Pois na medida em que os membros dos leigos participam do mistério eucarístico e assim vivem sua vida em Cristo, nessa medida também participam da plenitude da verdade. Nessa medida, também eles devem compartilhar no Magistério da Igreja. Eles devem dar testemunho da verdadeira fé, devem mantê-la e proclamá-la e transmiti-la. Eles em conjunto com o bispo são co-responsáveis pela expressão da catolicidade da Igreja na terra. A este respeito também, portanto, o bispo é apenas o representante dos leigos. Ele é o delegado dos leigos, a voz através da qual a plenitude da verdade presente em todo o corpo sobre o qual ele preside é expressa. Por conseguinte, também nesse sentido, portanto, o laicato possui uma função apostólica. Seus membros são também órgãos do corpo vivo da Igreja e devem dar testemunho da vida e da verdade que animam o todo. E deve ser lembrado neste contexto que a Igreja é apostólica não porque remonta aos tempos históricos em que os apóstolos viveram na terra. É apostólica porque é manifesta naquelas funções que os apóstolos foram capacitados a cumprir por Cristo. Essas funções são intrínsecas à realidade eterna da Igreja. Elas são apenas como se fossem acidentalmente realizadas no tempo, na história. Mas é porque são realizadas na história em cada centro eucarístico local cujos membros - bispo e leigos - vivem na vida de Cristo, que este centro é plenamente a Igreja Apostólica. Cada igreja local constitui, portanto, não apenas a Igreja Católica em um sentido total. Também constitui a Igreja Apostólica em um sentido total.

Chegamos agora a um ponto em que podemos resumir o que foi dito sobre a constituição da Igreja na terra. Vimos que a catolicidade da Igreja na terra não reside essencialmente no fato de que a Igreja tem uma difusão mundial ou é ecumênica. A catolicidade não deve ser identificada com a ecumenicidade, que tem precisamente essa conotação geográfica mundial. Nem o fato de cada igreja local ser parte de uma assembléia maior ou organização ou corporação de igrejas locais confere-lhe sua catolicidade. Novamente, a catolicidade não é uma realidade coletiva ou quantitativa. Pelo contrário, a catolicidade - e a apostolicidade - da igreja local é constituída pelo fato de que ela incorpora e manifesta de maneira dinâmica aquela plenitude da verdade que está em Cristo. Cada igreja local não faz parte de um todo maior. É a manifestação do todo. A igreja local, como o próprio nome denota, 'localiza' o Reino de Deus e o manifesta no tempo e lugar. O Espírito Santo - pois, na igreja local, Deus é manifesto no Espírito e, através dele - constitui a Igreja de Deus em cada lugar particular. É por isso que São Paulo, por exemplo, se refere à "Igreja de Deus que está em Corinto" e assim por diante (1Cor 1,2; 2Cor 1,1). E por que ele pode falar da igreja local de Deus como constituindo toda a Igreja (1 Cor. 14.23). A partir disso, ficará claro que cada igreja local adequadamente constituída é tanto a Igreja quanto qualquer outra igreja local. Tanto quanto qualquer outra igreja local, é um centro visível da catolicidade, apostolicidade e unidade da Igreja. Pela natureza da constituição da igreja local, não pode haver uma igreja local em particular que possa afirmar ser mais o centro visível ou expressão da catolicidade, apostolicidade e unidade da Igreja do que qualquer outra igreja local.

Desta catolicidade, apostolicidade e unidade da igreja local, o bispo não é meramente o sinal externo. Ele é a expressão viva delas. Em virtude de seu ofício na igreja local, onde ele permanece como a imagem de Deus e como representante da congregação, ele personifica a plenitude daqueles poderes, magisteriais, sacerdotais e governamentais, que Cristo conferiu aos apóstolos. Ele incorpora essa plenitude não simplesmente porque ele é o sucessor dos apóstolos - e cada bispo é singularmente o sucessor dos apóstolos - mas porque em sua igreja ele cumpre as funções que têm seu princípio em Cristo. Elas constituem seu ofício. A partir disso, também ficará claro que, assim como uma igreja local em particular não pode pretender incorporar a catolicidade, a apostolicidade e a unidade da Igreja a um grau maior do que qualquer outra, um bispo em particular não pode alegar incorporar os vários poderes e funções— sacramental ou jurisdicional - investido em seu cargo em um grau maior do que qualquer outro bispo. Pela natureza da constituição de seu ofício, cada bispo deve ser essencialmente igual em poder com todos os outros bispos. É através da manifestação de um mistério e fé idênticos que cada bispo é totalmente católico e apostólico, assim como cada igreja local é totalmente católica e apostólica pela mesma razão. E é também pela mesma razão que cada bispo incorpora igualmente com cada outro bispo o princípio da unidade da Igreja e é sua expressão visível na terra.

Segue-se daí que a identidade na unidade, apostolicidade e catolicidade de cada igreja local e seu bispo através da posse de um mistério e fé idênticos constituirão o critério que regula as relações entre as várias igrejas locais e seus bispos. Constituirá o critério de sua unidade uns com os outros em uma Igreja católica e apostólica. Em outras palavras, nós encontramos aqui os princípios por trás da instituição dos Concílios da Igreja, aquelas assembleias de bispos chamados para averiguar se todos possuem um mistério e fé idênticos ou, de fato, determinar o que são e como podem ser adequadamente formulados.

