terça-feira, 12 de dezembro de 2017

O erro da devoção ao Sagrado Coração (Pe. Aidan Keller)

A devoção ao Sagrado Coração de Jesus é algo popular na Igreja Católica Romana de hoje. Frequentemente vemos representações do Coração, e nos livros de oração Católicos Romanos há orações e consagrações de pessoas e lugares para o Coração. Tem sido chamado de “presente de Deus para a nossa era.” O que é esse presente?
A devoção ao Coração apareceu pela primeira vez em 1600 sob os auspícios da ordem jesuíta, que buscava enfatizar a humanidade de Cristo. Isso fazia parte de sua campanha para tornar o cristianismo menos exigente, menos "outro", mais acessível. Para forjar seu novo "cristianismo mínimo", os teólogos jesuítas, por exemplo, tentaram provar que, para que um pecador seja absolvido, ele só precisa ter medo do inferno ou lamentar as consequências de seus pecados. Os chamados jansenistas, por outro lado, com outros que sustentaram a prática Católica, se opuseram os ensinamentos jesuítas, dizendo que é o amor de Deus que deve motivar os penitentes a confessarem. Enquanto os jesuítas debatiam a frequência com que é necessário amar a Deus - um jesuíta defendendo que é suficiente se uma pessoa ama a Deus uma vez antes de morrer - o cristianismo Ortodoxo diz respeito à plenitude da vida em Cristo e quase não está interessado no que seria o mínimo absoluto para alcançar a salvação. A forma tomada pela recém-forjada devoção à humanidade de Jesus como popularizada pelos jesuítas também se desviou dos limites da doutrina ortodoxa. Sabemos que houve sete Concílios Ecumênicos da Igreja, de cujo ensino dogmático não pode haver apelo. O Concílio de Éfeso (431), respondendo aos ensinamentos de Nestório, o Patriarca herege de Constantinopla, ensinou que o Verbo, a segunda Pessoa da Trindade, foi feito homem - que Ele assumiu um corpo humano e uma alma humana - que Ele apareceu no mundo sob o nome "Jesus", e sob o título "Cristo". Assim, há apenas uma Pessoa de Jesus Cristo, e esta Pessoa deve ser adorada com uma única adoração, da latria, o tipo de adoração prestado a Deus todo-poderoso. Nestório, no entanto, tentou separar a honra prestada à humanidade de Cristo daquela oferecida a Sua Divindade. Assim, Nestório havia dito em um sermão de Natal em Constantinopla que era humilhante para ele adorar um bebê!

São Atanásio de Alexandria apontou o erro de adorar o corpo de Cristo de uma maneira separada, com estas palavras: "Não adoramos uma coisa criada, mas o Mestre das coisas criadas, o Verbo de Deus feito carne. Embora a própria carne, considerada separadamente, seja parte das coisas criadas, ainda assim tornou-se o corpo de Deus. Nós não adoramos esse corpo depois de o separarmos do Verbo. Da mesma forma, não separamos o Verbo do corpo quando queremos adorá-Lo. Mas sabendo que 'o Verbo foi feito carne', reconhecemos o Verbo existente na carne como Deus" (Ep. Ad Adelph., Parágrafo 3).


Os que adoram o Sagrado Coração adoram, com uma única adoração, toda a Pessoa de Cristo, ou eles realmente adoram o Seu corpo separadamente? Como surgiu essa devoção?

O primeiro teólogo que ensinou essa devoção foi o padre jesuíta La Colombiere (falecido em 1682). Ele era o pai confessor de uma irmã da Visitação, chamada Maria Alacoque (+1690), que, segundo ele, informou-lhe de uma série de revelações que recebeu, revelações que passaram de seus papéis para publicações jesuítas e para a vida da irmã Maria publicado por Languet, bispo jesuíta de Soissons. Quando Languet publicou sua Vida, provocou tal alvoroço e escândalo que ele e seu irmão tentaram esconder todas as cópias. Mas era tarde demais; alguns já haviam sido vendidos, e uma tradução italiana foi publicada. O papa Clemente XIV condenou-o em 1772.

Quais foram essas visões que tanto escandalizaram o clero Católico Romano e os fiéis no século 18?

Maria Alacoque afirmou que a devoção ao Sagrado Coração foi revelada pelo próprio Jesus Cristo da seguinte maneira. Um dia, quando ela estava em oração perante o Santíssimo Sacramento, Jesus veio e mostrou-lhe o coração dEle, e disse que desejava que a sexta-feira após o Corpus Christi fosse dedicada à adoração de Seu coração, "pelo amor que Ele me deu." "Dirija-se", disse Ele, "ao meu servo, o padre jesuíta La Colombière; diga-lhe para que trabalhe o mais duro que puder para estabelecer essa devoção, a fim de dar prazer ao Meu coração." Marie entregou esta mensagem, acrescentando: "Jesus Cristo tem grandes esperanças para sua Sociedade [Jesuíta]".