3. A Estrutura Conciliar 

Vimos que a igreja local é determinada pelo fato de localizar a Igreja de Deus e, assim, é a Igreja de Deus, num sentido total e não apenas parcial. É a Igreja Católica em sua plenitude. Vimos ainda que essa qualidade é inerente a ela em virtude de sua constituição como uma realidade eucarística. Além disso, os critérios objetivos de acordo com os quais a genuinidade ou legitimidade de cada igreja local pode ser avaliada são fornecidos pelo seu caráter apostólico. Isto não significa apenas que ela traça sua fundação, direta ou indiretamente, aos apóstolos ou que seu bispo compartilha da sucessão apostólica. Significa também que cumpre as funções que Cristo conferiu aos apóstolos e que manifesta a verdade de que eles deram testemunho. É a conformidade com esses critérios que constitui não apenas a genuinidade ou legitimidade de cada igreja local, mas também a base de seu relacionamento com outras igrejas locais. Constitui a base para a intercomunhão entre as igrejas locais. Segue-se daí que a comunhão ou relação entre as igrejas locais não é estabelecida porque cada uma constitui uma parte cujo propósito real só pode ser alcançado na condição de que ela se une a partes similares para formar um todo coletivo maior. Estabelece-se porque cada uma possui uma realidade interior idêntica, da qual cada uma incorpora a totalidade. Cada uma possui uma natureza comum, a totalidade da qual inclui dentro de si. Pode-se dizer, em outras palavras, que a relação ou comunhão entre as igrejas locais segue o padrão que se aplica no caso, não de indivíduos, mas de pessoas.

Para entender o significado disso, é preciso entender a distinção entre essas duas categorias, tão confundida pelos sociólogos e filósofos modernos, da pessoa e do indivíduo. Aqui, a primeira coisa a notar é que, diferentemente do indivíduo, a pessoa não é uma categoria quantitativa, no sentido de que ela pode ser numerada de forma aritmética e, assim, fazer parte de um total impessoal. A pessoa é uma categoria qualitativa, que deriva da posse de certas qualidades interiores. Assim, a pessoa não tem nada a ver com números e transcende e até mesmo abole categorias aritméticas. A lei aritmética, por exemplo, segundo a qual dois indivíduos são duas vezes um indivíduo, não se aplica a pessoas. O indivíduo pode fazer parte de uma coletividade quando adicionado a outros indivíduos: ele pode fazer parte de um grupo unido para alcançar algum objetivo. A pessoa, por outro lado, é a "imagem de Deus", um valor espiritual, e, portanto, não pode ser recrutada em um grupo ou coletividade vinculado dessa maneira a cumprir um propósito comum. Ela não pode ser um meio para qualquer fim. Ela é seu próprio propósito, seu próprio fim e é única. Todo uso da pessoa como meio de atingir algum objetivo coletivo - até mesmo o objetivo coletivo mais sublime - a reduz a um indivíduo, a um ego, e a deprecia de seu status como imagem de Deus. Uma relação entre pessoas, consequentemente, não pode ser estabelecida por meio de qualquer vínculo exterior ou constituição. Ela só pode ser estabelecida pelo reconhecimento mútuo de que cada uma possui e incorpora as mesmas qualidades internas, uma realidade interior idêntica. É essa posse de qualidades interiores e de uma realidade interior idêntica que constitui a base do relacionamento e do princípio da unidade entre uma pessoa e outra.

À luz dessa distinção, é possível ver o que se entende dizendo que a relação ou comunhão entre as igrejas locais segue o padrão - ou deveria seguir o padrão - que se aplica no caso de pessoas e não de indivíduos. Se seguisse o padrão que se aplica no caso de indivíduos, então cada igreja local seria considerada como uma igreja individual que poderia ser unida a outras igrejas locais individuais para formar um todo coletivo maior, uma estrutura abrangente dedicada ao comum propósito de servir a Cristo e de moldar uma comunhão ou sociedade cristã. É esse todo coletivo que agora seria chamado de Igreja, pois ele incluiria em seu ser maior todas as igrejas locais menores, o que constituiria partes de seu todo; e a unidade desta Igreja seria formada exatamente da mesma forma que qualquer outra sociedade humana e terrena composta de indivíduos que se uniram para alcançar algum objetivo coletivo. Deste modo, a intercomunhão - se é que pode ser chamado assim - entre as igrejas locais seria estabelecida com base em que cada uma subscreve este objetivo coletivo comum e está disposta a se comprometer com as leis e regulamentos e assim por diante necessários para alcançá-lo - leis e regulamentos estabelecidos por um corpo diretivo ou agente instituído com a finalidade de formulá-los e aplicá-los.

Quando, por outro lado, a relação ou comunhão entre as igrejas locais segue o padrão que se aplica no caso das pessoas, então cada igreja local será considerada como uma pessoa - de fato, como manifestação da Pessoa de Cristo. Não será considerada como uma entre muitas, ou uma de muitas, ou parte de um todo, ou uma parte que possa ser incluída em um todo maior. Não pode ser incluída em uma organização a fim de alcançar algum objetivo maior ou mais significativo do que aquele que realiza ou pode realizar através de sua identidade intrínseca e única. Não pode ser tratada como um meio para um fim que é extrínseco a si mesma ou que não pode ser totalmente realizado dentro de si, e por si mesma. É seu próprio fim ou propósito; e usá-la ou considerá-la como um meio para atingir algum propósito coletivo - por mais nobre ou cristão que possa parecer - que só pode ser alcançado na condição de que ela aceite tornar-se parte de um todo maior, mais inclusivo e abrangente é reduzi-la de pessoa a indivíduo. É cortá-la de suas raízes vivas na Pessoa de Cristo, como o corpo de Cristo, a fim de fazê-la servir a uma concepção "mística" puramente abstrata, divorciada tanto do contexto eucarístico como da própria Pessoa de Cristo. Em outras palavras, quando a comunhão ou relação entre as igrejas locais segue o padrão que se aplica no caso das pessoas, ela será estabelecida não através de qualquer laço externo, mas através do reconhecimento mútuo de que cada uma possui e incorpora as mesmas qualidades internas, uma realidade interna idêntica. É essa realidade interior que as une e constitui o princípio da unidade entre elas. Em termos concretos, elas estão relacionadas ou em comunhão umas com as outras, porque cada um manifesta o corpo de Cristo e vive na verdade da vida em Cristo, consolidando essa unidade interior e católica no mistério eucarístico e na identidade de sua fé.

Quando, portanto, se trata de dar expressão a essa unidade e identidade interior no plano externo em termos de uma estrutura orgânica envolvendo as igrejas locais e trazendo-as para um relacionamento externo orgânico, um papel crucial será desempenhado pelo bispo de cada igreja local. É o bispo que, como vimos, incorpora a igreja local: ele é o órgão visível de sua catolicidade e unidade, tanto como imagem de Cristo como representante dos leigos. Ele é uma espécie de coincidência dos pólos divino e humano, assim como o próprio mistério eucarístico é uma coincidência desses pólos. É porque é constituído desta maneira que, como também temos observado, o ofício de um bispo não pode ser de maior ou menor significado que o de qualquer outro bispo: todos são essencialmente iguais. De fato, pode-se dizer que cada bispo ocupa o trono do único bispo da Igreja. Cada bispo ocupa o trono de São Pedro, que é o de Cristo. Este trono indica as funções concretas cumpridas pelo bispo na igreja local. São essas funções que fazem o ofício do bispo. E este trono de São Pedro é também o de Cristo porque as funções apostólicas que o constituem e que têm o seu princípio em Cristo como cabeça da Igreja são conferidas por Cristo em primeiro lugar, cronologicamente, a Pedro, de modo que a este respeito existe uma identidade interior entre Cristo e Pedro: uma identidade interior que constitui a essência da relação entre pessoa e pessoa. Portanto, não há contradição na afirmação de que a Igreja é fundada sobre e na Pessoa de Cristo e sobre e na pessoa de Pedro, e que ambos estão identificados com a 'rocha' na qual a Igreja é estabelecida.

Além disso, essa identificação da rocha na qual a Igreja é fundada com a Pessoa de Cristo e a pessoa de Pedro de modo algum impede a interpretação (comum nos escritos patrísticos) de que ela denota, não a pessoa, mas a fé de Pedro. A identidade das qualidades interiores que, a este respeito, constitui a essência do relacionamento entre Cristo e Pedro, consiste, acima de tudo, na posse mútua daquela verdade que está em Cristo. É a verdade de quem Cristo é que é revelado a Pedro não por carne e sangue, mas por Deus o Pai no Espírito Santo: que ele é o Filho do Deus vivo. É assim em virtude do fato de que Pedro incorpora e expressa esta verdade e é o órgão da verdadeira fé cujo princípio é Cristo - é em virtude disto que a pessoa de Pedro se torna a rocha sobre a qual a Igreja é fundada. É em virtude disto também que cada bispo que expressa a verdadeira fé também possui a verdade em Cristo; e é através desta possessão de uma realidade interior idêntica que ele está relacionado diretamente a Pedro e a Cristo e assim ocupa o único trono de Pedro que é também o trono de Cristo. É porque eles expressam o Logos da Verdade que todos os bispos são, ex officio, os sucessores de São Pedro, e estão investidos das funções apostólicas que Cristo conferiu em primeiro lugar a São Pedro. E é porque seu ofício concretiza essas funções que o bispo tem um papel crucial a desempenhar em qualquer estrutura orgânica que envolva as igrejas locais e através do qual sua unidade interna e identidade na fé são dadas uma expressão exterior.

Pois qualquer que seja a posição na teoria, na prática as diferenças surgem sobre o que constitui a verdadeira fé - diferenças tanto dentro de uma comunidade local como entre uma igreja local e outra. "Ouvi dizer que há divisão entre vocês", escreveu São Paulo aos coríntios; e heresias e cismas se multiplicaram nos séculos seguintes e ainda proliferam. Portanto, onde há uma disputa sobre a verdadeira fé ou outra questão que afeta a vida da Igreja na terra, surge imediatamente a questão sobre quem ou o que deve decidir onde está a verdade. Quem ou o que deve decidir em qual igreja local ou grupo de igrejas locais, dentre os quais bispo ou grupo de bispos, a tradição apostólica está sendo mantida? Aqui, à luz do que já foi dito, só pode haver uma resposta: é com todo o corpo de fiéis - o povo de Deus - que a responsabilidade reside em última instância. Mas como o corpo dos fiéis está em cada comunidade local representada pelo bispo, e como em virtude de seu ofício apostólico o bispo tem um status especial dentro da igreja local, esta responsabilidade deve ser expressa através do bispo. São os bispos - igualmente, unicamente e de forma unida - que, em primeira instância, são encarregados da tarefa de salvaguardar, defender e comunicar a integridade da tradição apostólica. Assim, quando há qualquer disputa sobre qualquer questão dentro de uma igreja local ou entre igrejas locais, a tentativa de resolvê-la deve ser feita em primeiro lugar pelos bispos, seja através de uma parte deles ou através de todos eles reunidos em concílio para pronunciar sobre isso. Pela própria natureza das igrejas locais e do ofício do bispo dentro delas, não pode haver nenhuma autoridade extra-episcopal ou extra-sacramental que possa usurpar esta tarefa e reivindicar agir como o critério ou árbitro da tradição apostólica ou exercer o magistério da Igreja na terra de uma maneira que desloca o episcopado desse papel crucial.