Então as revelações aumentaram. Irmã Maria passou noites inteiras em "colóquios amorosos com o seu amado Jesus". Um dia, Ele permitiu que ela inclinasse a cabeça em Seu peito e pediu o coração dela. Ela consentiu. Ele tirou o coração dela de seu peito, colocou-o sobre o Seu próprio, e então devolveu para seu peito. A partir desse momento, sentiu uma dor contínua nesse lado, onde seu coração havia sido extraído e substituído.  Jesus disse-lhe para sangrar-se quando a dor se tornasse muito grande.

Maria Alacoque deu seu coração a Jesus por um documento físico, um título, que ela assinou com seu próprio sangue. Em troca, Jesus lhe deu um título, que a designou como herdeira de Seu coração pela eternidade. "Não seja mesquinha com isso", Ele disse a ela: "Eu permito que você use como quiser, e você será um brinquedo para o Meu bom prazer". Ao ouvir estas palavras, a irmã Maria pegou uma faca de bolso e esculpiu o nome de Jesus na carne do peito "em letras grandes e profundas".

A vida do bispo Languet se baseia na "promessa do casamento" que ocorreu entre Jesus e a irmã Maria, no "noivados e desposórios" deles. (Na verdade, os termos que ele usa são muito gráficos para serem usados em um fórum público cristão.) Languet também relata que na primeira sexta-feira de cada mês as dores no lado da irmã Maria eram tão intensas que ela chegava a sangrar. Uma vez que isso ocorreu de 1674 a 1690, ela teria sangrado 192 vezes em honra ao Sagrado Coração, acreditando que estava obedecendo as injunções expressas de Cristo.

Os jesuítas usaram sua campanha de disseminação da devoção ao Sagrado Coração como meio de difundir outras doutrinas, inclusive a Imaculada Conceição da Virgem. A irmã Maria Alacoque aspirou também a semear as sementes dessa crença: que a Mãe de Deus foi concebida de uma maneira além da experiência humana. Ela também insistiu que aqueles dentro de seu círculo de influência engolissem pequenas folhas de papel com as mensagens pertinentes escritas nelas.

"Você prometeu", ela escreveu ao seu irmão, um sacerdote, "que você tomaria as notas que eu lhe envio, uma a cada dia, com o estômago vazio, e que você celebraria nove missas, em nove sábados, em honra da Imaculada Conceição [da Virgem Maria] e tantas missas da Paixão, em nove sextas-feiras, em homenagem ao Sagrado Coração. Eu acredito que nenhum daqueles que serão particularmente dedicados ao Coração perecerá".

Após essas vigorosas campanhas promocionais, a Congregação dos Ritos de Roma foi convidada a estabelecer uma festa do Sagrado Coração, um pedido negado em 1697. Trinta anos, a Ordem esperou, usando imagens, medalhas, folhetos, fotos, histórias, sermões, confraternidades e exortações na confissão para promover a devoção do Sagrado Coração.

Em 1727 e 1729, foram apresentados mais dois pedidos para a festa do Sagrado Coração. O Promotor da Fé para a Congregação na época era chamado Prospero Lambertini. Ele era um homem bem educado e não muito inclinado para os programas jesuítas, e ele negou os pedidos. Em seu trabalho "Sobre a canonização dos santos", Lambertini nos deixou um relato do caso. "Se alguém solicita uma festa para o Sagrado Coração de Jesus", ele se pergunta, "Por que também não pede um para o Lado Sagrado ou os Olhos Sagrados de Jesus? Ou, mesmo para o Coração da Santíssima Virgem!" Prospero Lambertini tornou-se mais tarde o Papa-escolar Bento XIV. Pouco poderia ter previsto que o que ele sabia ser tão absurdo, depois de seus dias, infectaria toda a Igreja Romana. No século XIX, a Igreja Romana estabeleceu uma devoção ao Sagrado Coração de Maria, e até mesmo instituiu um dia de festa em sua honra.