Tudo isso resulta implicitamente ou explicitamente do que foi dito sobre a constituição da Igreja na terra e do status do bispo dentro dela. Esta constituição e status fornecem a base teórica e real para a estrutura conciliar através da qual as igrejas locais expressam a unidade de sua fé e regulam qualquer disputa ou divergência entre si. O concílio - acima de tudo, um concílio ecumênico - é um órgão de autoridade na Igreja a esse respeito, porque expressa a plenitude da fé mantida em princípio por todas as igrejas locais e por todos os membros da Igreja. Não deve haver confusão sobre isso. Um concílio - até mesmo um concílio ecumênico - não é um corpo autoritário, ainda menos infalível, por si só. Seus pronunciamentos não têm ipso facto o mesmo caráter em relação às igrejas locais que as leis decretadas por um governo civil têm em relação aos membros daquela sociedade a que se destinam a se aplicar. Os pronunciamentos de um concílio - até mesmo de um concílio ecumênico - têm autoridade somente enquanto concordam, e somente na medida em que expressam, a totalidade da verdade em Cristo manifesta em cada igreja local e em cada membro de cada igreja local separadamente. Não é o caso de que os bispos se reúnem para debater uma questão à maneira de um parlamento civil e depois promulgam uma decisão majoritária que se torna uma lei obrigatória para todos os membros da assembléia e até mesmo para aqueles que não compareceram a suas sessões. Não é o caso também de que o episcopado como um todo é o sucessor dos doze apóstolos, como se o colégio ou "coral" dos Doze tivessem sido divididos entre todos os bispos locais, isso fazendo de um concílio uma espécie de continuação do apostolado em maior escala. O episcopado não é um corpo colegial. 

O que se pretende através de um concílio é que a identidade da fé manifesta em cada igreja local, e consequentemente investida em cada bispo, seja afirmada e confirmada através do testemunho mútuo de todos os bispos. É o fato de que seus pronunciamentos afirmam e confirmam a unidade e catolicidade da verdade estabelecida a priori na Igreja - e através do próprio ato de fundação da Igreja - que faz de um concílio um órgão autoritário na Igreja. Os pronunciamentos dos concílios não são e não podem ser o critério da autenticidade da afirmação de que uma igreja local é a Igreja de Cristo. É o corpo inteiro da Igreja que é o critério da ortodoxia. É a Igreja que determina os concílios, não os concílios que determinam a Igreja. É por isso que os pronunciamentos dos concílios - mesmo dos concílios ecumênicos - não podem ipso facto ter um caráter infalível. Infalibilidade reside somente em Cristo. Na medida em que os pronunciamentos de um concílio expressam a "mente de Cristo", nessa medida eles são infalíveis (embora não sejam exclusivos por este motivo: no nível humano há mais de uma maneira de expressar a mente de Cristo e existem mesmo caminhos que são infalíveis e ainda contradizem um ao outro do ponto de vista lógico). Poderia ser o caso, por exemplo, tanto na teoria como na prática, de que todos os bispos de um concílios estivessem errados e não expressassem a mente de Cristo, de modo que os pronunciamentos daquele concílio não representassem a verdadeira fé. Também poderia ser o caso, tanto na teoria como na prática, que a unidade e catolicidade da verdade seja encontrada em uma única pessoa, um único membro do corpo de Cristo. Nesse caso, a Igreja seria manifestada na terra naquela única pessoa e não em um concílio dos bispos ou no episcopado. Como foi dito, os leigos, em virtude de sua participação no corpo de Cristo, são co-responsáveis por manter, preservar e transmitir a tradição da Igreja. Eles tem sua participação no magistério da Igreja e em suas funções apostólicas. E antes que os pronunciamentos de um concílio ecumênico possam ser considerados como autoridade, eles devem ser reconhecidos e aceitos por todo o corpo da Igreja, clero e leigos.

4. Duas Eclesiologias Rivais 

A concepção patrística da Igreja e sua estrutura orgânica descrita nos capítulos anteriores é a de um entendimento comum a toda a cristandade. Acima de tudo, é a tradição Cristã Ortodoxa. Isso não quer dizer que não tenha sido e ainda não seja freqüentemente mal aplicada dentro do próprio mundo ortodoxo. Nos tempos bizantinos, na Rússia czarista e pós-czarista, na Grécia contemporânea e em outros lugares, esses abusos foram tão grandes que muitas vezes eclipsam ou enfraquecem a presença da Igreja na terra de maneira trágica. Mas, apesar disso, a concepção básica do que a Igreja é e como ela funciona na terra não foi perdida. Ainda é tão válida hoje como quando os apóstolos fundaram as igrejas locais no mundo greco-romano. Consequentemente, apesar dos abusos, é sempre capaz de ser reafirmada e revitalizada. Essa reafirmação e revitalização no passado muitas vezes ocorreram em momentos particularmente críticos: durante o tempo, por exemplo, das lutas contra os iconoclastas, ou durante os últimos séculos da era bizantina, sob a influência da tradição hesicasta, ou novamente em nossos tempos, parcialmente como consequência da propagação da Ortodoxia para o Ocidente e sua perseguição em muitos dos países da Europa Oriental. Isso significa que, até os dias atuais, nenhum abuso ou falha no entendimento se desenvolveu até o ponto em que afetou a doutrina em si, seja corroendo certos aspectos vitais ou acrescentando a ela de tal maneira que o que então se torna a doutrina oficial da Igreja é algo bem diferente. Assim como as doutrinas trinitária e cristológica ortodoxa têm mantido a forma dada pelos Padres da Igreja, a eclesiologia ortodoxa, que deriva dessas doutrinas, também manteve sua integridade; e deve continuar a mantê-la enquanto essas doutrinas principais ainda forem reconhecidas e aceitas. No entanto, embora este seja o caso no que diz respeito a tradição ortodoxa, o mesmo não é o caso em outro lugar. Em particular, na cristandade ocidental, durante o período medieval, certas diferenças na compreensão da Igreja começaram a aparecer, desenvolvidas até o ponto em que levaram à formulação e aceitação daquilo que equivalia a uma concepção radicalmente diferente da Igreja e de sua estrutura. Além disso, essa concepção diferente tornou-se agora a eclesiologia dogmática oficial. Tornou-se um artigo de fé, cuja aceitação é uma condição de membro da congregação dos fiéis. Como essa nova concepção dogmática oficial não era apenas diferente, mas em muitos aspectos incompatível com aquela mantida pela tradição ortodoxa, era inevitável que elas entrassem em conflito no plano histórico. O resultado tem sido uma brecha na comunhão e suporte mutual entre as igrejas que reconhecem e seguem a tradição patrística e aquelas que reconhecem e aceitam uma eclesiologia que veio a formar parte e parcela da doutrina oficial da igreja romana. Em outras palavras, o resultado foi um cisma entre as igrejas ortodoxas e as igrejas reconhecendo a hegemonia da igreja romana. Além disso, o crescimento e a aplicação dessa nova eclesiologia na metade ocidental da cristandade produziu uma reação adicional dentro desse próprio mundo; e essa reação resultou em um novo cisma, no qual várias igrejas que anteriormente aderiram à igreja em Roma retiraram seu reconhecimento e aceitação da autoridade romana. Mas essas igrejas não reafirmaram a eclesiologia da tradição patrística. Pelo contrário, elas produziram suas próprias teorias eclesiológicas, algumas das quais são derivadas da doutrina patrística, enquanto outras são inovações mais ou menos arbitrárias, introduzidas sob a influência de várias pressões, nacionais, políticas e assim por diante. Daí se conclui que uma compreensão das maiores divisões da cristandade - e tal entendimento é uma condição de qualquer ação positiva dirigida a curar essas divisões - pressupõe uma compreensão daquela concepção da Igreja que, durante o período medieval, gradualmente se tornou dominante na metade ocidental da cristandade. Pressupõe uma compreensão da eclesiologia da igreja romana.

Muito resumidamente, pode-se dizer que essa eclesiologia da igreja romana difere daquela da tradição patrística, sobretudo naquelas características relacionadas à organização e governo da Igreja na terra. Mais especificamente, difere naqueles aspectos relacionados à Igreja considerada como uma sociedade coletiva, corporativa e institucionalizada, que deve ser governada de maneira muito semelhante a qualquer outra forma de sociedade humana ou política. Notamos que a Igreja tem dois aspectos principais: a comunicação da vida divina, a manifestação das realidades espirituais; e a comunhão e a comunidade dos que participam desta vida divina, que participam dessas realidades espirituais - do povo de Deus que puseram a mente de Cristo e que são membros de seu corpo. Ao mesmo tempo, dissemos que esses dois aspectos da Igreja não devem ser separados um do outro. Eles não correspondem, por exemplo, a uma divisão entre a Igreja visível e a Igreja invisível, ou a Igreja no céu e a Igreja na terra, e assim por diante. Eles se interpenetram; e embora possam ser distinguidos logicamente, converter tal distinção lógica em uma distinção ontológica e, com base nisso, tratar esses dois aspectos da Igreja como se eles realmente constituíssem duas entidades quase independentes, cada uma exigindo um conjunto diferente de princípios e regulamentos operativos, seria rasgar em pedaços o manto sem emenda da Igreja. Seria considerar a Igreja não como uma realidade divino-humana integral, mas como uma realidade na qual, para fins práticos, o aspecto humano é virtualmente independente do aspecto divino. A Igreja, por definição, é constituída pela ligação vital da Divindade com a humanidade, através da união na pessoa de Cristo das naturezas divina e humana. Isso significa que é o próprio Deus, na Pessoa do Espírito Santo, que é o princípio real interno ou imanente da Igreja, incorporando através das energias divinas do Espírito os membros da Igreja no corpo de Cristo. E deve ser enfatizado que essa imanência do divino na Igreja não se aplica apenas à Igreja no céu ou no nível sobrenatural; aplica-se também à sua manifestação na terra, à Igreja como realidade sacramental: os dons e virtudes da Igreja na terra e o princípio imanente de sua unidade - sua forma interior informativa - não são apenas realidades criadas, até mesmo realidades criadas sobrenaturais, da graça procedente de Deus e assimilando os seres humanos a ele. Eles são, novamente, manifestações de suas energias divinas e incriadas.

Além disso, essa reciprocidade direta da união de Deus com o homem em Cristo e a incorporação de uma multiplicidade de seres humanos ao corpo de Cristo são entendidos como uma incorporação pessoal à Pessoa de Cristo. Elas podem ser entendidos desta maneira porque em Cristo não apenas uma única natureza humana, mas toda a natureza humana está unida ao divino. Não há espaço aqui para a idéia de que a Igreja constitui um corpo místico em um sentido não pessoal, à parte da Pessoa de Cristo. Por isso, a Igreja nunca pode ser vista simplesmente como uma sociedade ou congregação de fiéis - como "o corpo de cristãos unidos no Espírito Santo". Deve sempre ser encarada principalmente como uma realidade cristocêntrica: o corpo de Cristo como uma realidade ontológica. É por isso que a eclesiologia é realmente um aspecto da cristologia - e a cristologia é uma questão de ontologia, de reais estados de ser.

A Igreja na terra, portanto, não é uma sociedade religiosa no sentido humano ou político. Não é nem mesmo uma sociedade de fiéis ou uma congregação de fiéis fundada por Cristo. É uma realidade fundada em Cristo, ou sua manifestação - seu sacramento (mysterium) ou teofania ou ícone. Os Padres Gregos falam pouco sobre a instituição da Igreja como tal. Não há teologia da Igreja como uma instituição terrena por si só. A idéia deles da Igreja está firmada em suas principais considerações doutrinais e deriva delas: de sua cristologia e teologia do Espírito Santo, de sua contemplação do significado da encarnação e do Pentecostes. E o coração dessa eclesiologia não é o ensinamento, mas a Pessoa de Cristo: a Igreja é vista não tanto como fundada por sua Pessoa, mas sobre ela. É acima de tudo a Pessoa de Cristo que é a rocha sobre a qual a Igreja é fundada. É fundada sobre e no Filho do Deus vivo. É uma nova vida com Cristo e em Cristo. É uma uma realidade divino-humana, teândrica.