Observou-se que a nova devoção do Sagrado Coração não foi favorecida por Roma e foi desaprovada por Bento XIV. Mas, no final do século 18, o papa Clemente XIII, amigo dos jesuítas, tentou reverter a posição negativa de Roma pelos seguintes meios. Ele fez alguns bispos poloneses escrever-lhe algumas cartas implorando-lhe para aprovar a devoção e alegou que recebeu uma carta da mesma importância de Philip V, o rei da Espanha. No entanto, o rei foi avisado, e ele tornou conhecido publicamente que "sua" carta era falsa.  Os jesuítas, o Papa e o ministro Torregiani estiveram envolvidos nesse sórdido caso. Como resultado, em 1765, Clemente XIII autorizou um dia de festa em homenagem ao coração de Jesus. Ele não se atreveu a aprovar uma festa do coração físico, mas do coração simbólico de Jesus, como um emblema do amor do Salvador pela humanidade. Na verdade, logo depois, quando um certo bispo francês interpretou a festa como em homenagem ao coração físico de Jesus, Roma interveio. O jurista canônico Blasi publicou uma dissertação em 1771 para provar que o culto ao coração físico não estava autorizado e o Papa Pio VI declarou o mesmo.


A reticência do tribunal papal em Roma acabou por ser impotente contra a maré da devoção popular Católica Romana. A maioria dos bispos Católicos publicaram cartas pastorais para estabelecer o culto ao Sagrado Coração, nomeando o coração físico como objeto de adoração. Os ofícios foram compostos e inseridos nos Missais e Breviários, e as devoções em livro de orações abundaram. Apologistas pela devoção tentaram exonerá-lo de acusações de nestorianismo. (Nestório honrou Jesus como homem de uma maneira e Jesus como Deus de outra, a Fé ensina-nos que devemos adorar Jesus Cristo como uma pessoa tanto humana como Divina, não como uma ou outra separadamente).

Os apologistas argumentaram que eles adoravam o Coração por causa da união do mesmo com a Divindade. O que eles esqueceram é que o próprio Nestório, quando encurralado no Concílio de Éfeso, também afirmou que "adorava o que era visível por causa do que estava escondido".

Tais sutilezas não conseguiram esconder que a devoção original era uma verdadeira adoração do coração físico. O jesuíta Pe. Galifet escreveu: "É uma questão do coração de Jesus Cristo em seu sentido próprio e simples e não é de modo algum metafórico. Jesus Cristo fala de seu próprio coração literal [nas "revelações" de Irmã Margarida Maria]; isto é mostrado por Sua ação de descobrir Seu coração e mostrar ... Aqui, então, está o objeto palpável da devoção..." Ele procurou validar a adoração do Coração buscando um precedente na Festa de Corpus Christi. "O objeto exclusivo e próprio da Festa de Corpus Christi é a carne de Jesus Cristo; a partir disso, deve concluir-se que esta festa não foi realmente instituída para honrar a Pessoa de Jesus Cristo, mas para honrar a Sua carne, Seu Corpo, Seu Sangue, já que nem Sua Divindade nem Sua Pessoa são o objeto formal desta festa."

No final, essas críticas e contra-defesas nos círculos Católicos tornaram-se efetivamente obsoletas por uma única ação do Vaticano. O Papa Pio IX canonizou a Irmã Margaret Maria Alacoque. Não havia dúvida de como ela pretendia honrar o Coração, então não havia mais nenhum pensamento de que o Sagrado Coração pudesse ser confinado a um símbolo do amor de Deus. Suas "palpitações", "dilatações", "batendo no céu", eram adoradas, como são hoje pelos Católicos Romanos. O historiador, o padre Rene Francois Guettee, em sua obra polêmica "O Papado Herético", observa que, ao destacar a adoração, não apenas o corpo humano de Cristo em oposição a toda a Pessoa, mas o coração em oposição ao resto do corpo dEle, um erro ainda pior do que Nestório foi inventado. Podemos notar que foi o mesmo Pio IX que fez outras fórmulas oficiais Católicas Romanas que militam contra as tradições cristãs Ortodoxas do Oriente e do Ocidente. Ele formalmente ensinou (1) a Imaculada Conceição de Maria; (2) o Direito Divino da Igreja Romana para usar a força armada, e a (3) Infalibilidade Papal.

Muitos na América são convertidos à Fé Ortodoxa e podem ter imagens do Sagrado Coração em suas casas, como bagagem literal de seus dias pré-ortodoxos. Além disso, amigos bem intencionados podem dar  imagens ou orações do Sagrado Coração como presentes. O fiel deve substituir todas essas imagens por ícones Ortodoxos genuínos. Eles não devem colocar as imagens do Sagrado Coração, nem qualquer outra imagem não-Ortodoxa, no canto dos ícones.

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Nota do blog: sobre o tópico da devoção ao Sagrado Coração veja também: A devoção ao "Sagrado Coração" (retirado do livro The Church Impotent: The Feminization of Christianity) por Leon J. Podles.  https://teo-ortodoxa.blogspot.com/2021/03/a-devocao-ao-sagrado-coracao.html

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