Mas isso não significa, como vimos, que a Igreja não tem nenhum aspecto institucional, nenhuma forma social e humana necessária para sua operação na terra, no tempo e lugar, na história e entre comunidades de homens e mulheres que vivem no tempo e no espaço.  Isso não significa que a Igreja não precise "se encarnar" em ofícios específicos e disciplinas responsáveis por regular e orientar suas atividades na terra. Pelo contrário, tem sua apostolicidade e ministério canônicos e os ofícios e procedimentos necessários para mantê-los e manifestá-los entre os homens. Mas novamente esta forma humana ou social ou modo de atividade que a Igreja é compelida a assumir para realizar sua tarefa na terra não está separada de sua forma divina ou modo de atividade, assim como a natureza divina de Cristo não é separada de sua natureza humana. É ainda a manifestação de uma única atividade teândrica que anima o todo, invisível e visível, incriado e criado, divino e humano.Está consequentemente enraizada na manifestação da Igreja na terra como uma realidade sacramental, uma realidade eucarística. Recebe sua sanção de sua relação com essa realidade e não tem justificativa à parte dela. As funções apostólicas e ministeriais através das quais a Igreja se expressa de forma e modo humano e social - como instituição - têm sua fonte e consumam-se na manifestação da Igreja como realidade eucarística, como corpo de Cristo. O corpo de Cristo é a realidade eucarística: "Este é o meu corpo". Essas funções e os ofícios hierárquicos que os acompanham não são, portanto, sancionados por Cristo em um mandato não-eucarístico. Elas não têm um status na Igreja como constituindo um corpo místico por si mesmos, à parte da Eucaristia. Elas são órgãos do corpo vivo que se manifestam na Eucaristia, expressões diretas da Pessoa de Cristo, funções exercidas dentro - não sobre - da Igreja como o corpo de Cristo. Cristo é a única verdadeira cabeça e liturgista de toda a Igreja, seja no céu ou na terra; e aqueles que exercem seu ministério na terra - os bispos - o fazem unicamente em virtude de sua condição de imagens de Cristo nas comunidades eucarísticas que presidem e pelas quais, em colaboração com os leigos de cada igreja local em particular, são responsáveis.

O que esta concepção da Igreja implica e pressupõe é uma visão ou entendimento em que o material, o criado ou o fenomenal é visto não como constituindo uma realidade em si mesma, separado e como se fosse paralelo, mas em um nível inferior, ao espiritual, ao incriado ou ao noumenal. Pelo contrário, é visto mais como a epifania do espiritual, do incriado ou do noumenal. O visível está relacionado ao invisível, ou material ao espiritual, não tanto quanto o efeito é à causa extrínseca, mas mais como sendo o modo no qual o invisível ou o espiritual existe no tempo e no espaço. O mundo no tempo e no espaço é visto como a extensão ou prolongamento do mundo espiritual. O mundo espiritual - o mundo divino - é a essência interna e a realidade do mundo no tempo e no espaço. Eles estão relacionados um com o outro não apenas analogicamente, mas simbolicamente, no sentido de que um é a imagem do outro, e assim participa diretamente da realidade do arquétipo do qual é a imagem. A ênfase está no criado como a imagem do incriado; e o caminho para a realização espiritual é através da realização do eterno no tempo, do espiritual no sensível, através de uma iluminação de toda a existência humana e de outras criaturas. Como a Igreja é o locus onde se consuma essa realização, ela também é vista, acima de tudo, como a entrada do eterno no tempo, do invisível no visível - como a esfera da transfiguração da humanidade e de toda a existência criada através da adoração e sacramento. Portanto, mesmo seu aspecto exterior - seu aspecto humano e social - é visto não como a realização da unidade eclesiástica e de seus princípios de governo numa forma institucional paralela ou analogamente relacionada àqueles que pertencem a outro nível à Igreja no céu. Eles são vistos como a expressão direta de uma unanimidade no amor, de origem e natureza espiritual, visível e encarnada no sacramento, na fé, na oração, na liturgia e nas funções apostólicas e hierárquicas do episcopado e do leigo.

É precisamente essa visão ou compreensão que é enfraquecida ou obscurecida na teologia que produziu a concepção da Igreja que se tornou a eclesiologia oficial da igreja romana. De acordo com essa teologia, o material, o criado, o fenomenal é visto muito mais como possuindo uma realidade em si mesma, como uma realidade independente, do que como a epifania do espiritual, do incriado e do noumenal. As coisas estão relacionadas a Deus e ao mundo espiritual como um efeito para uma causa e não como uma imagem para o arquétipo. É a coisa em si, na dimensão espaço-temporal, que é vista, não a sua semelhança com Deus. O mundo visível é das naturezas e causas, potencialidades e ações, não um mundo simbólico mostrando o divino, nem uma epifania ou uma teofania. Em outras palavras, o sentido da participação - do criado no incriado, do material no espiritual - é menos efetivo. As coisas visíveis são vistas não como participando, ainda menos como modos de existência de realidades invisíveis. Elas são vistas, na melhor das hipóteses, como coisas analógicas às invisíveis, que por si mesmas têm seu ser em outro nível superior e, por assim dizer, paralelo. Na teologia medieval ocidental como um todo, a consciência da distância que separa o Criador da criação é excessiva para permitir o desenvolvimento desse sentido de coisas visíveis constituindo uma espécie de microcosmo teomórfico que está por trás da eclesiologia patrística tradicional. Pelo contrário, o que é enfatizado é o senso de uma lacuna ontológica entre o mundo espiritual e o mundo do tempo e lugar, entre o divino e o humano, entre Deus e a natureza. Correspondentemente, o caminho para a realização espiritual não é tanto a realização da eternidade no tempo, do divino no humano, como de uma peregrinação do homem em direção a Deus. É menos uma questão de transfiguração e deificação (theosis) do que de eventual beatitude através da concessão da graça como um novo princípio de ação dando ao homem a capacidade de toda uma ordem de objetos e fins dos quais ele é, por natureza, incapaz e permitindo-lhe realizar ações que, por serem meritórias, o ajudarão em sua jornada ao céu.

Os pressupostos teológicos ou doutrinais que são refletidos nessa atitude serão examinados mais detalhadamente nos capítulos posteriores. Aqui, o que deve ser notado é como esta atitude, por sua vez, é refletida na eclesiologia da igreja romana. Pois o que é enfatizado nesta eclesiologia não é tanto a união indissolúvel dos elementos divinos e humanos da Igreja, nem tanto a participação dos aspectos criados e visíveis da Igreja em seus aspectos incriados e invisíveis, ou a Igreja como a entrada da eternidade no tempo, uma teofania. O que é enfatizado é mais a lacuna entre a Igreja em seus aspectos e elementos divinos, incriados e invisíveis, e a Igreja em seus aspectos e elementos humanos, criados e visíveis: a lacuna entre a Igreja como a manifestação das realidades espirituais e da Igreja como a sociedade ou congregação de cristãos que vivem no mundo do tempo e lugar. Deus é visto como a primeira causa e o princípio ativo da Igreja e sua unidade; mas ele não é visto como também a sua real morada e forma substancial, o seu princípio imanente de realização ontológica. Em vez disso, o que constitui essa forma e princípio são considerados realidades criadas sobrenaturais, porém criadas, da graça, da fé e da caridade. Ao mesmo tempo, a idéia da reciprocidade da união de Deus com o homem em Cristo e esta união com a humanidade é enfraquecida também por uma tendência a negligenciar a idéia de que em Cristo não apenas uma única natureza humana, mas toda a natureza humana é unida a Deus na Pessoa do Logos divino. Consequentemente, a multiplicidade de seres humanos chamados na Igreja para a união com Deus pode ser visualizada como atingindo essa união apenas em um sentido não pessoal: eles não participam da união das duas naturezas, divina e humana, em uma só Pessoa, mas formam uma entidade divino-humana independente como uma comunidade de muitas pessoas compartilhando a mesma vida divina. Isso significa dizer que a idéia da Igreja como um corpo místico é, de algum modo, afastada da idéia de união de Deus com o homem na Pessoa de Cristo. O significado de tal afastamento será discutido mais detalhadamente abaixo. Aqui, o que é importante notar é como ela também contribui e reforça a idéia da Igreja como uma sociedade religiosa em um sentido puramente humano e social - uma societas hominum fidelium ou congregatio hominum fidelium: a Igreja como o corpo universal daqueles que compartilham a luz da santa fé, como dizia Santa Catarina de Siena.

Pois o que começa a emergir como resultado da ascendência crescente dessas idéias na consciência eclesiástica da cristandade medieval ocidental é uma teoria segundo a qual a Igreja é vista operando em dois níveis quase independentes, mas paralelos, um divino e outro humano, um incriado e o outro criado, um invisível e o outro visível. Ela opera em duas ordens de realidade quase independentes, mas paralelas. Existe a Igreja no céu, a Igreja Triunfante, mantida por Deus em paz e perfeição e operando de acordo com a lei divina; e existe a Igreja na terra, in via: a Igreja Militante, que, porque tem que lidar com os seres humanos, no mundo histórico do tempo e espaço, tem que assumir a forma humana e social como qualquer comunidade de homens unidos em busca de um propósito comum. E como essa Igreja na terra é uma realidade humana e social - uma realidade sociológica - ela precisa operar de acordo com a lei humana da mesma maneira que qualquer outra construção social ou política. Isto significa dizer que a Igreja é agora concebida como operando de acordo com dois tipos distintos de lei, uma divina e outra humana; e o sentido de que é uma realidade única operando de acordo com uma única lei divino-humana e teândrica, é, se não perdido, então tão silenciado que cessa, para todos os propósitos práticos, de ser eficaz.

A conseqüência disso é que agora se assume que a Igreja na terra tem que ser governada exatamente da mesma maneira que qualquer outra sociedade ou instituição terrena e humana. Tem que ser orientada e direcionada para o cumprimento do seu propósito. Mas o padrão segundo o qual deve ser governada e guiada não é arbitrário. Seu modelo é fornecido pelo padrão eficaz para a Igreja no céu. Isso significa que todos os princípios que são entendidos como governantes da existência da Igreja no céu devem ser traduzidos em uma forma terrena equivalente, de modo que o padrão da Igreja na terra siga, tanto quanto possível, o padrão da Igreja no céu. Em termos mais precisos, os princípios internos que devem ser assim traduzidos em seus equivalentes institucionais e humanos dizem respeito sobretudo às três categorias de fé, graça e vida comum. Em outras palavras, a Igreja na terra deve possuir um magistério (que fornece o critério positivo para a vida em verdade); um sacerdócio (que opera os canais da graça, os sacramentos); e um episcopado (que é o instrumento através do qual a sociedade dos cristãos na terra é governada). Deste modo, os princípios que governam a Igreja no céu são traduzidos em seus equivalentes apostólicos, hierárquicos e sociais; e as formas em que são incorporados constituem uma só e única imitação institucional e organizacional no plano visível da Igreja invisível. Eles são o corpo místico tornado visível. De fato, eles são a própria substância do corpo místico.

Neste ponto, deve ser enfatizado que, embora a Igreja seja assim concebida como funcionando em um duplo plano e de acordo com uma dupla lei de unidade e organização, isso não significa de modo algum que a eclesiologia romana sustente que existem duas Igrejas. Não existe um corpo místico invisível e uma instituição visível sem conexão com ele. Pelo contrário, as próprias formas institucionais são tomadas como constituindo o próprio corpo místico. Elas são identificadas com ele. Elas são estabelecidos por Deus e são da essência da Igreja e, portanto, não são suscetíveis a mudanças. Portanto, teoricamente, pelo menos se não na prática operacional, a analogia da unidade divino-humana na Pessoa de Cristo é válida, embora seja agora apenas uma analogia. Isto significa dizer que, de uma maneira analógica, a Igreja visível é ainda a manifestação e instrumento da vida invisível de Cristo. Pensa-se que a organização social visível realiza no espaço, no tempo, e conserva através do tempo a realidade interior e invisível da vida em Cristo. A Igreja como instituição é considerada como o instrumento da Igreja como corpo místico, as duas formando uma realidade única. Na Igreja na terra considerada como uma realidade eucarística, é claro que isso é claramente o caso: há continuidade direta entre os aspectos invisíveis e visíveis da Igreja e eles compõem uma única realidade. Na medida em que, também, os fiéis participam da Eucaristia, eles são membros da Igreja através da participação direta no corpo de Cristo. A Eucaristia e a Igreja são ambas designadas como o corpo de Cristo. De fato, para a tradição patrística, como vimos, a designação da Igreja como o corpo de Cristo deriva do que é basicamente uma concepção eucarística da Igreja.

Na concepção da Igreja que se torna efetiva no mundo medieval romano, no entanto, a idéia da Igreja na terra como o Corpo místico não é determinada exclusivamente por sua manifestação como uma realidade eucarística. Pois além da ideia da Igreja como realidade eucarística, esta concepção inclui também a ideia de que a Igreja possui uma função apostólica, um ministério e a forma de uma instituição jurídica corporativa que, embora constituam também o Corpo místico, são ainda não determinados pela Igreja como realidade eucarística. Pelo contrário, é dito que eles foram determinados por Cristo em um mandato explícito, porém extra-eucarístico. Isto significa dizer que enquanto na concepção patrística tradicional a função apostólica da Igreja como a realização da unidade eclesiástica em uma forma social é sancionada e determinada pela Igreja como uma realidade eucarística, nesta concepção romana ela é sancionada e determinada por Cristo em um mandato não-eucarístico e, portanto, tem status de corpo místico à parte da Eucaristia. Da mesma forma, as funções hierárquicas da Igreja são vistas como manifestações desse corpo não porque aqueles que as exercitam estão em uma relação particular com o corpo de Cristo como uma realidade eucarística. Elas são vistas como manifestações deste corpo porque aqueles que as exercitam exercem um ministério que é, vicariamente e instrumentalmente, o do próprio Cristo. E o entendimento é que este ministério é realizado com a autoridade direta de Cristo e que é justificado com base no fato de que, enquanto Cristo não estiver vivendo de maneira mística ou interior na congregação dos fiéis, a participação na instituição da Igreja e seu governo pelos funcionários hierárquicos são necessários. Em outras palavras, esta nova concepção da Igreja prevê pelo menos dois atos distintos e independentes de instituição realizada por Cristo: aquele pelo qual Ele estabeleceu a função apostólica da Igreja, e aquele pelo qual Ele estabeleceu a Igreja como uma realidade eucarística. Através de ambos, Ele estabeleceu o corpo místico da Igreja na terra. A incorporação neste corpo místico, portanto, não é somente ou mesmo acima de tudo através da participação na Eucaristia. É também - e, na verdade, principalmente - através da participação na forma institucional visível da Igreja e na subscrição de suas leis. É essa própria forma institucional que agora é considerada como possuindo um caráter católico; e, portanto, é filiação a ela, e a subscrição a ela, o que em si constitui a filiação à Igreja Católica: não se pode participar na catolicidade da Igreja de Cristo ou ser um membro do corpo de Cristo sem essa adesão e subscrição à instituição visível da Igreja. É isso que explica a grande ênfase na forma externa da unidade da Igreja. Na visão patrística, a unidade do povo de Deus é derivada, acima de tudo, de sua participação direta na indivisibilidade do corpo de Cristo na Eucaristia. Nesta perspectiva, também a catolicidade reside acima de tudo no fato de que toda a verdade em Cristo é manifestada em cada igreja local e que através do mistério eucarístico celebrado em cada igreja local todo o corpo de fiéis pode participar nela. Mas na visão romana das coisas, a unidade do povo de Deus é vista como dependente, acima de tudo, da condição de membro da instituição visível da Igreja; e a catolicidade da própria igreja local é vista como residindo, acima de tudo, no fato de ela ser um membro dessa instituição corporativa mais ampla e abrangente. Isso significa que a Igreja é vista como manifestada na terra não tanto em cada igreja local autêntica - apostólica e episcopal - mas em uma instituição coletiva, corporativa e social da qual cada igreja local constitui uma parte. Além disso, cada igreja local pode ser considerada como católica somente na condição de que ela se constitua uma parte dessa sociedade abrangente e ampla. E como esta sociedade em si é tratada para propósitos práticos da mesma maneira que qualquer outra forma de sociedade humana ou política, segue-se que ela deve ser governada da mesma maneira. Tem que haver no plano social e comunal algum órgão ou instrumento que promulgará as leis necessárias para administrá-la e para incorporar todos os povos nela. Tem que haver alguma autoridade que represente sua unidade e lhe dê uma realidade institucional e eclesiástica. É aqui que encontramos a coroa e o pivô do que, de acordo com esta eclesiologia romana, constitui a estrutura da Igreja na terra: o papado. Pois é o papado que é considerado o órgão central ou instrumento do governo da Igreja na terra; e a autoridade que representa o princípio da unidade da Igreja na terra é identificada no papa.


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